Regulação – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 22 Aug 2022 22:56:23 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Efeito Fim de Jogo nas Concessões de Eletricidade https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3671&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=efeito-fim-de-jogo-nas-concessoes-de-eletricidade Mon, 22 Aug 2022 22:54:09 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3671 Efeito Fim de Jogo nas Concessões de Eletricidade

 

Por Joisa Dutra* e Romário Batista**

 

O término dos contratos é objeto do livro “Concessões no Setor Elétrico Brasileiro – Evolução e Perspectivas”[1], recém-lançado[2]. Passadas quase três décadas desde o início da reestruturação do setor elétrico, os próximos 10 anos são palco do término de 129 contratos de concessão de distribuição(D), geração(G) [3] e transmissão (T)[4]. Representam cerca de 62,6% do mercado das distribuidoras[5], 20 GW de potência hidrelétrica e 9.000 km de linhas de transmissão. A obra é relevante e oportuna, principalmente com o avanço dos debates para aprovação no Legislativo da Modernização do Setor Elétrico (PL 414/21), que inclui propostas de tratamento às concessões vincendas.

As desestatizações ao final da década de 1990 garantiram a outorga de novos contratos por 30 anos. Isso viabilizou a expansão do sistema elétrico, através da implantação de novas instalações de geração e redes de transmissão e distribuição. Alcançamos também a universalização do acesso à energia elétrica, que hoje atende 99.9% da população. Tudo isso é fruto de uma bem-sucedida coexistência de capitais públicos e privados.

O setor elétrico tem papel crítico na transformação da sociedade, rumo à descarbonização, que é chave para enfrentar os desafios da deterioração do meio ambiente. O volume de investimentos previsto no horizonte do Plano Decenal de Energia PDE/2031, elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética, é de R$ 3,2 trilhões. Segurança jurídica é fundamental para financiamento e investimentos em qualquer setor de infraestrutura, afetando diretamente o custo de capital.

O que chamamos aqui de as “regras do fim do jogo” fazem parte do que é considerado pelos agentes nas suas decisões de investimento por todo o período da concessão e, especialmente, quando vai chegando ao final, quando podem sobrar “menos anos” para recuperar o que foi investido. É essencial saber as condições que vão pautar a decisão do Poder Concedente sobre licitar ou prorrogar as concessões. Previsibilidade aqui requer o desenho e a implementação de uma política funcional de gestão de outorgas.

A decisão sobre o que fazer no término dos contratos vai além da uma simples dicotomia entre licitar ou prorrogar:  a possibilidade de renovar concessões do setor elétrico abre espaço para repactuar a relação contratual entre Poder Concedente e concessionários. A adaptação dos contratos a um mundo em transformação pode garantir melhores incentivos e ganhos de eficiência para a prestação dos serviços e expansão do sistema. Ganham usuários, empresas e o governo.

O contexto atual de transição energética amplia os desafios e dilemas em torno da renovação ou licitação das outorgas vigentes, sobretudo para o segmento de distribuição. Em um mundo descentralizado e digitalizado, a empresa de distribuição de eletricidade se converte em um Operador do Sistema de Distribuição – o DSO, da sigla em inglês.

Flexibilidade para adaptar contratos no advento de seu término é essencial quando a transição energética dá espaço ao DSO. Novos serviços são necessários para o adequado gerenciamento de um ambiente que combina recursos energéticos distribuídos (DER, da sigla em inglês), conceito que inclui a geração distribuída, a resposta da demanda, o armazenamento e  veículos elétricos. As redes elétricas são grandes facilitadores dessa transformação. Como isso tudo custa caro, a renovação permite amoldar os contratos a essa nova realidade, que demanda ainda resiliência a eventos como extremos climáticos e ataques cibernéticos em um adequado compartilhamento de risco entre concessionários e poder concedente. 

Os investimentos para adaptar as redes de distribuição ao conceito DSO são vultosos e não meramente incrementais. Isso é ilustrado em artigo recente de Anna Brockway e coautores [6], que foca na companhia PG&E, uma das três grandes utilities que operam na Califórnia. A análise mostra que a penetração dos veículos automotores elétricos em patamar coerente com os compromissos climáticos para aquele estado demandaria aumentar muito os investimentos nos sistemas de distribuição. Para ilustrar, os investimentos requeridos para aquele fim até 2025 correspondem ao triplo do projetado pela empresa no período.  Análises semelhantes ainda não estão disponíveis por aqui. Mas são essenciais para pactuar as condições entre Poder Concedente e concessionário para viabilizar investimentos consistentes com a almejada “transição energética” para fontes limpas nas próximas décadas.

O livro oferece ainda contribuições metodológicas para subsidiar a decisão quanto à renovação ou licitação das outorgas, como os modelos de: (i) avaliação das condições de prestação serviços – se adequada ou não –, mensurável através de índices de sustentabilidade; e (ii) análise financeira de valuation para usinas hidrelétricas, que daria pistas da duração ótima da concessão.

O livro apresenta, ainda, proposta de instrumento normativo infralegal, destinado a reduzir incertezas e assegurar um procedimento mais estruturado, previsível e transparente para regulamentar a prorrogação, bem como o pagamento de indenizações por investimentos não amortizados em bens reversíveis.

Na síntese de Ricardo Brandão[7], que escreve na contracapa, “O estudo oferece as balizas para o Poder Concedente em seu processo de tomada de decisão, posto que traz a ótica do regulador, a visão dos órgãos de controle externo e a jurisprudência dos tribunais; mas é também um guia para concessionários, investidores e consumidores, para melhor compreender todas as camadas que envolvem esta discussão. Sem dúvidas, esta obra já nasce como referência obrigatória para os que desejam se debruçar sobre o tema das concessões e das prorrogações de seus contratos”.

 

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Resultado de pesquisa (P&D ANEEL), o livro  visa lançar sólido alicerce para que floresçam as discussões sobre as transformações em curso no contexto da transição energética e o desafio de refleti-las em direitos e obrigações nos instrumentos de outorga. Isso reforça e se coaduna com as novas práticas adotadas a partir dos “Princípios para Atuação Governamental no Setor Elétrico” (Portaria do Ministério de Minas e Energia (MME) 86/18), em especial os da “transparência e participação da sociedade nos atos praticados”, autorizando, desse modo, a legítima aspiração dos agentes, consumidores, entidades representativas e demais segmentos interessados, de participarem desse debate, de forma estruturada e tempestiva.

É preciso, no entanto, vigilância quanto a possíveis recaídas ou compromissos com o passado de improvisações e arranjos de última hora. Circularam na mídia, nos últimos meses, notícias de iminente edição de (i) Medida Provisória para dispor sobre a renovação antecipada de concessões de geração e (ii) Decreto para regulamentar a renovação de concessões de distribuidoras privatizadas, prescindindo de qualquer debate com os atores envolvidos e efetivamente comprometidos com soluções estruturais e harmônicas[8]. Setembro próximo “comemoramos” 10 anos da edição da Medida Provisória 579/2012, o 11 de setembro do setor elétrico, que tentou – e falhou – aproveitar a oportunidade de renovação de concessões para alcançar redução de tarifas e preços de eletricidade tão somente por motivações eleitorais.

A despeito desses ruídos, há sinalizações do MME para uma regulamentação, até dezembro de 2022, de diretrizes e metas para eventual renovação dos contratos de concessão de distribuição, alinhadas com a modernização e com os novos paradigmas do setor, e que tragam benefícios efetivos ao consumidor. Tal processo estaria sendo desenvolvido com base em estudos e avaliações específicas, em observância às determinações e recomendações constantes do Acórdão TCU nº 2.253/2015-Plenário e dos relatórios técnicos que o subsidiaram[9].

Embora possa representar um avanço em relação a práticas anteriores, é preciso ainda assegurar o diálogo e a participação nesse processo dos diversos atores envolvidos e/ou afetados, de forma estruturada e transparente. Esse é, sem dúvida, o melhor caminho para que as “regras do fim do jogo” possam ser consideradas desde o princípio, em prol da segurança jurídica e da viabilidade de vultosos investimentos na adaptação e modernização das redes e demais instalações de energia elétrica no ambiente digitalizado e descentralizado da transição energética!

 

 

 

[1] Synergia Editora (Parceria entre FGV/CERI-FGV/Direito SP e a EDP Energias do Brasil, no âmbito do Programa de P&D da ANEEL).

[2] Webinar do FGV CERI e FGV Direito SP, realizado em 20/7/22, com o apoio e participação da EDP, da ANEEL e do MME.

[3] Inclui as UHEs Tucuruí e Mascarenhas de Moraes, com 8,8 GW de potência, cujas concessões foram renovadas antecipadamente nas condições da Lei nº 14.182/21 (Desestatização da Eletrobras).

[4] Mais de uma centena dessas concessões decorrem de privatizações de empresas federais ou estaduais ao final da década de 1990, bem como de licitações de novas outorgas de geração e transmissão realizadas a partir de 1995.

[5] Relatório de Indicadores de Sustentabilidade Econômico-Financeira das Distribuidoras: ANEEL- Base Set/21; 14ª Edição – Dez/21.

[6] Anna Brockway (2022) et al.. “Can Distribution Grid Infrastructure Accommodate Residential Electrification and Electric Vehicle Adoption in Northern California?” Energy Institute at Haas Business School Working Paper 327.

[7] Diretor Executivo de Regulação da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (ABRADEE). Foi Procurador Geral na Agência Nacional de Energia Elétrica.

[8] Mudanças nos regramentos e nos contratos aplicáveis produziram um arcabouço heterogêneo no tempo (diferentes “safras” de contratos) e mesmo dentro de um mesmo segmento (G/T/D). Defendem os autores do livro o estabelecimento de um procedimento estável e funcional, com anterioridade e previsibilidade, para tomada de decisão pelo Poder Concedente quanto ao futuro das concessões, de modo a alterar o cenário atual de incertezas institucionais e regulatórias.

[9] No julgamento do TC 003.379/2015-9[9], o Plenário da Corte de Contas considerou constitucional a prorrogação de todas as concessões de distribuição de energia elétrica pelo prazo de 30 anos, desde que as empresas concessionárias aceitassem as novas metas de qualidade e de gestão econômico-financeira definidas pela ANEEL. Entendeu, ainda, que estava caracterizada uma situação de excepcionalidade suficiente para afastar a necessidade de realização de nova licitação pública.

O posicionamento dos Ministros contrariou o entendimento das instâncias técnicas no Tribunal de Contas da União, que propugnavam pela inconstitucionalidade da Lei nº 12.783/2013 e insistiam na necessidade de realização de novas licitações.

Para a SeinfraEnergia, unidade do TCU< o poder concedente não teria caracterizado, por meio de estudos técnicos, a situação excepcional capaz de justificar a necessidade de prorrogação. Também não teria sido demonstrada a vantagem da prorrogação, em relação à alternativa de relicitação de todos ou alguns contratos de concessão. De outro lado, o modelo de prorrogação proposto violava a Lei nº 8.987/1995 e a Lei nº 12.783/2013, na medida em que teria caráter gratuito. A definição de novas metas de qualidade e de gestão econômico-financeira para as atuais concessionárias não caracterizava a onerosidade da prorrogação. A prestação de serviço público adequado, segundo os parâmetros estabelecidos pelo poder concedente, constitui a obrigação básica de toda e qualquer concessionária. Tampouco havia previsão de novos investimentos por parte das atuais concessionárias para o cumprimento das metas impostas. O caráter generalizado da prorrogação abrangeria indistintamente as concessionárias que não vinham prestando serviço adequado aos usuários. A sanção de caducidade não constituía mecanismo eficaz para garantir o cumprimento das novas metas de qualidade definidas pela ANEEL.

 

 

* Joisa Dutra é diretora do FGV CERI e doutora em economia pela FGV EPGE.

 

** Romário Batista é pesquisador do FGV CERI e ex-secretário de Parcerias em Energia, Petróleo, Gás e Mineração do PPI.

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Internet, Árvores e a Floresta https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3644&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=internet-arvores-e-a-floresta Tue, 05 Jul 2022 12:06:21 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3644 Internet, Árvores e a Floresta

 

Por Carlos Baigorri*, Fabio Lucio Koleski** e Mozart Tenorio Rocha Junior***

 

Os resultados da pesquisa TIC Domicílios 2021, divulgados em junho de 2022 pelo Centro Regional de Estudos, para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) trazem, ao menos, duas constatações para quem analisa a regulação dos serviços de telecomunicações no Brasil.

A primeira, mais óbvia, é que nossa população está cada vez mais conectada e que as disparidades regionais e sociais no acesso à Internet têm diminuído ao longo dos anos, o que aponta para um acerto das políticas regulatórias.

A segunda, menos óbvia, aponta para o atual paradoxo de nossa regulação: as atividades mais usadas na Internet hoje em dia são aquelas possibilitadas por aplicativos de trocas de mensagens de texto, de conversas por voz e de acesso a vídeos. No fundo, são funcionalmente muito semelhantes àquelas que o consumidor já poderia ter acesso nos tradicionais serviços de telecomunicações, como a telefonia ou a TV por assinatura. A diferença é que, embora suportadas por serviços de telecomunicações, são praticamente inalcançáveis pelo nosso quadro normativo.

Comecemos pela boa notícia da expansão do acesso. Em 2021, segundo a pesquisa, 81% dos domicílios brasileiros tinham acesso à Internet, contra 58% em 2015. Aprofundando os números, vemos também que o acesso deixou de ser uma atividade principalmente urbana. Em 2015, a diferença entre as parcelas dos domicílios urbanos com internet e a parcela dos domicílios rurais com acesso à rede era de 29 pontos percentuais (63% dos domicílios urbanos contra 34% dos domicílios rurais). Em 2021, essa diferença caiu para 9 pontos (82% dos domicílios urbanos, 73% dos rurais).

Essa expansão acompanhou o forte aumento da infraestrutura brasileira de telecomunicações. Nos últimos leilões de radiofrequências para telefonia móvel, os ganhadores das licitações se comprometeram com ousadas metas de cobertura, como a de instalar as tecnologias 3G e 4G em munícipios e distritos de pequeno porte. Como resultado, hoje, mais de 88% de nossa população reside em áreas cobertas por redes de quarta geração, perfeitamente capazes de oferecer Internet em alta velocidade.

Além disso, as redes de operadoras fixas para o acesso à Internet sofreram grande incremento. Entre 2015 e 2021, segundo dados da Anatel, o número de acessos em banda larga fixa saltou de 25,5 para 41,7 milhões.  Em especial, cresceram os acessos em fibra óptica: ao fim de 2021, 26,1 milhões de acessos (62% do total dos acessos fixos) eram por meio de fibras ópticas, enquanto em 2015 esse número era de apenas 1,5 milhão (6% do total).

Assim como no caso das redes móveis, as escolhas regulatórias feitas pelo Estado também contribuíram para o a expansão da infraestrutura e da oferta dos serviços de banda larga fixa. A Anatel, ao longo do tempo, removeu barreiras à entrada para prestadores de pequeno porte, simplificando e barateando as licenças para o serviço. Em paralelo, atuou de forma a dinamizar o mercado atacadista de acesso à Internet, tornando mais barato e fácil para o pequeno provedor contratar os recursos necessários para a venda das conexões ao consumidor final. Como resultado, metade do mercado de Internet fixa hoje está nas mãos de milhares de prestadoras de pequeno porte, pulverizadas nos municípios dos mais diferentes portes.

Os dados da TIC Domicílios 2021 demonstram, enfim, que a regulação brasileira das telecomunicações, gestada há um quarto de século, durante o processo de privatização do setor e quando o desafio ainda era conseguir uma linha de telefone fixo (algo tão escasso e caro que entrava como bens a declarar no imposto de renda da pessoa física), conseguiu cumprir o desafio para o qual foi criada. Hoje a infraestrutura de redes é robusta e geograficamente disseminada. Há competição entre os fornecedores. E os serviços são acessíveis à enorme parcela da população brasileira.

Já quando a pesquisa TIC Domicílios explora as atividades realizadas na Internet pelos brasileiros, seus resultados indicam, por exemplo, que 93% dos usuários usaram a rede para enviar mensagens de texto. Já 82% conversaram por chamada de voz ou vídeo. E 82% assistiram a vídeos, programas ou séries. Com exceção da chamada de vídeo, ou de aplicações natas da Internet, como as redes sociais (usadas por 81% dos brasileiros com acesso à Internet), as demais funcionalidades – envios de mensagens, chamadas de voz, acesso a vídeos – são típicas de serviços de telecomunicações que vêm sendo regulados há décadas no Brasil e no mundo.

Neste ponto, cabe uma pequena explicação sobre como se regulam as telecomunicações e a Internet no Brasil. A Anatel – seguindo o previsto na Lei Geral de Telecomunicações, publicada em 1997 – tem a competência para expedir licenças, criar regras e fiscalizar seu cumprimento pelas empresas que operam serviços de telecomunicações. De forma resumida, há quatro principais tipos de serviços de telecomunicações: a telefonia fixa (Serviço Telefônico Fixo Comutado), a telefonia móvel ou celular (Serviço Móvel Pessoal) – o que proporciona, além de voz e mensagens, também o acesso à Internet móvel –, a TV por Assinatura (Serviço de Acesso Condicionado) e o acesso à Internet em banda larga fixa (Serviço de Comunicação Multimídia).

Para estes serviços, a Anatel formulou uma série de regras, que vão desde a necessidade de cumprimento de padrões mínimos de qualidade e chegam a questões relacionadas ao relacionamento com o consumidor. Incluem, também, normas técnicas necessárias para que o setor, como um todo, funcione: padrões de numeração para a telefonia fixa e móvel, padrões para que as redes de uma operadora consigam “conversar” (ou interconectar) com a rede de outra, normas para evitar o abuso de poder econômico e por aí vai.

Já as aplicações que correm sobre a Internet não fazem parte do escopo regulatório brasileiro, mesmo que, muitas vezes, tenham a mesma funcionalidade ao consumidor final que os serviços prestados sob licença e altamente regulados. Estão, é claro, sujeitas à legislação brasileira, como qualquer atividade econômica realizada no país. Mas não existe um interlocutor estatal único ou um órgão que consiga acompanhar, em seu todo, este ambiente cada vez mais essencial ao dia-a-dia do brasileiro.

No início desse ano, o Tribunal Superior Eleitoral determinou à Anatel que fosse bloqueado o acesso a um aplicativo de mensagens com dezenas de milhões de usuários no Brasil, mas que não contava com sede ou representante jurídico no país. Tal ordem foi dada após diversas comunicações anteriores do tribunal com a empresa, que demandavam o fornecimento de informações sobre usuários e também o bloqueio de alguns perfis suspeitos de práticas de crimes. Como a própria agência reguladora não tem poder sobre o bloqueio de acessos aos servidores na Internet, retransmitiu o comando judicial aos milhares de provedores de acesso espalhados pelo país. Em poucos dias, após a mudança de postura da empresa que explora o aplicativo, a ordem de bloqueio foi suspensa pelo Tribunal, mas a lacuna regulatória ficou evidente.

O próprio fato de o aplicativo ter dezenas de milhões de usuários no país e ter despertado a ação de um Tribunal Superior demonstram, por si, a sua importância para a sociedade brasileira. Mas qual órgão de regulação das atividades econômicas acompanha a sua ação, sabe sobre sua atividade, tem competência para entrar em contato com ele? Ou, por outro lado, se o provedor de aplicativo precisar entrar em contato com o Estado, em que porta deve bater?

Para além das dúvidas, existem também assimetrias. Nossa legislação faz, por exemplo, com que serviços funcionalmente semelhantes, como o fornecimento de canais lineares por assinatura via Internet (IPTV), seja livre de quaisquer obrigações regulatórias. Enquanto que a transmissão dos mesmos canais lineares, com o mesmo conteúdo, só que nas redes de telecomunicações dedicadas de TV por assinatura (TV a Cabo ou via satélite), sejam pesadamente reguladas.

Do mesmo modo, os provedores das redes físicas que possibilitam o tráfego e a conexão à Internet estão submetidos a uma série de regras que impedem o abuso de poder econômico e as práticas anticompetitivas, entre outras obrigações regulatórias. Que, no fim das contas, visam promover a competição e remover barreiras à entrada. Já no caso das empresas de Internet, não existem regras específicas que permitam aos atores do setor saberem o que podem e o que não podem fazer, embora, em várias ocasiões, no Brasil e no mundo, as autoridades da competição já tenham sido acionadas para julgar denúncias de condutas anticompetitivas.

E quais seriam as soluções para superarmos essa situação de assimetria e de lacunas regulatórias? Certamente não pode haver a imposição de exigências demasiadas, como obrigar as empresas de Internet a obter uma outorga do estado brasileiro para operar aqui. Também não é o caso de criar uma série de leis e regulamentos detalhados. Muito pelo contrário – o caminho da regulação responsiva e baseada em evidências, que já vêm sendo trilhado por alguns reguladores brasileiros, como a Anatel – tem se demonstrado muito mais eficientes do que o excesso de controle e de carga regulatória.

Em diversas nações há intenso debate legislativo e regulatório sobre os mercados digitais – e eles começam, em grau menor, a existir no Brasil. As soluções possíveis são várias. Mas, antes mesmo de encontrá-las, há um desafio anterior para os reguladores brasileiros: adotar uma visão cada vez mais ampla. Conseguir entender que operação de redes físicas de telecomunicações, prestação de serviços de telefonia celular ou de acesso à Internet fixa, aplicações nativas da Internet, infraestruturas de armazenamento e processo na nuvem, entre tantas outras atividades econômicas, são interdependentes entre si. Influenciam umas às outras. E funcionam como um verdadeiro sistema – ou ecossistema digital, como vem sendo chamado.

Felizmente, diversos órgãos estatais têm acumulado conhecimentos sobre conflitos e problemas típicos do mundo digital, tais como a Anatel, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade. Para além deles, o Gabinete de Segurança Institucional tem atuado fortemente em questões de cibersegurança, e o Comitê Gestor da Internet vem definindo os princípios e garantindo os padrões técnicos para uso da rede há pelo menos duas décadas.

Cada um desses atores, contudo, por suas competências legais, consegue apenas enxergar determinado aspecto do que vem ocorrendo na economia digital – e aprofundar a interlocução entre tais atores, ou buscar a criação de novas configurações regulatórias que possibilitem a cada uma dessas instituições, e ao Brasil por consequência, ter a capacidade de enxergar não apenas uma das árvores de cada vez, mas sim e simultaneamente, a floresta digital como um todo.

 

 

* Carlos Baigorri é presidente da Anatel

** Fabio Lucio Koleski é especialista em Regulação da Anatel

*** Mozart Tenorio Rocha Junior é especialista em Regulação da Anatel

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O novo Marco Geral de Garantias e o Crédito no Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3636&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-novo-marco-geral-de-garantias-e-o-credito-no-brasil Wed, 22 Jun 2022 18:44:06 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3636 O novo Marco Geral de Garantias e o Crédito no Brasil

 

Por João Maia*

 

Em primeiro de junho de 2022, a Câmara dos Deputados votou o Projeto de Lei nº 4.188, de 2021, o “marco geral de garantias”, com minha relatoria. Acredito que será uma verdadeira revolução a ocorrer no mercado de crédito brasileiro com a sua aprovação. 

A Importância das Garantias

De fato, a garantia nas operações de crédito é como o sangue no corpo do ser humano. Sem ela não há como o organismo financeiro funcionar de forma adequada.

Quando se busca crédito para construir uma casa ou montar um empreendimento, o emprestador avalia a capacidade futura de o devedor honrar os seus compromissos. Quanto mais dúvidas sobre isso, o emprestador ou simplesmente não empresta ou cobra uma taxa de juros mais alta que compense o risco maior.

Uma forma de corrigir o problema é o devedor oferecer garantias, como automóveis, imóveis, dentre outros, que serão entregues em caso de não pagamento da dívida, reduzindo o risco para o emprestador. Com isto, o crédito que não iria acontecer ou que aconteceria com juros mais altos, ocorre e a um custo bem menor.

Ou seja, como o retorno cobrado por um credor depende do risco a que ele está exposto, o fortalecimento do sistema de garantias, ao reduzir a sua exposição ao risco de inadimplência do devedor, diminui o custo do crédito. Reduz, em particular, os custos de transação que são dados pela menor segurança do credor quanto ao cumprimento do contrato, ou seja, ao pagamento do débito. No caso de micro e pequenos empreendedores, a força das garantias pode ser a única forma de ter acesso a financiamento. 

Crédito e Garantias no Brasil

Apesar de sua importância econômica e social, o desempenho do mercado de crédito e de garantias no Brasil está longe do adequado para dar suporte ao processo de retomada e manutenção do desenvolvimento econômico sustentável.

De fato, a relação crédito/PIB no Brasil, que atingiu 70,2% em 2020 é bem inferior à de China (182,45), África do Sul (107,9%), Coreia do Sul (164,8%) e Hong Kong (258,4%), EUA (215,9%), Suíça (168,5%) e Reino Unido (143,7%), o que pode ser visto no comparativo da relação crédito/PIB de países selecionados conforme o Banco Mundial[1].

Fonte: Banco Mundial

O percentual da inadimplência no spread bancário médio no Brasil atingiu quase 1/3 (31,9%) no triênio 2018/20, o que dá uma ideia bem razoável do valor atribuído às garantias no Brasil.

Fortalecendo as garantias, reduzem-se os custos com inadimplência, o que faz cair os juros pagos, especialmente pelos tomadores menores. E o fortalecimento das garantias depende de elas poderem ser usadas quando a inadimplência ocorrer.

Atualmente, a recuperação do crédito é tarefa incerta e demorada: recupera-se, conforme dados da Accenture, apenas 14,6% do valor das garantias no Brasil para o caso de bens móveis (veículos), contra 85,3% no Reino Unido, 81,8% nos EUA e 41,6% no Chile. O tempo médio de recuperação do crédito no Brasil é também substancial, atingindo 4 anos, contra apenas 1 ano no Reino Unido e EUA, 1,5 ano na Coréia do Sul e 2 anos no Chile.

Esses dados indicam que o tratamento atual dispensado ao tema das garantias pelo ordenamento jurídico brasileiro necessita ser reformulado para melhorar esses números e, por conseguinte, reduzir os juros pagos pelo tomador brasileiro. 

O Projeto de Lei 4.188/2021 e a Cidadania Financeira

Essa reformulação do sistema de garantias está sendo promovida pelo Projeto aprovado pela Câmara em 01/06/2022, do qual fui relator, que aprimora regras de execução da alienação fiduciária, dentre outras medidas.

Ter acesso a crédito barato também é um dos elementos fundamentais do exercício de cidadania financeira, algo muito falado, mas pouco compreendido. Aqui podemos, mais que nunca, afirmar que a proposta melhora a vida da(o) “empreendedora(or) cidadã(o)”. 

As Instituições Gestoras de Garantias (IGGs)

Uma das principais medidas do Projeto é a criação das Instituições Gestoras de Garantias, as IGGs, que facilitarão o maior aproveitamento de bens do devedor em operações de crédito com garantia e darão agilidade à concessão de crédito.

Um exemplo nos parece útil para a compreensão da IGG. Atualmente, o crédito sempre precede a garantia. Assim, obtém-se um crédito em uma instituição financeira e, associado a este, constitui-se uma garantia. Suponha que o bem dado em garantia vale R$ 1 milhão e está garantindo um crédito de R$ 100 mil. Ou seja, a diferença entre o valor da garantia e do crédito garantido neste caso (R$ 1 milhão menos R$ 100 mil = R$ 900 mil) não poderá ser utilizada em operações de crédito com outras instituições financeiras. Não havendo concorrência com outras instituições financeiras, créditos subsequentes utilizando a mesma garantia tendem a ser caros e se tornam quase que uma venda casada crédito/garantia.

O modelo proposto no projeto de lei torna possível a constituição da garantia preceder o crédito e a independência daquela garantia do credor original. É evidente que a própria instituição financeira credora original, sem ter estes R$ 900 mil exclusivos para seus próprios créditos, também deverá oferecer taxas mais atrativas para o devedor nos créditos subsequentes. Ou seja, o formato da IGG permite que a mesma garantia possa ser utilizada para quantos créditos couberem sem que precisem ser obrigatoriamente providos pela instituição financeira credora inicial. 

Eliminação do Monopólio da CEF para Penhores

Outro ponto importante é a eliminação do atual monopólio da Caixa Econômica Federal (CEF) em relação aos penhores civis, permitindo uma concorrência que abrirá um corredor de oportunidades de acesso a crédito barato ao cidadão. Mais do que isso, dado que a CEF não está e nem pode estar em grande parte dos municípios brasileiros, emprestadores alternativos podem ser a única forma de ajudar ou mesmo resgatar pessoas que precisam de recursos de forma urgente. 

Procedimento Extrajudicial de Busca e Apreensão em Bens Móveis

Foram acatadas também emendas importantes que merecem destaque. O Deputado Vinicius Carvalho propôs a criação de um procedimento extrajudicial de busca e apreensão de garantias em bens móveis (veículos) em caso de inadimplemento nos contratos com alienação fiduciária.

Dada a média de 4 anos para recuperação de garantias no Brasil e a demora dos procedimentos judiciais, a possibilidade de acelerar a recuperação de bens móveis extrajudicialmente tende a gerar efeito grande na redução dos juros cobrados. O credor poderá dar opção com (juros menores) e sem procedimento extrajudicial ao tomador. Ao permitir ao credor resolver seu problema de assimetria de informação em relação ao devedor, esta possibilidade deve reduzir bastante os juros dos bons pagadores.

Foram feitas modificações importantes nesta proposta de forma a evitar o uso indevido de forças policiais neste processo. 

Direitos Minerários como Garantia

O Deputado Ricardo Barros propôs que direitos minerários pudessem ser utilizados como garantia. Os títulos minerários têm valor econômico e, por isso, devem poder ser usados como mecanismo de mitigação de risco de crédito. Seu valor decorre de que sua aquisição por meio de transferência do direito tem custo menor do que o de sua emissão original. Isso decorre do fato que algumas etapas do processo de emissão daqueles títulos, como o licenciamento ambiental, não precisam ser repetidas quando ocorre a transferência. O potencial de criação de riqueza e empregos no setor de mineração é gigantesco no Brasil e, portanto, a emenda foi acatada. 

Desoneração do Imposto para a Renda Fixa

O Deputado Ricardo Barros também propôs estender a desoneração atual (0%) do Imposto de Renda em ações e em títulos públicos dos rendimentos auferidos por domiciliados no exterior para os rendimentos dos investimentos de renda fixa também auferidos por domiciliados no exterior. A medida permite ampliar a captação de recursos das empresas, especialmente para financiar obras de infraestrutura, por meio das debêntures. Isto representa isonomia tributária das operações de emissão de títulos de dívida em relação às operações de capital, evitando distorções alocativas e manipulações contábeis. Aperfeiçoamos tal proposta, incluindo as letras financeiras para garantir ainda maior simetria tributária. 

Incluindo Empresas Simples de Crédito

O Projeto permite a extensão da alienação fiduciária de coisa imóvel, pela qual a propriedade fiduciária já constituída possa ser utilizada como garantia de operações de crédito novas e autônomas de qualquer natureza para instituições financeiras. Deixamos claro que as Empresas Simples de Crédito (ESCs) também poderão se valer desta extensão, o que tem impacto grande no microcrédito para pequenos empreendedores. 

Mantendo a Impenhorabilidade dos Bens de Família

Uma última palavra deve ser dita sobre a penhorabilidade dos bens de família. Foram veiculadas “Fake News” ardilosamente repetidas[2] sem base nos fatos, apontando que a proposta ampliaria a possibilidade de penhora de imóvel de família.

Nesse sentido, a Lei brasileira (8.009/90) é clara: “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável”. Este comando legal continua intocado e nem o governo, e muito menos eu, cogitamos removê-lo.

De outro lado, a mesma Lei traz seis exceções, sendo que uma delas trata da “execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar”.  Não é de hoje que os tribunais brasileiros reconhecem que não se pode dar um bem em garantia e, depois, alegar sua impenhorabilidade, o que viola a premissa de boa-fé.

O PL apenas assegura que um bem dado em garantia voluntariamente pelo próprio devedor seja executável. Além disso, tem havido problemas de interpretação judicial no que se entende por “entidade familiar”, o que é fonte constante de insegurança jurídica. A redação foi alterada tão somente para dar maior clareza à lei. 

Conclusões

Enfim, este projeto atenuará os efeitos do aumento recente da SELIC pelo Banco Central, aliviando a vida das empresárias e empresários que precisam de crédito para tocar seu negócio. Isso permite um aumento da eficiência e uma redução de barreiras à entrada no mercado de crédito, beneficiando inclusive as chamadas Fintechs de crédito, incrementando as alternativas dos tomadores.

Nesse período pós-pandemia, em particular, a falta de lastro para operações de crédito ao sistema produtivo tende a dificultar ainda mais a vida financeira das empresas. Garantias mais robustas, oferta de crédito maior e mais barato são ingredientes-chave para a retomada sustentada do crescimento no país. Este é o propósito do projeto de lei 4.188 de 2021 aprovado na Câmara e que, esperamos, seja votado em breve no Senado.

 

[1] https://data.worldbank.org/indicator/FS.AST.PRVT.GD.ZS

[2] Ver, por exemplo, Rodrigo Zeidan na Folha de São Paulo de 10 de junho de 2022 “Bem de Família como garantia de empréstimo é uma das piores propostas para reduzir juros”.

 

* João Maia é Deputado Federal.

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Congresso tem sido o maior protagonista da agenda de reformas https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3565&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=congresso-tem-sido-o-maior-protagonista-da-agenda-de-reformas Wed, 26 Jan 2022 11:08:08 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3565 Congresso tem sido o maior protagonista da agenda de reformas

 

Histórico recente revela que o Parlamento é tão ou mais importante que o Ministério da Economia como agente formulador de reformas na legislação econômica.

 

Por Rogério Schmitt*

 

Estamos entrando no último ano do governo Bolsonaro e também no último ano da atual legislatura do Congresso. Resolvi então aproveitar este período de recesso parlamentar – e também de (pelo menos até outro dia) férias presidenciais – para fazer um levantamento das reformas econômicas mais importantes aprovadas nos três primeiros anos do corrente ciclo de governo.

Vou deixar de lado a agenda de reformas macroeconômicas, também conhecidas como reformas estruturantes (pois elas quase sempre envolvem mudanças no texto da Constituição Federal). A única reforma macro aprovada nesse período foi a da Previdência (Emenda Constitucional 103, promulgada em novembro de 2019). E os outros itens principais da agenda de reformas estruturantes (a tributária e a administrativa) dificilmente serão aprovados em um ano eleitoral.

Mas, ao contrário do que uma análise política mais descuidada poderia sugerir, esses últimos anos estiveram longe de ser uma fase de paralisia na agenda de reformas. Ao contrário: as reformas microeconômicas estão vivendo um período extremamente favorável. O levantamento apresentado a seguir (que talvez ainda esteja incompleto) conseguiu identificar um total de 17 importantes propostas de reformas micro já aprovadas entre 2019 e 2021.

