Direito e economia – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Tue, 26 Jul 2022 14:50:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Emenda Constitucional nº 123, de 14.7.2022: Aspectos Fiscais e Orçamentários¹ https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3659&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=emenda-constitucional-no-123-de-14-7-2022-aspectos-fiscais-e-orcamentarios%25c2%25b9 Tue, 26 Jul 2022 14:50:29 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3659 Emenda Constitucional nº 123, de 14.7.2022: Aspectos Fiscais e Orçamentários [1]

 

Por Eugênio Greggianin*, José Fernando Cosentino Tavares** e Marcia Rodrigues Moura***

 

1   Considerações Iniciais: Descrição do Conteúdo das PEC

1.1 A Emenda Constitucional  nº 123/2022

A EC nº 123/2022 é oriunda da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 15/2022, à qual foi apensada a PEC nº 1/2022. O trabalho, além de descrever o conteúdo das proposições, teve o propósito de verificar os pressupostos fáticos do estado de emergência reconhecido em 2022, bem como o impacto decorrente da fragilização dos princípios fiscais ao se prever, para o fim almejado (concessão de benefícios), o afastamento de praticamente todas as regras, limites e mecanismos de compensação fiscal atinentes à preservação do equilíbrio das contas públicas.

1.2 PEC nº 1/2022

A PEC nº 1/2022, de autoria do Senado Federal, tem por objetivo “reconhecer o estado de emergência, decorrente da elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes”. Para enfrentamento ou mitigação dos impactos decorrentes do estado de emergência, a PEC autoriza o pagamento, até 31.12.2022, de uma série de benefícios.

A tabela a seguir apresenta os benefícios previstos na PEC, acompanhados dos limites de gastos nela também previstos.

Dentre os benefícios, apenas três já existem: o Programa Auxílio Brasil, o Programa Alimenta Brasil – ambos criados pela Medida Provisória (MPV) nº 1.061, de 09.08.2021, convertida na Lei 14.284, de 29.12.2021 – e o Auxílio Gás dos Brasileiros – criado pela Lei nº 14.237, de 19.11.2021.

O Programa Auxílio Brasil é o que possui maior representatividade nos dispêndios totais previstos na PEC, de 63% (R$ 26 bilhões). A PEC assegura a extensão dos benefícios às famílias que ainda não fazem parte do Programa, mas que são elegíveis. Estima-se que o quantitativo de novas famílias seja em torno de 2,6 milhões. Considerando que atualmente o programa já atende 18,2 milhões de famílias[2], o quantitativo mensal de famílias atendidas poderá atingir 21 milhões.

Além disso, a PEC assegura um acréscimo extraordinário do benefício para todas as famílias, no valor de R$ 200,00, durante 5 meses. Atualmente o Programa Auxílio Brasil é composto pelos benefícios ordinários previstos nos incisos I a IV do art. 4º da Lei nº 14.284/2021, e pelo benefício extraordinário previsto na Lei nº 14.342, de 18.05.2022, originária da MPV 1.076, de 07.12.2021. Somados os benefícios, estes alcançam um valor médio mensal por família em torno de R$ 400,00[3]. Com a PEC, esse valor alcançará pouco mais de R$ 600,00.

Como previsto na PEC, o impacto da entrada de novas famílias no programa e o pagamento do acréscimo extraordinário de R$ 200,00 para todas as famílias implicará em um gasto adicional de R$ 26 bilhões, que, somados aos valores já previstos no orçamento para 2022, de R$ 89,1 bilhões, farão com que o dispêndio total com o Programa alcance a cifra de R$ 115,1 bilhões.

Apesar de a PEC limitar o pagamento dos benefícios nela previstos até 31.12.2022, a entrada das novas famílias no programa será sentida também nos próximos exercícios. Excluído o pagamento do acréscimo extraordinário de R$ 200,00, cujo pagamento está limitado a 31.12.2022, estima-se que o impacto da entrada das 2,6 milhões de famílias no programa pode atingir o montante de R$ 12,5 bilhões em 2023.

O Alimenta Brasil é um programa de aquisição de alimentos de pequenos produtores rurais e posterior distribuição a famílias carentes. O valor previsto na PEC é de R$ 500 milhões.

O Auxilio Gás dos Brasileiros é um programa de auxílio à compra do gás de cozinha, pago bimestralmente às famílias de baixa renda. O valor do benefício corresponde a 50% da média, verificada nos últimos 6 meses, do preço nacional de referência do botijão de 13 Kg[4]. No mês de junho do corrente ano, 5,7 milhões de famílias[5] receberam o benefício, no valor de R$ 53,00. A PEC prevê um dispêndio de R$ 1,05 bilhão, pago em 3 meses. O valor previsto na PEC e aquele já previsto no orçamento para 2022, de R$ 1,8 bilhão, farão com que o dispêndio total com o Programa alcance a cifra de R$ 2,85 bilhões.

Além do incremento financeiro de benefícios já existentes, a PEC prevê o pagamento de quatro outros benefícios que ainda não fazem parte do rol de despesas da União. São eles: auxílio aos Transportadores Autônomos de Cargas; auxílio financeiro a Estados e DF que outorgarem créditos tributários de ICMS aos produtores ou distribuidores de etanol hidratado; assistência financeira à União, Estados, DF e Municípios para concessão de transporte gratuito a idosos e auxílio a motoristas de táxis.

O auxílio aos Transportadores Autônomos de Cargas será pago durante 6 meses, com valor mensal por beneficiário de R$ 1.000,00 e dispêndio total de R$ 5,4 bilhões. Estima-se um atendimento mensal em torno de 900 mil transportadores autônomos de carga.

O auxílio financeiro a Estados e DF que outorgarem créditos tributários de ICMS aos produtores ou distribuidores de etanol hidratado será pago durante 5 meses, com um dispêndio total de R$ 3,8 bilhões. O benefício será proporcional à participação dos Estados e do DF em relação ao consumo total do etanol hidratado em todos os Estados e no DF no ano de 2021 sendo que o valor máximo mensal é de R$ 760 milhões por ente.

A assistência financeira à União, Estados, DF e Municípios para concessão de transporte gratuito a idosos tem um dispêndio total previsto na PEC de R$ 2,5 bilhões. A PEC não dispôs sobre a periodicidade de pagamento. O valor pago por ente dependerá de uma série de requisitos previstos no § 4º do art. 3º da PEC.

O auxílio a motoristas de táxi será pago a todos aqueles registrados até 31.05.2022, em 6 parcelas, com um dispêndio total de R$ 2 bilhões. O quantitativo de beneficiários dependerá da formação do cadastro para operacionalização do benefício (§ 7º do art. 3º da PEC). O valor por beneficiário também está sujeito a regulamentação posterior.

Destaca-se que o Substitutivo aprovado pela Comissão Especial não promoveu alterações de mérito na PEC, mantendo assim todos os benefícios e valores originalmente previstos.

1.3 PEC nº 15/2022

A PEC nº 15/2022, de autoria do Senado Federal, tem por objetivo assegurar ao setor de biocombustíveis destinados ao consumo final, na forma de lei complementar, tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis – com relação, especialmente, ao PIS/PASEP, Cofins e ICMS – capaz de garantir diferencial competitivo para os biocombustíveis. No Brasil, atualmente, o biocombustível destinado ao consumo final é o etanol hidratado.

A PEC não apresenta implicação sobre a receita, tendo em vista que a regra transitória nele prevista dispõe que deverá ser mantida a estrutura tributária vigente em 15.05.2022, em patamar igual ou superior. Alternativamente, quando o diferencial competitivo não for determinado pelas alíquotas, este será garantido pela manutenção do diferencial da carga tributária efetiva entre os combustíveis.

2       Aspectos Fiscais

2.1. Fragilização das regras fiscais

Do ponto de vista econômico, a fragilização continuada dos princípios fiscais talvez seja o aspecto mais preocupante decorrente da aprovação da PEC nº 1/2022 em análise. Regras fiscais servem para nortear o comportamento dos agentes políticos e refrear o desequilíbrio orçamentário. O ciclo político, na ausência de restrições, seria profundamente marcado pela concessão de mais e mais benefícios quanto mais próxima a data das eleições.

A meta de resultado primário foi a principal regra fiscal ao longo de quase 20 anos. Na medida em que passou a ser fixada com ampla folga, revista com frequência, e também a comportar número crescente de exceções, perdeu a credibilidade como instrumento de controle das finanças públicas. Para 2022 é previsto déficit primário de R$ 65,5 bilhões, enquanto a LDO do exercício admite saldo negativo de até R$ 170 bilhões.

Destaque-se, principalmente, a regra que se considerava a última e mais eficaz âncora fiscal no arsenal brasileiro, o teto de gastos. O teto foi criado em 2016, mediante Emenda Constitucional (EC nº 95/2016), para reverter o ritmo descontrolado das finanças públicas que levou à crise de 2015/2016. A regra deu alguma previsibilidade à política fiscal, permitiu a redução sustentável da taxa de juros, até a pandemia, e induziu reformas, como a previdenciária. Principalmente, tinha subjacente a obrigação de o governante escolher entre usos alternativos do dinheiro público.