As reformas microeconômicas correspondem ou a projetos de regulação de mercados e setores específicos da economia, ou a projetos que visam melhorar o ambiente de negócios como um todo. A segunda característica importante destas propostas é o fato de serem mudanças legais de natureza infraconstitucional. Por fim, a agenda de reformas micro também se define por sua orientação pró-mercado, com o objetivo de criar incentivos para maiores investimentos privados.

O quadro abaixo enumera as 17 reformas econômicas aprovadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pela Presidência da República nos três primeiros anos do atual ciclo de governo. O ritmo de aprovação das reformas não foi homogêneo: mais lento nos dois primeiros anos (3 reformas aprovadas em 2019 e 2 em 2020), e bem mais intenso na segunda metade do período (nada menos que 11 reformas foram sancionadas em 2021, e uma já em janeiro de 2022).

Cada item dessa lista teve uma história e poderia virar um artigo próprio. Mas aqui apresento somente um panorama geral. Além disso, o impacto econômico efetivo dessas reformas não se esgota no curto prazo e, portanto, nem poderia ser avaliado aqui.

Achei, porém, interessante registrar a origem institucional de cada reforma microeconômica aprovada, ou, em outras palavras, se a respectiva lei foi originalmente proposta pelo Poder Executivo, pela Câmara ou pelo Senado. No entanto, a aprovação de reformas microeconômicas tipicamente pressupõe alguma cooperação entre as maiorias legislativas e o Palácio do Planalto. Vale, por fim, registrar que diversos projetos dessa lista começaram a sua tramitação legislativa em períodos de governo anteriores (a Lei de Falências, por exemplo, desde 2005).

Seja como for, outra descoberta contraintuitiva revelada pelo quadro é que praticamente dois terços (64,7%) das reformas econômicas aprovadas no período surgiram de projetos de lei originalmente apresentados por senadores (41,2%) ou por deputados (23,5%). Dito de outro modo: é o Congresso Nacional – e não o governo ou o Ministério da Economia – que vem sendo o principal formulador da agenda de reformas microeconômicas no País. E ainda vale ressalvar que das seis reformas que se originaram do Poder Executivo, metade tramitou como medida provisória.

E que outras reformas microeconômicas já aparecem no meu radar para o ano que está em curso? É só conferir este outro quadro, que enumera meia dúzia de reformas (sem contar as que porventura ainda possam ser apresentadas no futuro) com algum potencial para aprovação ao longo de 2022.

Naturalmente, nem todos os novos projetos da agenda de reformas micro serão necessariamente aprovados neste ano. Mas a maioria deles está relativamente próxima disso, seja porque já foram aprovados em uma das casas do Congresso, ou porque estão em regime especial de tramitação (medida provisória ou pedido de urgência). No cenário mais otimista, talvez somente a aprovação do novo marco legal do petróleo acabe ficando para o próximo período de governo.

Resumo da ópera: 1) o quadriênio que estamos prestes a completar será certamente mais lembrado pelos avanços na agenda de reformas micro do que na agenda de reformas macro; e 2) o Congresso é tão ou mais importante que o Ministério da Economia como agente formulador de reformas na legislação econômica.

 

 

* Rogerio Schmitt é cientista político e colaborador do Espaço Democrático.

 

Artigo publicado no site da Fundação Espaço Democrático em 24 de janeiro de 2022.

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Agenda de melhoria regulatória do Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3555&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=agenda-de-melhoria-regulatoria-do-brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3555#comments Mon, 10 Jan 2022 13:41:35 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3555 Avaliação de Resultado Regulatório (ARR) e Guia de ARR em 2022: mais um passo firme na agenda de melhoria regulatória do Brasil

 

Por Kelvia Frota de Albuquerque*

 

O Decreto 10.411/2020, proposto pelo Ministério da Economia (ME), endereçou em âmbito federal duas das mais importantes ferramentas de melhoria regulatória atualmente em uso ao redor do mundo: a Análise de Impacto Regulatório (AIR), ou análise ex ante da regulação, que já teve sua implementação discutida aqui[1]e passou a ser obrigatória em 2021, e a Avaliação de Resultado Regulatório (ARR), ou avaliação ex post da regulação, que passará a ser obrigatória em 2022.

A AIR, que tem foco prospectivo, cuida de analisar um problema regulatório identificado para informar os tomadores de decisão sobre alternativas de ação a serem consideradas e seus respectivos impactos, a partir dos objetivos desejados, antes de edição de qualquer normativo. Regulação envolve sempre custos e benefícios que precisam ser considerados previamente. Seria possível utilizar alternativas não normativas? E qual seria o resultado de não fazer nada, ou seja, manter o status quo?

Já a ARR tem foco retrospectivo e se refere, para utilizar a definição do decreto, à verificação dos efeitos decorrentes da edição de um ato normativo, considerados o alcance dos objetivos originalmente pretendidos e os demais impactos sobre o mercado e a sociedade em decorrência da sua implementação. O que aconteceu, do ponto de vista substantivo? Será que o normativo funcionou conforme o esperado ou são necessários ajustes? Será que os objetivos do normativo podem ser atingidos de maneira menos custosa? Será que houve novas descobertas científicas que afetaram a base da intervenção regulatória?

A AIR e a ARR, percebe-se logo, são ferramentas complementares e buscam avaliar a ação regulatória de forma transparente e com base em evidências, sendo a principal diferença entre as duas o momento do ciclo regulatório[2] em que a análise ocorre[3].

Menos difundida e mais complexa do que a AIR, a ARR é ainda um desafio, mesmo nos países mais avançados no tema, e é etapa importante para “completar” e retroalimentar o ciclo regulatório: além de fornecer retorno sobre o desempenho de um normativo, na prática, traz insumos para a evolução da regulação ao longo do tempo.

O decreto trouxe aos órgãos e entidades federais a diretriz geral de integração da ARR à atividade de elaboração normativa, de forma isolada ou conjunta, sendo que a ARR poderá também ter caráter temático e ser realizada apenas quanto a partes específicas de um ou mais atos normativos.

Assim como na AIR, na ARR também deve ser observado o princípio da proporcionalidade: a análise é custosa em termos de tempo e de recursos envolvidos e os esforços devem ser prioritariamente empregados nos casos obrigatórios[4] e nas regulações mais relevantes.

Os compromissos previstos sobre a ARR no Decreto 10.411/2020 serão iniciados a partir de 2022 para a Administração Pública Federal como um todo.  Regra geral, será necessário elaborar, a cada mandato presidencial, uma agenda de ARR que deverá incluir pelo menos um ato normativo de interesse geral dos órgãos e entidades, de acordo com critérios preferenciais estabelecidos no normativo[5]. Excepcionalmente neste primeiro mandato de vigência do decreto, a agenda de ARR deverá ser divulgada até 14 de outubro e concluída até 31 de dezembro de 2022.

Ao contrário da AIR, a ARR ainda possui arcabouço teórico e prático relativamente pouco consolidado, mesmo internacionalmente, e não havia ainda no Brasil referencial específico a ser utilizado para apoiar o cumprimento do decreto.

Assim, para suprir essa lacuna, em 2020 a Secretaria Executiva do ME iniciou a coordenação de discussões técnicas com as agências reguladoras e o Inmetro com vistas à elaboração conjunta de um Guia Orientativo para Elaboração de ARR (Guia de ARR). Agregou-se a esse grupo a importante colaboração do UERJ-Reg, Laboratório de Regulação Econômica da UERJ[6].

Após cerca de um ano de trabalho colaborativo, a minuta do Guia de ARR foi disponibilizada para consulta pública por 45 dias (28/09 a 12/11/2021)[7] no Participa + Brasil, plataforma digital do governo federal criada para promover e qualificar o processo de participação social.

O Guia tem caráter orientativo e não vinculante, sendo sua finalidade principal auxiliar os servidores públicos incumbidos das ARRs. Trata-se de sugestão de roteiro analítico e de diretrizes gerais para a avaliação que não buscam, de modo algum, engessar as análises. Técnicas e métodos mais adequados devem ser definidos no caso concreto, considerando a complexidade do tema e a capacidade de execução do órgão ou da entidade.

A base do Guia de ARR é o estabelecido pelo Decreto 10.411/2020 e o documento contém todas as orientações necessárias para seu cumprimento. Não obstante, cabe observar que seu foco é mais amplo, com o apontamento de boas práticas internacionais eventualmente não incorporadas pelo normativo e que podem vir a ser utilizadas pelos reguladores.

Embora tenha sido elaborado com foco no Poder Executivo Federal, as orientações reunidas no Guia de ARR podem ser utilizadas, igualmente, por outros entes da federação e outros Poderes.

Em uma visão panorâmica, o Guia traz orientações gerais contemplando os princípios de uma boa avaliação, os diferentes tipos de olhar retrospectivo, o princípio da proporcionalidade na ARR e a importância da participação social e da transparência; endereça o monitoramento da regulação e o planejamento da ARR; sugere procedimento para a elaboração da agenda de ARR; discorre sobre estratégias de coleta e de tratamento de dados[8]; propõe roteiro para elaboração do Relatório de ARR; discute a integração da ARR no ciclo regulatório; traz um glossário com as principais definições conceituais utilizadas e, por fim, aponta um rol de questões para orientar a elaboração do Relatório de ARR, de acordo com o roteiro proposto. Adicionalmente, o Guia lista, após cada capítulo, as referências bibliográficas utilizadas, de modo a possibilitar o aprofundamento dos temas sempre que necessário.

A participação da sociedade no processo de elaboração do Guia, além de sabida boa prática regulatória, foi considerada fundamental para que pudessem ser disponibilizadas as melhores orientações, do modo mais simples, claro e abrangente possível, de forma a impulsionar a efetiva implementação da ARR.

Foram recebidas 81 contribuições no âmbito da consulta pública (ou 89 unidades de análise, já que algumas trataram de mais de um tema), das quais cerca de 2/3 foram acatadas integral ou parcialmente na versão final do Guia.

A participação social no processo regulatório é, sem dúvida, algo trabalhoso e custoso, tanto para o governo quanto para a sociedade. Mas é fundamental, não só por reduzir a assimetria de informação como por embasar e legitimar a tomada de decisão. Por isso mesmo, o Ministério da Economia a recomenda fortemente[9], apesar de não haver obrigatoriedade ainda no âmbito da administração direta, apenas no âmbito das agências reguladoras[10].

O fato é que as contribuições recebidas, como um todo, sinalizaram as partes do Guia que precisam ser destacadas e explicadas de modo mais detalhado, para melhor entendimento do documento, o que subsidiará as etapas de divulgação do documento e de capacitação, ao passo que as contribuições acatadas detalharam adequadamente pontos específicos do texto ou conferiram-lhe maior clareza, tendo possibilitado o aprimoramento do Guia. Assim, este artigo também é uma oportunidade para agradecer a todos que se dispuseram a contribuir na consulta pública.

A partir de agora, o Brasil já pode contar com um referencial teórico robusto para orientar a capacitação, a comunicação e a governança interna de suas instituições para a elaboração das ARRs, no melhor padrão internacional.

A utilização sistemática das ARRs em todo o governo federal a partir deste ano é, certamente, mais um passo firme do País na agenda de melhoria regulatória.

E melhoria regulatória, a experiência internacional aponta, é um fator chave para um melhor ambiente de negócios e, por consequência, para mais crescimento econômico, mais emprego e mais renda para a população.

 

 

[1] Artigo disponível em: http://www.brasil-economia-governo.org.br/2020/07/22/para-implementar-a-analise-de-impacto-regulatorio-air/

[2] O ciclo regulatório, de acordo com a OCDE “implica uma abordagem integrada para a implementação de instituições, ferramentas (como a AIR e a ARR) e processos” e é utilizado aqui para reforçar o aspecto da necessária integração, continuidade e retroalimentação entre as diferentes etapas da vida de uma regulação.

[3] Guia de ARR, versão final após consulta pública, pág. 7, disponível em https://www.gov.br/participamaisbrasil/cp-guia-arr

[4]  O Decreto 10.411/2020 prevê, no art. 12, que os atos normativos cuja AIR tenha sido dispensada em razão de urgência serão objeto de ARR no prazo de 3 anos de sua entrada em vigor.

[5] O art. 13 do decreto estabelece que a escolha dos atos normativos que integrarão a agenda de ARR observará, preferencialmente, um ou mais dos seguintes critérios: I) ampla repercussão na economia ou no País; II) existência de problemas decorrentes da aplicação do referido ato normativo; III) impacto significativo em organizações ou grupos específicos; IV) tratamento de matéria relevante para a agenda estratégica do órgão; ou V – vigência há, no mínimo, cinco anos.

[6] O UERJ-Reg é uma entidade sem fins lucrativos, vinculada à Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ com afinidade acadêmica e experiência prática em temas relacionados à melhoria regulatória.

[7] A consulta pública, na íntegra, pode ser acessada em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/cp-guia-arr. Foi disponibilizada planilha de contribuições que conta com o posicionamento, a respectiva justificativa e, quando é o caso, o extrato de texto ajustado, além da versão final do Guia, ainda sem formato de edição final.

[8] Cabe observar que o art. 17 do Decreto 10.411/2020 estabelece que os órgãos e entidades implementarão estratégias específicas de coleta e de tratamento de dados de forma a possibilitar a elaboração de análise quantitativa e, quando for o caso, de análise de custo-benefício.

[9] Vide documento orientador sobre participação social, pág. 3, em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/air/o-que-e-air/2.AIRManualdeParticipacaoSocial.pdf

[10] A realização de consulta pública é obrigatória na hipótese do art. 9º da Lei nº 13.848, de 2019, para as agências reguladoras.

 

* Kelvia Frota de Albuquerque é formada em economia pela Universidade de Brasília, com pós-graduação em administração pública pela Fundação Getulio Vargas, servidora pública federal, atualmente é diretora na Secretaria Executiva do Ministério da Economia, onde coordena o projeto estratégico ministerial de implementação da AIR.

 

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Análise de impacto da utilização direta de até 50% do pagamento do FUST para despesas de capital no setor de Telecom https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3549&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=analise-de-impacto-da-utilizacao-direta-de-ate-50-do-pagamento-do-fust-para-despesas-de-capital-no-setor-de-telecom Mon, 27 Dec 2021 19:48:03 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3549 Análise de impacto da utilização direta de até 50% do pagamento do FUST para despesas de capital no setor de Telecom

 

Por Fabio Goto* e Manoel Pires**

 

A lei 14.109/20 ampliou o uso dos recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) para a ampliação da banda larga, incluindo em escolas públicas. O FUST foi criado pela Lei nº 9.998, de 17 de agosto de 2000, e tem por finalidade proporcionar recursos destinados a cobrir a parcela de custo exclusivamente atribuível ao cumprimento das obrigações de universalização de serviços de telecomunicações, que não possa ser recuperada com a exploração eficiente do serviço, nos termos do disposto no inciso do art. 81 da Lei n° 9.472, de 16 de julho de 1997.

O artigo 6-A do Projeto de Lei aprovado pelo Congresso Nacional previa a possibilidade de utilização direta de até 50% dos repasses feitos pelas operadoras para o FUST com o objetivo de executar diretamente projetos de expansão de conectividade aprovados pelo Conselho Gestor que administra o FUST. Em outras palavras, o valor dos projetos aprovados pelo Conselho e executados pelas operadoras seriam abatidos do pagamento do FUST. Na prática, esse artigo cria uma nova forma de financiamento para a ampliação da conectividade no País.

O artigo 6-A foi vetado pelo governo por razões de ordem jurídica “por não apresentar a estimativa do respectivo impacto orçamentário e financeiro e medidas compensatórias, em violação às regras do art. 113 do ADCT, bem como dos arts. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal e ainda dos arts. 114 e 116 da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2020 (Lei nº 13.898, de 2019)”.

O Congresso Nacional, em 18 de março de 2021, derrubou o veto no 56 reafirmando a possibilidade prevista no artigo 6-A na qual as empresas podem reverter até 50% dos recursos do FUST para projetos aprovados pelo Conselho Gestor. Posteriormente, a MP 1.018/2020 foi aprovada incluindo dispositivo análogo confirmando o uso do recurso para a respectiva finalidade.

O objetivo desta nota é avaliar qual o impacto desta medida para o setor mensurando seus efeitos econômicos em termos de ampliação dos investimentos. 

Descrição e evolução do FUST

O FUST tem como principais receitas: (i) a contribuição de um por cento sobre a receita operacional bruta, decorrente de prestação de serviços de telecomunicações nos regimes público e privado e; (ii) as transferências de recursos provenientes do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (FISTEL), que é formado pela arrecadação da Taxa de Fiscalização de Instalação (TFI) e pela Taxa de Fiscalização de Funcionamento (TFF), ambas cobradas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

A TFI é devida pelas empresas prestadoras de serviços de telecomunicações quando da emissão do certificado de licença para o funcionamento das estações e o valor é fixado pela ANATEL no Regulamento do FISTEL. A Taxa de Fiscalização de Funcionamento (TFF) é devida anualmente, devendo ser paga até o dia 31 de março de cada ano e corresponde à 50% (cinquenta por cento) do valor consignado na TFI, incidindo sobre todas as estações licenciadas até o dia 31 de dezembro do ano anterior.

A evolução dos recursos do FUST é apresentada no Gráfico 1. Os valores flutuam bastante de ano para ano, mas são bastante expressivos. Em 2009, por exemplo, o FUST obteve R$ 2,5 bilhões e depois de alguns anos de queda atingiu R$ 1,2 bilhão. Em 2020 arrecadou o menor valor da série histórica tendo sido muito afetado pela pandemia.

Gráfico 1: Evolução dos recursos do FUST

(Valores nominais em R$ milhões)

                                                                                                 Fonte: Conexis.

Para avaliar a importância dessas receitas para o setor, verificou-se o peso no total de impostos que o setor paga diretamente. Para isso, utilizou-se dados setoriais da RFB para os anos de 2016-18, último ano disponível dessa base de informações. A partir desses dados, é possível verificar que o FUST tem grande importância representando 120% do pagamento de impostos diretos em 2016, 74,7% em 2017 e 57,9% em 2018. Na média dos três anos, o FUST representou 84,2% do total de impostos diretos pago pelo setor.

Tabela 1 – Tributação direta e FUST no setor de Telecom

(R$ milhões)

 

                                                                  Fonte: RFB 2016-2018/ME.

 Resultados 

Para analisar o impacto da política utilizou-se a metodologia original de Hall e Jorgenson (1967)[1]. Para tanto, calculou-se qual o percentual de redução do custo do capital decorrente da utilização dos recursos do FUST para investimentos das empresas do setor. Na prática, a política resulta em redução da carga tributária para o setor. A partir de parâmetros da economia brasileira foi possível estimar que o custo de uso do capital pode ser reduzido em 14,3%, conforme apresentado pela Tabela 2.

Tabela 2 – Estimativa de custo de uso do capital 

Sem a política Com a política Variação
Tributação 34% 34% NA
Juros real 3,29% 3,29% NA
Depreciação 6,67% 6,67% NA
Crédito 0% 42,10% NA
Custo de uso estimado 9,96% 8,53% -14,3%
Elaborado pelos autores.

As estimativas econométricas para a função investimento para o setor de Telecom, obtidas a partir de modelos de espaço estado para o período entre 2009 e 2019, indicam que a redução do custo de capital deve ampliar os investimentos em torno de R$ 1,17 bilhão. Esse montante representa um acréscimo de 4,1% da média de investimento do setor entre 2016-2019.

Tabela 3 – Estimativas de acréscimo de investimento de Telecom

(Valores em R$ milhões, exceto quando indicado) 

Estimativa Acréscimo de Inv. % I do setor
2016 1.053 4,0%
2017 1.158 4,3%
2018 1.170 4,1%
2019 1.293 4,1%
Elaborado pelos autores.

Para uma análise quantitativa desse resultado, é possível expressar o quanto o financiamento disponibilizado gera de investimento. As estimativas indicam que cada R$ 1 é capaz de gerar R$ 2,13 em novos investimentos devido aos efeitos diretos e indiretos o que é um efeito multiplicador bastante significativo.

Assim, é possível concluir que a medida possui uma relação de custo benefício favorável à sua adoção e que se mostra positiva para a expansão da conectividade no país.

Tabela 4 – Estimativa de efeito multiplicador 

50% FUST Estimativa I Multiplicador
2016 716 1.053 1,47
2017 529 1.158 2,19
2018 427 1.170 2,74
2019 608 1.293 2,13
Média 570 1.169 2,13
Elaborado pelos autores.

Em suma, a aplicação de um modelo de custo de uso do capital sugere que existe um efeito bastante expressivo de liberar os recursos do FUST para aplicação em projetos de investimento[2].

 

[1][1] Hall, R. e Jorgenson, D. (1967). “Tax Policy and Investment Behaviour”, The American Economic Review, vol. 57, n.3.

[2] Para conhecer a metodologia sugere-se a leitura da Nota Técnica Conexis no 01.2021: “Análise de impacto do art. 6-A da Nova Lei do FUST”.

 

* Fabio Goto é diretor da PGA Consultoria em Economia.

** Manoel Pires é coordenador do Observatório de Política Fiscal do IBRE/FGV e pesquisador da UnB.

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Um retrocesso no transporte rodoviário de passageiros https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3548&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=um-retrocesso-no-transporte-rodoviario-de-passageiros Fri, 24 Dec 2021 11:58:22 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3548 Um retrocesso no transporte rodoviário de passageiros

Por Felipe Freire da Costa*

Raras vezes se presenciou um retrocesso tão grande em matéria de Direito Administrativo Econômico e direito dos usuários quanto se viu recentemente com o Projeto de Lei 3819/2020, aprovado no dia 16/12/2021 no Senado Federal, nos exatos termos em que fora aprovado pela Câmara dos Deputados no dia anterior.

Refiro-me especificamente ao art. 2º do PL 3819, que traz consigo um enorme conjunto de equívocos, de natureza técnica, econômica e política.

Desde a intervenção na autonomia técnica da autoridade reguladora, até o estabelecimento de uma chancela legal para criação de uma reserva de mercado em favor dos atuais operadores do serviço de transporte rodoviário coletivo interestadual e internacional de passageiros, TRIP, a hipótese de que o art. 2º do PL 3819 seja sancionado se revelaria em um completo contrassenso aos avanços recentemente positivados em setores como o transporte ferroviário e por cabotagem, ou em marcos regulatórios comemorados, como o Marco do Saneamento e a Nova Lei do Gás.

A incompreensão cresce na medida em que o texto do PL 3819 teria contado com a chancela do Ministério da Infraestrutura, mesma pasta responsável pela aprovação do Marco Legal das Ferrovias e da BR do Mar, iniciativas que contaram com o voto do Congresso Nacional na mesma semana do projeto que favorece as tradicionais oligarquias do setor de transporte rodoviário de passageiros.

Independentemente do regime – civil ou militar – e da orientação política – de esquerda ou de direita, liberal ou conservadora –, as oligarquias empresariais que controlam o setor de TRIP nunca deixaram de contar com a chancela estatal para manter o status quo na exploração da rede de mobilidade interestadual de transporte rodoviário de passageiros.

A aprovação do PL 3819 comprova essa tese. A mesma pasta ministerial que defende que duas ferrovias que ligam o mesmo par O/D (origem/destino) podem concorrer entre si, vê óbice na concorrência entre duas empresas de ônibus por uma mesma ligação, ao arrepio de qualquer bom senso intelectivo.

Muito embora o texto tenha sido desidratado na tramitação na Câmara dos Deputados, ele foi aprovado nos exatos termos que interessavam aos grupos econômicos que controlam o setor de TRIP há mais de 50 anos, sempre em parceria com o Estado.

O exame das emendas do relator da Comissão Mista da Medida Provisória 906/ 2019 não deixa dúvida quanto a esse aspecto. Àquela ocasião, o relator da comissão mista – não coincidentemente o mesmo autor do substitutivo do PL 3819 aprovado no Senado Federal no final de 2020 – tentou se aproveitar da tramitação da medida provisória da Política Nacional de Mobilidade Urbana para positivar na Lei 10.233/2001 os conceitos de inviabilidade técnica e econômica para as outorgas de TRIP.

O comando do art. 2º do PL 3819 vem sendo perseguido desde o fim de 2019, momento em que a agência reguladora reconhecera sua incompetência para impor óbices concorrenciais em desacordo com a legislação de regência.

Muito embora a apresentação do parecer do deputado Hugo Motta tenha sido comemorada por eliminar aspectos negativos da proposta oriunda do Senado Federal, o fato é que esses aspectos – vedação à intermediação, anistia e redução do valor máximo das multas, fixação de um valor percentual de frota própria, exigência de estudo de viabilidade econômica e revogação de mais de 16 mil novas ligações outorgadas posteriormente à edição da Deliberação 955/2019 – dificilmente seriam aprovados na Câmara dos Deputados.

Ou seja, não é desarrazoado supor que esses elementos acessórios do PL 3819 constavam do projeto para serem suprimidos na tramitação da matéria, criando uma falsa sensação de avanço legislativo, quando o que de fato interessava aos grupos econômicos que controlam o setor seria mantido no texto final – inviabilidade técnica e econômica –, como de fato ocorreu.

Idealmente, deve-se vetar o inteiro teor do art. 2º do PL 3819, posto que ele nada acrescenta de positivo à realidade setorial, pelo contrário. De forma resumida, o mencionado art. 2º equivaleria à seguinte alteração na Lei de Liberdade Econômica, LLE:

Art. 2º A Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 4º …………………………………………

I – criar reserva de mercado ao favorecer, na regulação, grupo econômico, ou profissional, em prejuízo dos demais concorrentes, salvo no transporte rodoviário coletivo regular interestadual e internacional de passageiros;

II – redigir enunciados que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado, exceto no transporte rodoviário coletivo regular interestadual e internacional de passageiros;

……………………………………….”(NR)

Em outros termos, o Congresso Nacional aprovou, com a anuência do Ministério da Infraestrutura, registre-se, e, tudo indica, sem oposição formal do restante do governo, a possibilidade de se criar – em verdade, que se continue a criar, o que nunca deixou de ser feito – reserva de mercado para favorecer grupo econômico em detrimento dos demais concorrentes, bem como que continuem a ser redigidos enunciados que impeçam a entrada de novos competidores no mercado de transporte rodoviário coletivo regular interestadual e internacional de passageiros.

Simbolicamente, é como se a LLE deixasse de ser aplicável ao setor de TRIP.

Não se trata de demonizar a narrativa política, que é válida e legítima, mas apenas de constatar que essa não pode se distanciar da realidade setorial, incluído aí o substrato técnico que dá suporte à concretização dessa realidade.

A qualidade do debate legislativo depende, pois, da diminuição das assimetrias informacionais entre o que se diz defender e o que está sendo efetivamente defendido.

Uma das formas de estimular isso – diminuição de assimetrias – é dar publicidade às análises de resultado legislativo das iniciativas aprovadas pelo Congresso Nacional.

Por essa razão, caso o texto seja sancionado da forma com que foi aprovado, buscarei jogar luz sobre os efeitos da alteração promovida no caput do art. 47-B da Lei 10.233/2001, tanto sobre o setor como um todo, como sobre as realidades regionais que serão afetadas pela imposição de óbices concorrenciais chanceladas pelas casas legislativas.

Isso posto, passa-se ao exame das necessidades de veto de dispositivos do art. 2º do PL 3819/2020:

Art. 2º A Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, passa a vigorar com as seguintes alterações:“

Art. 13. ……………………………………………………………………

V – ………………………………….

1.a) prestação não regular de serviços de transporte terrestre coletivo de passageiros, vedada a venda de bilhete de passagem;

……………………………………….”(NR)

“Art. 47-B. Não haverá limite para o número de autorizações para o serviço regular de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, salvo no caso de inviabilidade técnica, operacional e econômica.

Parágrafo único. (Revogado)

O Poder Executivo definirá os critérios de inviabilidade de que trata o caput deste artigo, que servirão de subsídio para estabelecer critérios objetivos para a autorização dos serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros.

2º A ANTT poderá realizar processo seletivo público para outorga da autorização, observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência, na forma do regulamento.

3º A outorga de autorização deverá considerar, sem prejuízo dos demais requisitos estabelecidos em lei, a exigência de comprovação, por parte do operador de:

I – requisitos relacionados à acessibilidade, à segurança e à capacidade técnica, operacional e econômica da empresa, de forma proporcional à especificação do serviço, conforme regulamentação do Poder Executivo;

II – capital social mínimo de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais).”(NR) [grifos acrescidos]

O art. 2º como um todo se notabiliza pela técnica legislativa inadequada, sobretudo quanto à topografia dos comandos que busca inserir no texto da Lei 10.233/2001.

Cito como exemplo o § 3º da nova redação do art. 47-B, que não possui relação com o caput do comando normativo, seja como aspecto complementar ou como exceção à regra por este estabelecida, conforme preconiza a Lei Complementar 95/1998.

Na medida em que o § 3º da nova redação do art. 47-B trata de requisitos da outorga de autorização, o comando deveria constar como parágrafo único do art. 44 da Lei 10.233/2001, que disciplina o termo de autorização.

A disciplina em si é desnecessária, vez que as exigências trazidas no corpo do PL 3819 já constam do art. 29 da própria Lei 10.233/2001, a saber:

Art. 29. Somente poderão obter autorização, concessão ou permissão para prestação de serviços e para exploração das infraestruturas de transporte doméstico pelos meios aquaviário e terrestre as empresas ou entidades constituídas sob as leis brasileiras, com sede e administração no País, e que atendam aos requisitos técnicos, econômicos e jurídicos estabelecidos pela respectiva Agência. [grifos acrescidos]

Como se nota, além de reproduzir uma norma já existente, a redação proposta ao § 3º ainda consta equivocadamente do art. 47-B, em vez do art. 44 da Lei 10.233/2001.

O mesmo ocorre com a expressão “vedada a venda de bilhete de passagem” da nova redação do art. 13, V, “a” da Lei 10.233/2001. O acréscimo redacional, desnecessário, só geraria os efeitos esperados se constasse como parágrafo do art. 26 da Lei 10.233/2001.

Na intenção de inviabilizar os modelos de fretamento colaborativo o autor do substitutivo do PL 3819 aprovado no Senado inseriu a vedação à intermediação e à venda de bilhete de passagens no art. 13, V, “a”, sem se dar conta que a prestação não regular de serviços de transporte terrestre coletivo de passageiros não se confunde com o transporte por fretamento.

Por não se tratar de atividade econômica titularizada pelo Estado, a prestação de serviço de transporte por fretamento não é outorgada pela ANTT. Não estamos a falar de uma autorização regulatória do art. 21, XII, “e” da Lei Maior, mas de mera autorização administrativa de polícia, de que trata o parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal.

Por se tratar de medida inócua, vez que inexistem outorgas de prestação não regular de serviços de transporte terrestre coletivo no âmbito da ANTT, a alteração proposta ao art. 13, V, “a” deveria ser vetada.

Continuando com as necessidades de veto, refiro-me ao § 1º e ao inciso I do § 3º da nova redação proposta ao art. 47-B da Lei 10.233/2001. Conforme grifado no texto, ambos os comandos fazem referência ao Poder Executivo, em vez de a agência reguladora, ou a ANTT, como já faz a redação vigente dos arts. 47-A, 47-B e 47-C da lei.

Como não existem expressões inúteis na lei e a própria nova redação do art. 47-B faz menção à ANTT e ao Poder Executivo, inexiste dúvida que não se trata de um recurso estilístico de sinonímia, recurso que inclusive deve ser evitado, conforme a alínea “b” do inciso II do art. 11 da Lei Complementar 95/1998.

Ou seja, segundo o texto aprovado – § 1º e inciso I do § 3º da nova redação proposta ao art. 47-B da Lei 10.233/2001 –, e para o qual defendo o veto, caberia ao Poder Executivo, por meio de decreto, definir os critérios de inviabilidade e os requisitos relacionados à acessibilidade, segurança e capacidade técnica, operacional e econômica das empresas.

Tal proposição representaria uma intervenção na autonomia da autoridade reguladora para disciplinar o setor de transportes rodoviário interestadual e internacional de passageiros, expressamente prevista no corpo da Lei 10.233/2001:

Art. 14.  Ressalvado o disposto em legislação específica, o disposto no art. 13 aplica-se conforme as seguintes diretrizes:…

III – depende de autorização:…

1. j) transporte rodoviário coletivo regular interestadual e internacional de passageiros, que terá regulamentação específica expedida pela ANTT;

[…]

Art. 26. Cabe à ANTT, como atribuições específicas pertinentes ao Transporte Rodoviário:

VIII – autorizar a prestação de serviços regulares de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros.

IX – dispor sobre os requisitos mínimos a serem observados pelos terminais rodoviários de passageiros e pontos de parada dos veículos para a prestação dos serviços disciplinados por esta Lei. […]

[grifos acrescidos]

Conforme comando expresso da Lei 10.233/2001, cabe à ANTT a competência para editar a regulamentação específica para disciplinar as outorgas autorizativas de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, atribuição essa que prescinde da edição de um decreto regulamentador.

Aos trechos em destaque reproduzidos acima, soma-se o já referido art. 29 da Lei 10.233/2001, que atribui à ANTT a competência para estabelecer os requisitos técnicos, econômicos e jurídicos necessários à obtenção das outorgas autorizativas para prestação de serviço de TRIP.

Do que aparenta ser uma antinomia jurídica entre a redação proposta ao art. 47-B e outros comandos da Lei 10.233/2001 sobressai a seguinte questão: a quem interessa fragilizar as atribuições de regulação técnica – de segurança, de qualidade – e econômica da ANTT?

Por esse conjunto de razões, que envolve a fragilização da autonomia técnica da agência reguladora, um caminho que pode não ter volta, defendo a proposição de veto ao § 1º e ao inciso I do § 3º da nova redação do art. 47-B da Lei 10.233/2001, conforme trazidos pelo art. 2º do PL 3819.

O inciso II do § 3º da nova redação do art. 47-B da Lei 10.233/2001, que traz a exigência de capital social mínimo, e especifica esse valor, também deveria ser objeto de veto.

O legislador ordinário já havia conferido a competência para a ANTT fixar requisitos necessários às outorgas autorizativas no corpo do art. 29 da Lei 10.233/2001, não havendo razão para replicar essa obrigação no texto acrescido e muito menos para limitar o espaço de atuação normativa da agência reguladora dispondo em lei sobre esse valor.

Engessa-se desnecessariamente a regulação setorial, em sentido oposto ao modelo de atuação estatal em outros mercados regulados, nos quais a legislação setorial possui baixa densidade normativa, de forma a propiciar que as agências reguladoras possam tentar fazer frente à dinamicidade dos mercados por elas regulados.

Note-se que o Marco Legal das Ferrovias e a BR do Mar não trazem qualquer exigência de capital social, quiçá um valor definido em lei, razão pela qual a exigência trazida pelo inciso II do § 3º da nova redação do art. 47-B da Lei 10.233/2001 deveria ser vetada.

Não somente cria-se uma exigência inexistente em outros marcos legais, como positiva-se em lei uma matéria de natureza regulatória, a ser definida em âmbito técnico e não político.

Chega-se, enfim, à nova redação do “caput” do art. 47-B, com a inserção dos conceitos de inviabilidade técnica e econômica. Existem duas leituras possíveis ao novo texto proposto, e ambas são negativas, principalmente aos usuários do setor, notadamente de baixo poder aquisitivo.

A primeira delas se daria no sentido de que o acréscimo de uma nova outorga poderia inviabilizar técnica ou economicamente a competição no setor, ensejando a realização de um processo seletivo público.

A inviabilidade técnica à competição ocorreria em casos de monopólio natural, o que de pronto afastaria sua incidência sobre o setor de TRIP. Seria estranho admitir a existência de inviabilidade técnica à competição no setor de TRIP ao mesmo tempo em que o parlamento decidiu que o transporte ferroviário não se constituiria em um monopólio natural clássico.

A inviabilidade econômica à concorrência não somente conflita com o ambiente de livre e aberta competição, como carece de fundamentação matemática. Parte-se de uma lógica de que as receitas oriundas da exploração de uma outorga em específico deveriam ser suficientes à remuneração do capital da empresa operadora daquela ligação.

Essa lógica, que é válida em disciplinas contratuais – outorgas de concessão ou permissão –, é inaplicável no setor de TRIP. O conceito é falho por desconsiderar que as receitas das autorizatárias não advêm de uma única ligação (mercado), mas do conjunto delas. Soma-se a isso a exploração de receitas acessórias, não contabilizadas nesse fictício cálculo de viabilidade.

Adicionalmente, trata-se de uma outorga sem prazo de vigência e com liberdade tarifária, inviabilizando eventuais cálculos de viabilidade de negócio, os quais teriam que ser feitos sob premissas incompatíveis com os contornos legais da outorga autorizativa.

Como se nota, a leitura no sentido de uma inviabilidade técnica ou econômica à competição não se sustenta, e levá-la à cabo implicaria em estabelecer uma reserva de mercado em favor dos atuais operadores, criando um monopólio empresarial com chancela estatal, em que essas empresas poderiam operar com liberdade tarifária, estabelecendo preços em patamares bem superiores aos seus custos marginais de produção, em prejuízo dos usuários do setor.

A outra leitura possível se daria no sentido que os conceitos de inviabilidade técnica e econômica se prestariam ao estabelecimento de requisitos mínimos ao ingresso de novos entrantes.

Essas exigências, contudo, já são requeridas pela autoridade reguladora previamente à outorga de novos mercados, por meio da verificação de 35 requisitos de ordem jurídica, financeiro, trabalhista, técnico e operacional.

Ao reforçar essa exigência – já prevista no art. 29 da Lei 10.233/2001 –, contudo, o legislador ordinário transparece a intenção de que sejam impostos ônus adicionais ao ingresso de novos entrantes, medida injustificável, mormente ante os efeitos positivos que o incremento da concorrência vem trazendo ao setor e seus usuários.

Como se percebe, de forma muito evidente, o art. 2º do PL 3819 deveria ser objeto de veto pelo Presidente da República, seja por fragilizar a atuação da ANTT na regulação setorial, limitando o espaço de atuação normativa da agência e positivando em lei aspectos de regulação técnica, seja por criar reserva de mercado em favor dos grupos econômicos que ditam os rumos do setor de TRIP por décadas a fio, sempre sob o beneplácito estatal.

Sancionar o PL 3819 como ele foi aprovado se constitui em um duro golpe à rede de mobilidade interestadual, que retomará a trajetória de perda de atratividade e, sobretudo, aos usuários do setor de TRIP, cada vez mais cativos, reféns das oligarquias empresariais que comandam o transporte rodoviário de passageiros.

 

* Felipe Freire da Costa é especialista em Regulação de Serviços de Transportes Terrestres e assessor na Diretoria da Agência Nacional de Transportes Terrestres.

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Por Gabriel Fiuza de Bragança[1], Rodolfo Gomes Benevenuto[2], Diego Camargo Botassio[3], Fabiano Mezadre Pompermayer[4] e Rafael Ribeiro Silveira[5]

Investimentos em infraestrutura são essenciais para o desenvolvimento socioeconômico de um país. Entende-se por infraestrutura, estruturas e ações que servem de sustentação para o desempenho de diversas atividades econômicas, conferindo efeito multiplicador por toda a cadeia produtiva do país.

É importante frisar que as políticas de investimento em infraestrutura são estratégicas e, constantemente, os recursos para sua execução são escassos. Os desafios fiscais e a busca pela maior efetividade nas ações de interesse público exigem uma priorização daqueles empreendimentos que maximizem os retornos econômicos e sociais para cada real investido. Para isso, é necessário um processo de governança bem definido, envolvendo a estruturação, avaliação e monitoramento de projetos de investimento em infraestrutura. Todo esse conjunto traz transparência, racionalidade e eficiência para os investimentos de interesse público.

Diversas iniciativas têm sido desenvolvidas para propor modelos de governança nesse contexto. Destaca-se, para infraestrutura, o Grupo de Trabalho de Investimentos em Infraestrutura, instituído no âmbito do Comitê Interministerial de Governança (CIG) pela Resolução CIG nº 01/2019, que contou com a participação, enquanto convidados, de representantes dos ministérios setoriais de infraestrutura. Este grupo de trabalho propôs um Modelo de Governança dos Investimentos Públicos, baseado em avaliação sistemática dos projetos de investimento público, portões de aprovações por meio de comitês interministeriais, conforme o nível de maturidade dos projetos, e uma entidade independente para emitir pareceres sobre os projetos propostos (https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/governanca/comite-interministerial-de-governanca/arquivos/relatorio_final.pdf).

Passos importantes para a implementação de boas propostas de governança também foram dados com a criação do Comitê Interministerial de Planejamento da Infraestrutura (CIP-Infra) e o Plano Integrado de Longo Prazo da Infraestrutura (Pilpi), ambos instituídos pelo Decreto 10.526/2020. Nesse plano, os novos projetos de infraestrutura já devem ter sua viabilidade socioeconômica estimada.

Nessa direção, considerando a ausência de metodologias padronizadas para estruturação, avaliação e monitoramento dos resultados alcançados para projetos de infraestrutura que estabeleça uma boa governança dos recursos, a Secretaria de Desenvolvimento da Infraestrutura (SDI), da Secretaria Especial de Produtividade e Competitividade (SEPEC) do Ministério da Economia (ME), tem desenvolvido, desde 2019, uma série de iniciativas com o objetivo de  sistematizar e disseminar as melhores práticas nacionais, internacionais e acadêmicas para estruturação, avaliação e monitoramento de projetos de infraestrutura.

Uma dessas iniciativas foi a publicação do Guia Geral de Análise Socioeconômica de Custo-Benefício de Projetos de Investimento em Infraestrutura (Guia ACB) publicado em 2021. A metodologia abordada no Guia ACB consiste em avaliar, de uma perspectiva ex ante, o valor socioeconômico dos projetos de infraestrutura para a sociedade. Para isso, o método se baseia na projeção dos efeitos comparativos (incrementais) do projeto ao longo do seu ciclo de vida (custos e benefícios) em relação a um cenário sem o projeto.

Para efeito de comparação, o processo é convertido em indicadores que possibilitam avaliar a viabilidade socioeconômica do projeto. Essa prática também é adotada em diversos países referência no gerenciamento de investimentos públicos, como o Chile (Chile, 2013), Reino Unido (H.M. Treasury, 2018), Austrália (Australia, 2018) e Coreia do Sul, e está em linha com recomendações de organismos multilaterais (Banco Mundial, 2017; FMI, 2018).

Além disso, vale ressaltar o papel fundamental do Guia ACB na implementação das estimativas de viabilidade socioeconômica previstas no Pilpi 2021-2050, publicado em dezembro de 2021. De igual maneira, ressalta-se o Decreto nº 10.411, de 30 de junho de 2020, que regulamentou a Análise de Impacto Regulatório (AIR), que estabeleceu a ACB como uma das metodologias recomendadas, no âmbito da AIR, para aferição do impacto econômico. Ainda, o documento “Diretrizes Gerais e Guia Orientativo para Elaboração de Análise de Impacto Regulatório – AIR” da Casa Civil da Presidência da República, publicado em junho de 2018, ressaltou que “segundo as práticas dos países mais avançados no uso da AIR, a análise que oferece mais informações e dados para a tomada de decisão é a análise de custo-benefício. Isso mostra o alinhamento das ações governamentais a caminho da adoção sistemática de análise socioeconômica como critério de decisão.

Tão importante quanto padronizar as metodologias de avaliação é disseminá-las. Por isso, junto à padronização das metodologias, foi criado em parceria com a Escola Nacional de Administração Pública (Enap) em programas de capacitação para servidores públicos. Essa ação endereça uma das principais barreiras para a consolidação de um modelo mais robusto e efetivo de planejamento da infraestrutura.

Até o momento, 300 pessoas já foram capacitadas nas metodologias do Guia Geral de Análise de Custo-Benefício (ACB) e M5D em turmas-piloto organizadas pela SDI com apoio da Enap e do governo britânico. Essas turmas incluem servidores da Casa Civil da Presidência da República; dos Ministérios Setoriais (MDR, MINFRA, MME, MCOM, MCTI), empresas de planejamento (EPE, EPL), bancos de desenvolvimento (BNDES, Caixa, BDMG), instituições de desenvolvimento (ABDI, SUDENE), órgãos de controle (CGU, TCU), instituições setoriais (Dnit, Codevasf, Dnocs); além de integrantes dos governos dos estados do Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Bahia, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pará e Santa Catarina.

As capacitações já estruturadas têm sido realizadas de maneira remota possibilitando ganho de escala e maior participação dos servidores das esferas estadual e municipal. A articulação e disseminação das entregas produzidas por essa política já foram reconhecidas por outros órgãos do governo. São exemplos: relatório anual sobre as fiscalizações de obras públicas (Fiscobras) do TCU, o Guia de Planejamento Setorial do Ministério da Infraestrutura, relatórios do Comitê Interministerial de Planejamento da Infraestrutura (CIP-Infra) e etc.

No relatório Fiscobras 2021, é relatado que um dos problemas chaves para alavancar a infraestrutura nacional é a estruturação, priorização e seleção de projetos, tanto para ações de desestatizações quanto para a execução de ações com recursos públicos. Conforme mostra o parágrafo 32: 

“32. A partir dos principais diagnósticos sobre os problemas-chave para alavancar a infraestrutura nacional, realizados pelo Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, OCDE, Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e pelo Instituto de Pesquisas Aplicadas, pode-se concluir por problemas estruturais e crônicos em dois segmentos principais: 32.1. Planejamento de longo prazo, avaliação, estruturação e priorização de projetos, tanto para ações de desestatizações quanto para execução de ações com recursos públicos; e 32.2. Governança do processo de planejamento orçamentário, especialmente da alocação de recursos por meio de emendas orçamentárias, nesse último caso específico para obras públicas.”

E no parágrafo 74, o guia ACB é mencionado explicitamente:

“74. É digno de nota que, nessa linha, o Ministério da Economia lançou em 2021 o guia de Avaliação Custo-Benefício (ACB) de projetos de investimentos. Tal guia é um importante referencial para se examinar o grau de maturidade dos projetos utilizando-se do método dos cinco casos (5 case model), utilizado pelo Tesouro Britânico no exame da maturidade de projetos no Reino Unido.”

Em resumo, essa iniciativa é mais um avanço no aprimoramento do planejamento da infraestrutura nacional, em conformidade com as melhores práticas internacionais utilizadas há décadas em países como Reino Unido, União Europeia, Austrália, Estados Unidos, Canadá, Coreia do Sul e Chile. A experiência bem-sucedida nesses países assola a importância da seleção robusta e sistemática de projetos de infraestrutura para garantir uma economia produtiva, competitiva, sustentável e socialmente mais justa a longo prazo.

Retroalimentando a avaliação dos projetos de infraestrutura, a SDI também está comprometida em disseminar métodos de avaliação de resultados da implantação de investimentos em infraestruturas. Os estudos que avaliam os impactos causados por esses investimentos são essenciais para que sejam avaliadas as lições aprendidas, e assim sejam aplicadas em novos investimentos.

E para isso, a literatura em avaliação ex post apresenta metodologias para relações causais sobre impactos decorrentes do projeto. Nesse caminho, a SDI, no âmbito da cooperação internacional do governo brasileiro com o Programa das Nações para o Desenvolvimento (PNUD), contratou a consultoria Pezco Economics para o desenvolvimento de sete estudos de caso paradigmáticos visando a disseminação de melhores práticas de avaliações ex post nos setores de: logística, energia, segurança hídrica, mobilidade urbana, telecomunicações, saneamento básico e habitação social. Mais do que avaliar os projetos em si, tal iniciativa irá consolidar e disseminar metodologias que facilitem avaliações ex post de projetos de infraestrutura em todos os níveis de governo no país.

 

 

Referências

Transport and Infrastructure Council. Transport Assessments and Planning Guidelines (ATAP) – T2 Cost Benefit Analysis.

Banco Mundial [Martin Raiser, Roland N. Clarke, Paul Procee, Cecilia M. Briceño-Garmendia, Edith Kikoni, Joseph E. Kizito e Lorena Viñuela]. 2017. Back to planning: how to close Brazil’s infrastructure gap in times of austerity. Washington, D.C: World Bank Group.

Banco Mundial [Jay-Hyung dim, Jonas Arp Fallov e Simon Groom]. 2020a. Public Investment Management Reference Guide. International Development in Practice. Washington, D.C: World Bank. Disponível em https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/33368.

Banco Mundial. 2020b. Infratech Value Drivers. World Bank, Washington, DC. Disponível em https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/34320.

Banco Mundial. 2020c. Infratech Policy Toolkit. World Bank, Washington, DC. Disponível em https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/34326.

Banco Mundial [Stephane Hallegatte. Rubaina Anjum, Paolo Avner, Ammara Shariq, Michelle Winglee, Camilla Knudsen]. 2021. Integrating Climate Change and Natural Disasters in the Economic Analysis of Projects: A Disaster and Climate Risk Stress Test Methodology. Washington, D.C.: World Bank. Disponível em https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/35751.

Chile, Gobierno del. 2013. Ministério de Desarollo Social. Metodología General de Preparación y Evaluación Social de Proyectos. División de Evaluación Socialde Inversiones. Santiago.

  1. M. Treasury. 2018. Green book: appraisal and evaluation in central government. London. Disponível em https://www.pempal.org/sites/pempal/files/attachments/uk-green-book_eng.pdf.

[1] Gabriel Fiuza de Bragança é secretário adjunto de Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia.

[2] Rodolfo Gomes Benevenuto é subsecretário de Inteligência Econômica e Monitoramento de Resultados da Secretaria do Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia.

[3] Diego Camargo Botassio é coordenador-geral de Inteligência Econômica da Secretaria do Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia.

[4] Fabiano Mezadre Pompermayer é subsecretário de Planejamento Nacional da Secretaria do Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia.

5] Rafael Ribeiro Silveira é coordenador de Monitoramento e Resultados da Secretaria do Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia.

 

 

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Colocando o Brasil nos trilhos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3541&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=colocando-o-brasil-nos-trilhos Tue, 14 Dec 2021 21:36:13 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3541 Colocando o Brasil nos trilhos

Por Gustavo Ene* e Edson Sobrinho Silveira**

Nesta semana foi dado mais um importantíssimo passo para o desenvolvimento do País. Foi aprovado o projeto de lei que trata do Novo Marco das Ferrovias (PL 3.754/2021). O projeto segue agora para a Presidência da República para sanção e promulgação.

Foram quatro anos desde a propositura do Projeto de Lei do Senado nº 261 em 2018. O Governo abraçou a proposta, colocou-a entre suas prioridades, aprofundou as discussões técnicas e legislativas e, em agosto último, editou a Medida Provisória nº 1.065/2021, colocando o Novo Marco em vigência imediata e acelerando sua tramitação para virar lei. Esta iniciativa canaliza o anseio da economia brasileira desde os mais remotos anos, sobretudo depois que o Brasil se tornou uma economia industrializada e passou a ocupar as primeiras colocações no mundo em termos de riqueza.

Nunca é demais dizer que a economia brasileira é pujante, afinal ocupamos o oitavo maior PIB do mundo. Também nunca é demais lembrar que toda esta pujança foi transportada até os dias de hoje, primordialmente, no modo rodoviário: transporte ineficiente, custoso e prejudicial ao meio ambiente.

O Novo Marco abre espaço para o transporte ferroviário de cargas com capital privado. Neste ponto, dois elos se unem: a infraestrutura ferroviária, que é comprovadamente a forma terrestre mais eficiente de transportar cargas, e o setor privado, que tem mais capacidade e flexibilidade que o Estado para tornar viáveis projetos de grande envergadura.

A chave Novo Marco está no protagonismo do setor privado, o qual é garantido pela liberdade econômica inserida no corpo da nova legislação e que tem no regime de autorização o seu principal instrumento de captação de investimentos.

Até então, para se construir uma nova ferrovia no Brasil precisava-se do Governo para fazer estudos técnicos e econômicos e abrir um processo licitatório de concessão. Toda decisão de novos investimentos precisaria passar pela agência reguladora, que iria avaliar custos e retorno econômico, aprovar o projeto de engenharia e controlar o cronograma de investimentos. Também iria controlar o equilíbrio econômico-financeiro daquela concessão e, ao final do contrato, a ferrovia seria devolvida para o poder público. Tudo isso inibe o empreendedor, que não se sente atraído para investir bilhões de reais e devolver o empreendimento ao Governo num prazo geralmente muito mais curto que a vida útil daquela infraestrutura.

Com o Novo Marco, por meio da autorização ferroviária o empreendedor privado poderá tomar a iniciativa de fazer os estudos, o planejamento, a construção e a exploração de novas ferrovias com seus recursos, sob sua conta e risco, sem depender da tutela da agência reguladora e do poder concedente. Poderá decidir por investir em expansões e terá a liberdade de oferta de serviços a terceiros. Os ativos serão seus e poderá explorá-los até o fim de sua vida útil.

Não é por outra razão que a vigência da medida provisória 1.065/2021 em pouco mais de três meses já gerou mais de 47 pedidos de autorização para construção e operação de novas ferrovias, com uma expectativa de investimento da ordem de R$ 150 bilhões e mais de 11,1 mil quilômetros de extensão em novos trilhos.

As ferrovias privadas funcionarão como atividade econômica, e como tais estarão sujeitas ao direito concorrencial. Isso surtirá efeitos, por exemplo, para fins de compartilhamento da infraestrutura por meio do direito de passagem e do tráfego mútuo, pois qualquer ato que impeça a atuação de agentes neste mercado de forma discriminatória, sempre que entendido como limitação à livre iniciativa e à livre concorrência, é tipificado como uma infração à ordem econômica punível nos termos da lei.

Não é demais dizer que a nova legislação permitirá relacionamento harmonioso entre os regimes de direito público e de direito privado, uma vez que: (i) as concessões das ferrovias públicas ao setor privado permanecem inalteradas; (ii) as concessionárias podem fazer a migração para o regime de autorização, desde que obedecidas condições concorrenciais; e (iii) as ferrovias podem ser construídas e operadas pela iniciativa privada.

A nova legislação também garante às concessões vigentes o respeito aos seus contratos. Sempre que se provar um desequilíbrio econômico-financeiro protegido nos termos contrato, elas terão direito ao reequilíbrio. Esta forma de proceder garante segurança jurídica para aquelas concessionárias que já estavam compromissadas com a concessão antes da entrada em vigor da nova legislação.

Por tudo isso a nova legislação de ferrovias representa a oportunidade de colocar o Brasil nos trilhos: nos trilhos da liberdade econômica, nos trilhos da liberdade de concorrência e nos trilhos da prosperidade.

 

* Gustavo Ene é secretário do Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia.

** Edson Sobrinho Silveira é subsecretário de Regulação e Mercado da Secretaria de Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia.

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Desafios da energia eólica https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3503&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=desafios-da-energia-eolica https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3503#comments Tue, 28 Sep 2021 15:29:50 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3503 O futuro dos ventos brasileiros:

desafios regulatórios da energia eólica

Por Elbia Gannoum*

O setor eólico brasileiro tem experimentado um crescimento virtuoso, fruto de um esforço dedicado de empresas, governos e da ótima qualidade dos nossos ventos, um dos melhores do mundo para a produção de energia. Em 2010, tínhamos menos de 1 GW de capacidade instalada. Vamos terminar o ano de 2021 com 20 GW, mais de 740 parques eólicos e cerca de 8.700 aerogeradores em operação. Estes dados mostram uma indústria sólida, empregando milhares de pessoas e promovendo desenvolvimento econômico e social. A evolução da energia eólica no Brasil tem sido caracterizada por aperfeiçoamentos regulatórios, técnicos, ambientais e financeiros diante de um setor elétrico nacional e mundial em evolução.

De uma participação incipiente na matriz de geração até boa parte da década de 2000, a fonte se tornou em 2019 a segunda principal fonte de eletricidade do país em capacidade instalada, uma posição que deverá ser reforçada ao longo das próximas décadas diante de um potencial promissor em terra e no mar e com a possibilidade de o hidrogênio verde ganhar espaço no Brasil e mundo, tornando-se uma importante fonte de demanda por energia elétrica renovável.

Este sucesso pode ser explicado tanto pela abundância e qualidade dos recursos eólicos, quanto pelas políticas energéticas que impulsionaram a construção de parques eólicos e incentivaram o desenvolvimento da indústria de equipamentos. Todo este desenvolvimento virtuoso da eólica foi sustentado, ao longo dos anos, por evoluções regulatórias que foram acompanhando o crescimento da fonte.

O futuro da eólica é promissor. Até 2024, por exemplo, teremos pelo menos 30 GWs de capacidade instalada, considerando apenas os contratos já assinados. Com novos leilões e contratos no mercado livre este número pode ser ainda maior. E as fronteiras tecnológicas também prometem uma grande expansão para a energia dos ventos. Refiro-me, por exemplo, às usinas offshore, hidrogênio para geração de energia e parques híbridos. E todo esse desenvolvimento exigirá, também, avanços regulatórios.

Primeiro, vamos analisar as usinas híbridas, que mesclam, por exemplo, energia eólica e solar em um mesmo local. A combinar duas fontes de energia complementares, a hibridização pode ser usada para otimizar a utilização da rede de transmissão, trazendo ganhos na infraestrutura, logística dos projetos e na questão dos encargos, além de estar sendo incentivada por novo mecanismo de precificação.

Os parques híbridos ainda surgem em cenário de esgotamento da transmissão, principalmente no Nordeste, e no avanço das fontes solares e eólicas, que têm complementariedade entre si, além de ganhos de eficiência se tratadas conjuntamente. Ao contar com energia solar e eólica em um mesmo local, o investidor poderá ter economia de escala e de escopo, mas a regulação dos parques híbridos ainda contém incertezas.

No segundo semestre de 2020, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) lançou a primeira fase da Consulta Pública nº 061/2020 para debater a normatização para o estabelecimento de usinas híbridas e associadas. Nessa etapa, se colocou em discussão a Análise de Impacto Regulatório (AIR) elaborada pelas áreas técnicas da Agência. O Relatório de AIR em análise na consulta pública trata, entre outros, de possíveis alterações na emissão das outorgas de geração, na aplicação dos descontos na Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) e na Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão (TUST).

Em 17 de agosto de 2021, foi aberta a segunda etapa da Consulta Pública pela Aneel. Há dois tipos de projetos, usinas híbridas e usinas associadas. Ambas são formadas por diferentes tecnologias de geração, compartilhando fisicamente a mesma estrutura de rede. A diferença é que, nas híbridas, pode haver uma única outorga e uma única medição. Nas usinas associadas, pode haver duas outorgas distintas e, necessariamente, duas medições.

Até julho de 2021, não há tratamento regulatório específico para as usinas associadas e/ou híbridas. Na prática, os empreendedores estão ‘anexando’ painéis solares (fotovoltaicos) os parques eólicos com objetivo de auferir os benefícios em relação à implantação da nova usina com o compartilhamento de algumas instalações e compartilhamento da operação de ambas[1]. Neste processo, as usinas são tratadas individualmente segundo regulação específica para cada fonte. Não existe, portanto, um tratamento diferenciado focado no conjunto. Para os investidores, existe necessidade regulatória de se definir um enquadramento específico para usinas do tipo associadas e híbridas, de modo a contemplar as características destas tipologias e dar tratamento específico, diante das economias de escala e escopo que estes projetos são capazes de auferir.

Sem regulação específica, embora haja uma otimização do uso das linhas de transmissão, ainda não há possibilidade de contratação e pagamento pela tarifa otimizada, o chamado Montante do Uso do Sistema de Transmissão ou Distribuição (MUST/MUSD) O tratamento regulatório vigente, dado pelas Resoluções Normativas nº 666/2015 e nº 506/2012 da Aneel, indica a contratação de um MUST e MUSD, respectivamente, equivalente a 100% da Potência Nominal Líquida da fonte Solar FV/Eólica (Potência Injetada = Potência Nominal – Consumo Interno –Perdas até Ponto de Entrega). Dessa forma, em usinas híbridas/associadas isso implicaria, estrito senso, a contratação da soma da potência nominal líquida das fontes. Esta contratação agregada não contribui com o (quase) frequente “gargalo” caracterizado pela necessidade de implantação de projetos em pontos com rede de conexão, muitas vezes já esgotada em termos de potência contratada.

Não faz sentido econômico, e tampouco técnico a contratação de um MUST equivalente a 100% da Potência Nominal Líquida da fonte Solar FV/Eólica, mas sim em um valor que corresponda à expectativa de injeção ótima do conjunto de fontes. Se o investidor tem um parque eólico de 100 MW que só gera grande parte de sua energia à noite, o empreendedor precisa contratar e pagar para utilizar o montante de 100 MW, mesmo que a rede fique ociosa durante o dia, quando o vento é mais fraco. Se decidir acrescentar um parque solar fotovoltaico de 50 MW, precisará contratar um total de 150 MW, o que encarece o empreendimento.

Uma vez que um dos interesses de se viabilizar projetos híbridos reside no compartilhamento da rede, em razão dos benefícios técnicos-financeiros gerados, ou seja, há necessidade de aprimoramento das Resoluções Normativas vigentes de forma a permitir contratação do montante de uso do sistema de forma diferenciada para os casos de usinas híbridas e associadas.

O futuro da energia eólica também está na exploração das usinas offshore, cujo potencial no Brasil é muito promissor. O Brasil possui um potencial de geração de energia eólica em alto-mar de aproximadamente 1000 gigawatts (1TW) em locais com profundidade de até 50 metros, de acordo com estudos do Banco Mundial e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Há incertezas em relação ao meio ambiente, já que as questões jurídicas atreladas a esse tipo de empreendimento são diferentes dos parques eólicos terrestres. Enquanto os parques eólicos onshore são estruturados majoritariamente em terrenos privados, os parques eólicos offshore são implantados necessariamente em áreas de propriedade da União (mar territorial, plataforma continental e a zona econômica exclusiva).

Do ponto de vista regulatório, as incertezas se referem, por exemplo, à forma que ocorrerá a utilização do espaço marinho, como a definição do regime de uso do espaço público para  seleção   de   interessados; a necessidade   de   cláusulas   específicas   no instrumento de outorga  do  uso  do  espaço  marítimo  quanto  ao  objeto,  prazo, do inadimplemento,  desmobilização  etc.;  e  a  adoção  de  critérios  para  o  cálculo  do preço para o uso do espaço marítimo.

Outra incerteza jurídica sobre esses empreendimentos se refere à questão ambiental. A Resolução Conama nº 462/2014 estabelece procedimentos para o licenciamento ambiental de empreendimentos de geração de energia elétrica a partir de fonte eólica somente em superfície terrestre. Já há mais de vinte projetos de usinas eólicas, no total de 46 GW, sob licenciamento ambiental no Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), cuja competência é determinada pelo Decreto Federal nº 8.437/2015, que concedeu ao órgão a competência para licenciar usinas eólicas offshore e em zona de transição terra-mar. Para assegurar maior segurança jurídica para a instalação de eólicas offshore no Brasil, seria válido refletir sobre uma regulamentação ambiental específica com base na Resolução Conama 462/2014 que estabeleça critérios objetivos para definir quais os estudos de impactos ambientais a serem realizados na instalação de usinas eólicas em alto mar.

Uma outra fronteira importante onde a eólica se insere é a utilização de hidrogênio para geração de energia. Com 85% de sua matriz de geração de energia elétrica baseada em fontes renováveis, o Brasil tem potencial para liderar a transição para uma economia de baixo carbono nos próximos anos, seja incorporando novos projetos de eólicas, biomassa e solares, seja com inovações como o hidrogênio verde.

O trunfo brasileiro é a complementariedade entre suas fontes renováveis. Quando ocorre o período seco, de maio a novembro, as hidrelétricas perdem água, mas a biomassa de cana pode compensar parte dessa perda. Os ventos que fazem girar as turbinas das eólicas sopram mais de madrugada, enquanto o sol brilha no horário de maior consumo. Essa possibilidade de produzir energia renovável 24 horas sete dias da semana cria uma oportunidade em um mercado nascente: o hidrogênio verde, nicho que o país poderá se tornar um player global em um momento em que países como Alemanha e Portugal já começam a discutir leilões de contratação de importação de hidrogênio verde.

A descarbonização total de certos setores, como transporte, indústria e usos que são intensivos em calor, pode ser difícil apenas por meio da eletrificação a partir de renováveis. Esse desafio poderia ser enfrentado pelo hidrogênio a partir de renováveis, que permite que grandes quantidades de energia renovável sejam canalizadas do setor elétrico para os setores de uso final, tendo papel relevante na transição energética. A tecnologia é vista como eficiente para ajudar a descarbonizar principalmente o setor de transporte.

O hidrogênio é utilizado pela indústria química há mais de um século, produzindo fertilizantes e metanol. A partir do crescimento das fontes renováveis de energia foi possível obter o chamado hidrogênio verde, produzido com a energia de hidrelétricas, solar, eólica ou biomassa a partir de eletrólise (carga de energia para separação do hidrogênio). O Brasil, além do potencial de energia renovável, tem liderança mundial em agronegócio, mas é importador de fertilizantes, o que gera oportunidades para a agroenergia.

Com a publicação da Resolução nº 6/2021 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), o governo federal propôs a elaboração de diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio. Segundo o governo federal, para a consolidação da economia do hidrogênio, pressupõe-se o desenvolvimento de uma infraestrutura de produção, armazenamento, transporte e distribuição do hidrogênio, pelo lado da oferta, bem como a inserção do energético na matriz de consumo em setores-chaves, como transportes, siderurgia e de fertilizantes.

No aspecto tecnológico, há inúmeros desafios a serem superados, embora sua produção e utilização já seja realidade em alguns nichos. O armazenamento do hidrogênio é um deles, pois exige elevadas pressões para armazenamento no estado gasoso, ou criogenia para armazenamento no estado líquido. A Resolução do CNPE abre caminho para a proposição de diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio, em cooperação com os Ministérios de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e Desenvolvimento Regional (MDR), com apoio da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). “Para fazer frente a esse desafio, são necessárias novas normas de segurança, novos desenhos regulatórios e todo um arcabouço que permita ao hidrogênio alcançar níveis de competitividade que abram caminho para o uso em grande escala”, informou o governo ao propor diretrizes para o segmento.

Um dos pontos que terão de ser resolvidos é quem regulará seu desenvolvimento da inovação. Em nota técnica de fevereiro de 2021, a EPE cita oito formas de produção do insumo a partir de diferentes matérias-primas como carvão, urânio, petróleo, gás natural, biomassa, metano e água, fontes renováveis. “Olhando-se o desenho de competências apenas das Agências Reguladoras com possível projeção sobre o tema, notadamente ANP, ANEEL e Agência Nacional de Águas (ANA), tem-se que as competências atualmente vigentes na regulação não são claras sobre sua incidência ou não ao caso do hidrogênio e não há uma previsão transversal que alcance etapas da cadeia que possam compreender o hidrogênio obtido a partir de diferentes fontes – a exemplo de seu transporte, regulação de qualidade e comercialização. hidrogênio obtido de combustíveis fósseis como petróleo e gás natural entra no escopo de regulação da ANP, vez que tais recursos minerais são bens da União e que a atividade de refino de petróleo é monopólio deste ente federativo. Essa competência é evidenciada também na Lei nº 9.478/97, que expõe que a Agência é o órgão regulador da indústria do petróleo, gás natural, seus derivados.

O futuro energético do Brasil é bastante promissor. Com recursos naturais abundantes, como sol, vento, água, o país poderá liderar a transição para uma economia de baixo carbono. O setor eólico poderá desempenhar um papel ainda mais relevante dentro dessa agenda. Para que isso ocorra, serão necessários aperfeiçoamentos regulatórios para que o potencial do país possa ser uma realidade. Outro desafio será colocar em prática a regulação de modernização do setor de energia, lançada pela CP nº 33, em 2017. Em julho de 2021, vários pontos da agenda estão em discussão na Câmara dos Deputados pelo Projeto de Lei nº 414, que discute a ampliação da abertura do mercado livre para a baixa tensão. Em julho de 2021, o projeto aguardava despacho do Presidente da casa legislativa para seguir em tramitação. Um tópico do PL 414/2021, que merece atenção, encontra-se na separação entre lastro e energia elétrica. De acordo com a definição do novo art. 3°, §5°, I, da Lei n° 10.848/2004, lastro é a contribuição de cada empreendimento ao provimento de confiabilidade e adequabilidade sistêmica. Trata-se de uma garantia exigida pelo Ministério de Minas e Energia, a ser paga por geradores, distribuidores e consumidores de energia. Tais lastros, além de dar mais confiança ao consumidor, poderão facilitar a obtenção de financiamentos no setor financeiro privado. Pelas regras atualmente vigentes, o lastro e a energia elétrica são negociados como um produto unificado. Os consumidores cativos, atendidos pelas distribuidoras, arcam com a maior parcela dos custos do lastro. O projeto busca promover alterações legislativas que visam ao reequilíbrio desse encargo entre os consumidores dos mercados livre e regulado.

Com um histórico sólido de avanços regulatórios, entendo que os desafios aqui mencionados fazem parte do caminho e que serão superados, após as regulares discussões técnicas. O futuro da energia eólica, como gosto de repetir sempre que posso, é muito promissor e os avanços regulatórios sustentarão essa expansão.

 

[1] Ao instalar numa planta de energia eólica já em operação os painéis solares, ou fazer o projeto envolvendo ao mesmo tempo painéis solares e turbinas eólicas há um significativo ganho de economia de escala e de escopo, tendo em vista que a energia solar e produzida durante o dia e as turbinas produzem mais durante a noite, podendo desta forma maximizar a produção de energia e utilizar a mesma rede de transmissão.

 

* Elbia Gannoum é economista, Phd pela Universidade Federal de Santa Catarina.  É presidente executiva da ABEEólica – Associação Brasileira de Energia Eólica. Vice-chair do GWEC (Global Wind Energy Council). Foi eleita em 2020 embaixadora global do – Global Women’s Network for the Energy Transition, GWNET, and Global Wind Energy Council, GWEC.