Limites quantitativos, por poder e órgão, para a despesa primária tiveram o intuito de impor regras mais fortes, além de mais estáveis, visto que só poderiam ser alteradas com quórum qualificado. No entanto, desde então já houve seis alterações constitucionais e caminha-se para a sétima revisão[6].

2.2. Estado de Emergência

Com relação à decretação de estado de emergência como pressuposto para descumprimento de regras fiscais, há significativas objeções. Em primeiro lugar, regras fiscais costumam ter cláusulas de escape que permitem sua flexibilização em casos excepcionais. A regra do teto de gastos, por exemplo, prevê que créditos extraordinários abertos em razão de urgência e imprevisibilidade não precisam se submeter ao limite. A meta de resultado primário pode ser alterada durante o exercício com a modificação da Lei de Diretrizes Orçamentárias. A chamada regra de ouro, que impede o endividamento para atender despesas correntes, também pode ser excetuada mediante aprovação de crédito específico pelo Congresso Nacional, por maioria absoluta.

Ainda há que se considerar quais condições estariam dadas para a decretação de um estado de emergência ou de calamidade pública. Eventos climáticos extremos ou uma pandemia que inviabilizasse o funcionamento dos processos produtivos por um período considerável de tempo seriam os exemplos típicos. Crises econômicas por si só seriam um argumento bem mais frágil, visto que recorrentes e muitas vezes reforçadas por ações inadequadas ou intempestivas dos próprios agentes públicos.

Flutuação de preços de commodities e em especial do barril de petróleo não é novidade, como mostra gráfico a seguir. Tais variações não podem ser consideradas necessariamente imprevisíveis. Nem mesmo quando decorrem de guerra em outros países.

Processos inflacionários também não representam fator atípico na história recente do País. Para 2022, o prognóstico para o IPCA é de 7,67%, não muito distante da inflação apurada em 1996, 1999, 2001, 2002, 2003, 2004, 2015 e 2021.

Crises econômicas podem exigir medidas excepcionais de gastos, mas devem vir acompanhadas de estratégia robusta e crível de retorno à normalidade e de ajustes necessários para evitar ou mitigar eventos posteriores. A falta de um planejamento sobre a saída da situação de emergência e a fragilização do teto fiscal deixam o País sem uma âncora fiscal capaz de sinalizar retomada econômica consistente adiante.

2.3. Custo da renúncia fiscal

O custo da PEC nº 1/2022, já descrito no item 2, não pode ser analisado isoladamente. Outras tantas medidas vêm sendo tomadas nos últimos meses com impacto considerável e que não se restringe ao exercício de 2022.

O teto de gastos trouxe restrições à elevação de despesas. A redução de receitas, por outro lado, passou a apresentar-se como caminho mais curto para conceder benefícios. Assim reduções de alíquotas de impostos e desonerações tendem a alcançar R$ 130 bilhões em 2023, conforme Tabela 2.

Outros R$ 34,6 bilhões em impostos federais sobre combustíveis foram perdidos com a redução a zero das alíquotas até dezembro de 2022. Caso os preços de combustíveis sigam elevados, haverá pressão por prorrogação da renúncia em 2023, com impacto em doze meses de cerca de R$ 70 bilhões, o que elevaria a perda de arrecadação de quase R$ 200 bilhões, ou 2% do PIB. Antes das concessões mencionadas, os gastos tributários da União para 2023 estão estimados na LDO em R$ 368,9 bilhões ou 3,97% do PIB.

2.4. Propensão ao gasto

Às despesas criadas pela PEC acrescentem-se as postergadas pela Emenda Constitucional nº 114, de dezembro de 2021. Os precatórios devidos e não pagos em 2022 aproximam-se de R$ 30 bilhões, montante similar ao que não deve ser pago também em 2023. As sentenças devidas e não pagas entre 2022 e 2026, com correção monetária, possivelmente na casa de centenas de bilhões de reais, representam esqueleto a ser desembolsado em 2027 e salto significativo na dívida pública federal.

No auge da pandemia, as medidas de maior impacto, tais como o Auxílio Emergencial, deram-se por iniciativa do Congresso. Nos anos subsequentes, outros benefícios concedidos ou em análise, tais como pisos salariais e auxílios para categorias profissionais, pelo seu impacto nas contas públicas também elevam o risco fiscal a curto e médio prazo.

2.5. Indicadores econômicos

Os indicadores econômicos se deterioram, refletindo em particular a percepção de um maior risco fiscal no horizonte. Veio se elevando em torno da emergência do preço dos combustíveis um risco fiscal com consequências previsíveis para 2023. A administração subsequente enfrentará quedas de receitas, já contratadas ou decorrentes do arrefecimento da atividade econômica, e aumentos variados de despesas, além de um grau mais elevado de engessamento orçamentário, e terá que decidir entre retirar benefícios ou continuar a se endividar. Diante da necessidade do corte de despesas, o investimento público em obras e equipamentos será o primeiro a perder, afetando as perspectivas de crescimento.

O novo governo terá dificuldade de retirar ou reduzir benefícios, mesmo aqueles com vigência apenas até dezembro deste ano, em particular o Auxílio Brasil. Os Estados, desfalcados recentemente de R$ 90 bilhões de suas receitas sobre derivados de petróleo, por sua vez, poderão precisar do auxílio do governo federal.

Isso se dá, é bom lembrar, dentro de um cenário mundial que ruma agora em direção ao aperto monetário e talvez à recessão. Câmbio em alta, volatilidade dos preços de commodities, bolsas em queda, aumento do risco Brasil, todos esses indicadores se movem em desfavor do crescimento.

A contrario sensu do que se apresenta nas motivações que afastaram a incidência das regras fiscais durante o “estado de emergência”, a percepção do mercado quanto ao aumento do risco fiscal poderá levar o dólar para patamares de oscilação ainda mais elevados, o que influencia a precificação interna do petróleo. Adotam-se na PEC a compensação de gastos, sobretudo em relação ao Auxílio Brasil, a pressão sobre o câmbio e os prêmios de juros da dívida pública cobrados pelo mercado seriam menores. Ademais, as pressões inflacionárias, não apenas em relação ao petróleo, mas de todos os bens e serviços sensíveis ao câmbio tenderiam a apresentar melhor comportamento. Paralelamente, a menor pressão sobre a trajetória da dívida pública permitiria maiores espaços fiscais em um futuro próximo.

2.6. Juros

Juros aqui e no exterior aumentaram significativamente, e no Brasil a inflação persistente começa a indicar que a Selic poderá elevar-se acima dos 13,25% ao ano por conta do aumento do prêmio de risco. Os juros vão ficar por mais tempo em patamar de dois dígitos no Brasil.

O mercado financeiro está exigindo juros mais altos para adquirir títulos de longo prazo do governo. O Tesouro Nacional já aceita pagar juros reais de 6,17% para vender seus papéis atrelados ao IPCA, as NTN-B, com vencimento em 40 anos, o mais longo da dívida pública doméstica. Em janeiro de 2019, as taxas eram de 4,76%.  As NTN-F, com vencimento em 10 anos, alcançaram 13,21%.

2.7. Inflação

O Banco Central alerta, em seu último Relatório de Inflação (30 de junho), “que as medidas tributárias em tramitação e discussão podem reduzir sensivelmente a inflação no ano corrente, embora elevem, em menor magnitude, a inflação no horizonte relevante de política monetária. Contudo, políticas fiscais que impliquem sustentação da demanda agregada no curto prazo, mas que piorem a trajetória fiscal do país – assim como a incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal – podem pressionar os prêmios de risco e a confiança dos agentes, com impactos negativos, possivelmente defasados, sobre a atividade econômica e os investimentos em particular.”

O IPCA previsto no relatório Focus para 2023 já está em 5,1% e tem subido. As empresas, que estão trabalhando com alta de insumos e margem apertada, vão buscar reajustar os preços, sustentados pelo aumento da demanda.

2.8. Crescimento

A expectativa de um crescimento baixo da economia tem sido apenas adiada. Os analistas têm melhorado suas previsões para o terceiro trimestre e para o PIB em 2022 graças às reduções de impostos e aos aumentos de despesas públicas, com novas transferências como o aumento do Auxílio Brasil e de outros benefícios previstos na PEC. A reversão dessas medidas, no todo ou em parte, poderá fazer o PIB encolher adiante.

3          Aspectos Normativos e Orçamentários

3.1. A caracterização do Estado de Emergência da PEC nº 1/2022

A PEC 1/2022 cria e amplia benefícios sociais aproveitando-se da dispensa de várias regras fiscais voltadas ao equilíbrio fiscal – teto para as despesas primárias, resultados fiscais, regra de ouro e necessidade de compensação do aumento de gastos obrigatórios. Como fundamento, é reconhecida no País a existência de um “estado de emergência” decorrente de elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes.

A distinção entre estado de emergência e estado de calamidade pública pode ser encontrada no âmbito da política de defesa civil. Depende da intensidade da situação e do alcance dos danos provocados. No estado de emergência a capacidade de resposta do Poder Público é parcialmente comprometida, sendo que os danos são suportáveis e superáveis. No estado de calamidade pública o comprometimento é substancial (desastres).

De acordo com o Decreto nº 10.593/2020:

Art. 2º Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:

(…)

VIII – estado de calamidade pública – situação anormal provocada por desastre que causa danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do Poder Público do ente federativo atingido ou que demande a adoção de medidas administrativas excepcionais para resposta e recuperação;

(…)

XIV – situação de emergência – situação anormal provocada por desastre que causa danos e prejuízos que impliquem o comprometimento parcial da capacidade de resposta do Poder Público do ente federativo atingido ou que demande a adoção de medidas administrativas excepcionais para resposta e recuperação.

A autorização para que governos deixem de cumprir, de forma temporária, o conjunto de normas legais ou fiscais, sempre foi tratada como procedimento de exceção que exige fundamento fático e cautelas especiais.

O atendimento de situações excepcionais que exigem proteção especial já conta, no caso da calamidade pública, com um arsenal de medidas de enfrentamento. O art. 65 da LRF, além de suspender prazos de retorno aos limites de pessoal e dívida, dispensa o atingimento de metas fiscais e a adoção de medidas de compensação. Aplica-se, no entanto, exclusivamente aos atos de gestão orçamentária e financeira necessários ao atendimento das respectivas despesas.

De acordo com a Constituição, a abertura de crédito extraordinário pode ser feita por medida provisória quando se tratar de despesas imprevisíveis e urgentes, tais como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública. Sobre o tema, o STF esclarece que as despesas devem ser apenas aquelas necessárias para o atendimento de “realidades ou situações fáticas de extrema gravidade e de consequências imprevisíveis para a ordem pública e a paz social, e que dessa forma requerem, com a devida urgência, adoção de medidas singulares e extraordinárias”[7]. Assim, não deve haver dúvidas em relação às situações que ensejam a excepcionalidade.

Exemplo disso foi a situação vivenciada em função da pandemia da COVID-19 no exercício de 2020. Naquele ano foram editadas regras fiscais extraordinárias (EC nº 106/20, LC nº 173/2020 e LDO 2020) que dispensaram ou afastaram exigências do regime fiscal ordinário. De outra parte, as dispensas foram acompanhadas de várias ressalvas e cautelas, o que já refletia a preocupação do próprio Legislativo quanto ao impacto futuro no endividamento público e à necessidade de recuperação fiscal no período pós-pandemia.

Delimitou-se o regime extraordinário somente para 2020 e apenas naquilo em que a urgência viesse a se mostrar incompatível com o regime regular, e desde que não viesse implicar despesa permanente, prevenindo-se assim abusos e desvios na utilização das normas excepcionais. Ao mesmo tempo, a lei complementar estabeleceu proibições específicas para aumentos, criação de cargos, benefícios, concursos, reajustes, progressões etc., com algumas exceções, como forma de compensar, ao menos em parte, o aumento imprevisto de despesas.

Nem mesmo a continuidade dos efeitos da pandemia em 2021 foi motivo para a prorrogação do estado de calamidade pública, visto que já se contava então com a expectativa de recuperação a partir dos efeitos da vacinação.

Como visto, encontra-se implícito no regime de exceção, além da existência de um fundamento fático, a dispensa de requisitos sempre de forma restrita às medidas necessárias e suficientes[8].

De acordo com a redação da PEC nº 1/2022, o estado de emergência, reconhecido no ano de 2022, decorre da “elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes”.

Durante o estado de emergência assim definido, permitir-se-á atender as despesas criadas por crédito extraordinário, independentemente do atendimento do requisito de imprevisibilidade previsto no art. 167, § 3º da CF. Ademais, os novos gastos não serão considerados para fins de cumprimento da meta fiscal prevista na LDO, no limite de despesas primárias (teto), no limite estabelecido pela regra de ouro e serão dispensadas da necessidade de compensação.

Ou seja, ainda que a situação de “emergência” seja menos grave, adota-se na PEC praticamente as mesmas dispensas e privilégios concedidos para situações mais críticas que caracterizam o estado de calamidade pública, o que não parece razoável. Abre-se mão de praticamente todo mecanismo de defesa fiscal de forma desproporcional à situação que se vislumbra.

Segue-se ao caput do art. 2º da PEC o parágrafo único, o qual determina que os limites dos montantes devem constar de uma “única e exclusiva norma constitucional”. O texto, aparentemente, procura mitigar a falta de pressupostos fáticos dessa iniciativa pelo fato de não poder haver outra norma constitucional que amplie os limites, o que parece ser inócuo, porque nada impede que outra emenda constitucional altere o próprio parágrafo único.

 3.2. A compensação das despesas continuadas como princípio fiscal

Como comentado, o impacto da entrada de novas famílias no programa e o pagamento do acréscimo extraordinário de R$ 200,00 para todas as famílias implicará um gasto adicional de R$ 26 bilhões, que, somados aos valores já previstos no orçamento para 2022, de R$ 89,1 bilhões, farão com que o dispêndio total com o Programa alcance a cifra de R$ 115,1 bilhões.

Apesar de a PEC limitar o pagamento dos benefícios nela previstos até 31.12.2022, a entrada das novas famílias no programa será sentida também nos próximos exercícios. Excluído o pagamento do acréscimo extraordinário de R$ 200,00, cujo pagamento está limitado a 31.12.2022, estima-se que o impacto da entrada das 2,6 milhões de famílias no programa pode atingir o montante de R$ 12,5 bilhões em 2023.

Considerada a atual situação de déficit fiscal, a PEC, da forma como se encontra, em especial quanto ao fato de não prever compensação de despesas com caráter nitidamente continuado (Auxílio Brasil), atinge princípios basilares de equilíbrio das contas públicas e aumenta o risco fiscal, precedente que aparenta ser excessivo.

É sabido que crescentes demandas sociais tendem sempre a superar a capacidade tributária e as disponibilidades do Estado, razão pela qual princípios e regras[9] estabilizadores são formulados para conter a tendência de endividamento público crescente. De fato, a percepção quanto à falta de capacidade de solvência das contas públicas induz a elevação das taxas de juros e provoca o aumento dessas despesas, um círculo vicioso bastante conhecido.

No âmbito das finanças públicas existem diversas normas diretamente relacionadas à necessidade de se impor limites financeiros ao governo e aos agentes políticos, em especial no final de mandato.

A existência de um conjunto funcional e harmonizado de preceitos reduz a discricionariedade e o excesso de poder dos governantes, aumenta a transparência e, em especial, a segurança e a credibilidade da política fiscal. Neste desiderato, hipóteses de afastamento e dispensas podem até existir no sistema normativo, mas sempre como exceção amparada por elementos fáticos e jurídicos bem determinados e que devem ser interpretados de forma restritiva.

A relevância e o alcance dos princípios no conjunto normativo justificam o cuidado pela sua preservação, razão pela qual costumam ser inseridos de forma permanente dentro da própria Constituição, o que não impede normas de elevada densidade valorativa enunciadas em textos infraconstitucionais, como é o caso do equilíbrio orçamentário.

Um dos princípios fiscais mais conhecidos é o da busca do equilíbrio temporal das finanças públicas, que, em última análise, visa à justiça intergeracional na divisão dos benefícios e ônus do endividamento público. Nesse sentido, estabelece o art. 1º da LRF que ação fiscal responsável “pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas”. (grifo nosso).

Novas despesas que tendem a ser perpetuar somente podem ser aprovadas se indicada a fonte de financiamento, uma forma de mitigar o aumento da rigidez orçamentária e do déficit. De acordo com a legislação complementar (art. 16 e 17 da LRF), alterações que impliquem aumento de despesas obrigatórias de duração continuada devem ser compensadas[10], mantendo-se o equilíbrio implícito na lei orçamentária.

Essa regra de neutralidade orçamentária permite o controle difuso e prévio de proposições e demais atos que criam despesas obrigatórias. A restrição se justifica pelo fato de que, aprovada a legislação, cria-se um fato consumado, de difícil reversão.

Despesas obrigatórias, uma vez aprovadas, não se submetem aos limites do orçamento, como ocorre com as discricionárias. Ao contrário, é o orçamento que fica submetido às despesas obrigatórias. A necessidade de maior cuidado com a aprovação de despesas obrigatórias encontra-se expressa na Constituição que, ao tempo que cria tetos para as despesas primárias (ADCT, art. 107), estabelece mecanismo de controle dessas despesas quando seu montante ultrapassa 95% da despesa primária total (ADCT, art. 109). Adicionalmente, o art. 113 do ADCT exige a estimativa do impacto orçamentário e financeiro de toda proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória (ou renúncia de receita).

Não há dúvida acerca da importância do objetivo de atenuar o impacto do aumento dos preços dos combustíveis e dos preços em geral sobre a renda dos cidadãos.

Ainda que se admita tratar-se de despesa extraordinária – o que implicaria a dispensa automática do cumprimento da regra do teto (ADCT, art. 107, § 6º, III) – não se vislumbra, por outro lado, razão ou necessidade para afastamento da regra de compensação, em detrimento da preservação do princípio do equilíbrio temporal.

A compensação, ao atuar como freio e contrapeso político ao desejo dos governos de expansão orçamentária, em especial no final de mandato, preserva o nível atual de equilíbrio (já deficitário[11]) para, pelo menos, não agravar ainda mais a situação fiscal.