 

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Proteção da fauna vulnerável a empreendimentos de alto risco https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3501&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=protecao-da-fauna-vulneravel-a-empreendimentos-de-alto-risco https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3501#comments Sat, 25 Sep 2021 12:26:04 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3501 Proteção da fauna vulnerável a empreendimentos de alto risco

Por César Mattos* & Wagner Fischer**

Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 2.950/19 que visa estabelecer normas para proteção de animais em situação vulnerável diante de impactos decorrentes de empreendimentos de alto risco para a vida silvestre. De autoria do senador Wellington Fagundes (PL/MT), o projeto já contou com um Substitutivo do deputado Glaustin da Fokus (PSC-GO), aprovado na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços na Câmara dos Deputados, que aperfeiçoou bastante a proposição original. Atualmente a proposta aguarda indicação de relator na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados para prosseguir sua tramitação.

Tal processo legislativo é uma grande oportunidade para que os efeitos negativos de atividades socioeconômicas sobre o meio ambiente possam ser revisitados, compreendidos, debatidos e minimizados, sobretudo no que tange às questões de proteção e bem-estar de diversas espécies animais em território nacional.

A proposta em questão vem correndo em paralelo com a discussão de outro Projeto, o da Lei Geral de Licenciamento Ambiental. Nesse contexto, vale rememorar um dos princípios que norteiam o licenciamento ambiental relacionado às responsabilidades inerentes ao chamado “poluidor-pagador” quanto aos mais diversos usos da terra, a partir dos impactos por eles causados. Ainda que o marco geral de licenciamento ambiental esteja sendo devidamente assentado no arcabouço legislativo nacional, como parte essencial de um dos principais instrumentos da Política Nacional de Meio Ambiente adotados pela autoridade pública, algumas atividades humanas despertam preocupação específica da sociedade pelo alto risco que proporcionam à biodiversidade local e regional ao longo de seu ciclo de instalação e operação.

Animais silvestres são elementos da biodiversidade brasileira que invariavelmente sofrem diversos impactos provocados pela atividade humana. Contudo, há certos tipos de empreendimentos que implicam em graves, constantes e iminentes ameaças ao bem-estar dos animais que a eles estejam associados, especialmente para as espécies da fauna nativa brasileira. Empreendimentos rodoviários e de mineração são exemplos notáveis desse tipo de situação, uma vez que a partir deles são comuns as ocorrências de eventos catastróficos, como incêndios descontrolados da vegetação lindeira, atropelamentos de animais, rompimento de barragens de rejeitos de mineração, entre outras situações preocupantes para a conservação da biodiversidade. Ainda que seja difícil de se precisar o momento em que tais situações poderão ocorrer, e muitas certamente irão acontecer realmente, cabe às autoridades públicas licenciadoras dessas atividades estarem atentas às possibilidades de que tais eventos venham impactar drasticamente tanto a vida silvestre quanto a humana.

Assim, torna-se plenamente justificável se assegurar a efetiva adoção de medidas preventivas e protetivas quando houver riscos suficientemente plausíveis de que tais perturbadores impactos contra a fauna ocorram. O chamado “dano esperado” combina a probabilidade e a magnitude de sua ocorrência, servindo como alerta prévio para legitimar a implementação de medidas preventivas necessárias, tecnicamente embasadas por outro princípio basilar da conservação biológica, o princípio da precaução. Por conta disso, medidas desta natureza devem estar incorporadas no próprio processo de licenciamento ambiental, dentro dos estudos ambientais, análises de risco e planos de contingência a serem produzidos. É na fase de licenciamento que se verifica a magnitude, intensidade e longevidade dos efeitos dos empreendimentos para que sejam estabelecidas as ações necessárias de cunho preventivo e emergencial, bem como aquelas de curto, médio e longo prazos.  Considerando as questões de proteção e defesa animal, a proposta legislativa em tela se presta a trazer inovações complementares neste processo, tanto as de caráter preventivo, voltadas a evitar danos possíveis, quanto as de caráter reparatório, que buscam sanear e minimizar aqueles ocasionalmente inevitáveis, inseridas no contexto de mitigação ou compensação ambiental do empreendimento em questão.

No âmbito dessas diretrizes e medidas preventivas inovadoras, se destacam: (i) as medidas voltadas ao próprio empreendimento em si; e (ii) aquelas destinadas a prover os recursos necessários para que se possa exercer os efetivos cuidados, com o eventual resgate, tratamento, reabilitação e destinação dos animais vitimados. A redução da probabilidade de ocorrência desses incidentes depende de que as tais medidas preventivas do tipo (i) sejam mais custo-efetivas do que aquelas do tipo (ii) e, portanto, prioritárias e preferenciais. Entretanto, ambas não são excludentes entre si, sobretudo em atividades em que o risco à vida silvestre persiste, ainda que todas as cautelas estejam presentes. Logo, a combinação de ambos os tipos de medidas preventivas torna mais robusta e efetiva a resolução do problema, desde que tal arranjo permita se chegar ao menor dano esperado aos animais sujeitos a situações de vulnerabilidade.

Nesse sentido, o Projeto de Lei mencionado vem aperfeiçoar o arcabouço legislativo referente ao processo de licenciamento ambiental de empreendimentos de alto risco para a proteção da fauna, buscando assegurar três aspectos fundamentais: (i) estabelecer medidas preventivas e mitigadoras efetivas e essenciais para evitar ou sanear eficientemente danos à fauna da melhor forma possível; (ii) assegurar que a adoção de tais medidas encontre na legislação as condições necessárias para sua sustentabilidade financeira e operacional ao longo do tempo; e (iii) definir e tipificar a punibilidade para aqueles empreendedores que descumpram ou venham a infringir tais dispositivos legais, caracterizando este tipo penal como crime de “maus tratos aos animais”.

Ao instituir medidas preventivas e mitigadoras necessárias ao planejamento e operação de empreendimentos, a proposta busca assegurar o desenvolvimento e implementação de infraestrutura de segurança e proteção à vida silvestre e planos de contingência para tratamento de animais em caso de acidentes e desastres ambientais. Isso envolve o fornecimento de todos os meios, incluindo máquinas, viaturas, equipamentos e equipes de socorristas destinados à busca, salvamento, manejo e cuidados imediatos a animais, durante e após ocasionais incidentes. Além disso, deve existir bases de apoio com água, alimentos, medicamentos e atendimento veterinário suficientes aos animais durante e após o salvamento, inclusive por meio dos chamados Centros de Triagem de Animais Silvestres – CETAS, que são estruturas gerenciadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, responsável por este tipo de atendimento a animais silvestres em nível federal. A criação ou disponibilização de bases e abrigos para adequada acomodação e tratamento de animais, inclusive pela instalação de novos CETAS também estão previstas. Após tratamento e reabilitação, tais estruturas deverão ser promotoras de ações de translocação e soltura, ou mesmo de projetos de reintrodução de animais silvestres em áreas naturais designadas para isso. Quando se tratar de animais domésticos, os procedimentos incluirão o tratamento e a devolução deles a seus respectivos proprietários.

Também está prevista a organização de brigadas de socorristas, com voluntários treinados, bem como a divulgação de material informativo voltado à evacuação, busca, resgate, salvamento, cuidados imediatos, reabilitação e a adequada destinação dos animais antes, durante e após as ocorrências. Em casos em que tais incidentes sejam previsíveis, como em rodovias e áreas propensas a incêndios da vegetação, medidas preventivas de proteção, monitoramento, manejo, afugentamento, resgate e translocação precoce deverão ser providenciadas a tempo. A depender da situação paisagística e ambiental em que estradas estejam inseridas, poderá ser determinada a restrição do acesso da fauna a determinadas áreas de domínio da rodovia, em especial em trechos da via que apresentem risco imediato de acidentes decorrentes da circulação de animais de grande porte. Além disso, está prevista também a implementação de passagens em desnível e cercamento das laterais da pista.

Sob a ótica da sustentabilidade financeira e operacional dessas estruturas e medidas de proteção animal, busca-se adequar a legislação referente aos recursos oriundos da compensação ambiental de empreendimentos desta natureza. Assim, no caso de empreendimentos de significativo impacto ambiental, inclusive envolvendo riscos iminentes de desastres ou acidentes que acarretem danos diretos à fauna silvestre, o empreendedor poderá apoiar a implantação e manutenção de Centro de Triagem de Animais Silvestres – CETAS ou estrutura similar, e não apenas Unidades de Conservação de Proteção Integral, conforme dispõe a legislação vigente (Lei 9.985/2000, Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC).

Quanto às infrações, buscou-se definir sanções diferenciadas com vistas a coibir o descumprimento de medidas preventivas e mitigadoras por parte do empreendedor. No caso de medidas preventivas, foi idealizada a implementação de uma regulação responsiva gradual, iniciando-se por sanções mais leves que vão se tornando cada vez rígidas na hipótese de recorrência no seu descumprimento. Sendo assim, foram definidas as seguintes sanções, em ordem sequencial de agravo: I – advertência escrita e privada para a empresa; II – advertência escrita em carta aberta à empresa, a ser publicada em jornais local e nacional; III – multa e a sanção do item II, incluindo a publicização de ambas; IV – suspensão da licença de operação do empreendimento entre seis meses e um ano; V – suspensão da licença de operação do empreendimento de um a dois anos; VI – cassação da licença de operação do empreendimento. Já o descumprimento de medidas mitigadoras torna a infração mais séria e gravosa, visto que isso passa a se configurar como prática de crime ambiental, com penalidade de detenção, de três meses a um ano, além de multa, conforme previsto na Lei 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais). Ademais, a depender da gravidade dos danos causados aos animais, somam-se a essa pena as sanções de suspensão e, no limite, também a cassação da licença do empreendimento.

Por fim, a ideia geral do aperfeiçoamento jurídico ora proposto visa dar alternativas técnicas aos próprios órgãos ambientais licenciadores federativos para definir quais serão os Centros de Triagem de Animais Silvestres (CETAS) ou demais estruturas similares a serem beneficiados. Tais decisões devem considerar as propostas apresentadas no Estudo de Impacto Ambiental e no Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), ouvidos os respectivos empreendedores, podendo inclusive ser estabelecida a necessidade de criação de novos CETAS em localização mais estratégica a suas funcionalidades associadas ao respectivo empreendimento. Os órgãos licenciadores também deverão providenciar a conceituação e definição formal do que será considerado empreendimento ou atividade de risco suficientemente elevado para a fauna em ato regulamentar específico. Todas essas medidas a serem executadas pelo empreendedor poderão ser feitas em articulação com os governos federal, estadual, distrital e municipal, organizações civis, setor privado, voluntariado e demais parceiros interessados da sociedade em geral.

Sendo assim, empreendimentos ou atividades capazes de causar significativa degradação ambiental e ao bem-estar animal deverão adotar medidas preventivas, mitigadoras e compensatórias para neutralizar ou reduzir o impacto à fauna residente ou migratória. Em caso de emergência, acidente ou desastre ambiental, seus responsáveis legais deverão estar aptos e prontos a arcar com o custeio imediato de atividades saneadoras, envolvendo resgate, acolhimento, pronto tratamento e reabilitação dos animais sobreviventes, seja em CETAS ou em alguma estrutura equivalente. Tai atividades deverão culminar com a destinação final dos animais recuperados, preferencialmente com a soltura em seu habitat natural. Deverão existir bases e equipes de apoio capacitadas para procedimentos e cuidados necessários aos animais em sofrimento, incluindo médicos veterinários, áreas de observação e isolamento para portadores de doenças infectocontagiosas, além de vacinação e identificação daqueles espécimes domésticos que precisarão ser devolvidos aos seus proprietários.

Com isso, espera-se que animais silvestres possam ter a proteção e os devidos cuidados e para assegurar sua readaptação à vida livre e, então, o seu retorno à natureza, seja nas áreas cadastradas para isso, como as chamadas Áreas de Soltura de Animais Silvestres (ASAS/Ibama), ou ainda, por meio de projetos de reintrodução ou revigoramento populacional específicos e devidamente autorizados. Existem ambientes depauperados em termos de riqueza e diversidade faunística, inclusive onde certas espécies já se tornaram extintas, mas que podem e necessitam ser recuperados. Eis aí grandes oportunidades para que tais ações aconteçam de forma permanente e sustentada para contribuir efetivamente com a conservação da biodiversidade nacional.

Todo esse aparato deverá permitir ainda qualificar a triagem das espécies vitimadas e contribuir para o desenvolvimento científico e as inovações biotecnológicas decorrentes. No caso do resgate de serpentes de espécies peçonhentas nativas, por exemplo, tais animais poderão ser prioritariamente encaminhados a instituições públicas de pesquisa, objetivando sua avaliação para a produção de soros antiofídicos para a rede pública de saúde. O mesmo deve ocorrer com as carcaças ou partes de animais silvestres mortos nestes incidentes, que deverão ser encaminhadas a instituições de ensino e pesquisa para o devido aproveitamento científico ou didático, preferencialmente em coleções biológicas, científicas ou didáticas registradas no Cadastro Nacional de Coleções Biológicas ex situ ou em órgãos vinculados à agricultura ou saúde.

Acredita-se que a estrutura do Substitutivo do Deputado Glaustin da Fokus aprovado na primeira comissão de mérito da Câmara dos Deputados tenha atingido resultados bastante satisfatórios na métrica de reduzir externalidades negativas incidentes sobre a fauna nacional da forma mais eficiente possível. Para isso, o Substitutivo do Deputado construiu uma solução que equilibra de forma bastante adequada e pragmática a necessidade de implementação de medidas preventivas e reparadoras. Isso constitui um bom exemplo de que é possível conciliar modelos equilibrados de intervenção regulatória do Estado que sejam ao mesmo tempo economicamente eficientes e ambientalmente responsáveis.

Assim, reforça-se a expectativa de que a discussão de tal promissor Projeto possa, em breve, ser retomada na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, mantendo-se a mesma linha adotada na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços. Todos aqueles que se preocupam com o bem-estar dos animais e a preservação do meio ambiente efusivamente agradecem.

 

* César Mattos é doutor em Economia e ex-secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade.

** Wagner Fischer é doutor em Ecologia e diretor do Departamento de Conservação e Manejo de Espécies,  Ministério de Meio Ambiente

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Projeto de Lei do Licenciamento Ambiental https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3492&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=projeto-de-lei-do-licenciamento-ambiental https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3492#comments Tue, 31 Aug 2021 20:41:11 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3492 Projeto de Lei Geral do Licenciamento Ambiental

Por Rose Hofmann*

Desde a aprovação do Projeto de Lei Geral do Licenciamento Ambiental[1] pela Câmara dos Deputados, em maio de 2021, os debates seguem acirrados, prometendo uma votação agitada sobre o assunto no Senado Federal. Por ser o instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente que mais se consolidou nos últimos 40 anos, o licenciamento ambiental tem sido sobrecarregado de atribuições e de expectativas pela ineficiência ou não aplicação de outros instrumentos definidos na mesma política.

Cercado de polêmicas, o projeto buscou endereçar soluções para as críticas mais frequentes atribuídas ao procedimento de licenciamento ambiental, dentre as quais destacam-se: os estudos extensos, excessivamente direcionados ao diagnóstico ambiental e que pouco contribuem com a tomada de decisão; a demora na emissão dos termos de referência; a multiplicidade de atores opinando no processo, com baixa cooperação entre eles; a fixação de condicionantes desvinculadas dos impactos identificados e que por vezes extrapolam as atribuições do titular da licença; e, por fim, o procedimento focado na emissão de licenças e pouco atuante no acompanhamento dos resultados.

Entre os pontos mais controversos do projeto aprovado estão a lista de empreendimentos e atividades não sujeitos ao licenciamento ambiental, a criação da licença por adesão e compromisso, a fixação de critérios para participação dos órgãos envolvidos e o fortalecimento da autonomia dos entes federativos nas fases de enquadramento e triagem.

Também há críticas pela ausência de menção à Avaliação Ambiental Estratégica (AAE), que apareceu em algumas versões do texto, mas não prevaleceu no projeto aprovado pela Câmara dos Deputados, assim como ao Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE). Nota-se que não há uma rejeição expressa à AAE no debate legislativo, mas sim o entendimento de que esse tipo de avaliação merece ato normativo específico. Em relação ao ZEE, embora sua inserção na lei seja defendida por alguns como um potencial aprimoramento do processo de licenciamento, o fato é que já existe previsão normativa nesse sentido.

A observação do ZEE pelo licenciamento ambiental já é mandamento trazido pelo Decreto nº 4.297, de 10 de julho de 2002, segundo o qual “para o planejamento e a implementação de políticas públicas, bem como para o licenciamento, as instituições públicas ou privadas observarão os critérios, padrões e obrigações estabelecidos no ZEE, quando existir, sem prejuízo dos previstos na legislação ambiental”.

Quanto à lista de não sujeição ao licenciamento ambiental, os debates legislativos que a fundamentaram levaram em consideração: i) situações concretas que, por outros instrumentos normativos ou harmonização de entendimentos técnicos, não requeriam licenciamento ambiental (obras urgentes e emprego de forças armadas, por exemplo); ii) o  argumento de que se trata de atividades com balanço ambiental positivo ou cujas medidas necessárias para o controle ambiental sejam suficientemente supridas por outros atos ou normativos de aplicação direta.

O texto ressalva, nesse dispositivo, que a não sujeição ao licenciamento ambiental não exime o empreendedor da obtenção, quando exigível, de autorização de supressão de vegetação nativa, de outorga dos direitos de uso de recursos hídricos ou de outras licenças, autorizações ou outorgas exigidas em lei, bem como do cumprimento de obrigações legais específicas.

A licença por adesão e compromisso (LAC), por sua vez, surpreende pela polêmica, considerando o fato de já ser aplicada em muitos estados da federação. Essa licença tem como foco as atividades e empreendimentos de baixo e médio potencial degradador e para os quais já sejam conhecidas as medidas de controle de seus impactos, não sendo aplicável a empreendimentos de significativo impacto, tampouco àqueles de impacto incerto e que demandam estudos específicos.

Embora venha sendo chamada de “auto licença”, a LAC passa longe disso e, além de prever a necessidade de emissão de ato normativo prévio pelo ente federativo (§ 2º do art. 21), o texto aprovado pela Câmara dos Deputados estabelece que a LAC somente será aplicável quando atendidas, cumulativamente, as seguintes condições (art. 21):

I – não seja a atividade ou empreendimento potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente; e

II – sejam previamente conhecidos:

  1. a) as características gerais da região de implantação;
  2. b) as condições de instalação e operação da atividade ou empreendimento;
  3. c) os impactos ambientais da tipologia da atividade ou empreendimento; e
  4. d) as medidas de controle ambiental necessárias.

III – não ocorra supressão de vegetação nativa, que depende de autorização específica.

Quanto à participação das autoridades envolvidas, o texto se inspirou na vigente Portaria Interministerial MMA/MC/MS/MJ nº 60, de 2015, que se aplica apenas aos licenciamentos conduzidos na esfera federal e segundo a qual os órgãos poderão opinar, sem caráter vinculante, na etapa de elaboração do termo de referência, na análise dos estudos e na fixação das condicionantes. Ao compor a lei geral, com disposições similares à da referida Portaria, a abordagem passaria a ser aplicada também em todos os estados e municípios, nos quais é conduzida a maior parte dos licenciamentos do País.

Essa obrigatoriedade de provocação dos órgãos envolvidos em três momentos (TR, estudos e condicionantes) tende a aumentar significativamente a carga de trabalho de entidades como a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Isso porque a provocação desses atores no processo de licenciamento, embora seja prática consolidada no licenciamento ambiental federal, ainda é incipiente em alguns estados e municípios.

De acordo com o texto aprovado na Câmara, o único órgão que hoje possui poder de veto no licenciamento e passaria a ter apenas manifestação opinativa é o órgão gestor de unidade de conservação. Esse poder de veto hoje existente se aplica somente quando o empreendimento ou atividade de significativo impacto ambiental afeta unidade de conservação específica ou sua zona de amortecimento. Ao equipará-lo aos demais órgãos envolvidos, o texto busca reforçar o poder decisório da autoridade licenciadora, a quem cabe então considerar todas as contribuições recebidas.

Não se trata, portanto, de afastar a avaliação de impactos ambientais em unidades de conservação, tampouco em terras indígenas ou quilombolas, mas de fortalecer o poder decisório da autoridade licenciadora, que funcionará como uma espécie de balcão único, integrando as análises dos demais envolvidos e também as contribuições das audiências públicas e de outras formas de consulta no procedimento de licenciamento ambiental.

Outras inovações trazidas pelo projeto de lei aprovado na Câmara serão debatidas a seguir, no contexto das etapas que compõem o procedimento, quais sejam:

  • enquadramento e triagem;
  • delimitação do escopo;
  • elaboração dos estudos;
  • verificação dos estudos;
  • análise técnica;
  • consulta pública;
  • decisão;
  • acompanhamento das condicionantes.

Na etapa da triagem, na qual é feita a seleção dos empreendimentos ou atividades que se sujeitarão ao licenciamento ambiental e em que nível de complexidade, atualmente são aplicados essencialmente os critérios de porte, natureza e potencial poluidor para o enquadramento. Nessa etapa, o projeto aprovado na Câmara reforça a realidade atual, em que cada unidade federativa tem definido o recorte de quais empreendimentos são levados ao procedimento mais complexo, quais podem passar por licenciamento simplificado ou quais são aqueles que não precisam se submeter ao procedimento.

Como aprimoramento, o projeto aprovado na Câmara passa a considerar, como critério para o enquadramento, o critério de localização da atividade ou empreendimento (§ 1º do art. 17). Essa inclusão, já praticada em alguns estados e municípios, permite que haja tratamento diferenciado para um mesmo projeto a depender da sensibilidade da área em que se pretende construí-lo e operá-lo.

Embora o texto aprovado pela Câmara dos Deputados tenha frustrado expectativas de padronização para o enquadramento e triagem, o projeto avança ao estabelecer que a natureza da atividade ou empreendimento terá sua designação baseada na Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE). A partir desse padrão, os entes federativos estabelecerão suas listas positivas, indicando as atividades e empreendimentos que se sujeitam ao licenciamento ambiental, ou listas negativas, indicando para as quais não se aplica o procedimento.

Pela forma como as listas positivas e negativas são fixadas atualmente, sem uma regra geral, há dificuldade em comparar o procedimento aplicado em cada estado ou município para empreendimentos ou atividades similares. Com a adoção do CNAE, a transparência e a comparabilidade devem ser favorecidas.

Na delimitação do escopo, faz-se a indicação do conteúdo necessário aos estudos ambientais, em termos de abrangência e profundidade, que servirão de subsídio à tomada de decisão sobre a viabilidade do empreendimento ou atividade. Aqui o projeto endereça solução para a crítica dos estudos extensos e focados em diagnóstico ao estabelecer que o termo de referência “deve ser elaborado considerando o nexo de causalidade entre os potenciais impactos da atividade ou empreendimento e os elementos e atributos dos meios físico, biótico e socioeconômico suscetíveis de interação com a respectiva atividade ou empreendimento” (§ 3º do art. 24).

Como bem explicado pelo Ministério Público Federal[2] em estudo realizado em 2004:

O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) deve ser capaz de descrever e interpretar os recursos e processos que poderão ser afetados pela ação humana. Nesse contexto, o diagnóstico ambiental não é somente uma das etapas iniciais de um EIA: ele é, sobretudo, o primeiro elo de uma cadeia de procedimentos técnicos indissociáveis e interdependentes, que culminam com um prognóstico ambiental consistente e conclusivo. (BRASIL, 2004, p. 20)

Assim, ao bem delimitar o termo de referência, a proposição dá o primeiro passo para que esse encadeamento lógico seja garantido. Com um diagnóstico aderente às necessidades da avaliação de impactos ambientais, os recursos são otimizados em prol de uma decisão mais efetiva e realista.

E para resolver o problema da demora da emissão de termos de referência, o texto aprovado na Câmara dos Deputados estabelece que “extrapolado o prazo fixado no § 4º, faculta-se ao empreendedor o protocolo dos estudos para análise de mérito com base no termo de referência padrão da respectiva tipologia, disponibilizado pela autoridade licenciadora” (§ 5º do art. 24).

Após a elaboração dos estudos, estes passam por uma verificação de aderência ao que foi exigido no termo de referência, procedimento também conhecido como “check list”. Trata-se de uma etapa que deveria se concentrar em uma análise expedita de atendimento ao TR, sem adentrar no mérito em si. Mas não é o que tem se verificado na prática, especialmente na esfera federal, fazendo com que muitos estudos fiquem parados por muito tempo nessa etapa, demandando inclusive atualizações quando de fato chegam à análise de mérito.

Outro motivo verificado na esfera federal para que o check list acabe demorando mais do que o esperado é a distribuição do processo para verificação apenas quando há equipe técnica disponível para a sequência do processo, mascarando eventuais atrasos decorrentes da falta de estrutura, já que os prazos só passam a contar a partir do aceite para análise de mérito. Nesse contexto, o projeto aprovado pela Câmara dos Deputados estabelece que “o requerimento de licença ambiental não deve ser admitido quando, no prazo de 15 (quinze) dias, a autoridade licenciadora identificar que o EIA ou outro estudo ambiental protocolado não apresente os itens listados no TR, gerando a necessidade de reapresentação do estudo, com reinício do procedimento e da contagem do prazo” (§ 2º do art. 43).

Com essa redação, não havendo rejeição do estudo nesse prazo de 15 dias, segue-se para análise de mérito. Não se vislumbra perda de qualidade no procedimento, tendo em vista que quaisquer deficiências poderão ser supridas via pedido de complementação, como já ocorre hoje.

E na linha de melhorar a qualidade dos estudos ambientais o projeto aprovado buscou fomentar a competição entre consultorias ao estabelecer que “a autoridade licenciadora deve manter disponível […] cadastro de pessoas físicas e jurídicas responsáveis pela elaboração de estudos e auditorias ambientais com o histórico individualizado de aprovações, rejeições, pedidos de complementação atendidos, pedidos de complementação não atendidos e fraudes” (parágrafo único do art. 30).

Seguindo-se com a análise do projeto de lei, tem-se como ponto de destaque a fixação de prazos máximos de análise para a decisão sobre o requerimento das licenças. Embora suscite divergências, nota-se que o texto não traz implicações em caso de extrapolação dos prazos, além do que já dispõe a Lei Complementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011. Nos termos da referida Lei Complementar, o decurso dos prazos de licenciamento, sem a emissão da licença ambiental, não implica emissão tácita nem autoriza a prática de ato que dela dependa ou decorra, mas instaura a competência supletiva.

Assim, impor prazos mais exíguos apenas ampliaria a probabilidade de instauração da competência supletiva, podendo levar ao órgão federal um número maior de requerimentos. De todo modo, a fim de demonstrar a amplitude da alteração legislativa proposta, o comparativo apresentado no Quadro 1 mostra que, pelo menos na esfera federal, há norma vigente com prazos ainda menores do que o texto aprovado pela Câmara dos Deputados.

                                                      Quadro 1

   Comparativo de prazos de análise do licenciamento ambiental

Texto aprovado na Câmara dos Deputados Resolução Conama nº 237/97[3] Instrução Normativa Ibama nº 184/2008[4]
LP com EIA 10 meses 12 meses 6 meses
LP sem EIA 6 meses 6 meses
LI 3 meses 6 meses 75 dias
LO 3 meses 6 meses 45 dias

Verifica-se que, mais importante do que a fixação de prazos é o encadeamento lógico do processo de forma a garantir previsibilidade e equilíbrio, privilegiando-se as etapas com maior valor agregado ao processo decisório.

Outro problema que o projeto de lei buscou solucionar na fase de análise e tomada de decisão foi a falta de conexão entre a avaliação de impactos ambientais e as medidas mitigadoras e compensatórias. Nesse quesito, a proposição estabeleceu a hierarquia de mitigação, segundo a qual o gerenciamento dos impactos e a fixação de condicionantes das licenças ambientais devem atender à seguinte ordem de prioridade (art. 13):

  1. prevenir os impactos ambientais negativos;
  2. minimizar os impactos ambientais negativos;
  3. compensar os impactos ambientais negativos, na impossibilidade de evitá-los ou mitigá-los.

Adicionalmente, o texto estabeleceu que “as condicionantes ambientais devem ser proporcionais à magnitude dos impactos ambientais da atividade ou empreendimento identificados nos estudos requeridos no licenciamento ambiental, bem como apresentar fundamentação técnica que aponte seu nexo causal com esses impactos, não se prestando a mitigar ou compensar impactos ambientais causados por terceiros e em situações em que o empreendedor não possua ingerência ou poder de polícia” (§ 1º do art. 13).

Ainda no curso das análises técnicas são realizadas as audiências públicas, além das oitivas específicas para comunidades indígenas e tribais, nos termos da Convenção OIT 169, da qual o Brasil é signatário. Nesse último caso, o diálogo tem início ainda antes da elaboração dos estudos, com o debate do plano de trabalho que dará concretude ao que se solicita em termos de referência específicos.

O projeto inova ao trazer outras modalidades de participação:

  • consulta pública: modalidade de participação remota no licenciamento ambiental, pela qual a autoridade licenciadora recebe contribuições, por escrito e em meio digital, de qualquer interessado (inciso VI do art. 3º);
  • reunião participativa: modalidade de participação no licenciamento ambiental, de forma presencial ou remota, pela qual a autoridade licenciadora solicita contribuições para auxiliá-la na tomada de decisões (inciso VII do art. 3º);
  • tomada de subsídios técnicos: modalidade de participação presencial ou remota no licenciamento ambiental, pela qual a autoridade licenciadora solicita contribuições técnicas a especialistas convidados, com o objetivo de auxiliá-la na tomada de decisões (inciso VIII do art. 3º).

Esse tipo de inovação é particularmente importante, pois passa-se a ter, no âmbito da norma legal, a oportunidade de ampliação da participação pública e, consequentemente, um maior universo de informações que podem subsidiar o processo analítico do órgão ambiental.

Após todas essas etapas, o processo segue instruído para a tomada de decisão. Aqui, cabe registrar outro aprimoramento importante trazido pelo projeto aprovado na Câmara dos Deputados, que se refere à aferição da efetividade das condicionantes para a finalidade a que foram criadas (inciso II do § 2º do art. 7º). Assim, não basta verificar se a condicionante foi executada como exigida, mas sim se ela alcançou o efeito esperado. O licenciamento deixa, portanto, de ser focado somente na emissão de licenças, como apontado por órgãos de controle, para dar mais foco ao acompanhamento da melhoria contínua da gestão.

Com esses dispositivos, o projeto de lei traça um eixo estruturante bem delimitado, que permeia o licenciamento ambiental do início ao fim, inserindo a análise dos impactos de forma equilibrada em cada fase para que sejam devidamente gerenciados no decorrer da maturação do projeto. Esses dispositivos conferem tecnicidade ao procedimento e agregam valor à tomada de decisão.

Uma expectativa que tende a ser frustrada em relação ao Projeto de Lei Geral do Licenciamento Ambiental diz respeito a colocar ordem nos milhares de normativos existentes sobre meio ambiente no País. Um levantamento realizado por Pedrosa et al. (2020)[5] estimou a existência de aproximadamente sessenta e quatro mil atos normativos e regramentos técnicos ambientais vigentes no País, os quais abrangem as três esferas da federação e não se restringem à temática afeta ao licenciamento.

Por ter escopo restrito ao licenciamento ambiental, a proposta de lei geral não teria a capacidade de racionalizar espectro tão amplo de normativos. Além disso, é preciso reconhecer que o projeto de lei pouco conflita com as regras atuais aplicáveis ao instrumento, o que leva a crer que a maior parte das normas infralegais permanecerá em vigor sem a necessidade de muitos ajustes.

Nesse contexto de atos numerosos e pouco organizados, merece destaque a proposta do Governo Federal trazida pelo Decreto nº 10.139, de 29 de novembro de 2019, que dispõe sobre a revisão e a consolidação dos atos normativos inferiores a decreto, editados por órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. O decreto aplica-se a:

I – portarias;

II – resoluções;

III – instruções normativas;

IV – ofícios e avisos;

V – orientações normativas;

VI – diretrizes;

VII – recomendações;

VIII – despachos de aprovação;

IX – qualquer outro ato inferior a decreto com conteúdo normativo.

Esse Decreto sim, aplicável à esfera federal, tem o potencial de organizar e racionalizar o cabedal normativo do licenciamento, seja pela revogação, revisão ou consolidação dos atos nessa esfera de competência. O processo tende a ser ainda mais qualificado se aplicadas técnicas de avaliação prévia de impacto regulatório.

Diante do exposto, verifica-se que o projeto de lei tem gerado muita expectativa em relação à redução de prazos de tramitação de processos e redução de normativos diversos, o que depende de uma regulamentação equilibrada para produzir o efeito esperado. Por outro lado, a proposição traz dispositivos importantes que qualificam etapas frequentemente criticadas no processo de licenciamento ambiental, como a elaboração dos estudos e a fixação de condicionantes, tornando-o mais efetivo.

Ao exigir que o termo de referência observe a relação da atividade ou empreendimento com o ambiente no qual se insere, o texto favorece a formulação de estudos mais objetivos e úteis à tomada de decisão. Da mesma forma, ao fortalecer a hierarquia de mitigação e exigir que as condicionantes ambientais estejam relacionadas aos impactos previamente mapeados, o projeto fortalece o aspecto técnico do procedimento, cuja efetividade é aferida periodicamente.

Com o avanço dos debates no Senado, acredita-se ser possível chegar a um texto final que promova a otimização do procedimento e preserve o núcleo técnico do licenciamento ambiental, cuja aplicação se alinha ao objetivo da Política Nacional do Meio Ambiente de compatibilizar o desenvolvimento econômico e social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico.

Vale registrar, por fim, que muito pode ser feito em termos de incremento da efetividade do licenciamento mesmo sem o marco legal, o que inclui o fortalecimento dos mecanismos de diálogo e participação, a aplicação de tecnologia, a elaboração de manuais técnicos e normativos e o fortalecimento das carreiras técnicas e gerenciais que atuam na temática. É com esse entendimento que temos trabalhado incessantemente em busca da verdadeira sustentabilidade ambiental para os projetos prioritários do Governo Federal.

 

1] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2010521&filename=PEP+1+CFT+%3D%3E+PL+3729/2004.

[2] BRASIL. Ministério Público Federal. Deficiências em estudos de impacto ambiental: síntese de uma experiência – Brasília. Ministério Público Federal. 4ª Câmara de Coordenação e Revisão: Escola Superior do Ministério Público da União, 2004. 48 p.

[3] Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) nº 237, de 19 de dezembro de 1997.

[4] Instrução Normativa Ibama nº 184/2008, que dispõe sobre o Licenciamento Ambiental Federal (alterada pela Instrução Normativa Ibama nº 14/2011).