Não se justifica, portanto, a falta de indicação de fontes permanentes para o atendimento das despesas correntes continuadas criadas pela PEC (art. 2º, parágrafo único, III), em especial quanto ao Programa Auxílio Brasil, implantada aos moldes do Bolsa Família[12]. Tratando-se de benefícios sociais com natureza de despesa corrente continuada, é grande a dificuldade de sua posterior redução, seja do ponto de vista político ou mesmo jurídico (princípio do não retrocesso dos direitos sociais).

Por esse motivo, a extensão de tais benefícios deveria ter sido compensada, para que possa ser mantida, garantindo-se a neutralidade fiscal da medida e a preservação do princípio do equilíbrio temporal do orçamento.

3.3. Limitação das despesas em final de mandato

As regras que limitam despesas de final de mandato, ainda que em legislação infraconstitucional (LRF, arts. 21, 31, 42 e lei eleitoral), dão concretude, em seu conjunto, ao princípio que impõe aos agentes políticos, nos períodos de transição, disciplina fiscal ainda mais rigorosa do que aquela comumente adotada. O bem jurídico protegido é a igualdade da disputa eleitoral, reduzindo-se assimetria no exercício de direitos políticos em benefício de candidatura própria ou de terceiros.

Dentre outras condutas proibidas pela lei eleitoral, veda-se nos três meses que antecedem o pleito, “realizar transferência voluntária de recursos da União aos Estados e Municípios, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública” (CF. art. 73, inciso VI, alínea “a”, da Lei nº 9.504, de 1997, grifo nosso). O § 10[13] do mesmo artigo proíbe, no ano de eleição, a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária.

Entretanto, entende-se que o estado de emergência reconhecido pela PEC em análise é peculiar, com aplicação restrita tão somente aos benefícios nela elencados. Desta forma, não deve ter o condão de afastar, de forma genérica, as vedações referidas na lei eleitoral.

 

____________________________________________________

[1] Este texto se baseia em Nota Técnica da Consultoria da Câmara dos Deputados elaborada pelos mesmos Autores (Subsídios à apreciação das PECs nº 1 e 15, de 2022).

[2] Disponível em https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/ri/relatorios/cidadania/index.php; Último acesso em 11/07/2022.

[3] Idem.

[4] Decreto nº 10.881, de 02.12.2021.

[5] Disponível em https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/vis/data3/data-explorer.php.

Último acesso em 11.07.2022.

[6] EC 102/2019, EC 108/2020, EC 109/2021, EC 113/2021, EC 114/2021 e EC 119/2022.

[7] https://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigo.asp?item=1634&tipo=CJ&termo=3#:~:text=Al%C3%A9m%20dos%20requisitos%20de%20relev%C3%A2ncia,de%20relev%C3%A2ncia%20e%20urg%C3%AAncia%20(art.

[8] É exemplo, no caso das despesas com pessoal durante o estado de calamidade pública de 2020, a viabilização da contratação de pessoal apenas nas áreas voltadas ao enfrentamento à pandemia, sendo que, de outra parte, houve restrições à contratação nas demais áreas.

[9] Consideram-se aqui como “regras”, fiscais ou orçamentárias, aquelas normas ou preceitos com maior grau de determinação, vinculantes e objetivas. E, como “princípios”, aqueles enunciados que fundamentam um conjunto de regras e o próprio regime jurídico. Apesar de mais genéricos, têm importância vital, pois estruturam valores que derivam da razão e do conhecimento normalmente aceito e consolidado, estabelecendo substrato que justifica, no caso, o conjunto específico de regras orçamentárias e fiscais criadas para desestimular déficits e atenuar ou reduzir o endividamento público.

[10]  De acordo com o art. 17 da LRF, o aumento de despesa obrigatória continuada exige a redução de outra despesa, ou o aumento de receita.

[11] A meta de resultado primário para 2022, conforme LDO, é de déficit.

[12] De acordo com a PEC, a extensão do programa é assegurada a todas as famílias elegíveis na data de promulgação da Emenda Constitucional.

[13] Em relação à legislação eleitoral, a lei nº 14.352 de 2022, alterou a LDO 2022, inserindo novo dispositivo no seu texto: Art. 81-A. A doação de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública a entidades privadas, desde que com encargo para o donatário, anterior a três meses que antecedem o pleito eleitoral, não se configura em descumprimento do § 10 do art. 73 da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997.

 

* Eugênio Greggianin é consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados

 

** José Fernando Cosentino Tavares é consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados

 

*** Marcia Rodrigues Moura é consultora de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados

 

]]>
O papel das Instituições Fiscais Independentes (IFIs) e o caso da IFI do Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3589&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-papel-das-instituicoes-fiscais-independentes-ifis-e-o-caso-da-ifi-do-brasil Mon, 07 Mar 2022 20:33:15 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3589 O papel das Instituições Fiscais Independentes (IFIs) e o caso da IFI do Brasil*

 

Por Felipe Scudeler Salto[1] e Rafael da Rocha Mendonça Bacciotti[2]

 

  1. O que esperar de uma IFI?

As Instituições Fiscais Independentes (IFIs), ou Conselhos Fiscais, são organismos públicos com mandato para realizar análises técnicas e apartidárias sobre política fiscal e orçamentária. O objetivo é melhorar a disciplina fiscal, promover maior transparência das contas públicas e elevar a qualidade do debate público nas temáticas de finanças públicas e economia em geral.

A ampliação do número de conselhos fiscais ao redor do mundo representa uma inovação institucional importante no campo da política fiscal (Mulas-Granados, 2018). Em resposta aos efeitos negativos da crise econômica e financeira de 2008, diversos países, particularmente, os que compõem a Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), criaram instituições fiscais independentes para fortalecer a credibilidade da política fiscal (Kopits, 2016).

Essa tendência de aumento é observada, principalmente, entre os países membros da União Europeia, tendo ganhado mais força com a aprovação, no Parlamento, do Regulamento nº 4733[3], de 2013. Como parte da resposta da região à crise da dívida pública, o Regulamento atribuiu mandato a um “órgão independente”, em nível nacional, para monitorar o cumprimento das regras da política fiscal e fornecer ou endossar previsões macroeconômicas e fiscais realistas para a elaboração do orçamento (FMI, 2013 e Ribeiro, 2020).

A dinâmica desfavorável do nível de endividamento foi amplificada pelas políticas de estímulo e pelas perdas acumuladas de receitas. Somou-se a isso o fato de o conjunto de regras numéricas utilizadas para controlar a discricionariedade da política fiscal, no processo orçamentário, não garantir, isoladamente, a condução prudente das contas públicas. Esses fatores favoreceram o surgimento de fiscal watchdogs (vigilantes ou cães de guarda), no pós-crise, com apoio crescente obtido junto aos organismos multilaterais.

A OCDE, por exemplo, divulgou, em 2014, os princípios orientadores para o design e operacionalização das IFIs. Trata-se de codificação de valores mínimos de governança que resultou de discussões e sistematização de boas práticas –, reconhecendo o potencial papel positivo dessas instituições[4].

O Fundo Monetário Internacional, por sua vez, mapeia a existência de 39 IFIs operando em 2016 (último levantamento disponível)[5], 25 das quais apareceram depois da crise econômica e financeira de 2008, como se observa no Gráfico 1.  As IFIs veteranas, existentes antes da crise, como o “Congressional Budget Office” (CBO) dos Estados Unidos e o caso pioneiro na Holanda – “Central Planning Bureau” (CPB) –, diferem da nova geração de IFIs, por terem aparecido em resposta a eventos históricos locais e  singulares (Bjios, 2014).

 

 

  1. Revisão de literatura: viés deficitário da política fiscal

Do ponto de vista teórico, as IFIs aparecem, na literatura, ao lado das regras fiscais (mecanismos que introduzem, por certo período, restrições ou limites quantitativos para alguma das variáveis fiscais como: dívida, resultado, resultado estrutural, despesa ou receita). São tidas como soluções institucionais mais comuns para atenuar o viés deficitário (tendência crescente do déficit e do nível de endividamento público ao longo do tempo) e a pró-ciclicidade do gasto público (tendência a gastar receitas extraordinárias sobretudo nos momentos de alta do ciclo econômico ao invés de poupá-las para que possam ser utilizadas para estimular o retorno da atividade econômico para o equilíbrio nos momentos de baixa), que acentua a volatilidade do ciclo econômico.