[5] PEDROSA, Deivison; FONSECA, Enio; CARNEIRO, Ricardo. Legislação ambiental no Brasil: panaceia ou equação impossível? Algumas reflexões. Direito Ambiental. Mar.2020. Disponível em: https://direitoambiental.com/legislacao-ambiental-no-brasil/. Acesso em: 04 ago. 2021.

 

* Rose Hofmann é secretária de Apoio ao Licenciamento Ambiental e à Desapropriação do Programa de Parcerias de Investimentos do Ministério da Economia. Tecnóloga em Química Ambiental, especialista em Gestão e Engenharia Ambiental, especialista em Regulação de Serviços Públicos e mestre em Poder Legislativo.

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Benefícios da desregulamentação da franquia de bagagem aérea https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3485&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=beneficios-da-desregulamentacao-da-franquia-de-bagagem-aerea Wed, 28 Jul 2021 11:08:37 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3485 Benefícios da desregulamentação da franquia de bagagem aérea

Por Emmanuel do Vale Madeiro*

Toda decisão regulatória por parte do Poder Público deveria englobar uma avaliação dos custos resultantes da sua implementação. Ocorre que nem sempre essa avaliação é feita. Muitas vezes, esses custos implicam preços mais elevados para os produtos.

Ao perceber que determinada regulação gera custos que oneram desnecessariamente os usuários, o Poder Público deve repensar se vale a pena manter determinada restrição. Foi o que ocorreu por ocasião da desregulamentação da franquia de bagagem aérea.

A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) aprovou, em 13 de dezembro de 2016, a sua Resolução 400, atualizando as chamadas Condições Gerais de Transporte Aéreo (CGTA), normas que gerem os direitos e deveres dos passageiros no transporte aéreo dentro do território nacional.

Até antes da vigência dessa resolução, as companhias aéreas eram obrigadas a oferecer uma franquia de 23 kg de bagagem despachada + 5kg de bagagem de mão para cada passageiro.

A partir da vigência da Resolução-Anac 400/2016, o transporte de bagagem despachada passou a configurar contrato acessório oferecido pelo transportador. Este passou a ser obrigado a garantir apenas uma franquia mínima de 10 (dez) quilos de bagagem de mão por passageiro de acordo com as dimensões e a quantidade de peças definidas no contrato de transporte.

Em maio de 2018, o TCU recebeu uma solicitação do Congresso Nacional, mais precisamente da Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, para que o Tribunal identificasse se a evolução dos preços das passagens aéreas, após a entrada em vigência da Resolução 400/2016, da Anac, que permitiu a cobrança em separado da bagagem despachada pelo passageiro, ocorreu em benefício do consumidor ou, ao contrário, implicou aumento de gastos, em detrimento dos passageiros.

A justificativa para essa solicitação do Congresso foi que, até aquele momento, não se percebia, como compensação pela cobrança da bagagem despachada, nenhuma vantagem relacionada à queda de preço das passagens.

O TCU constatou que a desregulamentação da franquia da bagagem despachada, consubstanciada na Resolução 400/2016, precisaria ser analisada em um contexto mais amplo. Essa decisão não se tratou de medida isolada tomada pela agência reguladora do setor aéreo, mas de mais um passo no sentido de flexibilizar a regulação econômica do transporte aéreo de passageiros, iniciada ainda no fim dos anos 1980, há mais de 3 décadas, portanto.

A Portaria 248/2001 do Ministério da Fazenda estabeleceu a adoção do regime de liberdade tarifária para os voos domésticos, constituindo-se no marco mais importante do processo de desregulamentação do setor aéreo.

Posteriormente, o princípio da liberdade tarifária foi positivado na Lei 11.182/2005 (art. 49), que criou a Anac. Nos anos seguintes, o regime de liberdade tarifária, que já se aplicava para os voos domésticos, se estendeu também para os voos internacionais, sob a condução da Agência. A Lei de criação da Anac também consagrou o princípio da liberdade de voo (art. 48, §1º), pelo qual as empresas aéreas podem voar as rotas que quiserem desde que haja disponibilidade de infraestrutura aeroportuária (antes era necessário solicitar permissão da autoridade aeronáutica, que poderia negar o pedido das empresas aéreas de forma discricionária).

Diversos setores reagiram contrariamente à introdução da liberdade tarifária para voos domésticos, em 2001, e para voos internacionais, no fim da década. Entendia-se que tais medidas permitiriam abusos por parte das empresas aéreas e seriam contrárias aos interesses dos consumidores, por mais amparadas que essas mudanças fossem à luz da teoria econômica da regulação.

O que se observou com o tempo foi o contrário: a ausência de intervenção estatal sobre o preço das passagens aéreas promoveu expressiva diminuição de preços e grande aumento da oferta de voos. Segundo dados da Anac, em um recorte de 2002 a 2017, os preços das passagens aéreas caíram cerca de 65%, em termos reais, e o número de passageiros transportados aumentou quase 200%, o que representa crescimento 3,4 vezes superior ao crescimento do PIB.

O TCU avaliou que, embora a desregulamentação da franquia de bagagem despachada pudesse parecer, em uma análise mais superficial e imediatista, que seria contrária ao interesse dos passageiros, na realidade é o oposto. Em um ambiente competitivo, de livre concorrência, a desregulamentação permite que as empresas aéreas, ao disputar a preferência dos consumidores, atuem de forma mais inovadora e eficiente, atendendo melhor às necessidades dos passageiros.

Verificou-se também que a nova regulamentação deu mais transparência à precificação do serviço de transporte aéreo. Antes, a franquia de bagagem despachada estava embutida no preço da passagem, sem que o passageiro tivesse clareza sobre essa informação e sobre o correspondente valor. Com a mudança, o passageiro passou a ter mais informação, que pode usar no seu processo decisório.

A possibilidade de cobrança separadamente pela bagagem despachada ofereceu ao consumidor mais opção. Se puder prescindir de bagagem, não precisa pagar por esse serviço. Na regra antiga, os passageiros que não despachavam bagagem acabavam subsidiando, indiretamente e sem saber, os passageiros que despachavam bagagem.

Segundo o toolkit desenvolvido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para a identificação e análise de restrições à concorrência impostas pelos governos baseada na experiência internacional, deve-se realizar uma avaliação aprofundada dos efeitos na concorrência sempre que uma proposta governamental, por exemplo, limite a capacidade de certas empresas de prestarem um bem ou serviço.

Essa restrição ocorre quando alguns governos exigem que todos os vendedores prestem um conjunto mínimo de serviços, restringindo ou proibindo que se preste um conjunto de serviços menor ou cobrança de forma avulsa por cada serviço prestado. Isto prejudica a escolha de alguns consumidores que podem preferir uma combinação de serviços que resulte em preço menor, além de dificultar a entrada de pequenas empresas. Consumidores mais pobres, em especial, podem preferir este tipo de combinação justamente em função da limitação de renda.

Pode-se compreender que a restrição acima descrita ocorria antes da Resolução 400/2016 da Anac. As empresas aéreas eram obrigadas a conceder uma franquia mínima de 23 kg de bagagem despachada por passageiro. Inevitavelmente essas companhias embutiam o valor do despacho da bagagem no preço das passagens de todos os passageiros.

Com a Resolução 400, as empresas aéreas foram autorizadas a firmarem um contrato acessório para o despacho da bagagem. Ou seja, passou-se a permitir a prestação de um serviço menor (o transporte do passageiro com bagagem de mão) e a cobrança de forma avulsa pelo despacho da bagagem. Com isso, buscou-se permitir também a entrada no mercado nacional das chamadas companhias aéreas de baixo custo, cujo modelo de negócios é o de que as passagens aéreas não estão vinculadas a qualquer tipo de serviço adicional ou cortesia.

A referida resolução da Anac representou, dessa forma, a correção de uma restrição concorrencial.

O TCU destacou a posição da Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) do Ministério da Fazenda com relação à desregulamentação da bagagem despachada. A SEAE opinou da seguinte forma:

Em relação à eficiência econômica, temos que a desregulamentação, ao desvincular a contratação de passagem aérea da contratação de franquia de bagagem despachada, aumenta a capacidade das Companhias Aéreas em identificar passageiros mais sensíveis a preço. A desregulamentação, portanto, pode aumentar a eficiência do mecanismo de discriminação de preços empregado pelas Companhias Aéreas. Estratégias de discriminação de preços mais eficientes, por sua vez, podem resultar em maior concorrência, preços menores para consumidores mais sensíveis a preço, expansão da oferta do produto, atração de um número maior de consumidores e, consequentemente, democratização do serviço.   (Nota Técnica 126/2017/COGTR/SEAE/MF, de 4/10/2017).

Vê-se assim que a Resolução 400/2016 da Anac possibilitou uma discriminação de preços benéfica para o consumidor, com ampliação da concorrência no setor aéreo. Do ponto de vista da regulação, a discriminação de preços proporcionada pela Resolução 400 da Anac foi, portanto, acertada.

O Tribunal de Contas da União informou à Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados que a edição da Resolução-Anac 400/2016, que desregulamentou a franquia de bagagem despachada, foi precedida de estudos regulatórios consistentes e de ampla discussão com os interessados, e tende a ser favorável ao consumidor, assim como as demais medidas de flexibilização regulatória setorial (Acórdão 2955/2018-TCU-Plenário).

Com relação ao impacto no preço das passagens, o TCU compilou estudos apontando que em princípio, mantidos todos os demais fatores que influenciam a formação de preço das passagens, a nova regulamentação deveria trazer redução de preços para os passageiros que viajam sem bagagem (despachada) e aumento para os que despacham bagagem, pois estes perderam o “subsídio” indireto que era pago pelos passageiros que não despachavam bagagem.

Deve-se compreender que o serviço de transporte aéreo opera em regime de liberdade tarifária e os preços das passagens aéreas são influenciados por inúmeros fatores, como o custo de seus insumos, com especial destaque para o preço do combustível (que teve aumento significativo nos últimos anos), taxa de câmbio, demanda e oferta, entre outros.

Para citar um exemplo atual, a pandemia de Covid-19 e a consequente redução brutal da demanda por voos comerciais levou os preços de passagens aéreas ao menor valor já registrado na série histórica da Anac, iniciada em 2002. Em preços atualizados pela inflação até dezembro de 2020, a tarifa média foi de R$ 376,29. Na comparação com 2019, quando a tarifa média foi de R$ 439,89, ocorreu uma redução de 14,5%.

Em dezembro de 2021, a Anac deverá apresentar relatório sobre a aplicação, eficácia e resultados da Resolução 400/2016, indicando possíveis pontos para revisão.

 

* Emmanuel do Vale Madeiro é auditor federal de controle externo do Tribunal de Contas da União

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Concessões de Infraestrutura do Governo Federal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3481&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=concessoes-de-infraestrutura-do-governo-federal Thu, 22 Jul 2021 20:24:24 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3481 Concessões de Infraestrutura do Governo Federal:

planejamento e entregas em 2021

 Por Martha Seillier* e Thiago Caldeira**

O programa de concessões e a atração de investimentos privados para a infraestrutura no Brasil vem se desenvolvendo com velocidade nos últimos anos, apoiado pela mobilização de elevada parcela do corpo técnico do governo federal, contratação de consultores privados, ampla consulta à sociedade e contínuo diálogo com os potenciais investidores.

Avançar com a agenda de infraestrutura envolve muita resiliência, planejamento, boa governança dos projetos, transparência e capacidade técnica. Em média, gasta-se em torno de 2 anos entre a decisão de fazer e a assinatura de um contrato de concessão de serviços públicos ou de uso de bem público. Tal prazo varia consideravelmente entre os setores, a depender do grau de maturidade e capacidade de execução.

A assinatura de um contrato de concessão exige a execução de uma série de procedimentos: estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental; consulta pública; discussão com órgãos de controle; realização do certame licitatório; adjudicação e constituição de sociedade para assinatura do contrato. No meio do caminho, muitos desafios: contestações judiciais, disputas políticas, novos atores no curso do processo, revisões e modificações de projetos, etc.

Tendo em conta o desafio de elevar a qualidade da infraestrutura no Brasil, uma grande lista de projetos (greenfield e brownfield) foi iniciada nos últimos anos, especialmente impulsionados com a criação do Programa de Parcerias de Investimentos – PPI, em 2016. A carteira de projetos incluídos no Programa recebe deliberação pelo Conselho do PPI, liderado pelo ministro da Economia Paulo Guedes, e formado por mais seis ministros de Estado e os presidentes do Banco do Brasil, Caixa Econômica e BNDES.

Com recomendação do Conselho, o presidente da República decide pela inclusão dos projetos no PPI, para fins de tratamento prioritário e estratégico por todos os órgãos do poder público. A lista atual contempla 185 projetos (imagem a seguir), além de 46 projetos de titularidade de estados e municípios que recebem o apoio para estruturação pelo Governo Federal.

A colheita do que foi plantado em termos de estruturação de projetos tem seu clímax nos leilões, os quais vêm se intensificando e gerando grande volume de contratação de investimentos, que serão executados nos anos próximos.

Nos sete primeiros meses de 2021 foram realizados 42 leilões, entre aeroportos, portos, ferrovia, rodovias, terminal pesqueiro, florestas nacionais para visitação, geração e transmissão de energia elétrica, mineração e concessão de serviços de saneamento no Rio de Janeiro, este último com apoio para estruturação pelo BNDES. Contabiliza-se a contratação de R$ 55,4 bilhões de investimentos, a serem executados ao longo dos prazos dos contratos, e R$ 26,8 bilhões em outorgas.

Em janeiro de 2021 foi licitado o primeiro Terminal Pesqueiro Público, localizado em Cabedelo, na Paraíba. Após estar fechado desde 2012, quando os investimentos públicos foram feitos, a concessão permitirá que o setor privado execute os investimentos necessários para colocar em disponibilidade infraestrutura para os pescadores artesanais, com ganhos na qualidade fitossanitária e de acesso a mercados. Estima-se aumento de renda e de qualidade de vida para mais de 1.000 famílias da região, de forma direta e indireta. Outros sete terminais pesqueiros públicos estão em estruturação para licitação ainda no ano de 2021.

O mês de abril de 2021 se mostrou especialmente interessante em licitações, e ficou conhecido como “Infra Month”. No dia 7 de abril, a ANAC realizou o leilão de 22 aeroportos, processo que vai gerar arrecadação de R$ 3,3 bilhões à vista para o Governo Federal, além de outorga variável ao longo do período de contrato. Apesar dos desafios e incertezas trazidos pela pandemia ao setor, a 6ª Rodada de Concessões de Aeroportos contou com a concorrência de sete grupos habilitados – quatro deles estrangeiros – o que demonstra o interesse dos agentes privados pelo mercado de aviação brasileiro. Esses contratos vão injetar investimentos de R$ 6,1 bilhões ao longo da concessão, o que vai transformar esses aeroportos e melhorar a nossa competitividade.

Como evidência do crescimento no ritmo de execução dos projetos, apenas a 6ª rodada de aeroportos inclui quantitativo de aeroportos igual ao número total de aeroportos que já foi leiloado pela União desde a primeira rodada de concessões (22 aeroportos).

No dia seguinte, em 08 de abril, foi realizado o leilão para concessão do Trecho I da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL), na Bahia, projeto decisivo para escoar a produção de minério de ferro e grãos do interior do estado para o Porto de Ilhéus e Porto Sul. A vencedora, Bahia Mineração S/A, deverá investir cerca de R$ 3,3 bilhões para a entrada em operação da ferrovia, além de realizar pagamentos variáveis e outros investimentos durante o contrato, que tem duração prevista de 35 anos.

Para efeito de comparação, nos últimos 25 anos foram licitados 3 contratos de concessão de ferrovias, sendo um em março de 2019 (Ferrovia Norte Sul – Tramo Central) e agora a FIOL em 2021. Em estágios adiantados, há o projeto da Ferrogrão, ferrovia totalmente greenfield, a ser construída no trecho entre Sinop (MT) e Mirituba (PA), como importante elo para o escoamento da produção agrícola do país.

No dia 9 de abril, cinco terminais portuários foram leiloados, quatro deles localizados no Porto de Itaqui, no Maranhão, e um no Porto de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Os investimentos nos cinco terminais totalizam mais de R$ 610 milhões, com estimativa de geração de mais de nove mil empregos.

O ritmo no setor de portos destoa totalmente do histórico, conforme se depreende da quantidade de licitações de arredamentos e das desestatizações em curso. Entre 2019 e maio de 2021 foram licitados 31 arrendamentos portuários, número igual ao que se executou na soma dos 15 anos anteriores. Em paralelo, estão sendo executadas as etapas para as primeiras desestatizações de portos públicos, inicialmente com a Companhia Docas do Espírito Santo, responsável pelos Portos de Vitória e Barra do Riacho, e já na sequência o Porto de Santos e São Sebastião, no Estado de São Paulo. Também está em fase de estruturação a licitação do Porto de Itajaí (SC) e os portos operados pela Companhia Docas da Bahia: portos de Salvador, Aratu e Ilhéus.

No dia 29 de abril, o Governo Federal realizou o primeiro leilão de uma rodovia no modelo híbrido, que combina a menor tarifa de pedágio com o maior valor de outorga e teve como vencedor o Consórcio liderado pela Ecorodovias. Mais de R$ 14 bilhões deverão ser investidos nos trechos da BR-153/080/414/GO/TO ao longo do prazo de concessão, trazendo melhorias que incluem a duplicação de parte da via.

O critério híbrido de julgamento de melhor proposta foi adotado com o objetivo de evitar que o investidor, em uma percepção excessivamente otimista a respeito do projeto, apresente lance que inviabiliza a prestação futura do serviço (overbidding), como pode ocorrer no caso de disputas exclusivas pelo critério de menor tarifa. Assim, o critério híbrido, ao estabelecer um limite para a redução na tarifa e exigência de pagamento de outorga upfront (prévio à assinatura do contrato e, portanto, um custo afundado), é uma forma de proteger o fluxo de caixa das concessões e assegurar incentivos econômicos alinhados para a prestação adequada do serviço e cumprimento das obrigações contratuais.

Cabe aqui detalhar especial esforço em preparar um projeto que fosse viável e resiliente. Foram incorporadas diversas inovações para fins de mitigação de riscos cambiais e de receita tarifária. Visando incentivar a realização dos investimentos em duplicação, o contrato prevê tarifas diferenciadas para pista simples e pista dupla e o procedimento de reclassificação tarifária, a ser acionado quando a concessionária concluir a duplicação de trechos da rodovia.

O contrato da BR-153/080/414/GO/TO também prevê 2 tipos de desconto para os usuários da rodovia. O desconto para usuários de TAG consiste em um desconto de 5% na tarifa de pedágio para usuários que utilizem meios de pagamento eletrônico e identificação automática de veículos, o que reduz o custo da cobrança ao mesmo tempo que desafoga o tráfego nas praças de pedágio. Já o desconto de usuário frequente consiste na redução progressiva da tarifa de pedágio cobrada do usuário frequente até a trigésima viagem realizada dentro do mesmo mês.

Para proteger o fluxo de caixa da concessão nos ciclos de investimento e mitigar o risco de demanda foi criado o mecanismo de compartilhamento de risco de receita. Para cada ano dos ciclos de investimento, foram estabelecidos valores mínimos e máximos da receita acumulada até o ano anterior de concessão. Se a receita real for inferior à receita mínima prevista, os valores acumulados na conta de ajuste são transferidos para a concessionária. Por outro lado, se a receita real for superior à receita máxima prevista, a concessionária transfere o valor correspondente para a conta de ajuste. O mecanismo só pode ser acionado caso a concessionária tenha concluído pelo menos 90% das obras de ampliação de capacidade e melhorias até o ano em avaliação.

A discussão sobre compartilhamento de risco de demanda em projetos no setor de transporte vem ganhando atenção entre gestores e estudiosos do assunto. As recomendações de boas práticas para alocação de riscos apontam que o risco deve ser alocado a quem tem melhor condição de: i) controlar a sua ocorrência, ii) controlar o impacto do evento, caso aconteça e iii) absorver o impacto ao menor custo. A experiência recente de concessões de transportes no Brasil aponta que alocar todo o risco de demanda ao concessionário pode ser inviável, dada a dificuldade financeira de absorção total do impacto de eventos negativos nos projetos. É o que se verifica em diversos projetos no setor de rodovias e aeroportos licitados pouco antes da crise econômica do biênio 2015/2016. Nesse sentido, há mecanismos sendo construídos para operar adequadamente o compartilhamento de tal risco, como o mecanismo de contas vinculadas, a seguir explicado, e o ajuste automático do prazo do contrato em concessões no Chile .

A volatilidade cambial no Brasil tornou importante introduzir mecanismo de proteção cambial que permitisse atrair recursos externos para investimento em infraestrutura no país. Introduziu-se, portanto, um sistema de compartilhamento de risco cambial no caso da utilização de instrumentos de financiamento em moeda estrangeira firmados nos primeiros cinco anos de concessão, sendo aplicável apenas ao financiamento de investimentos em bens reversíveis. O mecanismo é aplicável sobre o principal do financiamento, não cobrindo os juros. A concessionária tem 12 meses, a partir do início do contrato, para ativá-lo.

Para permitir a compensação de eventos relacionados a esses riscos, é previsto o “mecanismo de contas” que é um conjunto de contas relacionadas ao contrato, incluindo a “conta centralizadora”, as “contas da concessão” (“conta de ajuste” e “conta de retenção”), a “conta de livre movimentação”, além da “conta de aporte”. Esse mecanismo de contas permite o acúmulo de valores a serem depositados pela concessionária em contas bancárias específicas, formando uma reserva de contingência destinada a possíveis eventos de compensação. A mitigação de riscos reduz o espaço para a tentativa de renegociações do contrato durante o longo prazo da concessão.

O contrato da rodovia BR-153/080/414/GO/TO também prevê a possibilidade de assinatura de Acordo Tripartite entre concessionária, financiadores e ANTT, com vistas a tornar o projeto mais atrativo para os agentes financiadores. Foram incorporadas, também, melhorias nas cláusulas de resolução de controvérsias (possibilitando o emprego de autocomposição de conflitos, arbitragem ou dispute board) e nas cláusulas relativas à extinção antecipada da concessão, dando mais segurança e previsibilidade ao investidor.

As inovações trazidas para o contrato da BR-153/080/414/GO/TO buscam trazer maior segurança no fluxo de caixa da concessão e garantir a prestação adequada do serviço, evitando frustrações já verificadas no passado. Elas são uma demonstração não só do esforço de se estruturar uma carteira desafiadora de projetos de desestatização, mas também de se evoluir com a adoção de melhores práticas regulatórias, atraindo mais competidores para os leilões.

Ainda no “inframonth” de abril de 2021, no dia 30, os resultados vieram em dose dupla em outros setores: por um lado, o mais importante leilão de saneamento do Brasil foi realizado, com a concessão dos serviços de distribuição de água e esgotamento sanitário no estado do Rio de Janeiro. Estruturada pelo BNDES, a iniciativa recebeu apoio do Governo Federal e vai beneficiar 12 milhões de pessoas, gerar mais de 40 mil empregos e investimentos de mais de R$ 27 bilhões durante os 35 anos de contrato.

Por outro lado, foi realizado leilão de energia para os chamados “Sistemas Isolados”, visando contratar energia para 23 localidades na região Norte do país, envolvendo investimentos de mais de R$ 355 milhões. Essa iniciativa permitirá à Aneel melhorar a confiabilidade do fornecimento de energia elétrica, um bem fundamental para a vida das pessoas e a economia do país. Um aspecto muito positivo foi o fato de que mais da metade dos projetos vencedores utilizarão biocombustíveis como fonte, contribuindo para que a matriz energética brasileira continue a ser uma das mais ambientalmente responsáveis em todo o mundo.

O primeiro semestre de 2021 encerrou com leilões exitosos no setor elétrico (transmissão de energia e contratação de energia existente), setor de rodovias, com o segundo projeto licitado em 2021: BR-163/230/MT/PA, com cerca de R$2 bilhões de investimentos contratados, e no setor de parques com a concorrência para a flona de Canela no Rio Grande do Sul.

A estruturação de parcerias com o setor privado está se expandindo para diversos setores antes nunca explorados. Com o bom andamento dos contratos já leiloados, gera-se o otimismo de que os investimentos estão acelerados e será possível entregar serviços de melhor qualidade aos usuários. Dessa forma, os líderes públicos estão buscando apoio para a estruturação de projetos para concessões em ampla gama de setores, como para gestão de imóveis de valor histórico e cultural (concessões de uso de bem público), projetos de irrigação e produção agrícola, gestão de armazéns, parques nacionais para visitação, florestas para exploração sustentável, terminais pesqueiros, creches, hospitais, presídios, dentre outros.

Na esfera de serviços de titularidade de estados e municípios, o potencial a ser explorado é gigantesco, com espaço para ganhos de eficiência e melhor prestação dos serviços ou gestão do bem público, o que demanda vontade de fazer e capacidade de execução.

São enormes os desafios, mas também as oportunidades de estruturação de concessões no Brasil. Os avanços até aqui verificados são a prova de que apostar na atração de investimentos privados para a ampliação da oferta e da qualidade da infraestrutura é o caminho correto para o País.

 

* Martha Seillier é secretária especial do Programa de Parcerias de Investimentos do Ministério da Economia

** Thiago Caldeira é consultor legislativo da Câmara dos Deputados e professor do mestrado em Economia do IDP-DF.

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Como o Open Banking pode aumentar a concorrência bancária? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3476&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-o-open-banking-pode-aumentar-a-concorrencia-bancaria Wed, 07 Jul 2021 07:16:23 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3476 Como o Open Banking pode aumentar a concorrência bancária?

 Por Olavo Severo Guimarães*

  1. O que é Open Banking?

Como parte da Agenda BC# do Banco Central, que abriga uma série de medidas destinadas a modernizar, digitalizar e fomentar a inovação no sistema financeiro nacional[1], o Open Banking (OB) possibilita e estabelece padrões de compartilhamento de dados bancários dos consumidores de uma instituição por outras, permitindo a elaboração de novos produtos e serviços.

Na prática, alguns tipos de serviços que devem emergir do OB são os de (i) agregamento de dados, que fornecem em um só aplicativo uma visão das finanças do usuário em seus vários bancos, possibilitando a comparação e a administração unificada e automatizada; (ii) marketplaces, que agregarão ofertas personalizadas de diferentes instituições em uma só plataforma; e (iii) melhoria de processos, agilizando processos contábeis e de concessão de crédito, por exemplo.

Segundo o Bacen[2], os objetivos da abertura de dados são (a) incentivar a inovação, (b) promover a concorrência, (c) aumentar a eficiência do Sistema Financeiro Nacional e do Sistema de Pagamentos Brasileiro e (d) promover a cidadania financeira. Tais metas serão atingidas através da solução de imperfeições do mercado bancário há muito apontadas pela literatura, as quais são a seguir abordadas. 

  1. Assimetrias de informação entre instituições e seleção adversa

Saber é poder – ao menos para as instituições bancárias. Esta foi, em outras palavras, uma das conclusões da autoridade antitruste britânica (CMA) na investigação sobre o mercado bancário que lançou as sementes para a regulação de OB no Reino Unido[3], principal referência para o OB brasileiro. Para a agência britânica, o acesso aos dados de amplas bases de consumidores confere aos bancos uma significativa vantagem potencial, podendo a ausência deste acesso configurar, de mais de uma maneira, uma barreira à entrada e expansão de novos players.

Em primeiro lugar, as instituições já estabelecidas no mercado, detentoras de dados, podem ter condições muito melhores para desenvolver, direcionar e vender os produtos e serviços para seus consumidores. O relacionamento prévio com uma ampla base de clientes, além de um forte insumo para detecção de demandas e desenvolvimento de futuros produtos, também possibilita uma maior diferenciação dos usuários, o que é útil para estratégias de venda cruzada, retenção e aquisição de consumidores. Tais vantagens são observáveis em cada vez mais mercados na emergência do Big Data, razão pela qual este tema tem ocupado um posto central nas discussões sobre posse de dados e defesa da concorrência nos últimos anos.

Em segundo lugar, os bancos que já possuem um histórico de relação com o cliente conseguem avaliar melhor suas requisições de crédito, o que otimiza as decisões e o pricing destas instituições em relação à concessão de seus fundos. Ou seja, o banco competidor, com menos informações sobre a qualidade dos tomadores de crédito, tem mais dificuldade de avaliar os riscos envolvidos na operação, estando mais propício a precificá-las erroneamente ou rejeitar oportunidades profícuas. Neste sentido, por exemplo, Stiglitz e Weiss[4] e Dell’ariccia et al.[5] concluíram que um banco, ao ingressar no mercado de crédito, sempre se depara com um problema de seleção adversa: a perspectiva de receber de seus concorrentes seus piores pagadores.

Diante desta assimetria de informação dos bancos em relação a características relevantes de novos consumidores, uma solução desenvolvida em diversos países, incluindo o Brasil, foi a criação dos bureaux de crédito, os quais coletam, arquivam e distribuem tais dados, auxiliando o mercado a calcular os riscos de crédito. Com o afloramento do OB, os bureaux creditícios terão a oportunidade de expandir ainda mais seus bancos de dados, o que irá aprimorar a performance de seus modelos e a precisão de seus escores. Além disso, as instituições credenciadas poderão ter acesso ao histórico transacional de novos clientes mesmo sem o intermédio de bureaux de crédito. Assim, a redução de assimetria informacional deve gerar aumentos de eficiência e expansão da oferta de crédito, pois as instituições conseguirão descobrir novas oportunidades e precificá-las corretamente. 

  1. Inércia do consumidor

Outro aspecto que diminui a concorrência no mercado bancário é a própria imobilidade da demanda. Segundo o levantamento da CMA[6], referida agência britânica, apenas 3% dos titulares de contas correntes pessoais mudavam de instituição financeira anualmente. A situação não foi diferente em relação aos titulares de contas correntes empresariais, com uma taxa de 4%.

No Brasil, salvo melhor juízo, não há dados públicos a respeito do percentual de pessoas físicas e jurídicas que mudam de banco anualmente[7]. Contudo, dados do Bacen[8] do ano de 2019 indicam que a portabilidade bancária no país ainda está aquém de seu potencial. Na modalidade de crédito imobiliário, estimou-se ao final de 2019 que havia ao menos 570 mil operações (R$102,8 bilhões) que poderiam se favorecer da portabilidade, e os 36 mil contratos (R$2,15 bilhões) que se beneficiaram da portabilidade configuram apenas 6,4% desse potencial.

  1. Custos de transferência de banco

Uma das explicações para tal inércia da demanda se dá por uma série de custos de transferência com os quais o consumidor tem de arcar ao mudar de banco, dentre os quais destacamos (a) a dificuldade de fechamento de conta corrente no banco de origem (devido a débitos automáticos, pagamento de salário etc.); (b) procedimentos burocráticos necessários à troca; (c) cancelamento de cartões antigos, muitos com financiamento de compras a prazo; (d) memorização de novas senhas[9].

O Open Banking amenizará alguns destes custos. Por exemplo, aplicativos que permitam o manejo centralizado de diversas contas bancárias (em instituições diferentes) diminuirão a necessidade de memorização de diversas senhas e facilitarão a organização financeira dos usuários. Além disso, aplicações podem descomplicar tremendamente o processo de abertura de contas ou de tomada de créditos, reduzindo a burocracia. Estas funções devem encorajar os usuários a estabelecer relações com mais instituições financeiras, bem como ajudar a difundir uma cultura de portabilidade bancária, tanto de contas correntes quanto de créditos.

  1. Complexidade das estruturas de cobrança 

A agência britânica[10] também concluiu que contas correntes, tanto para pessoas físicas quanto para jurídicas, têm estruturas de cobrança complicadas, as quais dependem do uso particular de cada cliente. Particularmente, o sistema de cobrança pelo uso do cheque especial se revelou complexo – tratando-se justamente de serviço que tende a ser subestimado pelo consumidor. Tudo isto dificulta a comparação dos serviços e produtos contratados com outros disponíveis no mercado.

O caso brasileiro também oferece indícios neste sentido. Acessando-se o ranking do Bacen de reclamações do consumidor a respeito de instituições reguladas, nota-se a participação expressiva de reclamações na categoria “Oferta ou prestação de informação a respeito de produtos e serviços de forma inadequada”. Nos quatro trimestres de 2019, reclamações enquadradas nesta classificação ficaram em primeiro lugar no levantamento[11].

Neste cenário, o OB tem o potencial de trazer muito valor aos consumidores. Com acesso a dados, aplicativos poderão ajudar usuários a identificar seus perfis de uso de modo a encontrar as ofertas bancárias mais adequadas. A análise retrospectiva da contratação também deve ser facilitada: programas poderão simular quanto os agentes teriam pago de encargos caso tivessem optado por diferentes instituições financeiras, o que os incentivará a tomar melhores decisões futuras. Em verdade, este tipo de funcionalidade aumentaria a competição em diversos setores, motivo pelo qual o OB já inspira, na Austrália, a implementação do Open Energy.

  1. Contratos sem termo final 

Por fim, outro aspecto que contribui para a inércia do consumidor neste mercado são as suas características contratuais. Ao abrirem contas correntes, clientes e bancos costumam estabelecer contratos sem termo. Assim, diferente de contratos de seguro, que costumam ter gatilhos regulares (renovação anual, por exemplo), não há, na relação bancária, um momento em que o consumidor é estimulado a se perguntar se ele poderia obter melhores ofertas de outras instituições financeiras. Neste contexto, aplicativos de gestão financeira unificada e marketplaces podem compensar a falta de termo final com frequentes comparações e ofertas personalizadas.

  1. Conclusão 

Visto de forma mais ampla, o OB é a aplicação, no setor bancário, de um movimento mundial que visa conferir aos consumidores mais controle sobre seus dados, em defesa da privacidade e também em fomento da inovação e da concorrência. Neste contexto, é digno de nota que o OB brasileiro promete ser um dos mais completos do mundo, pois, ao final de sua última fase, em Dezembro de 2021, haverá também o compartilhamento de informações sobre produtos de investimentos, seguros e câmbio, o que já é chamado de “Open Finance”.

O sistema financeiro aberto, resultado destas medidas, tem o potencial de solucionar ou atenuar diversas imperfeições observadas no mercado bancário, tanto do lado da oferta quanto da demanda, como assimetrias de informação dos consumidores e também das instituições entre si, além de reduzir custos de mudança de bancos.

Os novos aplicativos provocarão nudges pró-competitivos a compensar características do setor que contribuem para a inércia dos usuários, como a falta de termo final nos contratos. Além disso, o movimento, conjugado com outras medidas do Bacen no sentido de digitalizar os bancos, deve ainda incentivar entradas de fintechs e big techs neste mercado, o que aumentará a pressão competitiva nele. Por isto tudo, espera-se que o OB melhore a qualidade, o custo e a variedade dos serviços contratados pelo público.

 

[1]  Neste sentido, a apresentação da Agenda BC# pelo presidente do Bacen Roberto Campos Neto: https://www.bcb.gov.br/conteudo/home-ptbr/TextosApresentacoes/ppt_balanco_agenda_bc_2019.pdf

[2] BRASIL. Banco Central do Brasil (BACEN). Resolução Conjunta nº 1. Dispõe sobre a implementação do Sistema Financeiro Aberto (Open Banking). Brasília: BACEN, 2020. Disponível em: https://bit.ly/3eRv2s3. Acesso em: 13 mar. 2021.