A literatura documenta diversas fontes que estariam por trás da geração de déficits persistentes e da tendência à pró-ciclicidade, que impactam a discricionariedade da política fiscal em muitas economias emergentes e avançadas, afetam a dinâmica da dívida pública (favorecendo a recorrência de crises fiscais) e reduzem o bem-estar social.  As implicações negativas sobre a estabilidade macroeconômica fundamentam a ênfase colocada na restauração e manutenção de posições fiscais sólidas. (Hemming e Joyce, 2013)

Calmfors e Wren-Lewis (2011) lista diversas classes teóricas de explicações:

(i) assimetrias de informação entre o público e o governo: os eleitores podem não conhecer a posição fiscal do seu país ou as projeções macrofiscais podem ser pouco realistas, por exemplo;

(ii) a impaciência, principalmente dos governos, em razão de objetivos eleitorais, pode levá-los a desejar aumentar o produto interno acima de seu nível natural, por meio de ações fiscais expansionistas;

(iii) conflito intergeracional: geração de eleitores pode não levar em conta que a carga futura aumentará, por exemplo, no caso em que a política fiscal atribua peso pequeno à pressão de gastos associada com o envelhecimento da população (Carlin e Soskice, 2015);

(iv) a competição entre os partidos políticos pode fazer com que os governos não internalizem totalmente o custo da dívida;

(v) o problema dos recursos comuns leva atores do processo orçamentário a pressionar por mais gastos ou incentivos tributários; e

(vi) a inconsistência temporal de compromissos de interesse nacional firmados ex ante, que podem deixar de ser desejáveis por questões eleitorais, por exemplo.

Na sequência, os autores exploram as potencias contribuições que os conselhos fiscais poderiam dar no sentido de reduzir o viés deficitário e fortalecer a disciplina fiscal:

(i) avaliação ex-post para averiguar o comportamento passado da política fiscal, se houve cumprimento das metas ou não;

(ii) avaliação ex-ante sobre a probabilidade de cumprimento das metas fiscais;

(iii) análise de sustentabilidade ou equilíbrio de longo prazo das finanças públicas;

(iv) análise de transparência das contas públicas;

(v) mensuração do custo e do impacto fiscal de proposições de políticas públicas;

(vi) projeções macroeconômicas; e

(vii) formulação de recomendações normativas sobre a política fiscal.

A Tabela 1, extraída de FMI (2013), sintetiza diversas explicações potenciais do viés deficitário, posicionando-as ao lado das funções que as IFIs poderiam exercer no decorrer de seus mandatos para atenuar as imperfeições e distorções existentes na condução da política fiscal, de modo a reduzir a assimetria de informação entre os formuladores de política e os eleitores.

 


  1. Critérios para avaliação de efetividade das IFIs no desempenho fiscal

Apesar da experiência relativamente recente com conselhos fiscais na maior parte dos países, a literatura, a partir de análises econométricas complementadas por nuances narrativas de estudos de casos, tem avançado no sentido de avaliar se eles têm obtido sucesso (se têm sido efetivos) na tarefa de influenciar os formuladores de políticas na direção de políticas fiscais sólidas. (Lledó, 2018)

Além do fato de serem, em sua maioria, instituições novas e heterogêneas entre si, existem muitos desafios metodológicos associados à avaliação empírica do impacto dos conselhos no desempenho fiscal, que derivam, entre outros fatores: i) da existência de causalidade reversa, uma vez que governos mais comprometidos com a disciplina fiscal tendem a ser mais sensíveis à promoção de reformas institucionais e ii) do fato de não serem os únicos elementos no arcabouço institucional encarregadas de encorajar políticas fiscais sustentáveis (Lledó, 2018).

Hagemann (2011) indica que a existência de conselhos fiscais bem desenhados é uma condição necessária para melhorar a performance fiscal, embora a falta de comprometimento político com um objetivo de médio prazo e, em alguns casos, com o próprio mandato dos conselhos, limitaria melhorias duradouras.

Debrun e Kinda (2014), utilizando dados em painel de uma amostra de 58 economias avançadas e emergentes, de 1990 a 2011, e cientes dos desafios de endogeneidade associados à estimação econométrica, relacionam a presença de IFIs com o desempenho fiscal (medido pelo nível do resultado primário), controlados por outros efeitos que influenciam o desempenho fiscal, como o hiato do produto e o nível de endividamento. A conclusão do estudo sugere que a existência de conselhos em si não é suficiente para promover disciplina fiscal (a correlação é positiva, mas não significante em termos estatísticos), o que ocorre apenas quando o conselho apresenta certas características e atribuições:

  1. i) grau de independência com relação às disputas políticas;
  2. ii) papel no monitoramento de regras fiscais;
  3. ii) produção ou avaliação de projeções macrofiscais;
  4. iv) impacto na mídia: como os conselhos fiscais não exercem influência direta sobre a condução da política fiscal, esse canal é importante para ampliar a presença no debate público.

Beetsma et al (2018), utilizando a base de dados sobre conselhos do FMI atualizada até 2016, também traz evidencias empíricas no sentido de que a presença de conselhos fiscais bem desenhados parece reduzir o viés otimista nas projeções orçamentárias e favorecer o cumprimento das regras fiscais.

Lledó (2018) constata, a partir da revisão de diversos estudos empíricos e casos narrativos, que conselhos bem desenhados, dotados de certas características (independência com relação a disputas políticas e impacto na mídia) e funções (produzir ou avaliar projeções macroeconômicas e monitorar o cumprimento de regras fiscais), parecem ter maior capacidade em promover políticas fiscais sólidas.

 

  1. A situação da IFI brasileira em relação às demais

Como se observou na seção 3 deste capítulo, parece haver um consenso na literatura de que o desenho de um conselho efetivo, capaz de melhorar o desempenho da política fiscal, passa, principalmente, pela presença constante no debate público, pelo grau de independência e pelo papel na produção ou avaliação de projeções macroeconômicas e no monitoramento do cumprimento de regras fiscais.

A base de dados da OCDE sobre as IFIs (OCDE, 2019)[6] possibilita mapear algumas dessas características chave e situar o Brasil – que é o único país, além dos membros da organização, monitorado nessa base – em relação aos países membros da Organização.

A base é bastante ampla e permite acessar informações sobre o contexto para estabelecimento, base legal, modelo institucional, relacionamento com o legislativo, independência, liderança, recursos, mandato e funções, publicações, acesso à informação, transparência, apoio consultivo e acordos de avaliação.

Segundo o monitoramento, 28 dos 36 países membros têm IFIs em operação. O Brasil, único país não pertencente à OCDE, também é acompanhado pelo órgão multilateral em sua base de dados que mapeia as principais características dessas instituições.

Na prática, como se observa na Tabela 2, 73% desses organismos se envolvem com projeções macrofiscais (sendo que, algumas delas, como o CBO, dos Estados Unidos, produzem projeções alternativas que servem de base de comparação para as projeções do governo; outras preparam as projeções utilizadas pelo governo, como o OBR do Reino Unido e o CPB da Holanda; enquanto outras endossam ou opinam sobre as previsões oficiais); 70,3% são incumbidas de monitorar o cumprimento das regras fiscais, ao passo que 64,9% têm um papel na análise de sustentabilidade fiscal de longo prazo. Por outro lado, 40,5%, 29,7% e 10,8% apuravam o custo fiscal de iniciativas do governo, realizavam suporte a parlamentares com análises sobre o orçamento e avaliação do custo de plataformas eleitorais, respectivamente.

 

Tabela 2. Funções de uma IFI de acordo com a OCDE

  IFI / Brasil IFIs que compõem a base de dados
  Sim
Projeções macroeconômicas e fiscais  

x

73,0%
Monitoramento de regras fiscais  

x

70,3%
Análise de sustentabilidade fiscal de longo prazo  

x

64,9%
Apuração do custo de iniciativas do governo  

x[7]

40,5%
Suporte direto a parlamentares com análises sobre orçamento  

29,7%
Avaliação do custo de plataformas eleitorais  

10,8%
Fonte: OECD Independent Fiscal Institutions Database (2019). Elaboração dos autores.

 

Mesmo que as IFIs ao redor do mundo tenham papéis e estruturas distintas (“there is no one size fits all model”), refletindo diferentes arcabouços fiscais e circunstâncias que estão por trás da origem de seu estabelecimento, elas apresentam funções convergentes, sendo que a maioria delas exerce as funções principais mapeadas por Debrun e Kinda (2014) para a mensuração de sua efetividade.

Segundo Von Trapp e Nicol (2018) e OCDE (2019), o grau de independência de um conselho fiscal pode ser avaliado por meio de quatro pilares, delineados nos princípios de boas práticas contidos em OCDE (2014).

  1. i) independência técnica: avaliada de acordo com o processo de seleção de pessoas para as IFIs, isto é, se ocorre com base no mérito e na competência técnica, se a duração do mandato é estabelecida de forma independente do ciclo eleitoral e se os critérios para a demissão das lideranças são especificados em legislação;
  2. ii) independência legal/financeira: refere-se ao marco jurídico da instituição e à proteção dos recursos financeiros contra contingenciamentos e interferências políticas. As variáveis desse pilar buscam analisar se a instituição foi estabelecida por legislação primária, se possui uma dotação orçamentária própria para assegurar os recursos para o desempenho de suas atividades e se há um compromisso plurianual de financiamento;

iii) independência operacional: trata-se da autonomia das IFIs em relação às suas operações, considerando-se, ainda, se fazem ou não recomendações normativas de políticas (o que pode colocar em risco a reputação por meio do viés partidário). As variáveis para mensurar a independência operacional incluem os seguintes tipos de critérios: se a instituição tem liberdade para definir o programa de trabalho e para produzir análises por iniciativa própria, se faz recomendação de política e se possui equipe qualificada própria para a execução do mandato.