[3] COMPETITION AND MARKETS AUTHORITY (CMA). Retail banking market investigation: Final report. Londres: CMA, 2016. Disponível em: https://bit.ly/2WeHDdJ. Acesso em: 24 fev. 2020.

[4] STIGLITZ, Joseph E.; WEISS, Andrew. Credit rationing in markets with imperfect information. The American Economic Review, v. 71, n. 3, p. 393-410, 1981. Disponível em: https://bit.ly/2W9TQ3u. Acesso em: 15 fev. 2020.

[5] DELL’ARICCIA, Giovanni; FRIEDMAN, Ezra; MARQUEZ, Robert. Adverse Selection as a Barrier to Entry in the Banking Industry. The RAND Journal of Economics, v. 30, n. 3, p. 515–534, 1999. Disponível em: www.jstor.org/stable/2556061. Acesso em: 30 jan. 2020.

[6] Vide item 4.

[7] Este autor pesquisou sem êxito nos sites do Bacen e da Febraban, bem como na internet em geral.

[8] BRASIL. Banco Central do Brasil (BACEN). Relatório de Economia Bancária 2019. Brasília: Banco Central do Brasil, 2019. Disponível em: http://bit.ly/3vsBifR. Acesso em: 12 mar. 2021.

[9] Voto do Conselheiro César Costa Alves de Mattos no âmbito do Ato de Concentração nº 08012.011736/2008-41, reproduzido no corpo do Anexo ao Parecer Técnico nº 12/2016 do Ato de concentração nº 08700.010790/2015-41.

[10] Vide item 4.

[11] RANKING de Reclamações. Banco Central do Brasil, 2019. Disponível em: https://bit.ly/2SmhOaM.

[12]GUIMARÃES, Olavo Severo. Concorrência bancária e o Open Banking no Brasil. Revista de Defesa da Concorrência do CADE, v. 9 n. 1, p. 125-147, jun. 2021. Disponível em: https://revista.cade.gov.br/index.php/revistadedefesadaconcorrencia/article/view/709/533. Acesso em: 04 jul.

* Olavo Severo Guimarães é a advogado, mestrando em Economia (UFRGS).

Artigo inspirado em publicação do autor na Revista de Defesa da Concorrência do CADE, v. 9 n. 1 (2021)[12].

 

 

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Destaques da análise de impacto concorrencial sobre os instrumentos regulatórios da telemedicina no contexto da Covid-19: Brasil, UE e EUA https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3462&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=destaques-da-analise-de-impacto-concorrencial-sobre-os-instrumentos-regulatorios-da-telemedicina-no-contexto-da-covid-19-brasil-ue-e-eua Fri, 02 Jul 2021 17:16:09 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3462 Destaques da análise de impacto concorrencial sobre os instrumentos regulatórios da telemedicina no contexto da Covid-19: Brasil, UE e EUA
Por Jéssica Portal Maia* e Kamyle Medina Monte Rey**

Com a pandemia causada pelo Covid-19, a telemedicina, que há anos tem sido foco de discussões a respeito de sua regulamentação, voltou a ser colocada em pauta como uma alternativa para atender a população, reduzindo o risco à exposição e ao contágio em ambientes hospitalares ou em clínicas.

Foi realizado benchmarking internacional sobre as regulações que impactam a telemedicina no Brasil, nos EUA e na União Europeia (UE) (com enfoque nos países-membros Alemanha, Bélgica, França e Itália). Tais normativos foram agrupados de acordo com o principal tema abordado e com o seu período de vigência; e classificados segundo o tipo de instrumento regulatório. Em seguida, realizou-se análise setorial de impacto concorrencial baseado no Checklist de Concorrência da OCDE (2017).

O primeiro tema a ser abordado trata da comparação das regulações voltadas à telemedicina, conforme o Quadro 1:

Quadro 1. Comparativo das regulações relacionadas à telemedicina: UE (países selecionados), EUA e Brasil

 

A União Europeia possui legitimidade limitada para atuar sobre o setor de saúde, assim, os normativos identificados no âmbito do bloco são voltados à garantia de prestação de serviços em todos os estados-membros, e, portanto, não se identificou impacto concorrencial relevante sobre o tema. A regulação específica é definida em cada país membro.

Na Alemanha, a previsão da telemedicina foi estabelecida pela German Medical Association, com a possibilidade de atendimento remoto, desde que seja clinicamente justificável, o que constitui uma forma de autorregulação do mercado. Adicionalmente, o Digital Healthcare Act  pode ser enquadrado como uma forma de regulação por contrato, uma vez que objetiva fomentar o desenvolvimento do setor com imposição de parâmetros regulatórios, instrumento que também encoraja o desenvolvimento da autorregulação e da meta-regulação. Esses mecanismos por sua vez, têm o potencial de contribuir para a redução de assimetrias informacionais entre regulador e regulado e para um aumento de eficiência, sendo, a priori, concorrencialmente favoráveis. Entretanto, em setores com maior poder de mercado, há riscos de comportamentos colusivos e captura dos agentes públicos, o que pode reforçar a concentração do setor em análise. Assim, para evitar os possíveis riscos decorrentes da autorregulação, é recomendável monitorar o grau de concentração do mercado de telemedicina e adotar medidas de accountability.

Na Bélgica e na Itália, também foram identificadas formas de autorregulação sobre o setor de telemedicina, determinadas pela Associação Nacional de Médicos e pelo Código de Autorregulação da Medicina, respectivamente. Entretanto, ressalta-se o estabelecimento de medidas restritivas aos serviços de teleconsulta, ao impossibilitar a atribuição de um diagnóstico sem interação presencial prévia no caso belga; e a delimitar os tipos de serviços autorizados a telesserviço,  a telemonitoramento e a telereporte no caso italiano, sem previsão de incluir a teleconsulta até agora. Tais medidas apontam para uma postura mais conservadora desses agentes, estabelecendo barreiras regulatórias à disseminação da telemedicina, o que pode constituir um indício das falhas regulatórias atreladas ao instrumento da autorregulação, contribuindo assim para redução da competitividade entre os prestadores de serviços de assistência à saúde.

Diante do exposto, é possível enquadrar as regulações adotadas pela Bélgica e pela Itália com potencial redução do incentivo das empresas a competir, decorrente do estabelecimento de um regime de autorregulação (C3). No caso alemão, a priori, não há evidências suficientes para a identificação de efeitos anticoncorrenciais decorrentes dos instrumentos regulatórios adotados.

No caso da França, os regulamentos sobre a telemedicina foram estabelecidos pelo Ministère des Solidarités et de la Santé. O Decreto n° 2010-1229, de 19/10/2010, pode ser enquadrado como uma regulamentação de comando e controle (C&C), em vista da determinação sobre quais serviços são autorizados e seus respectivos requisitos de funcionamento. A vantagem dessa estratégia se dá pelo estabelecimento de um posicionamento claro com eficácia imediata e proibições em caso de não cumprimento, porém, ressaltam-se os possíveis riscos desse instrumento que possam impactar negativamente a concorrência, tais como rigidez excessiva da regulação para cumprir o objetivo inicial, decorrente da assimetria de informações por parte do regulador.

No caso dos EUA, as regulações voltadas para a telemedicina são definidas em nível estadual. A falta de uma diretriz nacional pode criar barreiras regulatórias para a disseminação dos serviços relacionados no país, incorrendo em efeitos concorrenciais potencialmente negativos. No entanto, não foram identificadas evidências suficientes para analisar o impacto sobre a concorrência neste cenário. Enfim, no Brasil, antes do contexto da pandemia, a telemedicina era regulada pelo Conselho Federal de Medicina, criado pela Lei nº 3.268/1957, no qual, em conjunto com os Conselhos Regionais de Medicina, constitui uma autarquia de direito público, com autonomia administrativa e financeira. Portanto, a Resolução CFM nº 1.643/2002, que regulamenta esse tema, pode ser enquadrada como medida de comando e controle. Entretanto, esta norma não prevê regulamentação dos serviços relacionados à telemedicina. Com isso, pontua-se o risco intrínseco ao C&C de captura do regulador, sendo recomendável a ampliação de medidas de enforcement para evitar sua concretização.

O contexto de pandemia não alterou a regulação aplicada na Alemanha, o que pode ser apontado como evidência de que os instrumentos aplicados foram efetivos para um ambiente de negócios favorável à disseminação da telemedicina no país. Na Itália, o governo disponibilizou apenas diretrizes com recomendações à adoção da teleconsulta, no entanto, essa modalidade não foi regulamentada até o momento. No caso do Brasil, o Ministério da Saúde definiu requisitos para viabilizar os serviços da telemedicina, mas em caráter provisório. Além disso, a Lei nº 13.989/2020 garantiu competência sobre a telemedicina após a pandemia, mas até o momento, não houve alteração na Resolução CFM vigente. Diante disso, destaca-se que o atual cenário de insegurança jurídica pode prejudicar a sua disseminação.

O segundo tema apresentado é voltado às licenças para exercício da telemedicina. Os

resultados encontrados foram apresentados no Quadro 2:

Quadro 2. Comparativo das regulações relacionadas às licenças para o exercício da telemedicina: EU, EUA e Brasil

Fonte: Elaboração própria com base na legislação dos países analisados, 2020.

Ressalta-se que, no Brasil e nos EUA, em período anterior à pandemia, as regulamentações aplicadas eram de comando e controle, que, neste caso, podem ser justificadas pela necessidade de estabelecimento de critérios claros para a permissão do exercício da medicina, haja vista o seu impacto direto sobre a saúde dos indivíduos.

A regulação prevista pela União Europeia tem caráter diretivo, porém, a Diretiva 2005/36/CE, que estabelece os critérios para reconhecimento da qualificação profissional não abarca a telemedicina, destacando-se a limitação da sua legitimidade para regular sobre o setor de saúde.

O advento da telemedicina ressaltou possíveis efeitos anticoncorrenciais relacionados à aprovação dessas licenças, especialmente nos casos dos EUA e do Brasil, que, no cenário anterior à Covid, contribuíram para o estabelecimento de uma reserva de mercado para médicos com licenças em estados específicos, impedindo sua atuação em outros estados que pudessem demandar seus serviços, gerando uma possível ineficiência na alocação dos serviços de assistência à saúde e maior poder de mercado dos prestadores. No caso da UE, os requisitos para atribuição da licença médica, ainda que esta tenha validade em todos os estados-membros, não permitem o exercício da telemedicina. As dificuldades apontadas são relacionadas à: a) definição do idioma a ser adotado; b) definição de quem tem competência para regular o tema, devido à legitimidade limitada da UE no setor de saúde; e c) compatibilidade dos registros eletrônicos de saúde.

O contexto da Covid-19 alterou a abordagem dos EUA sobre o tema de forma provisória, o que contribuiu para a disseminação da telemedicina no atual contexto de pandemia e para o aumento da competitividade nesse mercado. Entretanto, o caráter provisório da alteração pode impactar o setor em momento posterior, considerando a incorporação tecnológica para aumentar o acesso e os demais benefícios relacionados aos planos privados de assistência à saúde.

Diante disso, entende-se que a regulação acerca da qualificação médica nas origens levantadas enquadra-se no cenário A2 (limitação do número ou da variedade de fornecedores), a partir do estabelecimento de um regime de licenciamento ou de autorização como requisito de atividade, com exigências que potencialmente ultrapassam o necessário para garantir a segurança e qualidade da assistência prestada pelos médicos.

O terceiro tema em análise está voltado para a possibilidade de prescrição à distância, com o arcabouço regulatório identificado sobre o tema resumido no Quadro 3:

Quadro 3. Comparativo das regulações relacionadas à possibilidade de prescrição à distância: EU (países selecionados), EUA e Brasil 

No caso da União Europeia, o tema foi tratado pela Diretiva 2011/24/UE, que dispõe explicitamente sobre a eliminação de barreiras regulatórias e administrativas para reconhecimento da prescrição médica em todos os países membros, o que contribui para uma maior eficiência na assistência à saúde prestada. Destaca-se que esse instrumento define as diretrizes sobre os resultados esperados, sem estabelecer de forma rígida qual mecanismo cada estado-membro deve adotar para alcançá-los.

Na Alemanha, o Act for More Safety in the Supply of Pharmaceuticals autorizou as prescrições eletrônicas com vigência a partir de junho de 2020. Na Bélgica, as prescrições eletrônicas passaram a ter caráter obrigatório em 1º de janeiro de 2020, com a opção de papel definida como exceção em casos sem a opção digital. No caso da França, foi estabelecido um programa de caráter experimental para a circulação de prescrições eletrônicas, caracterizado como um sandbox regulatório, que consiste em um instrumento de cooperação entre o regulador e a indústria regulada para testar projetos inovadores segundo requisitos regulatórios específicos, com objetivo de impulsionar a inovação e reduzir a assimetria informacional entre os agentes. Na Itália, em 2011, foi publicado o Decreto Interministerial entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Economia italianos com autorização para a adoção de prescrições eletrônicas. Diante do exposto, em relação ao mercado de telemedicina, não foram identificados impactos concorrenciais relevantes sobre os instrumentos regulatórios adotados por estes países europeus.

No caso do Brasil, até 2018, as barreiras sobre a validade da receita médica apenas no estado em que foi prestado atendimento impunham custos adicionais aos indivíduos que se deslocaram para outro estado. Isso ocorria em virtude da necessidade de agendamento com médico local para conseguir a mesma prescrição, sujeitando-se à disponibilidade de atendimento no curto prazo, o que pode colocar em risco inclusive a continuidade do tratamento de uma doença crônica, por exemplo.

No âmbito da telemedicina, não foram identificadas barreiras concorrenciais à abordagem adotada pela UE, uma vez que as diretrizes preveem a viabilização da interoperabilidade das prescrições eletrônicas. No entanto, os Estados Unidos e o Brasil restringiam a validade destas prescrições, o que constitui uma barreira regulatória ao desenvolvimento do mercado de telemedicina nesses países, enquadrando-se no cenário A3 (limitação do número ou da variedade de fornecedores), a partir da restrição da capacidade de prestação de bens ou de serviços a certos tipos de empresas.

Com o contexto da Covid-19, houve flexibilização nas regulações dos EUA e do Brasil, o que contribuiu para a redução das barreiras regulatórias sobre o setor de telemedicina, levando assim à redução dos riscos restritivos decorrentes do instrumento de comando e controle adotado nesses países.

 

Referências

BRASIL. Resolução CFM nº 1.643/2002. Conselho Federal de Medicina. Publicada no D.O.U. de 24 de agosto de 2002, Seção 1, p. 205. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2002/1643>. Acesso em 31 de agosto de 2020.

BRASIL. Resolução CFM nº 2.227/2018. Conselho Federal de Medicina, 2019. Publicada no D.O.U. de 06 de fevereiro de 2019, Seção 1, p. 58. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2227>. Acesso em 31 de agosto de 2020.

BRASIL. Resolução CFM nº 2.228/2019. Conselho Federal de Medicina, 2019. Publicada no D.O.U. de 06 de março de 2019, Seção 1, p. 91. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2019/2228>. Acesso em 31 de agosto de 2020.

BRASIL. Ofício CFM nº 1.756/2020 – COJUR. Conselho Federal de Medicina, de 19 de março de 2020. Disponível em: <https://portal.cfm.org.br/images/PDF/2020_oficio_telemedicina.pdf>. Acesso em 31 de agosto de 2020.

BRASIL. Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020. Publicada no D.O.U. de 07 de fevereiro de 2020, Seção 1, p. 1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm>. Acesso em 31 de agosto de 2020.

BRASIL. Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957. Publicada no D.O.U. de 07 de fevereiro de 2020, Seção 1, p. 1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3268.htm#:~:text=Art%20.,Art%20>. Acesso em 31 de agosto de 2020.

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GERMAN MEDICAL ASSEMBLY. Professional Code for Physicians in Germany. Erfurt, 2018. Disponível em: https://www.bundesaerztekammer.de/fileadmin/user_upload/downloads/pdf-Ordner/MBO/MBO-AE_EN_2018.pdf>. Acesso em: 20 de outubro de 2020.

MAIA, Jéssica P.; MONTE REY, Kamyle M. Análise de Impacto Concorrencial sobre os instrumentos regulatórios da telemedicina no contexto do Covid-19: Brasil, União Europeia e Estados Unidos. Direito Econômico e Defesa da Concorrência. Volume 03 – Coletânea de Artigos em Defesa da Concorrência e Direito Econômico: Mercado Médico-Hospitalar e Economia Digital. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. 2021. pp. 187

OECD. Guia para Avaliação de Concorrência Volume 3 – Manual Operacional. Versão 3.0. 2017. Disponível em: <http://www.oecd.org/daf/competition/operational-manual-for-competition-assessment-PT.pdf>.Acesso em 26 de agosto de 2020.

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PARLAMENTO EUROPEU. Directive 2000/31/EC of the European Parliament and of the Council of 8 June 2000 on certain legal aspects of information society services, in particular electronic commerce, in the Internal Market: Directive on electronic commerce. Bruxelas, 2000. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/eli/dir/2000/31/oj>. Acesso em: 30 de outubro de 2020.

PARLAMENTO EUROPEU. Directiva 2011/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2011, relativa ao exercício dos direitos dos doentes em matéria de cuidados de saúde transfronteiriços. Bruxelas, 2011. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A32011L0024&qid=1604335159578>. Acesso em: 25 de outubro de 2020.

PARLAMENTO EUROPEU. Diretiva (UE) 2016/1148 do Parlamento Europeu e do conselho relativa a medidas destinadas a garantir um elevado nível comum de segurança das redes e da informação em toda a União Europeia. Bruxelas, 2016. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32016L1148&from=LT>. Acesso em 20 de agosto de 2020.

REPÚBLICA FRANCESA. Décret n° 2010-1229 du 19 octobre 2010 relatif à la télémédecine. Paris, 2010. Disponível em: < https://www.legifrance.gouv.fr/jorf/id/JORFTEXT000022932449/>. Acesso em 20 de outubro de 2020.

REPÚBLICA FRANCESA. Décret n° 2020-227 du 9 mars 2020: adaptant les conditions du bénéfice des prestations en espèces d’assurance maladie et de prise en charge des actes de télémédecine pour les personnes exposées au covid-19. Paris, 2020. Disponível em: <https://www.legifrance.gouv.fr/jorf/id/JORFTEXT000041704122/>. Acesso em: 21 de outubro de 2020.

REPÚBLICA ITALIANA. Decreto Legislativo 30 dicembre 1992, n. 502. Roma, 1992. Disponível em: <http://www.anaao.it/userfiles/DLgs_502_92.pdf>. Acesso em: 14 de outubro de 2020.

* Jéssica Portal Maia é consultora interna da GO Associados.

** Kamyle Medina Monte Rey é economista da Coordenação-Geral de Pesquisa da Escola Nacional de Administração Pública (Enap).

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Importância do ambiente regulatório para atração de investimentos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3455&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=importancia-do-ambiente-regulatorio-para-atracao-de-investimentos Thu, 10 Jun 2021 02:30:47 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3455 A importância do ambiente regulatório para atração de

investimentos privados em infraestrutura no Brasil

 Por Katia Rocha*

A crise de saúde do COVID-19 destacou o subinvestimento crônico em infraestrutura social em todo o mundo e expôs o Brasil, bem como diversos emergentes, a decisões de políticas de controle da propagação do vírus e apoio às atividades social e econômica dos indivíduos e negócios.

Em recente relatório[1], o BID ressalta que após a fase atual onde os governos concentram esforços na mitigação dos impactos imediatos com políticas de transferências para populações vulneráveis e créditos e garantias para empresas; os países emergentes, em especial os da América Latina, deveriam estimular o investimento em infraestrutura de forma a promover e potencializar um crescimento econômico sustentável, integração regional e reduzir a desigualdade.

O investimento em infraestrutura deve ser parte central da política de estímulo uma vez que impacta diretamente o crescimento econômico, aumenta a produtividade, diminui desigualdades e potencializa maior integração e comércio internacional.

Esse artigo apresenta ao leitor o panorama dos investimentos públicos e privados em infraestrutura econômica na última década no Brasil, estima o impacto de melhorias regulatórias no volume de investimentos privados, e termina com algumas considerações práticas.

No Brasil, existe consenso que a infraestrutura inadequada é uma das principais barreiras ao crescimento e ao desenvolvimento. A despeito de diversos programas nacionais ao longo do tempo, o Brasil não conseguiu aumentar substancialmente a sua taxa de investimento em infraestrutura, nem tampouco melhorar a qualidade da mesma, resultando em uma lacuna significativa de infraestrutura, seja medida em termos do estoque de capital físico, seja pela percepção qualitativa do serviço fornecido.

Segundo dados da InfraLatam[2], o investimento público em infraestrutura no Brasil foi inferior ao de seus pares da América Latina, conforme ilustra a Figura 1. Enquanto Costa Rica, Peru, Uruguai e Colômbia apresentaram níveis de investimento público médio acima de 2% do PIB ao ano na última década (2008-2019), o Brasil não superou 1% do PIB ao ano no mesmo período[3].

Figura 1: Investimento Público Médio em Infraestrutura (%PIB aa): 2008-2019

Fonte: InfraLatam

A participação privada vem gradativamente suprindo esta lacuna, em especial, após a crise global de 2008, que potencializou a classe de ativos de infraestrutura como uma oportunidade de investimento atrativa e rentável, capitaneada pelas baixas taxas de juros internacionais, necessidades de diversificação e maior aversão a risco global.

No Brasil, de acordo com os dados divulgados pelo Banco Mundial[4], o setor privado contribuiu com um investimento médio anual da ordem de 1% do PIB[5], e juntos, setor público e privado, responderam por cerca de 1.85 % do PIB na média anual na última década (2008-2019) conforme ilustra a Figura 2. Considerando a necessidade de investimento em infraestrutura no Brasil superior a 4% do PIB, resta ainda uma expressiva lacuna. Como exemplo, estimativas feitas pelo Global Infrastructure Outlook[6] apontam para uma necessidade de investimento em infraestrutura de 4.74% do PIB ao ano (cerca de USD 120 Bilhões/ano) até 2040, o que coloca a lacuna de infraestrutura em 2.89% do PIB ao ano (4.74% – 1.85%), um total aproximado de USD 1.2 trilhão ao final de 2040[7]. Desse montante, o setor de transportes, principalmente rodovias, é responsável por mais da metade, refletindo os grandes déficits neste setor no Brasil.

 Figura 2: Investimento Público x Privado em Infraestrutura (%PIB aa)

Fonte: InfraLatam e PPI Database – World Bank

Não somente o fluxo de investimentos, mas também a percepção da qualidade do serviço de infraestrutura no Brasil deixa a desejar. De acordo com o pilar de infraestrutura do índice de competitividade global de 2019, que mede a qualidade, extensão e eficiência da infraestrutura de transporte (rodoviário, ferroviário, aquático e aéreo), acesso à energia elétrica e água, o Brasil se encontra na posição 78 (numa amostra de 141 países).

Em vista da limitação atual do financiamento público brasileiro, o debate recai sobre as recomendações de políticas públicas necessárias para estimular uma maior e melhor (mais eficiente) participação privada de investimento em infraestrutura. A melhoria das características institucionais e regulatórias do país que promovam os investimentos privados de forma sustentável será particularmente importante nos próximos anos. Nesse sentido, é importante analisar o ambiente regulatório Brasileiro e seus impactos sobre os investimentos privados no setor, identificando gargalos e ineficiências onde o poder público possa atuar.

O texto para discussão de Rocha (2020) fornece uma importante métrica ao formulador de políticas públicas ao estimar a resposta dos investimentos privados a uma melhora nos respectivos rankings regulatórios[8]. Os resultados indicam que uma melhora no ranking de qualidade regulatória do Brasil (atualmente na posição 48ª, onde a melhor é 100a) para o mesmo nível ocupado em meados de 2000 (65a colocação, posição atual da Colômbia), teria o potencial de adicionar 0.81% do PIB ao ano em investimentos privados. Caso alcance os níveis Chilenos (84a colocação atualmente), o acréscimo seria de 1,59% do PIB ao ano. Tal valor equivale, praticamente, a duplicar o atual nível de investimentos em infraestrutura no Brasil, que atingiria 3,44% do PIB ao ano (1.59% + 1.85%), valor ainda aquém, porém mais próximo à meta de 4.74%.

Mesmo tendo em mente toda limitação de um exercício econométrico e da própria base de dados utilizada, os resultados são significativos e relevantes, e destaca toda uma agenda de políticas públicas atualmente em debate no Brasil, que abrange desde maior segurança jurídica, estabilidade regulatória, fortalecimento da interação entre Estado e iniciativa privada, à maior abertura econômica, desburocratização e desestatização.

Algumas recomendações práticas, extraídas de estudos citados nas referências, sobre aprimoramentos regulatórios, que potencializam melhoras no ranking de qualidade de regulação no Brasil são enumeradas a seguir. Basicamente se classificam em três frentes de aperfeiçoamentos: 1) estruturação e avaliação de projetos, 2) planejamento institucional e 3) financiamento de projetos.

A primeira frente sobre estruturação de projetos abrange aperfeiçoamentos nos critérios formais de seleção de projetos; desenvolvimento de banco de projetos estruturados com prioridades de investimento; normas para contratação rápida de consultores de qualidade com procedimentos de colação e/ou short-list[9]; fortalecimento da figura da estruturadora independente neutra à licitação[10]; explicitação da matriz de risco do projeto com legislação de repartição objetiva entre as partes; mecanismos para avaliação de ratings de projetos entre outros.

A segunda frente sobre aprimoramentos institucionais visa maior priorização das Parcerias Público Privadas (PPPs) no plano nacional de infraestrutura e desenvolvimento estratégico de longo prazo, incentivando maior integração dos projetos com as prioridades de investimento do governo e maior centralização nas tomadas de decisão, uma vez que o planejamento é prejudicado pela priorização equivocada de projetos e/ou pelas múltiplas emendas parlamentares; fortalecimento “de facto” das agências reguladoras; transparência nas renegociações dos contratos; padronização contábil de prestação de contas; avanços nos procedimentos de licenciamento ambiental; fortalecimento das instituições de supervisão e controle, com respectiva delimitação de competência, de forma a reforçar os mecanismos de responsabilização das instituições e gestores públicos, entre outros.

Finalmente, na terceira frente relacionada ao financiamento dos projetos, melhorias quanto à repactuação de contratos de concessão, visando sua transferência de controle e continuidade na prestação dos serviços públicos (step in right/step in techical); aprimoramento dos fundos garantidores, project finance e performance bonds; mecanismos para desenvolvimento do mercado secundário das debêntures de infraestrutura, com incentivo fiscal para investidores institucionais; eliminação das  ineficiências tributárias sobre investidores estrangeiros incluindo questões relativas a emissões internacionais, entre outros.

Cabe citar os esforços e avanços do governo federal na consolidação de um arcabouço regulatório propício aos investimentos em infraestrutura. Em 2016, foram aprovadas a Lei das Agências Reguladoras, a Lei das Estatais e o Programa de Parcerias de Investimento (PPI), cuja secretaria viabiliza a preparação e estruturação de um banco de projetos para concessões e fornece informações sobre projetos e políticas de investimentos do governo federal a investidores, com maior segurança jurídica e previsibilidade. Em 2020, aprovou-se o novo Marco Legal de Saneamento, e em 2021 a Nova Lei do Gás. Em tramitação e análise, encontram-se o PL 3453/2008, que altera o Marco Regulatório das parcerias público-privadas (PPPs), que promete trazer maior segurança jurídica, desburocratização e estabilidade regulatória para investimentos privados em infraestrutura; e o PL 2646/2020 sobre financiamento e debêntures de infraestrutura, dentre outros (cabotagem, ferrovias, setor elétrico) igualmente importantes ao setor.

Tais iniciativas são meritórias e caminham, não na velocidade desejada, mas na direção correta a uma agenda de maior eficiência dos investimentos públicos e privados em infraestrutura; melhorando a competitividade e alavancando o crescimento econômico e social brasileiro.

 

Referências 

CASTELAR et al (2015). Estruturação de projetos de PPP e concessão no Brasil: diagnóstico do modelo brasileiro e propostas de aperfeiçoamento. IFC.

CURRISTINE,T.; GONGUET, F.; BETLEY, M.;  CROOKE, M.; TANDBERG, E.; MUNOZ MIRANDA, A.; Rabello, F.; VIÑUELA, L. (2018). Avaliação da Gestão do Investimento Público. Relatório da Assistência Técnica | Novembro 2018. Departamento de Finanças Públicas Fundo Monetário Internacional.

FGV-EAESP (2019). Propostas para Aperfeiçoamento do Novo Marco Legal de Parceria Público Privada e Concessões (PL 3453/08). Grupo da Economia da Infraestrutura & Soluções Ambientais da FGV-EAESP.

FRISCHTAK, C.; NORONHA, J. (2016). O Financiamento do Investimento em Infraestrutura no Brasil: Uma agenda para sua Expansão Sustentada. Confederação Nacional da Indústria.

INDERST, G.; STEWART, F. (2014). Institutional Investment in Infrastructure in Emerging Markets and Developing Economies. 2014 Public-Private Infrastructure Advisory Facility (PPIAF). World Bank.

PORTUGAL, M. (2011). Concessões e PPPs – Melhores Práticas em Licitações e Contratos. Atlas.

PORTUGAL, M. (2019). Investimento privado em infraestrutura: diagnóstico e propostas. Jota.

RAISER, M.; CLARKE, R.; PROCEE, P.; BRICENO-GARMENDIA, C.; KIKONI, E.; KIZITO, J.; VINUELA, L. (2017). Back to Planning: How to Close Brazil’s Infrastructure Gap in Times of Austerity. World Bank Group.

ROCHA, K. (2020). Investimentos Privados em Infraestrutura nas Economias Emergentes – A Importância do Ambiente Regulatório após a Crise Global na Atração de Investimentos. Texto para Discussão 2584. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

SEREBRISKY, T.; BRICHETTI, J.; BLACKMAN, A.; MOREIRA, M.  (2020). Sustainable and digital infrastructure for the post-COVID-19 economic recovery of Latin America and the Caribbean: a roadmap to more jobs, integration and growth. Inter-American Development Bank.

SEREBRISKY, T.; SUÁREZ-ALEMÁN, A.; PASTOR, C.; WOHLHUETER, A. (2017). Increasing the Efficiency of Public Infrastructure Delivery: Evidence-based Potential Efficiency Gains in Public Infrastructure Spending in Latin America and the Caribbean. Inter-American Development Bank.

WEF (2019). World Economic Forum. Improving Infrastructure Financing in Brazil. Insight Report. In collaboration with the Inter-American Development Bank. January 2019.

 

[1]  Serebrisky et al (2020).

[2] Dados disponíveis em http://infralatam.info/en/home/ que abrangem os setores de energia (eletricidade e gás), água e saneamento, transportes (rodovias, ferrovias, aéreo e portos) e telecomunicações.

[3] Nos emergentes de rápido crescimento, especialmente na Ásia, o padrão de investimento público em infraestrutura tem sido da ordem de 5 a 7% do PIB.

[4] A base de dados Participação Privada em Infraestrutura do Banco Mundial disponível em https://ppi.worldbank.org/en/ppi corresponde atualmente na maior e melhor base de dados públicos disponível para análise do investimento privado em infraestrutura econômica entre os países emergentes (baixa e média renda). Abrange 7000 projetos em 127 países (de baixa e média renda) desde 1990, nos setores de energia (eletricidade e gás), água e saneamento, resíduos sólidos, transportes (rodovias, ferrovias, aéreo e portos) e telecomunicações.

[5] De fato, o China, índia e Brasil, nesta ordem, corresponderam aos países que mais atraíram projetos privados no período.

[6]  Disponível em https://outlook.gihub.org/

[7] Essa lacuna dobra ao se considerar as metas de desenvolvimento sustentável (ODS) até 2030, mas pode reduzir-se em aproximadamente um terço com eventuais ganhos de eficiências de projetos conforme descrito em Serebrisky (2017).

[8] O estudo de painel abrange 18 economias emergentes – Argentina, Brasil, China, Chile, Colômbia, Índia, Indonésia, Malásia, México, Paquistão, Peru, Filipinas, Rússia, África do Sul, Tailândia, Turquia, Uruguai e Vietnam – que juntos representaram USD 1.3 trilhão e 4480 projetos privados direcionados à infraestrutura entre 2000-2018, e utiliza como indicador principal o índice de qualidade regulatória do Banco Mundial.

[9] Processos simplificados para selecionar projetos/consultores que considerem não apenas o preço, mas também características como a qualidade técnica dos prestadores de serviço, a exemplo dos projetos do Banco Mundial.

[10] Segundo propõe Castelar (2015), estruturadora remunerada pelo próprio projeto e “neutra” em relação à licitação, em detrimento daquelas participantes da licitação.

 

* Katia Rocha é doutora e servidora de carreira do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. As opiniões emitidas são de exclusiva e inteira responsabilidade da autora, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do IPEA. Email: katia.rocha@ipea.gov.br.

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Wi-Fi 6: mais um aliado na modernização das comunicações https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3431&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=3431 Tue, 06 Apr 2021 23:28:47 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3431 Wi-Fi 6: mais um aliado na modernização das comunicações

Por Carlos Baigorri* e José Borges da Silva Neto**

 Os recentes avanços tecnológicos ampliam a capacidade e a qualidade de transmissão de dados em redes locais, fenômeno que dará maior flexibilidade na comunicação de múltiplos dispositivos e intensificará a digitalização de diversos setores da economia. Dentre tais avanços tecnológicos, não se pode esquecer aqueles  associados ao Wi-Fi 6.

Introdução

No primeiro trimestre de 2021, a Anatel avançou em discussões de temas que intensificarão o processo de digitalização da sociedade brasileira, como a aprovação do edital do 5G e os atributos técnicos para o “Wi-Fi 6”.

Grande atenção tem sido direcionada para a quinta geração de sistemas móveis de banda larga, o chamado “5G”, que logo será implantado no Brasil. De forma complementar às tecnologias associadas ao 5G, devemos assinalar que o Wi-Fi 6 (padrão IEEE 802.1ax), que também é um padrão da família de tecnologias sem fio, mas com um alcance mais restrito para redes privadas, surge como mais um vetor para complementar as possibilidades de novos arranjos e de serviços no contexto de uma sociedade mais intensiva em soluções digitais.

Sobre a aprovação do 5G, tivemos a oportunidade de expor seus contornos em artigo anterior – link. Então, aqui dedicaremos especial destaque ao papel do WIFI 6 e como esse padrão tecnológico, em conjunto com o 5G, contribuirá como mais um vetor possível para a difusão de novas tecnologias em todos os setores da economia. 

Por que um padrão tecnológico é tão importante?

Grosso modo, em telecomunicações, a definição de padrões é fundamental para garantir a interoperabilidade de equipamentos dentro de uma rede e também entre redes distintas.  Há uma vasta literatura sobre a importância dos padrões tecnológicos e a competição para a definição de um padrão “vencedor”. Resumidamente, pode-se dizer que a opção de uma indústria pela definição de padrões tecnológicos busca a uniformidade de produção, a compatibilidade de tecnologias, a objetividade na medição e a definição de protocolos para interconexão entre equipamentos.

Assim, a definição de padrões tecnológicos viabiliza a criação de novas possibilidades de usos e serviços, bem como o desenvolvimento de novos terminais e equipamentos. Mas, como isso funciona? O estabelecimento de padrões define características operacionais para o funcionamento em uma rede de telecomunicações. Tais características serão utilizadas por uma série de equipamentos e terminais, tornando possível a integração e a interoperabilidade de diversos dispositivos de fornecedores distintos, além de instigar novas funcionalidades e, assim, novas utilidades para os usuários finais.

Por trás disso, há um fenômeno econômico interessante: quanto mais exitosa em integrar equipamentos e proporcionar novas utilidades para os usuários, mais fornecedores terão incentivo para seguir o padrão e desenvolver equipamentos. Além disso, o padrão tecnológico reduz o “custo de transação” para os usuários. Por exemplo, ao comprar uma impressora ou um telefone celular, ao pesquisar seus atributos, o usuário poderá identificar que esses dois equipamentos podem se conectar por meio das especificações do padrão popularmente conhecido como bluetooth. Nesse exemplo, o padrão citado reduz os custos de transação de pesquisa e de avaliação do usuário, que tem a garantia de que um produto, independente de sua origem, pode ser incorporado com sucesso em um sistema (sua rede pessoal ou uma rede telecomunicações maior). Isso também reforça o efeito rede, pois os usuários também identificam mais valor quanto mais usuários utilizam o mesmo padrão.

Tendo isso em mente, num contexto de rápida evolução tecnológica, de conectividade global e de adensamento de equipamentos que precisam se interoperar, um insumo fundamental é a disponibilização de espectro eletromagnético. Como o padrão bluetooth, o Wi-Fi também precisa de uma porção do espectro para funcionar. Contudo, esses dois padrões citados funcionam com faixas destinadas em que não exige um licenciamento para uso. Assim, cabe à Anatel, da forma mais transparente e neutra, estabelecer os requisitos técnicos para avaliação de conformidade de equipamentos de radiocomunicação de radiação restrita para o uso em sistemas de comunicações sem fio, entre os quais está o Wi-Fi. 

O padrão Wi-Fi 6

O padrão Wi-Fi teve sua primeira especificação (IEEE 802.11-1997) em 1997. Nessa trajetória, o Wi-Fi transformou-se em importante solução para acesso à Internet em áreas locais. De acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2019, conduzida pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), em 2019, cerca de 71% (setenta e um por cento) dos domicílios brasileiros, urbanos ou rurais, dispunham de acesso à Internet, ao passo que quase 80% (oitenta por cento) destes possuíam Wi-Fi disponível.

Nota-se que o Wi-Fi é predominantemente usado para prover cobertura doméstica, mas se tem observado seu crescente emprego em redes locais sem fio mais amplas para a conexão de clientes em áreas que não dispõem de cobertura móvel, sobretudo em regiões de baixa atratividade econômica, e para o provimento de soluções tecnológicas mais recentes, tais como dispositivos smart home e soluções de internet das coisas (IoT) em geral.

Assim, espera-se que o padrão Wi-Fi se torne cada vez mais essencial às comunicações no Brasil e no mundo. Com efeito, as novas padronizações ampliaram o potencial de uso do Wi-Fi, que se tornará cada vez mais complementar à rede celular.

Em 2019, foi publicada a sexta especificação do Wi-Fi, formalmente denominada 802.11ax e cujo nome comercial foi definido como “Wi-Fi 6”. O novo padrão é capaz de utilizar as faixas de 2,4 GHz e 5 GHz, já em uso pelas versões anteriores, e também a nova faixa de 6 GHz, fazendo uso de canais de até 160 MHz e podendo alcançar taxas de transmissão de até 9,6 Gbps. Em outras palavras, amplia consideravelmente a capacidade de transmissão de dados do Wi-Fi.

Nos Estados Unidos, há a destinação de 1.200 MHz (5,925-7,125 GHz) para o Wi-Fi 6, com determinadas restrições a partes da faixa, especialmente nos 250 MHz finais, recebendo o novo nome comercial “Wi-Fi 6E”.

À semelhança da discussão do 5G, há uma importante discussão sobre a destinação de uso do espectro eletromagnético, recurso escasso por definição. A Anatel já destinou, em 2004, a faixa de 5 GHz para o uso não licenciado, viabilizando o emprego de soluções como o Wi-Fi, e, em 2020, ampliou para incluir a chamada faixa de 6 GHz.

Contudo, para o efetivo uso não licenciado, devem-se respeitar os requisitos técnicos definidos pela Anatel (restrição de alcance e potência dos equipamentos, por exemplo), condição necessária para o efetivo emprego da faixa em questão para o Wi-Fi 6.

De um lado, há as operadoras de rede de telefonia móvel que apontam o potencial de uso da faixa de 6 GHz para emprego nas redes móveis de quinta geração, defendendo o estabelecimento de condições de uso para 500 MHz entre a faixa de 5,925-7,125 GHz. De outro, um conjunto de empresas fornecedoras de equipamentos, empresas nativas da internet, operadoras de telecomunicações de pequeno porte e provedores de internet e associações favoráveis ao estabelecimento de condições para uso não licenciado de toda a faixa, ou seja, para 1.200 MHz.

O Colegiado da Anatel deliberou que a destinação de uso dos 1.200 MHz disponíveis não afasta a possibilidade de que essa faixa venha a ser usada futuramente para o provimento de 5G. Isso porque o 3GPP já expediu padronização para a operação do 5G por meio de uso de faixas não licenciadas (5G NR-U), de modo que a proposição formulada não restringe o uso da faixa, mas o amplia. Assim, disponibiliza-se a maior quantidade de espectro possível para dar uso econômico a esse bem público e permite que o mercado brasileiro usufrua das melhores possibilidades de transmissão de dados e conectividade.

Conforme Raul Katz, a destinação de 1.200 GHz pode destravar um valor econômico equivalente a R$ 925 bilhões, sendo a maior parte dele, US$ 112,14 bilhões (R$ 635 bilhões) em potencial aumento do PIB no período, como consequência da ampliação da cobertura, preços mais acessíveis, maiores velocidades, desenvolvimento mais acelerado da internet das coisas, e no suporte aos mercados de realidade aumentada e realidade virtual. Além disso, outros US$ 30,3 bilhões (R$ 170 bilhões) poderão ser gerados em economia no custo do tráfego para empreendimentos, além de US$ 21,19 bilhões (R$ 120 bilhões) na propensão dos consumidores a pagarem mais por velocidades ainda maiores[1].

Além disso, os requisitos definidos foram pensados para proteger sistemas de alta precisão de interferências, tais como a tecnologia de sistema inteligente de transporte, (do inglês, Intelligent Transport System – ITS). Tal serviço promete ampliar a conectividade de veículos, provendo maior autonomia e segurança na gestão de tráfego. Ou seja, os requisitos técnicos aprovados pela Anatel consideraram parâmetros que mitigam a geração de interferências espúrias por meio de equipamentos avançados.

Assim, o Wi-Fi 6 promete aliar as evoluções em técnicas de múltiplo acesso e modulação à nova faixa de radiofrequências, trazendo nova perspectiva às redes locais de banda larga sem fio. Inegável, portanto, o potencial benefício para usuários e setor de telecomunicações, ao passo que usufruirão de maior capacidade e flexibilidade em dispositivos Wi-Fi de nova geração. 

Implicações regulatórias

A Anatel deve sempre buscar o uso eficiente do espectro, aliado ao interesse público, em suas decisões regulatórias. Permitir aos usuários o usufruto da nova tecnologia de Wi-Fi, em sua plenitude, atende aos preceitos básicos regulatórios da Agência e alinha-se ao crescimento da demanda por acessos de alta capacidade de dados.

Adicionalmente, novas tecnologias ampliam o escopo de possibilidades para a implantação de políticas públicas. Tradicionalmente, as políticas de massificação de acesso às comunicações concentram suas apostas na difusão de acessos fixos por meio do Serviço Telefônico Fixo Comutado – STFC e posteriormente por meio da cobertura de redes móveis por meio do Serviço Móvel Pessoal – SMP. Ambas, guardadas as devidas especificidades, permitiram a difusão da voz em todo o território e, mais recentemente, a difusão da transmissão de dados que tem popularizado o acesso aos serviços da internet.

O desenvolvimento de novas tecnologias, como o aprimoramento do Wi-Fi, dá mais opções para a implementação de políticas de massificação do acesso, bem como a flexibilidade para o operador de rede para gerir seus elementos de rede para alcançar o ideal de integrar mais brasileiro a um mundo cada vez mais digitalizado. 

Comparativo entre Wi-Fi 6 e o 5G

As tecnologias inseridas nos padrões 5G e Wi-Fi 6 pretendem entregar transmissão de dados em alta velocidade com melhor desempenho. Assim, os dois padrões tecnológicos fornecem taxas de dados mais altas para suportar novas aplicações e conectar mais usuários e dispositivos. Logo, colocam-se como elementos importantes dentro do ferramental disponível para incluir mais pessoas e para catalisar a intensificação da Internet das Coisas e de comunicações máquina a máquina.

Por enquanto, o 5G continuará sendo a tecnologia preferida para cobertura de grandes áreas e o Wi-Fi 6 permanece a tecnologia preferida para uso interno ou local, graças aos seus custos de implantação muito mais baixos. Dessa forma, as duas opções poderão atuar de forma complementar para expandir as oportunidades de usos e de soluções, facilitando a digitalização de diversos setores econômicos. No entanto, os limites tradicionais que diferenciavam as gerações anteriores de celular e de Wi-Fi estão se confundindo. Os defensores de uma tecnologia podem argumentar que os benefícios da tecnologia escolhida poderão substituir a outra.

Porém, conforme Oughton et. Al (2021), é esperado que a economia de custos e a conveniência de implantação desempenhem um papel importante. Considerando o efeito path dependence, demarcados pelos sunk costs na infraestrutura legada, é improvável que uma tecnologia seja capaz de substituir a outra totalmente devido aos custos adicionais de transição.

Certamente, a economia de custos será um fator importante que afetará o design de dispositivos sem fio, mas o comportamento do consumidor também é fundamental para “selecionar” a tecnologia mais apropriada para determinado contexto, indoor ou outdoor. Assim, cabe ao mercado realizar a seleção das melhores alternativas tecnológicas. Quanto mais inovações e opções, melhor será para a sociedade brasileira. As duas tecnologias têm papéis importantes a desempenhar no mercado, tendo em vista as possibilidades tão heterogêneas de uso, inclusive combinadas! A pluralidade de tecnologias deve contribuir para fornecer preços acessíveis, confiáveis e conectividade de banda larga sem fio de alta capacidade, disponível em todos os lugares, facilitando a digitalização de todos os segmentos da sociedade contemporânea.

 

Referências

OUGHTON, Edward J. et al. Revisiting wireless internet connectivity: 5G vs Wi-Fi 6. Telecommunications Policy, v. 45, n. 5, p. 102127, 2021.

ANATEL. Acórdão nº 61, de 26 de fevereiro de 2021. Requisitos Técnicos para a Avaliação da Conformidade de Equipamentos de Radiocomunicação de Radiação Restrita que operem na faixa de 5.925 MHz a 7.125MHz. 

 

[1] Raul Katz é professor da Columbia University e as estimativas foram apresentadas em Workshop promovido pela Anatel em outubro de 2020.

 

*Carlos Baigorri é conselheiro-diretor na Anatel e relator do Edital do 5G e dos requisitos de técnicos de conformidade para equipamentos de radiação restrita em comunicações sem fio que operam na faixa de 5.925 MHz a 7.125 MHz.

**José Borges da Silva Neto é mestre em Economia e especialista em regulação na Anatel.

 

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O “BR do Mar” ruma para o desenvolvimento da cabotagem https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3427&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-br-do-mar-ruma-para-o-desenvolvimento-da-cabotagem https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3427#comments Sun, 28 Mar 2021 14:54:41 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3427 O “BR do Mar” ruma para o desenvolvimento da cabotagem

Por Diogo Piloni e Silva*, Dino Antunes Dias Batista** e Cléber Martinez***

A navegação marítima é, desde sua origem, considerada uma aventura. Se nos primórdios era a natureza que representava os grandes desafios, hoje são as ondas do mercado que podem afundar empresas e empreendedores. Com efeito, a volatilidade dos custos e fretes marítimos internacionais é mar revolto, que deve ser considerado quando na elaboração de políticas públicas que busquem o desenvolvimento deste modo de transporte. Por outro lado, sabe-se que mar calmo nunca fez um bom marinheiro. Assim, a política deve também trazer novos incentivos, que ampliem a contestabilidade do mercado da cabotagem brasileira.

O BR do Mar é um programa que busca desenvolver a navegação marítima de cabotagem, ampliando a concorrência, mas considerando a necessidade de mitigação dos efeitos negativos da abertura para o mercado internacional. O BR do Mar será implementado com base no Projeto de Lei nº 4.199/2020 que já foi aprovado na Câmara dos Deputados e que se encontra em discussão no Senado Federal.

Existem muitas controvérsias relacionadas ao transporte marítimo. Entretanto, pairam poucas dúvidas quanto a sua relação direta com o desenvolvimento econômico da grande maioria dos países, entendimento corroborado por estudo realizado entre os países membros da OCDE¹. O caráter estratégico que é dado ao transporte aquaviário está relacionado com diversos fatores, como: menores custos de transporte; menores índices de acidentes; menores níveis de emissões de poluentes; e menor dependência de recursos públicos para seu desenvolvimento. Tais fatores correspondem a externalidades positivas proporcionadas pela navegação para toda a sociedade.

Tais externalidades já justificariam políticas públicas voltadas ao setor, como a adoção, pela maioria dos países mais desenvolvidos, de regramentos específicos para o transporte marítimo, em especial para a cabotagem. Entretanto, para uma completa e precisa avaliação é fundamental compreender que, até o momento, não se chegou a um entendimento no âmbito da OMC² para que as práticas concorrenciais deste mercado pudessem ser analisadas pela organização.

Entre os diversos e importantes desdobramentos da desregulamentação das questões concorrenciais para o transporte marítimo internacional, estariam práticas que resultam na já citada volatilidade em termos de disponibilidade de navios e valores de frete, que caracterizam o ciclo econômico específico para o transporte marítimo.

Tal ambiente traz diversos riscos para usuários, impactados diretamente pelas incertezas dos valores de frete, e para os armadores, principalmente na tomada de decisão de investir na constituição de frota, em razão do elevado montante de capital exigido e os longos prazos para amortização. Este contexto leva grandes embarcadores a constituírem frota própria ou, quando possível, firmarem contratos de longo prazo, assegurando previsibilidade de embarque e condições de frete.

Já os pequenos e médios embarcadores, que não possuem demanda suficiente para mobilizar um navio completo, são direcionados para o mercado de contêiner. Esta dinâmica demonstra a relevância deste segmento do mercado para determinadas atividades e justificam o seu histórico de crescimento.

O transporte marítimo de contêineres é tão relevante para o desenvolvimento econômico que muitos países estabelecem regras concorrenciais específicas para o setor. Denominadas imunidades concorrenciais, tais regras possibilitam que empresas do setor atuem de forma coordenada. Entre as razões apontadas para essa tratativa diferenciada estaria a redução dos valores de frete e melhora da qualidade dos serviços, conforme justificado pela Comissão Europeia³ para estender a imunidade concorrencial até 2024.

Por outro lado, a possibilidade de atuação em conjunto das empresas de transporte marítimo de contêiner no mercado internacional estaria relacionada diretamente com a tendência de concentração do mercado, distribuídos atualmente em 3 grandes grupos operacionais, e valores de frete spot que dobram ou triplicam em curto espaço de tempo. A esse respeito, o mercado nacional foi particularmente impactado pelos efeitos da pandemia, sendo que os fretes da China para o Brasil passaram de US$ 2.500/TEU no início de 2020, para quase US$ 10.000/TEU no fim do ano.

Negligenciar estas características pode trazer relevantes consequências negativas, como depreende-se da experiência australiana de flexibilização da cabotagem. No final da década de 90, o governo australiano permitiu a atuação de navios estrangeiros por meio de concessão de licenças de operação, buscando o desenvolvimento da cabotagem. Sem alcançar os objetivos almejados, as restrições para a navegação costeira foram reimplementados em 2012, em uma tentativa de restabelecer o ambiente necessário para o desenvolvimento de frota nacional. O retorno à situação pré-abertura não ocorreu até o momento.

De forma geral, os argumentos relativos à manutenção de solução logística adequada justificam a resistência da maioria dos países em flexibilizar o acesso de embarcações estrangeiras aos seus mercados de cabotagem. Tais resistências permanecem mesmo com os potenciais benefícios econômicos identificados por diversas entidades e estudos, dentre os quais mencionamos o  Rethinking Maritime Cabotage for Improved Connectivity⁴.

O referenciado estudo apresentou experiências de liberalização da navegação, dentre as quais a liberalização da cabotagem entre os países da União Europeia, com a edição do Regulamento nº 3.577/1992, e a liberalização da carga incidental para o mercado de contêineres na Nova Zelândia, que é a possibilidade de reposicionamento de contêineres vazios por navios que atuam no trade internacional. Ressalta-se que o regulamento europeu possibilitou a maior integração marítima entre os países do bloco, mas não evitou a consolidação entre as empresas do setor.

O mesmo estudo apresenta algumas considerações a respeito da cabotagem brasileira, indicando que a regulamentação nacional é comparável à grande maioria dos países avaliados, sendo responsável pela estruturação de serviços de transporte regionais que atenderiam a outros países da região. Cabe destaque sobre a iniciativa de flexibilização da cabotagem chinesa, que passou a permitir que navios de bandeira estrangeira, controlados por empresas chinesas, pudessem operar na cabotagem.

A experiência chinesa corrobora a tendência de internacionalização das frotas, entretanto permanecendo sob controle das empresas sediadas nos países desenvolvidos, conforme demonstrado por publicação da ITF-OCDE/2019⁵.

O referido estudo relata a redução de aproximadamente 50% da frota de navios registrados nos países desenvolvidos, apesar de todas as políticas de subsídios e incentivos tributários existentes. Entretanto, as empresas sediadas nos países desenvolvidos continuam controlando a maior parte da frota mundial, mesmo arvorando a bandeira de outros países.

Diante de toda a complexidade inerente ao mercado de transporte marítimo, agravado pela impossibilidade de implementação de medidas de incentivo utilizadas por outros países, o governo federal estruturou medidas que potencializarão o desenvolvimento da cabotagem, consolidadas no programa BR do Mar. Este objetivo se mostra extremamente desafiador se considerados os dados históricos de redução dos valores de frete da cabotagem, divulgados pela EPL⁶, e de crescimento das atividades publicados pela ANTAQ⁷, neste caso merecendo destaque o crescimento superior a dois dígitos na cabotagem de contêineres nos últimos 10 anos.

Como coração da proposta está um novo regramento para afretamento de embarcações estrangeiras que, se por um lado flexibiliza a navegação de cabotagem brasileira para a utilização de embarcações estrangeiras, reduzindo custos de operação e barreiras a novos competidores no mercado, por outro mantém uma estrutura de incentivos à formação de frota pelas empresas brasileiras de navegação.

Merece destaque, portanto, a possibilidade de navios estrangeiros, com menores custos operacionais, afretados por empresas brasileiras de navegação de uma subsidiaria integral no exterior, operarem na cabotagem brasileira. Esta estruturação pode parecer complexa à primeira vista, mas é uma prática de mercado, conforme apontado pelos estudos da UNCTAD e da ITF/OCDE, supracitados.

O grande diferencial desta proposta é que os navios estrangeiros operados por empresas brasileiras de navegação estariam comprometidos com o atendimento do mercado nacional, “isolados” da dinâmica de volatilidade do mercado externo, e sob regras brasileiras que não permitem as práticas concorrenciais percebidas no mercado internacional, conforme apresentado por estudo publicado pelo CADE⁸.

A operação de navios com menores custos operacionais seria permitida em determinadas operações, ou para empresas que mantenham investimento em frota própria no país, demonstrando vínculo de longo prazo. Assim, busca-se assegurar o ambiente para o investimento em frota e perenidade da disponibilidade das operações de transporte. E mais do que isso: a regularidade de custos de frete, sendo esta a maior demanda apontada pelos usuários do serviço.

Também foi contemplada medida voltada para mitigar as barreiras de entrada no setor, relacionadas aos investimentos necessários para constituição de frota, sendo permitido que empresas de navegação possam iniciar suas operações somente com embarcações afretadas e registradas no Brasil.

Outras medidas que merecem destaque são aquelas voltadas para proporcionar maior efetividade para o uso do AFRMM, assim como a instituição da figura da empresa brasileira de investimento na navegação. Esta atuará de forma semelhante ao que ocorre em outros setores da infraestrutura no Brasil, bem como no mercado de navegação em outros países, viabilizando o investimento em ativos no setor de navegação por instituições gestoras de capital.

A necessidade de simplificação das questões burocráticas é outro ponto de consenso destacado durante as discussões que precederam a estruturação do programa. Neste sentido, a possibilidade de comprovação eletrônica do recebimento de mercadoria é uma importante medida de desburocratização que integra o projeto de lei original. Além disso, a dispensa da livre prática da ANVISA para a navegação doméstica traz mais racionalidade e competitividade para a cabotagem frente a alternativa concorrente, que é o transporte rodoviário, onde não há este tipo de exigência.

A maturidade e equilíbrio das propostas contidas no BR do Mar, implementado pelo Projeto de Lei nº 4.199/2020, foi demonstrada pelo texto aprovado pela Câmara dos Deputados, que contou com diversos aprimoramentos, mas manteve a integridade da estrutura do programa que tramita agora no Senado Federal. E a expectativa é grande para que entre em vigência este novo marco para a navegação entre portos do país, parte relevante de uma revolução em curso na matriz logística brasileira, conduzida pelo Ministério de Infraestrutura.

 

¹The Impacts of Globalisation on International Maritime Transport Activity. Disponível em: https://www.oecd.org/greengrowth/greening-transport/41380820.pdf.

²Decision on Maritime Transport Services S/L/24 (WTO/1996). Disponível em: https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=q:/S/L/24.pdf.

³Antitrust: Commission prolongs the validity of block exemption for liner shipping consortia. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/ip_20_518.

Rethinking Maritime Cabotage for Improved Connectivity. Disponível em: <https://unctad.org/en/pages/PublicationWebflyer.aspx?publicationid=1965>. 

Maritime Subsidies Do They Provide Value for Money? Disponível em: https://www.itf-oecd.org/sites/default/files/docs/maritime-subsidies-value-for-money.pdf.

⁶Boletim de Logística 1° Semestre 2019. Disponível em: https://ontl.epl.gov.br/wp-content/uploads/2020/09/boletim-logistico-1semestre2019.pdf.

⁷Estatístico Aquaviário. Disponível em: < http://web.antaq.gov.br/anuario/.

⁸Cadernos do Cade: Mercado de transporte marítimo de contêineres. Disponível em: http://antigo.cade.gov.br/acesso-a-informacao/publicacoes-institucionais/publicacoes-dee/caderno-mercado-de-transporte-maritimo-de-conteineres-versao-final.pdf.

 

*Diogo Piloni e Silva é especialista em Engenharia e Gestão Portuária e secretário da Secretaria Nacional de Portos e Transporte Aquaviário (Ministério de Infraestrutura).

**Dino Antunes Dias Batista é mestre em Transportes e diretor do Departamento de Navegação e Hidrovias (Ministério de Infraestrutura).

***Cléber Martinez tem MBA em Administração e Finanças e coordenador no Departamento de Navegação e Hidrovias (Ministério da Infraestrutura).

 

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A nova lei de licitações é mais eficiente economicamente? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3424&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-nova-lei-de-licitacoes-e-mais-eficiente-economicamente Mon, 15 Mar 2021 14:22:58 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3424 A nova lei de licitações é mais eficiente economicamente?

Por Eduardo Pedral Sampaio Fiuza[1]

 Introdução

Em votação relâmpago, o Senado aprovou o PL 4253/2020, o qual nada mais é que o Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei destinado a substituir, no decurso de dois anos, a nada saudosa Lei 8.666 — que vem regendo as licitações e contratações públicas brasileiras desde 1993 –, bem como os seus “puxadinhos”, que vêm regendo respectivamente os pregões (Lei 10.520/2002) e o Regime Diferenciado de Contratações Públicas -RDC (Lei 12.462/2011). Antes do fechamento deste artigo, foi a plenário um parecer da Mesa Diretora para ajustes de redação previamente ao envio à Presidência da República para sanção. É desta versão final do Senado que agora trato, tendo a consciência de que outras alterações podem vir na forma de vetos da Presidência da República, os quais, por sua vez, podem ser em parte reexaminados e eventualmente revertidos pelo Congresso.

O anticlímax na votação morna pode ter sido capaz de obnubilar a cobertura jornalística do desfecho de tão longo processo de tramitação, que começou em 2007[2] e passou duas vezes por cada uma das duas Casas Legislativas. Mas as redes sociais pululam de convites para lives com os maiores juristas especializados em licitações, oferecendo análises com maior ou menor grau de profundidade sobre as mudanças implementadas.

O debate ocorrido nas duas Casas Legislativas foi muito frutífero e produziu grandes avanços na legislação de contratações públicas brasileira. A despeito disso, a peça legislativa aprovada ainda ficou aquém do necessário para ser considerada uma legislação verdadeiramente moderna e trazer maior agilidade, produtividade e competitividade às licitações e contratações brasileiras.

De fato, a despeito dos avanços alcançados até agora, são preocupantes alguns artigos que, ou cristalizam em lei regulamentações que até hoje vinham sendo aperfeiçoadas com maior rapidez por decretos ou outras normas infralegais, ou simplesmente andam na direção contrária à liberalização econômica que o País vem buscando empreender nos últimos anos.

Tendo participado ativamente – ainda que majoritariamente à distância, mas o suficiente para ver diversas sugestões de texto acolhidas pelas relatorias – das discussões sobre os impactos econômicos previstos em cada alteração trazida pela nova Lei, fui convidado por este site a consolidar aqui os pontos que resumem a minha visão sobre o conjunto da nova peça legislativa, utilizando do ferramental de análise microeconômico, que, por vezes, destoa das interpretações jurídicas. Sobre este mister ora me debruço, aproveitando-me principalmente das quatro notas técnicas, dois Textos para Discussão, três capítulos de livros e um artigo de periódico que escrevi, de 2009 a 2020, em sua maioria na companhia de ilustres coautores.

Maximalismo

Para começar, faço coro a vários renomados juristas no refrão de “Menos Lei e Mais Regulação Infralegal, por favor”. Em todas as minhas contribuições, defendi uma lei enxuta e a remissão de numerosos detalhes a regulamentações posteriores.

A nova lei tem 179 artigos em seu núcleo, mais outros 14 artigos contendo disposições transitórias. Esse excesso de detalhes consolida uma tendência maximalista da legislação do tema. Só para ficar nos últimos dois diplomas legais (os únicos do século XX exclusivamente versando sobre licitações), o Decreto-Lei 2300/1986 tinha 90 artigos, e a Lei 8666/1993 contém 126. Além disso, com esse inchaço, a nova Lei esvazia ainda mais as competências regulatórias dos entes subnacionais para essa matéria.

Países vizinhos ao Brasil, com ordenamento jurídico baseado no Direito Romano, e que passaram nos últimos dez anos por revisões de suas legislações de compras públicas em conformidade com recomendações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), têm legislações bem mais enxutas, deixando para seus regulamentos (exarados pelo Poder Executivo) o maior detalhamento de procedimentos – ver Tabela 1. Na direção oposta, o Brasil incorporou ao texto legal vários detalhes que antes eram regulamentados por diferentes decretos. É o caso do Sistema de Registro de Preços e do pregão eletrônico. Outros detalhamentos — que sempre me esforcei sem sucesso para convencer os legisladores a deixar de fora da lei — dizem respeito aos modos de disputa – embora tenha de reconhecer que houve grandes avanços no leque de modalidades oferecido pela lei.

TABELA 1

GRAU DE DETALHAMENTO DAS LEIS E REGULAMENTOS EM PAÍSES LATINOAMERICANOS DA OCDE

País Ano da última lei ou alteração Artigos permanentes Artigos transitórios Regulamento
Chile 2018 39 11 29+1
Colômbia (duas leis) 2020 80+33 1 162
México 2020 86 5 137

Fonte: elaboração própria, a partir de buscas na Word Wide Web.

De fato, o texto aprovado, ao consolidar três leis anteriores (a Lei 8666/1993, a Lei 10.520/2005 e a Lei 12.462/2011), trouxe ainda elementos do Decreto 7.892/2013, com conteúdo regulamentar sobre procedimentos. Essa riqueza de detalhes torna-se, também, uma fraqueza, na medida em que cristaliza regras que não são baseadas em evidências e são mais difíceis de reverter, requerendo a aprovação de novos projetos de lei ou medidas provisórias. Os trabalhos que já publiquei, em sua maior parte com a coautoria de colegas, sempre defenderam que se deveria deixar o máximo de regulamentação para peças infralegais, e mais abaixo saliento alguns trechos que bem poderiam ser removidos da lei para facilitar essa regulamentação dentro do que há de mais moderno em contratações públicas no mundo.

Inovações

Vamos em seguida destacar as principais inovações do PL 4253 e, a partir do que já foi propugnado e discutido em obras anteriores, situar o leitor sobre seus impactos econômicos esperados.

Como pano de fundo, tentemos ver a floresta, em vez das árvores. Fortini e Amorim[3] fazem uma descrição mais “panorâmica” das mudanças efetuadas. Eles distinguem cinco grandes eixos temáticos em que a nova lei se destaca. O primeiro é a promoção da governança das contratações. O segundo eixo é o da profissionalização dos recursos humanos. O terceiro é o da impulsão ao planejamento das contratações. O quarto é o da absorção das tecnologias da informação e comunicação. O quinto é o do fortalecimento da prevenção a fraudes.

Além dos cinco eixos apontados acima, existem ainda outras dimensões de grande importância: o processo composto de seleção e adjudicação e o grau de coordenação em compras.

Vejamos abaixo cada uma dessas dimensões.

Governança

No que diz respeito à governança, a pregação econômica em favor do uso de seguros-garantias teve uma vitória parcial, na medida em que o art. 99 do PL permite que o edital exija a prestação da garantia na modalidade seguro-garantia em obras, o que é um avanço significativo. Mas este poder deveria ser prerrogativa da Administração, fosse qual fosse o objeto. Ainda perdura a prerrogativa do contratado em escolher o tipo de garantia para a maioria das outras obras. Foi incorporada à Lei principal uma importante inovação: A matriz de risco (art. 22) foi trazida da Lei do RDC – aliás, pela Lei 13.190/2015, que a introduziu no texto-base do RDC, art.9, § 5º — e foi mais detalhada na nova Lei. Nela são atribuídos às partes do contrato os riscos que cada uma tem maior poder de mitigar, como sabiamente ensina a Teoria Econômica de Contratos. O excessivo detalhamento, no entanto, é mais um que poderia ter sido deixado para regulamento.

É claro que a melhor ou pior governança contratual afeta o processo seletivo e por ele é retroalimentada. Tome-se o exemplo dos lances chamados inexequíveis. O art. 59 prevê que “serão desclassificadas as propostas que (…) III – apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação”; e que “§ 4º No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração”. Ao mesmo tempo, porém, prevê que “§ 5º Nas contratações de obras e serviços de engenharia, será exigida garantia adicional do licitante vencedor cuja proposta for inferior a 85% (oitenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração, equivalente à diferença entre esse último e o valor da proposta, sem prejuízo das demais garantias exigíveis de acordo com esta Lei.”

O § 5º já deixa claro que pode ser sanada a “inexequibilidade da proposta”, que, como está definida no § 4º, é uma caracterização meramente baseada em estatística, sem nenhum mérito de revisão da técnica proposta pelo licitante. Portanto é um contrassenso desclassificar um licitante pelo § 4º se ele pode se defender pelo § 5º — que permite a defesa para preços abaixo de 85% do valor de referência, e isso inclui todos os casos particulares dos preços abaixo de 75%. Essa lamentável incongruência jurídica só pode dar margem a questionamentos judiciais, aumentando a judicialização das licitações, que é justamente uma das coisas que a nova Lei pretende evitar. Foi absolutamente infeliz a manutenção de dois parágrafos tão conflitantes quanto esses dois.

Ora, o § 5º é um avanço para a legislação. Como já insisti antes (Fiuza e Medeiros, 2014; Fiuza, Pompermayer e Rauen, 2019), o mais importante é fornecer as garantias, em particular o seguro-garantia com step in das seguradoras. Em particular, na primeira dessas notas técnicas (pp. 70-71), dissemos o seguinte: 

“De fato tende a ser complexa a distinção entre uma proposta boa para a administração pública, na qual o desconto em relação ao preço de referência foi significativo, e uma proposta cujo preço é inexequível ou levará a descumprimento contratual. 

Criar critérios de inabilitação mais rígidos nas licitações públicas poderia melhorar o índice de execução dos contratos. Ao mesmo tempo, correr-se-ia o risco de se descartarem propostas que eventualmente sejam as mais desejadas pelo poder público, por exemplo quando há inovações tecnológicas que permitam a redução significativa do preço em relação ao de referência. 

Uma forma de encaminhar essa questão seria propor a progressividade do percentual a ser segurado. Quanto maior o desconto na licitação em relação ao preço de referência, maior teria que ser a garantia – dentro da lógica em que a redução do valor em relação à referência aumenta o risco de inadimplemento contratual. Desta forma, haveria compatibilidade entre risco e retorno: uma contratação por valor mais baixo tende a ter um risco mais alto. Portanto, uma garantia de execução mais abrangente. 

Essa proposta é também interessante para enfrentar uma tendência de concessão de descontos exagerados. Como os órgãos de controle cada vez mais olham com desconfiança processos licitatórios que não sejam concluídos com desconto sobre o preço de referência, o incentivo da administração é sobre-estimar o valor de referência e o incentivo aos licitantes é conceder descontos mesmo em licitações em que o preço de referência foi bem calibrado. Nesse caso, a progressividade das garantias passa a ser ainda mais interessante, posto que os descontos exagerados levam a maiores riscos de inadimplemento contratual. 

Vale notar que o Art. 57 do Substitutivo [da Câmara, antes da aprovação final] ainda insiste na desclassificação de propostas “manifestamente inexequíveis”, mas cria uma zona cinzenta na qual os licitantes pouco acima do valor de corte por inexequibilidade ainda têm que apresentar garantias adicionais.”