  1. iv) acesso à informação e transparência: refere-se aos mecanismos de garantia legal para eventuais pedidos de informações requeridas ou viabilizadas por memorandos de entendimento, ao plano de trabalho e demais documentos operacionais publicados e se relatórios e metodologias subjacentes às análises também ficam disponíveis ao público interessado.

A Tabela 3, construída a partir das informações obtidas na base de IFIs da OCDE, coloca em perspectiva a IFI brasileira em relação às instituições dos países membros no quesito da independência. Do ponto de vista formal, observa-se a presença de muitas das medidas delineadas nos quatro pilares, indicando que a IFI brasileira segue as recomendações internacionais. Na seção 5, passaremos a tratar especificamente do caso brasileiro.

Há, de toda forma, certa distância em relação às demais nos itens “dotação orçamentária própria” (presente em 47% das IFIs que compõe a base de dados) e no número de funcionários (apesar de possuir equipe qualificada própria, a quantidade de colaboradores permanentes encontra-se bem abaixo da média dos pares: 9 x 27). O orçamento da IFI brasileira é vinculado ao do Senado Federal, ainda que exista garantia de espaço orçamentário para contratação de pessoal, em ato específico da Comissão Diretora do Senado Federal, como discutiremos à frente. Essas são questões importantes para os próximos passos no processo de “institutional building” da IFI brasileira.

 

Tabela 3. Aspectos relativos à independência

Pilares de independência IFI/ Brasil IFIs que compõem a base de dados
Sim
Independência técnica

Seleção de pessoas baseada no mérito e na competência técnica?

x

 

100%

Termo do mandato estabelecido de forma independente ao ciclo eleitoral?

 

x

 

97%

Critérios para a demissão das lideranças especificados em legislação?

 

x

 

72%

 

Independência legal/financeira

 

 

Instituição estabelecida por legislação primária?

 

x

 

83%

Dotação orçamentária própria?

 

 

47%

Compromisso plurianual de financiamento?

 

 

14%
 

Independência operacional

Liberdade para definir o programa de trabalho?

 

x

 

94%

Liberdade para produzir análises por iniciativa própria?

 

x

 

94%

Faz recomendação de política?

 

 

14%

Número de funcionários que compõem a equipe?

 

9[8]

27[9]

 

Acesso à informação e transparência

Acesso à informação requerida é assegurado pela legislação?

 

x

 

25%

Acesso à informação apenas por memorando de entendimento?

 

 

11%

Acesso à informação por ambos?

 

 

42%

Plano de trabalho e demais documentos operacionais são publicados?

 

x

 

89%

Relatórios e metodologias subjacentes também ficam disponíveis ao público?

 

[10]

 

69%

Fonte: OECD Independent Fiscal Institutions Database (2019). Elaboração dos autores.

Pontes (2018), a partir dos dispositivos da resolução que criou a IFI brasileira, mostra que a instituição apresenta elevado grau de aderência da base normativa e procedimental nas dimensões relativas à independência no desempenho de atribuições e no que se refere à abrangência de atribuições previstas para uma IFI frequentemente apontadas pela literatura e identificadas na experiência internacional – reforçando a impressão inicial que fica da simples análise comparativa a partir dos dados extraídos da base da OCDE.

Uma avaliação mais robusta da aderência em relação às boas práticas internacionais viria da própria OCDE, que produz com frequência relatórios técnicos sobre as IFIs que compõem sua rede[11] com avaliações detalhadas (realizadas pelos pares, membros da própria OCDE e acadêmicos) sobre o desempenho de uma instituição em relação aos princípios de boas práticas, identificando aspectos que podem ser aprimorados como forma de preservar a viabilidade no longo prazo. As análises abrangem tipicamente os elementos de inputs (recursos humanos e financeiros, acesso à informação e independência), outputs (qualidade das publicações e metodologias empregadas) e de impacto do trabalho da IFI em termos da influência no debate público e da ampliação da transparência.

Importante mencionar, de toda forma, que já há um reconhecimento internacional da IFI brasileira com relação à credibilidade de seus trabalhos. No documento “OECD Economics Surveys – Brazil”[12], publicado em 2018, a organização expressou que o Brasil progrediu em sua estrutura fiscal com o estabelecimento de um conselho fiscal que publica relatórios mensais de alta qualidade.

Finalmente, vale destacar que o Fundo Monetário Internacional (FMI) também tem acompanhado o trabalho da IFI do Senado Federal, por meio de reuniões e visitas da chamada Missão do Artigo IV. Em 2017, o FMI reconheceu em texto público a importância da criação da IFI no Brasil[13].

 

  1. Histórico da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal

A Instituição Fiscal Independente (IFI) foi criada pela Resolução do Senado Federal nº 42, de 2016[14], com o objetivo de melhorar a transparência e a disciplina das contas públicas. A IFI é um órgão do Senado, mas com independência para realizar suas funções legais, seguindo as boas práticas internacionais, conforme discutidas nas seções anteriores. Ela é dirigida por um Conselho Diretor e conta com um Conselho de Assessoramento Técnico (CAT), de caráter consultivo, indicado pelo Diretor-Executivo do Conselho Diretor. A independência é garantida pelo mandato fixo dos Diretores e do Diretor-Executivo.

Antes de discutir a experiência da IFI brasileira, destaca-se que as funções da IFI não invadem atribuições do Tribunal de Contas da União (TCU) ou mesmo das Consultorias do Senado e da Câmara. O TCU é um órgão de controle, uma corte de contas com poder judicante. As Consultorias prestam assessoria direta aos parlamentares. A IFI, por sua vez, produz informações – este é o seu poder – na área de contas públicas, por meio de publicações que auxiliem na tarefa de ampliar a transparência e a disciplina fiscal, sem poder judicante e não tendo a missão de prestar consultoria direta[15].

A instalação da IFI se deu no dia 30 de novembro de 2016[16], com a posse do primeiro Diretor-Executivo, o economista Felipe Salto[17], para exercer um mandato de seis anos, sem recondução. Os próximos Diretores-Executivos terão sempre mandatos de quatro anos.

Cabe esclarecer que a indicação do Diretor-Executivo se dá pela Presidência do Senado Federal, conforme o inciso I do parágrafo 2º do artigo 1º da Resolução nº 42. O indicado deve passar por duas etapas para assumir o mandato fixo: arguição pública e aprovação pelo Senado Federal, conforme o parágrafo 3º da mesma Resolução. Segundo o dispositivo, os indicados devem ter notório saber nos temas de competência da IFI e reputação ilibada. Esses requisitos são checados pelo parlamentar relator do processo de indicação e, também, na sabatina realizada pela Comissão Diretora do Senado Federal. A aprovação do indicado deve se dar tanto pela Comissão Diretora quanto pelo Plenário do Senado.

O primeiro Diretor-Executivo indicado foi aprovado pela Comissão Diretora do Senado Federal, em 29 de novembro de 2016[18], após arguição pública realizada pelo colegiado. No mesmo dia, foi aprovado por 50 votos favoráveis no plenário[19]. Houve um voto contrário e duas abstenções. No dia 30 de novembro, como mencionado, ocorreu a cerimônia de posse e o início dos trabalhos da IFI.

Os objetivos da IFI estão bem definidos na Resolução nº 42 e envolvem o trabalho técnico de projeção e análise econômica e fiscal. Isso se dá por meio do cumprimento dos quatro dispositivos legais, fixados no artigo 1º da Resolução:

“I – divulgar suas estimativas de parâmetros e variáveis relevantes para a construção de cenários fiscais e orçamentários;

II – analisar a aderência do desempenho de indicadores fiscais e orçamentários às metas definidas na legislação pertinente;

III – mensurar o impacto de eventos fiscais relevantes, especialmente os decorrentes de decisões dos Poderes da República, incluindo os custos das políticas monetária, creditícia e cambial; e

IV – projetar a evolução de variáveis fiscais determinantes para o equilíbrio de longo prazo do setor público.”

O objetivo fixado no inciso I consiste em elaborar projeções macroeconômicas, a exemplo da trajetória do PIB, da inflação, dos juros reais e nominais, da taxa de câmbio, dentre outras variáveis relevantes para os cenários fiscais. O inciso II determina que a IFI acompanhe as metas fiscais vigentes, comparando-as aos indicadores fiscais, a exemplo do teto de gastos (fixado pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016) e da meta de resultado primário (prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar nº 101, de 2000).

No inciso III, a instituição recebe a incumbência de definir eventos que tenham impacto relevante nas contas públicas e elaborar suas avaliações sobre tais assuntos, a exemplo das reformas previdenciária, tributária e administrativa. Por fim, o quarto inciso manda que a IFI projete a evolução das variáveis fiscais relevantes ao equilíbrio de longo prazo, a exemplo da dívida pública, do déficit primário e nominal, das receitas e despesas do governo federal.

Após a instalação da IFI, o Diretor-Executivo Felipe Salto montou uma equipe, a partir da regulamentação da Resolução nº 42, de 2016, feita pelo Ato nº 10 da Comissão Diretora do Senado Federal, de 2016[20]. O referido ato forneceu os subsídios para recrutar servidores e realocou cargos para contratação de pessoal de fora do Senado. Ainda sem o Conselho Diretor completo, portanto, a IFI passou a funcionar, no âmbito do Senado, mas com total independência para realizar seus estudos e análises.

Isso está em linha com a revisão de literatura apresentada na seção 4. Ainda que a IFI não possua um orçamento autônomo, o espaço fiscal fixo para contratação de pessoal está garantido por lei. Como mencionado, esta é uma área em que a IFI poderá avançar, ganhando mais estrutura e recursos para poder realizar suas atribuições legais. Entende-se que este é um processo de “institutional building”, que está diretamente associado aos resultados produzidos pela instituição.

Vale dizer, no período de quatro anos de funcionamento completados em novembro de 2020, a IFI já havia conquistado um amplo reconhecimento da imprensa, critério importante destacado por Debrun e Kinda, supracitados. Mais à frente, mencionaremos alguns números a fundamentar essa análise. Este reconhecimento foi fundamental para solidificar a posição da instituição diante do parlamento e mesmo para obter melhorias e avanços operacionais e de estrutura, como a própria conquista de um espaço físico adequado para a realização das atividades da IFI.

Logo no início do funcionamento do novo órgão, após recrutar dois servidores do Ministério do Planejamento – um da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) e um do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – e dois servidores efetivos do Senado Federal – um da Consultoria de Orçamentos (Conorf) e outro da Consultoria Legislativa (Conleg) –, a IFI elaborou um modelo de relatório mensal e publicou sua primeira versão em fevereiro de 2017[21]. Logo em seguida, recrutou um economista com experiência em contas públicas para reforçar a equipe, além da secretária, que também exerce funções de auxiliar administrativa.

Ainda sobre a questão da equipe, é importante destacar que, conforme o artigo 2º da Resolução 42, a equipe deve ter sempre 60%, no mínimo, de mestres ou doutores nas áreas de atuação da IFI, requisito sempre cumprido, incluindo todos os servidores efetivos e comissionados que compõem ou compuseram a equipe e a Diretoria.

Esse primeiro trabalho mencionado foi denominado “Relatório de Acompanhamento Fiscal” (RAF), que viria a ser o principal produto da IFI, com periodicidade mensal[22]. Ele já está na 48ª edição, publicada em janeiro de 2021[23]. Sua aceitação por parlamentares, imprensa, especialistas do mercado e academia tem sido muito positiva. Para divulgar o primeiro trabalho da IFI, em fevereiro de 2017, realizou-se coletiva à imprensa[24], da qual participaram jornalistas especializados dos principais veículos de comunicação e economistas e servidores públicos do Executivo e do Legislativo. Apenas no mês de fevereiro de 2017, houve onze menções à IFI na imprensa nacional. Também o Poder Executivo comentou projeções e cálculos publicados no primeiro RAF, cumprindo-se, assim, desde o início, uma função precípua de toda IFI, que é a de estabelecer um contraponto saudável com a área econômica do governo, a partir do acompanhamento macrofiscal.

Em janeiro de 2017, foi publicado um artigo do Diretor-Executivo da IFI, na página A2 do jornal O Estado de S. Paulo, que é útil para entender o contexto, a lógica e os objetivos do novo órgão do Senado: “O papel da Instituição Fiscal Independente”[25]. Nele, o economista explicou as razões da criação do novo órgão em um quadro de crise econômica e fiscal. É importante mencionar que a IFI foi uma resposta do Senado àquela situação conjuntural bastante grave das contas públicas e da atividade econômica. Vale dizer, a economia passava por um biênio, de 2015 a 2016, que viria a ser o pior da série histórico do PIB. As contas públicas também já seguiam por alguns anos apresentando déficit e crescimento da dívida/PIB. Nesse sentido, há um claro paralelo com as experiências de criação e consolidação de instituições ou conselhos fiscais, conforme relatadas pelos autores citados nas seções anteriores deste capítulo.

Para completar a primeira formação do Conselho Diretor, conforme determinado pela Resolução nº 42, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) e a Comissão de Transparência (CTFC)[26] do Senado Federal precisavam fazer suas indicações, proceder à sabatina e aprovação, para em seguida haver a deliberação em plenário. Foram indicados os economistas Gabriel Barros[27], para a vaga da CAE, e Rodrigo Orair[28], para a vaga da CTFC, completando, ainda em meados de 2017, a primeira formação do Conselho Diretor da IFI, ao lado de Felipe Salto.

Cabe ainda explicar a lógica dos mandatos não coincidentes prevista na Resolução 42. O mandato do primeiro Diretor indicado pela CAE, conforme a resolução, seria de quatro anos. Já o mandato do Diretor indicado pela CTFC, de dois anos. Assim, o primeiro Diretor-Executivo teria seis anos, o primeiro Diretor indicado pela CAE, quatro anos, e o primeiro Diretor indicado pela CTFC, dois anos. Os segundos indicados para todas as três vagas teriam sempre mandatos fixos de quatro anos, preservando-se a descontinuidade inicial. A recondução é proibida. Em caso de vacância, substitui-se o Diretor por meio do mesmo processo descrito acima, para que se complete o período remanescente do mandato original, seja para o Diretor-Executivo seja para os demais Diretores.

Essa descontinuidade inicial serve para que as trocas de Diretoria nunca ocorram de maneira concomitante. Esta é uma forma de preservar a blindagem político-partidária da IFI, isto é, a sua independência técnica em relação a essas questões. O mecanismo está em linha com as boas práticas e um dos critérios utilizados pela OCDE, por exemplo, para avaliação da independência das IFIs.

Transcorridos quase quatro anos desde a instalação da IFI, já houve duas trocas na Diretoria. O primeiro Diretor indicado pela CAE renunciou após dois anos de mandato, o que ensejou a indicação de um novo nome para completar o período faltante para os quatro anos. Já o Diretor indicado pela CTFC cumpriu o seu mandato completo e, ao término dos dois anos, a referida comissão indicou um novo nome para exercer, então, conforme a regra da Resolução nº 42, um mandato de quatro anos.

A substituição do Diretor indicado pela CAE transcorreu sem maiores percalços. Foi indicado o economista Josué Pellegrini, que já participava da equipe da IFI, como analista, além de ser Consultor Legislativo do Senado Federal. Pellegrini é Doutor em Economia pela USP, tem livros publicados na área de economia e contas públicas e foi diversas vezes premiado pelo Tesouro Nacional com artigos relevantes. Além disso, tem vasta experiência em docência, tendo sido um dos professores que ajudou a montar a Faculdade de Economia da USP de Ribeirão Preto. O Presidente da CAE fez a indicação, seguida do mesmo processo: sabatina, aprovação na comissão e no plenário. Pellegrini completará o mandato de quatro anos, portanto, conforme prevê a Resolução 42, contando os dois anos iniciais cumpridos pelo primeiro Diretor indicado pela CAE.

Quanto à substituição do Diretor indicado pela CTFC, com o término do mandato, seguiram-se os trâmites já explicados. O indicado foi o economista Daniel Couri, que fazia parte da equipe da IFI desde a sua instalação, sendo Consultor de Orçamento do Senado. Seu mandato será de quatro anos. Couri tem Mestrado em Economia pela UnB e experiência como servidor do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) do Ministério do Planejamento.

Portanto, a atual formação do Conselho Diretor conta com os economistas: Felipe Salto, Josué Pellegrini e Daniel Couri. Todas as decisões sobre a definição dos assuntos a serem tratados pela IFI, dentro do plano de trabalho definido na própria Resolução nº 42, são colegiadas. Ouvem-se os membros da equipe, discutem-se os temas relevantes e fixam-se prazos para as publicações. O Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) é a publicação fixa da IFI e mais importante, no sentido de que cumpre pelo menos três dos quatro objetivos fixados na Resolução nº 42. Além dos doze trabalhos anuais, a IFI ainda publica Estudos Especiais, Notas Técnicas e Comentários da IFI, de acordo com temas discutidos nas reuniões de Equipe e Conselho Diretor, levadas também em consideração as sugestões colhidas nas reuniões do CAT. Sempre no mês de dezembro, realiza-se reunião de planejamento para definir algumas diretrizes a esse respeito.

A equipe técnica da IFI também foi sofrendo alterações em relação ao seu quadro inicial. Como explicado, dois servidores do Senado tornaram-se Diretores, ao longo dos últimos quatro anos. Além disso, os dois servidores cedidos pelo Ministério do Planejamento saíram da equipe, tendo sido substituídos por outros economistas contratados com o espaço orçamentário contido no Ato nº 10 de 2016. Hoje, a IFI conta com um economista com doutorado, dois economistas com mestrado e dois economistas com nível de graduação, além de uma secretária e assistente administrativa. Além disso, há dois estagiários[29] a auxiliar a equipe e os Diretores. Os três diretores funcionam também como analistas, isto é, participam ativamente da elaboração dos produtos da IFI, além de exercerem suas funções administrativas no Conselho Diretor. É importante notar, para que se tenha a dimensão do orçamento de pessoal destinado à IFI, que a formação acima descrita já preenche praticamente 100% do orçamento disponível[30].