Em seguida, reproduzimos a redação então proposta na Câmara dos Deputados, de uma complexidade extremamente confusa:

Art. 57. Serão desclassificadas as propostas que (…):

III – apresentarem preços manifestamente inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação; (…)

§ 4° No caso de obras, consideram-se manifestamente inexequíveis as propostas cujos valores sejam inferiores a 80% (oitenta por cento) do menor dos seguintes valores:

I – média aritmética dos valores das propostas superiores a 80% (oitenta por cento) do valor orçado pela Administração;

II – valor orçado pela Administração.

§ 5º Antes de concluído o julgamento das propostas, o licitante poderá demonstrar falhas no cálculo do valor estimado da contratação, que possam impactar na análise da exequibilidade da proposta.

§ 6º Dos licitantes classificados na forma do § 4º que houverem apresentado proposta com valor global inferior a 85% (oitenta e cinco por cento) do menor dos valores a que se referem os incisos do § 4º, será exigida, para assinatura do contrato, prestação de garantia adicional, sem prejuízo das demais garantias exigíveis de acordo com esta Lei, igual à diferença entre o valor da proposta e o menor dos valores a que se referem os incisos do § 4º.

§ 7º A garantia adicional referida no § 6º deverá ser apresentada pelo licitante no prazo de 10 (dez) dias úteis do ato de classificação, sob pena de desclassificação de sua proposta.

Nossa proposta desde aquela época era muito mais clara e eficaz, e pode ser implementada em regulamento, mantendo-se a redação final aprovada no Senado, com a única exceção desse infeliz § 4º. O que propusemos foi o seguinte:

“A regulamentação posterior da Lei poderia perfeitamente disciplinar que essa garantia fosse provida em alíquota superior à das demais garantias exigíveis. Mas note-se que aqui propomos que qualquer desconto em relação ao preço de referência seja objeto de garantia em “dose superior”.

Podem ser previstas regras de proporcionalidade entre o desconto do licitante vencedor em relação ao preço de referência do edital e o valor a ser garantido por meio de seguro-garantia.

Profissionalização

No que diz respeito à profissionalização, Fortini e Amorim (op cit) avaliam que o PL requer da alta administração a promoção da gestão por competências, a exigência da avaliação da estrutura de recursos humanos, a identificação das competências necessárias para cada função e a definição clara das responsabilidades e dos papéis a serem desempenhados e, ao final, seleção e designação de agentes públicos que tenham conhecimentos, habilidades e atitudes compatíveis, sem prejuízo das avaliações de desempenho (arts. 7º e 8º, § 3º, do PL).

Na minha avaliação, porém, a maior frustração com o texto final é que ele ficou aquém de criar ou, ao menos, sugerir uma carreira própria a partir de profissionais com experiência na atividade, o que dependerá muito mais de cada Administração (nas esferas federal, estadual e municipal) em suas respectivas reformas administrativas.

Planejamento

O planejamento das contratações, fundamental para a consolidação e racionalização das compras nas várias esferas administrativas, e que era uma recomendação minha e de vários analistas externos, ganhou espaço na nova Lei: as unidades administrativas poderão ter Planos Anuais de Contratação. Embora a Lei ainda lhes faculte a opção de não elaborar tais planos, vale lembrar que o Poder Executivo Federal já se antecipou à Lei em 2019 e publicou uma Instrução Normativa (1/2019) obrigando as suas unidades administrativas a submeter tais planos.

Tecnologia

Quanto à absorção das tecnologias de informação e comunicação, é verdade que a Lei manda que os processos sejam digitais (art. 12, inciso VI) e os certames também (art. 17, § 2º). Outros elementos, como acompanhamento de obras, modelos de engenharia e obras, e catálogo de padronização de bens e serviços (art. 19), audiências públicas (art. 21), publicação de edital (arts. 31 e 97), submissão de documentos (art. 67) também passam a ser preferivelmente eletrônicos.

OK, os certames passam a ser preferencialmente eletrônicos (art. 17, § 2º), mas somente preferencialmente — o que significa que o órgão contratante ainda tem algumas situações em que pode evocar a necessidade de um certame presencial. Como exaustivamente discutido em notas técnicas anteriores, nenhuma delas realmente justifica a necessidade de um certame presencial, pois já se sabe, tanto por experiência prática quanto por estudos teóricos, que a melhor maneira de desarticular cartéis de licitações é manter a identidade dos licitantes ocultada, pelo menos, até a adjudicação do objeto – lembrando que os pregões eletrônicos federais não seguem essa orientação plenamente, pois as identidades dos licitantes são reveladas ainda na fase de aceitação. A gravação em áudio e vídeo nos casos de certames presenciais, nas condições tecnológicas atuais, é insuficiente para o uso de muitas das técnicas de detecção de cartéis disponíveis.

Quanto à prevenção de fraudes, outro tema que abordei em notas técnicas, ela passa pela difusão de políticas de integridade (tanto de fornecedores como das unidades administrativas), transparência e controle de conflitos de interesse dos agentes de compras. A nova Lei, no entanto, prefere colocar os órgãos de controle diretamente e preventivamente dentro dos processos de compras, fazer treinamentos, etc. Essa visão de que o órgão de controle sabe mais que o próprio agente de compras advém, como tanto faço questão de repisar, da baixa valorização do pessoal engajado em compras, sem carreiras definidas, sujeito a todas as penalidades mas a nenhum reconhecimento verbal nem monetário, em contraste com as carreiras de auditores e analistas de controle, que estão entre as mais bem pagas de todo o Serviço Público. Enquanto não houver um fortalecimento dos quadros e carreiras desta atividade, a presença do órgão de controle continuará pairando como uma ameaça constante e aterradora dos pobres e mal formados agentes de compras.

Seleção e adjudicação

Em primeiro lugar, a inversão de fases, que já existia no pregão e tinha sido ainda mais flexibilizada no RDC, passa a ser a regra, enquanto a habilitação antes do certame passa a ser a exceção (art. 17, § 1º) – essa mudança, ao ser estendida à modalidade concorrência, reduz a incidência de impugnações e recursos direcionados a licitantes que sequer apresentam propostas competitivas. Essa inversão de fases não é, porém, uma vacina infalível contra o uso de impugnações como parte da estratégia de cartéis em afastar licitantes de fora dos seus esquemas.

Ao percorrermos a lei, como não lamentar o excesso de outros detalhes? Vejamos, por exemplo, o cálculo do valor estimado da compra: o artigo 23 lista sistemas específicos mantidos pelo Poder Executivo. O que acontece se o Executivo desenvolver um sistema melhor ou, ainda mais, unificar vários sistemas num só? Deve-se reformar a Lei? Para que trazer tal informação em Lei? Por que a melhor estimativa é uma mediana? Isso vale sempre?

E as modalidades de licitação? Ora, conseguimos enxugar a lista de modalidades de compras (convite, tomada de preço e concorrência) que, originalmente, apenas variavam no grau de restrição, publicidade e prazo de divulgação, mas se resumiam todas (as da Lei 8666) a leilões de envelopes fechados presenciais com habilitação prévia, e praticamente se descartava o critério de adjudicação de técnica e preço, ao limitá-lo a um segmento muito específico dos bens e serviços. Agora todas as modalidades de compras anteriores podem ser resumidas numa só: a concorrência. A manutenção do nome, a meu ver, pode até causar confusão, pois durante dois anos a lei atual e a nova estarão em vigência simultaneamente, e não é difícil imaginar que, por mais que o instrumento convocatório deixe explícita qual lei estará sendo aplicada, sempre haverá a chance de que alguma parte do edital ou outra lei se refira a concorrência ambiguamente.

Mas não é só isso. O pregão foi mantido como modalidade à parte (ela não fazia parte do rol de modalidades original da Lei 8666), embora tenha se tornado tão somente um caso especial da concorrência. O pregão continua destinando-se a bens e serviços comuns, mas passa a poder ter inversão de fases. Curiosamente, não está escrito em nenhum lugar da lei explicitamente que ele não possa ter critério de julgamento diferente do menor preço ou maior desconto. A exclusão é indireta, na medida em que o caput do art. 29 que o objeto a ser licitado deve “possuir padrões de desempenho e qualidade que possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais de mercado”, e o parágrafo único do mesmo artigo diz que ele não se aplica a contratações de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual e de obras e serviços de engenharia (com a exceção dos serviços “comuns” de engenharia). A lista de situações em que se pode aplicar o critério de julgamento de técnica e preço (art. 36) procura sempre enfatizar o caráter de “especial”, “específico” ou que não possa ser definido de maneira objetiva, o que, em tese, afastaria o uso do pregão. Vale notar que esse critério deve ser escolhido “quando o estudo técnico preliminar demonstrar que a avaliação e a ponderação técnica das propostas que superarem os requisitos mínimos estabelecidos no edital forem relevantes aos fins pretendidos” (art. 36, § 1º).

Mas isso não faz a menor diferença, pois a concorrência tem rigorosamente o mesmo rito do pregão (arts. 18 e 29).  A grande vantagem de se usar a concorrência é, portanto, a possibilidade de adotar critérios de julgamento diferentes do menor preço ou maior desconto. Seria mais fácil e direto, portanto, regular que os bens e serviços comuns devessem ser licitados por menor preço ou maior desconto, e os especiais e “diferenciáveis” por técnica e preço, em vez de se criarem modalidades “separadas”.

O compartilhamento de um mesmo rito procedimental entre a concorrência e o pregão se estende à escolha da fase de disputa, na medida em que a Lei é muito, muito restritiva a como as propostas são apresentadas: ou são apresentadas na forma fechada (disputa fechada) ou em lances sucessivos (disputa aberta). Como insisti ad nauseam em três notas técnicas, essa restrição é descabida. O art. 28, § 2º proíbe a criação de novas modalidades – diga-se de passagem, a antiga lei 8666 tinha a mesma vedação e, no entanto, o pregão e o RDC foram criados por leis subsequentes —, o que não seria uma restrição ativa se fosse possível inovar nas formas de disputa. Em verdade, a restrição está no art. 56, que descreve as formas de disputa aberta e fechada e, numa infeliz decisão dos deputados confirmada pelos senadores, impõe-se a realização de ao menos uma fase de disputa aberta:

Art. 56. O modo de disputa poderá ser, isolada ou conjuntamente: 

I – aberto, hipótese em que os licitantes apresentarão suas propostas por meio de lances públicos e sucessivos, crescentes ou decrescentes;

II – fechado, hipótese em que as propostas permanecerão em sigilo até a data e hora designadas para sua divulgação.

§ 1º A utilização isolada do modo de disputa fechado será vedada quando adotados os critérios de julgamento de menor preço ou de maior desconto.

 Ora, como fartamente exposto nas Notas Técnicas de que participei (Fiuza, Pompermayer e Rauen, 2019; Fiuza e Rauen, 2019), é uma ilusão achar que a disputa aberta aumenta a concorrência. A teoria e a evidência empírica não dão suporte a essa afirmação. Pelo contrário, organismos multilaterais, como a OCDE e o International Competition Network são bastante claros em suas recomendações para combate a cartéis de licitações: o modo de disputa fechado é o mais indicado. Isso porque ele não dá chance para os membros de um cartel se defenderem de “invasores” (isto é, concorrentes sérios, não ligados ao esquema criminoso) que entram no cartel de última hora, desde que o certame proteja o anonimato dos licitantes (o que só é possível se for garantida a obrigatoriedade do certame eletrônico). Os certames com disputa fechada atualmente regulados pela Lei 8666 são eivados de risco de conluio porque são presenciais, e não porque a disputa é por envelopes fechados. Os licitantes que participam de esquemas fraudulentos podem reagir à presença de membros externos através da guerra de impugnações ou, simplesmente, trocando o envelope que será entregue, ao perceberem a presença de concorrentes de fora do esquema. Isso não é possível no certame eletrônico com inversão de fase de habilitação, como disposto no PL 4253 em comento.

Mesmo o pregão presencial, que foi criado antes do eletrônico, tem uma fase de disputa aberta que parece gerar algum tipo de concorrência, mas vale lembrar que, racionalmente, sabendo que há essa fase aberta, os licitantes são menos agressivos em suas propostas iniciais. Só não são menos ainda porque o pregão presencial tem um limite no número de participantes que progridem para a fase de disputa aberta. Mas, mesmo introduzindo essa regra de progressão no pregão eletrônico por decreto, ela não é invulnerável a esquemas fraudulentos. Por exemplo, um cartel de licitantes pode dar propostas iniciais de cobertura bem próximas à do ganhador designado pelo cartel para dificultar a progressão de algum licitante externo ao cartel. É bom notar, também, que a Secretaria de Gestão do Ministério da Economia, que tanto apoiou a fase aberta, produziu o texto do Decreto 10.024/2019. Ao reconhecer que o modelo anterior tinha falhas – no caso, foi reconhecido que a regra de fechamento do pregão era ineficiente – uma das soluções encontradas e propostas foi… fazer mais uma disputa fechada! (copiando, aliás, a ideia do caput e inciso I do art. 59).

Feitas essas considerações sobre formas de disputa, notemos agora que, no fundo, passamos a ter apenas quatro modalidades bem distintas: concorrência (que inclui o pregão), o concurso, o leilão e o novo diálogo competitivo.

O concurso e o leilão não diferem significativamente de como eles eram antes. Embora se presuma que o critério de julgamento de melhor técnica ou conteúdo artístico se aplique tão somente aos concursos, em nenhum momento isso é explicitado. “Maior lance”, no jargão dessa lei, se refere a lances dados apenas em leilões (de venda), embora na ciência econômica os termos “lance” e “leilão” possam ser aplicados com referência tanto a compras (leilão reverso) como a vendas.

O diálogo competitivo é a grande novidade desta Lei, e se inspira na modalidade homônima da União Europeia. Ela começa pela publicação de um edital contendo a necessidade do órgão contratante que deve ser atendida. Os interessados se inscrevem e são pré-selecionados segundo critérios dispostos no edital. Podem ser feitas várias rodadas de consultas estritamente bilaterais e sigilosas entre o órgão contratante e os interessados pré-selecionados para que aquele identifique uma solução que atenda à necessidade apresentada. Esta solução escolhida passa a ser, em seguida, o objeto de novo edital, com “critérios objetivos a serem utilizados para seleção da proposta mais vantajosa”. Essa modalidade só deve ser aplicada em algumas situações especificas, envolvendo algum tipo de inovação, incerteza sobre a melhor solução a ser aplicada para atender às necessidades, ou mesmo a adaptação das soluções disponíveis no mercado.[4]

Mas mesmo aqui volta a crítica sobre a vedação de novas modalidades. No próprio artigo 32, abre-se a possibilidade de usar o diálogo competitivo a situações em que a Administração “III – considere que os modos de disputa aberto e fechado não permitem apreciação adequada das variações entre propostas”.

Ora, o diálogo competitivo é uma modalidade de licitação voltada para contratações nas quais a Administração não tem condições de definir por si só a solução para as suas necessidades, e não para suprir deficiências nos modos de disputa. Eu sugeri ao longo da tramitação dessa Lei muitos outros modos de disputa, tais como leilão de relógio, proxy, relógio-proxy, combinatório e, no entanto, nenhum deles foi acolhido pelas relatorias. Eles são modos de disputa bastante utilizados em leilões de concessões mundo afora, e as contribuições dos Profs. Robert Wilson e Paul Milgrom para a elaboração dessas modalidades foram recentemente agraciadas com o Prêmio Nobel de Economia 2020. Não obstante essa repetida insistência, o pouco conhecimento da Teoria dos Leilões no meio jurídico aparentemente impediu a difusão dessas inovações.

Os leilões de relógio não deveriam ser enquadrados, a princípio e a rigor, nem como disputa aberta nem fechada. Os leilões proxy ainda poderiam, com uma dose de boa vontade, ser entendidos como uma extensão da disputa aberta, pois os licitantes recorrem a uma parametrização que vincula os lances dados por robôs da própria plataforma de leilão. Os leilões combinatórios podem ser aplicados tanto em disputa fechada como aberta ou em disputa proxy, portanto entendo que podem ser introduzidos por regulamento posteriormente. Mas eles também poderiam ser aplicados a leilões de relógio, que, em tese, não estão previstos na Lei. A combinação entre relógio e proxy também seria inviabilizada. Existem ainda leilões pay-as-you-go, em que o valor unitário varia de acordo com a quantidade adquirida.

Em resumo: se a limitação dos modos de disputa é um problema, então seria melhor a Presidência baixar uma Medida Provisória com um novo inciso no art. 56 que abrisse a possibilidade de se criarem novos modos de disputa. Se não é para chegar a tanto, é melhor remover o inciso III do art. 32. O ponto, novamente, é que melhorias pontuais no funcionamento do pregão e da concorrência restam dificultadas porque a Lei é detalhada demais.

Outro problema sério que aparece nos critérios de julgamentos são as distorções causadas pelo que é conhecido na literatura econômica como bid preferences: pensadas como aplicações de funções regulatórias das licitações, essas visam obter outros objetivos além de obter o maior valor (ou, na linguagem econômica, maior “utilidade”) pelo preço pago – correspondente aos critérios de melhor técnica e de técnica e preço — ou o menor preço, sujeito a um nível mínimo de qualidade – correspondente aos critérios de menor preço e de maior desconto. Essas preferências funcionam de duas maneiras principais:

  • Em uma, elas destinam parcelas das compras a fornecedores de um grupo específico – aqui se enquadram os lotes (itens) exclusivos para micro e pequenas empresas e um bom número de incisos do artigo 75 que definem os casos em que se prevê o uso da dispensa de licitação para determinados tipos de fornecedores;
  • Em outra, elas distorcem os preços relativos entre os licitantes, de modo que o melhor lance ao final do certame não necessariamente é o vencedor – nessa classe se enquadram as margens de preferência puras e simples (conhecidas na literatura econômica como bid subsidies) e o chamado empate ficto, que dá a chance à micro ou pequena empresa de cobrir o melhor lance se a diferença entre este e o seu lance estiver abaixo de uma certa margem de desconto.

 Como exaustivamente argumentado em notas técnicas e em um Texto para Discussão (Fiuza e Medeiros, 2014), a maioria das previsões de dispensa de licitação para contratação de fornecedores específicos é resultado da ação de lobbies dos segmentos beneficiados. Tome o exemplo de um fornecedor que tem uma atividade de recuperação de presos pelo trabalho ou de integração de deficientes. Existem várias ONGs e empreendimentos sociais que atendem a esse critério, mas, se a Administração selecionar um único que seja ao seu bel prazer, e conseguir justificar o preço, essa ONG ou empresa não terá que concorrer com outras comparáveis, nem por preço nem por qualidade.

Outras previsões de dispensa são situações de inexigibilidade mal classificadas, compras de emergência, serviços especializados ou que podem comprometer a segurança nacional, e para a maioria delas se poderia introduzir alguma competição. Por exemplo, em outro Texto para Discussão, eu e outros colegas (Fiuza et al, 2020) alegamos que um sistema de registro de preços mais amplo permitiria aos órgãos da Administração introduzir concorrência numa primeira fase, criar um cadastro de fornecedores e acioná-los para rápida entrega com um procedimento tão célere quanto uma dispensa, com bastante transparência, e dando-lhes incentivos a ser agressivos nas condições oferecidas, tanto na primeira como na segunda fase – ver mais sobre o assunto abaixo. Mas, infelizmente, os lobbies venceram, e temos agora uma lei com ainda mais situações de dispensa e inexigibilidade que a anterior.

Quanto aos lotes exclusivos, conhecidos na literatura econômica como set asides, para Micro e Pequenas Empresas, essa prática é bastante difundida em outros países. As avaliações de impacto dessas políticas têm trazido resultados mistos, portanto não se pode descartá-los – de fato, é um tema da minha agenda de pesquisa atual, e em breve espero trazer alguns resultados preliminares, juntamente com uma resenha da experiência internacional digna do nome.

As margens de preferência em favor da produção nacional foram duramente criticadas em minhas notas técnicas, pois: (i) até hoje não foi demonstrada a eficácia das margens de preferência praticadas em observância da Lei 13.249/2010, para produtos nacionais; (ii) vão contra o esforço do Brasil em aderir ao Acordo de Compras Governamentais da Organização Mundial do Comércio[5]. Margens de preferência regionais poderiam ser até mesmo consideradas inconstitucionais por ferirem a vedação à preferência entre brasileiros — art.19, III, da Constituição.

De fato, com relação ao inciso I e § 5º: como fartamente exposto nas Notas Técnicas que coautorei, a margem de preferência vai de encontro ao esforço do Brasil em aderir ao Acordo Plurinacional de Compras Governamentais da Organização Mundial do Comércio, um acordo que tem o potencial de aumentar a concorrência pelos contratos governamentais e a transparência nas contratações, e assim reduzir o espaço para corrupção e cartelização dos mercados de compras governamentais brasileiros. O pedido de acesso foi feito em 2020!

Além disso, algumas Notas Técnicas têm relembrado que as poucas evidências disponíveis sobre a política brasileira de margens de preferência apontam para uma intervenção de baixa transparência (Rauen, 2016; Rauen, 2017). De fato, auditorias conduzidas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) — Processo 016.783/2013-1 comprovam a falta de transparência e accountability social. Mesmo assim e apesar de existirem determinações do TCU, foram criadas e renovadas margens para, por exemplo, brinquedos. A referida política transformou-se em paradigma da falta de transparência e total descaso com a legislação e com os recursos públicos. Adicionalmente, recentemente as margens de preferência foram contestadas pela OMC.

Dos poucos estudos de avaliação realizados (mesmo que a legislação tenha exigido avaliações anuais), e que não estão disponíveis em nenhum site do Poder Executivo, não se pode concluir nada a respeito dos critérios de escolha dos produtos, serviços e setores beneficiados (muito embora seja evidente que o setor de brinquedos, um dos beneficiados, não deve ser prioritário no desenvolvimento nacional). Finalmente, o único documento disponível que trata dos impactos ex post não apresenta o uso efetivo da intervenção e sim, o infere a partir de suposições.

Além da ausência de transparência, a política das margens de preferência foi estabelecida sem a devida tradução para o sistema federal de compras. Os decretos das margens apresentavam os produtos e serviços em termos da Nomenclatura Comum do MERCOSUL – NCM, mas até hoje não se tem notícia de um conversor – oficial e amplamente divulgado – entre os códigos NCM e o CATMAT e CATSER empregados pelo sistema federal de compras. Consequentemente, não se sabe exatamente quem utilizou as margens ou mesmo, como elas poderiam ter sido utilizadas na ausência de tal conversor oficial.

Dada a insistente baixa transparência (em que pesem os esforços do TCU), associadas à ausência de informações de uso concreto e a ausência de critérios de seleção de setores, produtos e serviços beneficiados, bem como de uma análise de seu custo real, não se justifica a insistência em tal intervenção. De fato, a política brasileira de margens de preferência parece estar muito mais associada ao lobby de setores específicos do que ao estabelecimento criterioso de prioridades.

Note-se que margens de preferência não são a única maneira praticada pelo Brasil de beneficiar fornecedores locais: a legislação atual permite o desempate com base na produção doméstica ou em tecnologia desenvolvida no País. Os próprios benefícios a micro e pequenas empresas (cotas, lotes exclusivos e empate ficto) e preferências ligadas à adesão ao Processo Produtivo Básico (PPB) – notadamente para produtos de tecnologia da informação e comunicações no Plano Nacional de Banda Larga – acabam sendo apropriados por empresas brasileiras.

Finalmente, é importante lembrar que, apesar de existir previsão legal para o uso de margens, atualmente todos os decretos que as estabelecem venceram. Ou seja, atualmente nenhuma margem de preferência está em vigência (e a indústria brasileira continua existindo).

O efeito mais provável dessa nova tentativa é o aumento dos custos para a Administração sem contrapartida para a sociedade. Esse aumento de custos derivará da redução da concorrência e possível cartelização dos mercados onde ela incidir. O veto integral dos Incisos I e III e dos §§ 3º ao 5º (e seus incisos) do art. 26 é, portanto, o melhor que se poderia pensar para esta matéria.

Coordenação em compras

Para não perder o hábito, os legisladores trataram de trazer para a nova lei regulamentações até então infralegais em mais um aspecto das compras públicas:  o chamado sistema de registro de preços. Esse sistema permite, não só que a Administração pública contrate inicialmente apenas a opção da compra e depois tenha um prazo para exercê-la, como também permite agregar as compras de diversas Unidades Administrativas. O mesmo Texto para Discussão de Fiuza et al (2020) já mencionado faz um breve retrospecto histórico do uso de compras desse tipo e suas regulamentações ao longo da história brasileira.

No presente momento, a regulamentação é feita pelo Decreto 7.892/2013. A nova lei, no entanto, em seu artigo 81, traz uma detalhada regulamentação do Sistema de Registro de Preços. Ao mesmo tempo que traz novidades interessantes, como a possibilidade de um mesmo fornecedor cobrar preços diferentes de compradores diferentes, o artigo faz restrições sobre quantitativos, sobre o critério de julgamento e até mesmo veda a cobrança de preços diferentes de fornecedores diferentes a um mesmo comprador. O resultado final é nitidamente danoso ao interesse público, pelo engessamento que causa no SRP.

Em verdade, a rigor, o único texto desse artigo que deveria permanecer seria o § 5º e seus incisos, que dizem que o SRP pode ser usado para a contratação de bens e serviços, inclusive obras e serviços de engenharia, e estipula as condições. Todo o resto poderia ser tratado por decreto, pois é puramente procedimental.

A sua previsão em lei impediria modelar procedimentos que podem usar a dinâmica similar aos acordos-quadro (ou convênios-marco), e, em particular, o Sistema de Aquisições Dinâmicas, em vigor em outros países e que trazem mais agilidade para as contratações. O já referido Texto para Discussão de Fiuza et al (2020) dá vários exemplos da potencialidade dos acordos-quadros. Em particular, o Acordo-Quadro permite que a Administração conte com vários fornecedores aptos, dos quais a Unidade Administrativa pode cotar preços sujeitos a um teto e com condições mínimas de garantia e qualidade previamente homologados numa fase de pré-seleção, o que agiliza compras em situação de emergência. A redação aprovada para o sistema de registro de preços inviabiliza isso:

  1. reduz a licitação ao critério de menor preço ou maior desconto;
  2. obriga os fornecedores a igualar preço do vencedor.

Note que o PL prevê que também é possível fazer registro de preços por meio de contratação direta. Isso significa que, para valores pequenos, também a modalidade ou a dispensa seriam mais ágeis, pois o fornecedor já teria passado por todos os trâmites de habilitação e a contratação seria mais rápida. Mas mesmo compras sujeitas a licitação seriam beneficiadas, pois os compradores não precisariam alinhar-se numa padronização do bem ou serviço a ser adquirido, e poderiam “customizar” uma parte da descrição do objeto, desde que não alterassem a caracterização básica usada na fase de pré-seleção. Em ambos os casos, uma plataforma de e-commerce semelhante a um marketplace seria viabilizada.

Outro artigo que traz a regulamentação infralegal anterior para a lei é o art. 82, que regula detalhadamente a adesão à compra por SRP antes (em resposta à convocatória da intenção de registro de preços) e depois do certame — os ditos “caronas” (expressão que, aliás, o relator do PL 4253 removeu com uma emenda de redação).

Tenho plena consciência do quanto foi objeto de litígios e disputas a maior ou menor restrição a adesões dos chamados caronas a atas de registro de preços. Como relatado em Fiuza et al (2020), o atual Decreto que regula o SRP resultou de pressões do Tribunal de Contas da União (TCU). Agora tenta-se trazer para a Lei “de uma vez por todas” a regulamentação dos caronas, e com isso pacificar a questão. Deve-se reconhecer, inclusive, que é a melhor regulamentação vista até agora.

 Mas, com toda a franqueza, não só essa tentativa de regulamentação não vai resolver o problema dos caronas como vai minar os esforços do resto do próprio PL 4253 em colocar ordem nas compras.

O Art. 181 prevê a criação obrigatória de centrais de compras. O art. 12, inciso VII, prevê que “os órgãos responsáveis pelo planejamento de cada ente federativo poderão, na forma de regulamento, elaborar plano de contratações anual, com o objetivo de racionalizar as contratações dos órgãos e entidades sob sua competência, garantir o alinhamento com o seu planejamento estratégico e subsidiar a elaboração das respectivas leis orçamentárias”. Infelizmente a versão final trouxe o verbo “poderão”, em vez de “deverão”.

Com a obrigatoriedade de planos de compras e o requerimento de Planos Anuais de Contratação – como, aliás, já foi implementado pelo Poder Executivo Federal –, não pode haver espaço para improvisos. Uma compra conjunta deve reforçar o Poder de Compra do Estado e dar-lhe melhores condições de impor preços, padrões tecnológicos, de qualidade e sustentabilidade. Um Estado desorganizado que não é capaz de alinhar todos os seus órgãos em torno de uma ou poucas compras centralizadas nunca vai dominar os mercados públicos, mas sim sempre será dominado pelos seus fornecedores. Isso é inaceitável. Regulamentar a figura do carona é continuar com remendo velho em roupa nova.

Vetar todos esses parágrafos e seus incisos possibilitaria à Administração rever seus conceitos e prever Planos Anuais de Contratações conjuntos ou, no mínimo, mecanismos vinculantes de cooperação entre as Esferas Administrativas: com calendários claros e devidamente aplicados (isto é, um bom enforcement), essas Esferas podem alinhar-se nas compras de tudo em que precisarem juntar esforços. Foros de cooperação e empresas mistas de compras centralizadas como a existente na Dinamarca são exemplos de como se podem alinhar compras públicas e obter maior vantagem para a Administração Pública.

Evitando-se deixar a porta aberta para adesões posteriores, os entes federados e os diversos órgãos da Administração ver-se-ão forçados a aderir desde cedo às Intenções de Registro de Preço.

Além disso, deve ser criada uma trava para impedir que esses agentes façam suas compras isoladas. Mas isso pode ser feito por regulamento no âmbito de cada Esfera Administrativa.

Além do registro de preços, como instrumento para o exercício de opções de compras, foi engendrada na nova Lei uma nova figura, o credenciamento, mostrando que uma boa ideia sempre pode ser perdida quando se entram nos detalhes. As notas técnicas de Fiuza, Pompermayer e Rauen (2019) e Fiuza e Rauen (2019) foram incisivas em condenar a descrição dos atos previstos para o credenciamento, presentes no parágrafo único e seus incisos, do art. 79. Da maneira como seria regulamentado esse “procedimento auxiliar”, a Administração ficaria refém dos credenciados. Na primeira nota técnica, relatei como a assessoria da Comissão Temporária do PL na Câmara oferecia o credenciamento como uma forma de viabilizar os chamados Acordos-Quadros. A redação, à época, era ainda mais infeliz que a aprovada no texto final. Acredito que nossas críticas ajudaram a melhorar o texto, pois o caput e os seus três incisos são bastante defensáveis.

Mas o referido parágrafo único do art. 79 lista como deve funcionar o procedimento. Há várias semelhanças com o Sistema de Aquisição Dinâmico (SAD) europeu (Diretiva 24/2014, art. 34), só que o nosso é uma versão piorada. Há alguns problemas — dois incisos, em particular, nos preocuparam:

  1. O inciso I deste parágrafo único fala em credenciamento permanente. A experiência internacional com credenciamentos permanentes é muito negativa: os fornecedores e os burocratas se acomodam e não há pressão competitiva na sequência. Já o SAD original tem duração máxima prevista. Como o credenciamento não é um contrato, não há um mecanismo claro para reverter esse caráter “permanente” e qualquer tentativa subsequente de regulamentação estará sujeita a batalhas judiciais de credenciados que queiram manter seus privilégios – uma história cujo final é sobejamente conhecido no Brasil.
  2. O inciso II fala em distribuição da demanda entre os credenciados; juntando isso com o cadastramento permanente, ficamos com o pior dos mundos: um pool de fornecedores que sempre vai obter contratos, o que representa uma lamentável cartelização oficial, chancelada pela Administração.

O melhor, neste momento, é varrer toda a regulamentação para um decreto ou Instrução Normativa, e recomeçar o credenciamento como um procedimento que possa efetivamente auxiliar a celebração de Acordos-Quadros. Nos casos em que a Administração queira todos os agentes credenciados, deve haver um mecanismo de regulação dos preços e condições do fornecimento dos bens e serviços, ou uma negociação direta. Se não houver a pretensão de cobrir todo o mercado, o credenciamento deve ser capaz de funcionar como uma primeira fase de Acordo-Quadro, onde haja critérios que funcionem como um funil para que haja disputa por menor preço e ou melhores condições de fornecimento do bem ou serviço. A redação atual não entrega isso, e acaba por limitar o escopo do credenciamento e, pior, servir como instrumento de cartelização.

 Conclusões

 A nova lei de licitações, prestes a ser enviada ao Executivo para sanção, traz boas novidades que devemos saudar, como a reformulação e flexibilização das modalidades de licitação e dos critérios de julgamento, algum esboço de tentativa de profissionalização dos compradores, um maior apreço pelo seguro-garantia, a transposição – em maior ou menor grau – das várias fases dos processos de compras para meios digitais, e a criação do diálogo competitivo. Ao mesmo tempo, o texto peca pelo excessivo detalhamento, entrando em detalhes desnecessários sobre a forma de disputa, sobre o credenciamento, o registro de preços e o credenciamento. As margens de preferência também entraram no novo texto, o que pode dificultar, entre outros fatores, a negociação de acordos internacionais.

Em suma, houve bastante progresso, mas o excessivo nível de detalhe sugere que as primeiras emendas a esta lei não tardarão mais que o início da próxima legislatura – a não ser que haja vetos suficientes para que aspectos procedimentais sejam excluídos do texto sancionado.

 

[1] Agradeço a Bernardo Medeiros pela cuidadosa revisão e comentários feitos. Erros remanescentes são de minha inteira responsabilidade.

[2] O primeiro projeto de reforma abrangente da Lei 8.666/1993 no Congresso foi o PL 146/2003 na Câmara dos Deputados (18/3/2003), ao qual foram apensados outros oito projetos. Mas foi em 24/1/2007 que o Poder Executivo submeteu ao Congresso o PL no 7.709/2007, origem do texto agora prestes a ser sancionado. O tal PL 1292/1995, ao qual foi apensado o texto principal em sua segunda passagem pela Câmara, efetuava uma alteração bastante cirúrgica no texto, não se prestando como uma reforma abrangente.

[3] FORTINI, C. & AMORIM, R.A. (2021). Um novo olhar para a futura lei de licitações e contratos administrativos: a floresta além das árvores. Disponível em: http://www.licitacaoecontrato.com.br/artigos.html#.

[4] Essa modalidade não substitui, naturalmente, a figura das encomendas tecnológicas (lei 13.234/2016) – para um melhor detalhamento sobre o impacto previsto em contratações de inovações, recomendo a recentíssima nota técnica de André Rauen, Compras públicas de inovações segundo o texto final do PL n° 4.253/2020.

[5] Sobre os custos e benefícios da adesão a esse acordo, sugiro a leitura do Texto para Discussão de outro colega (Araújo, 2019).

 

Eduardo Pedral Sampaio Fiuza é doutor em Economia pela EPGE-FGV.

 

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