Destaca-se que, dentro do processo de “institutional building”, a IFI conseguiu que o Conselho de Assessoramento Técnico (CAT) fosse instalado, em 2019, pelo Presidente do Senado Davi Alcolumbre, conforme prevê o parágrafo 9º do artigo 1º da Resolução 42. Os cinco nomes apontados pelo Diretor-Executivo Felipe Salto foram: Yoshiaki Nakano, Diretor da Escola de Economia de São Paulo da FGV e ex-Secretário da Fazenda de São Paulo; José Roberto Afonso, pesquisador e professor do IDP e Doutor em Economia pela Unicamp; Monica de Bolle, professora da Johns Hopkins University; Gustavo Loyola, ex-Presidente do Banco Central; e Bernard Appy, Diretor do Centro de Cidadania Fiscal.

O CAT foi regulamentado pelo Ato nº 8 do Presidente do Senado, de 25 de março de 2019[31]. Nele, o instala-se o Conselho com os membros indicados pelo Diretor-Executivo da IFI. Os membros não são remunerados e exercem a função de ampla assessoria consultiva, em reuniões organizadas semestralmente. A primeira reunião do Conselho de Assessoramento Técnico foi pública e transmitida pela TV Senado. O evento contou com a presença de autoridades do Executivo e do Legislativo, economistas do mercado e jornalistas[32].

A instalação formal do CAT, ainda que a IFI já contasse com o apoio informal de economistas que vieram a compor o Conselho, foi um passo que completou, por assim dizer, as etapas principais de construção da instituição previstas na Resolução nº 42.

 

  1. Balanço de quatro anos

A IFI é inspirada em experiências internacionais importantes, a exemplo do “Congressional Budget Office” (CBO), nos Estados Unidos, e do “Office for Budget Responsibility” (OBR), no Reino Unido, já mencionados anteriormente. A OCDE congrega essas experiências e acompanha suas atividades por meio de uma rede, da qual a IFI brasileira passou a fazer parte, na categoria de “key partner country”, em base de dados publicada pelo organismo multilateral citada na seção 4.

O Conselho de Finanças Públicas (CFP) de Portugal é uma terceira referência fundamental, não apenas pela proximidade cultura e linguística, mas pela forma de atuação e modelo de governança. A IFI já participou de dois encontros anuais da rede de IFIs da OCDE, na Coreia do Sul e em Portugal. No encontro de Seul, em 2018, o Diretor-Executivo da IFI firmou um memorando de entendimentos para troca de experiências no campo técnico entre a IFI sul-coreana – “National Assembly Budget Office” (NABO) – e a IFI do Senado Federal do Brasil[33]. Na ocasião, o Diretor-Executivo da IFI também fez uma apresentação sobre a IFI brasileira[34].

A rede da OCDE é muito rica, do ponto de vista da troca de experiências, sobretudo para a instituições mais recentemente criadas, como é o caso da IFI brasileira. Como resultado dos diálogos e contatos, a IFI tem conseguido estabelecer trocas constantes de informações, mesmo à distância, coletar informações de outras instituições ao redor do mundo, além de reportar à OCDE os avanços obtidos. Em 2020, o Estudo Especial sobre o modelo macroeconômico da IFI foi enviado à equipe da OCDE, traduzido para o inglês, e a receptividade foi positiva. O avanço no uso de instrumentos e modelagem adequada, nas tarefas das IFIs, é algo fundamental para se buscar um resultado satisfatório em termos de análises e projeções econômicas e fiscais, incluindo simulações de impacto, a exemplo dos estudos publicados pela IFI em 2019, ao longo da tramitação da reforma da previdência no Congresso Nacional.

Por ocasião do aniversário de quatro anos da IFI, no fim de novembro, o jornal O Estado de S. Paulo publicou duas reportagens relatando as atividades e resultados obtidos pela instituição, inclusive trazendo a opinião de economistas da OCDE a respeito da IFI brasileira[35]. A atuação junto à imprensa é fundamental para o desempenho da IFI, como mostramos na revisão de literatura deste capítulo. A esse respeito, a IFI consolida, diariamente, em seu site[36], as citações de seus trabalhos pela imprensa. A partir disso, é possível observar que, em quatro anos de funcionamento, a IFI teve 2.692 aparições na imprensa nacional, o que corresponde a uma média de 1,8 ao dia. A evolução, entre o fim de 2016 e 2020, pode ser vista na Tabela 4 a seguir[37].

 Tabela 4. Aparições da IFI do Senado Federal na imprensa

Do ponto de vista do número de publicações, a IFI já produziu 48 Relatórios de Acompanhamento Fiscal (RAFs), 14 Estudos Especiais (EEs), 45 Notas Técnicas (NTs) e 9 Comentários da IFI (CIs), totalizando 2.911 páginas publicadas. O RAF contém, na sua versão atual, três seções básicas: Contexto Macroeconômico, Conjuntura Fiscal e Orçamento[38]. O objetivo do produto é analisar os principais indicadores econômicos e fiscais, acompanhar as publicações do governo cotejando suas projeções e análises às realizadas pela IFI, acompanhar o cumprimento das metas fiscais e apresentar os cenários projetados pela instituição.

Duas vezes ao ano, em maio e em novembro, são revisados os três cenários de estimativas da IFI: base, otimista e pessimista, e reapresentados no RAF, que então assume formato um pouco distinto. Em anos atípicos, com foi 2020, em razão da crise pandêmica da Covid-19, a IFI acaba apresentando maior número de revisões. Em 2020, foram quatro RAFs contendo revisões dos cenários prospectivos para dívida e déficit público, receitas e despesas do governo central, PIB, inflação, taxa de juros, taxa de juros real, taxa de câmbio, mercado de trabalho, dentre outras variáveis. Além dos textos, também veiculamos arquivo em planilha eletrônica com todos os dados, tabelas e gráficos contidos na publicação[39].

Os EEs servem ao propósito de analisar um tema com maior profundidade e pode ser metodológico ou temático. Têm como característica trazer revisão de literatura, comparação internacional e uso de instrumentos metodológicos para avançar sobre determinado assunto. A IFI já realizou EEs sobre: estimativa do hiato do produto; projeções de dívida bruta; situação fiscal dos estados; previdência; metodologia de projeção do PIB; reservas internacionais; operações compromissadas; despesas de pessoal; previdência estadual; balanço patrimonial da União; Regra de Ouro; dentre outros[40].

As NTs são estudos de menor alcance, mas também seguem rigor técnico e analítico, servindo, normalmente, para explorar assuntos que subsidiarão as projeções, cálculos de impacto e elaboração de cenários pela IFI. Dentre os temas tratados em NTs, estão: gastos em Defesa Nacional; cálculos de efeito fiscal do Benefício Emergencial do Emprego (BEm); análises das finanças dos estados; cálculo de impacto do Auxílio Emergencial a Vulneráveis (AE); impacto do Programa de Contrato Verde e Amarelo; custo de carregamento das reservas internacionais; impacto dos juros na dívida pública; análise das propostas de reforma tributária; diversos trabalhos sobre a reforma da previdência; Orçamento Impositivo; Desvinculação das Receitas da União (DRU); FAT e BNDES; Abono Salarial; Benefício de Prestação Continuada (BPC); relação Tesouro-Banco Central; riscos fiscais da União; FGTS; impacto de decisão do STJ sobre aposentadorias; teto de gastos; elasticidade receita-PIB; deflator do PIB; gastos tributários; capacidade de pagamento dos estados (capag); cálculos sobre o resultado primário mensal; atividade econômica e PIB; análise da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO); dentre outros.

Por fim, os Comentários da IFI (CIs), criados mais recentemente, em 2019, servem para manifestações que precisem ser mais rápidas a respeito de algum evento da conjuntura ou, ainda, posicionamentos institucionais do Conselho Diretor. Um exemplo recente foi a análise do teto de gastos assinada pelos três membros do Conselho Diretor da IFI[41].

Vale registrar que eventos da conjuntura política, fiscal e econômica influenciam a escolha dos temas. Em 2019, por exemplo, a IFI publicou diversos trabalhos sobre a reforma da previdência, acompanhando sua tramitação e elaborando cálculos de impacto de cada medida e alteração proposta no parlamento. Os cálculos foram utilizados para cotejamento com os números do governo federal, cumprindo-se, assim, a função de qualificar o debate público e colaborar para a transparência e a disciplina fiscal. Já em 2020, a crise da covid-19 requereu revisões mais frequentes dos cenários e cálculos de impacto fiscal das diversas medidas anunciadas, incluindo análises com microdados sobre o Auxílio Emergencial a Vulneráveis, as transferências a estados e municípios, o apoio às empresas e os gastos em saúde.

A respeito deste último tópico, em 2020, a IFI desenvolveu um painel de dados para acompanhamento da execução do chamado Orçamento de Guerra, instituído por Emenda Constitucional, para facilitar o acesso da sociedade a informações sobre os gastos relacionados à covid-19[42]. Além desta base especial, a IFI mantém, em seu site, um repositório de dados com séries calculadas pela instituição ou dados por ela trabalhados[43].

Além dos produtos publicados, a IFI realiza outras atividades: organização de seminários técnicos (ou webinários, como em 2020[44]); participação em Comissões do Senado Federal e da Câmara dos Deputados; participação específica na CAE para apresentar revisões de cenários e acompanhamento fiscal (prevista na Resolução nº 42); reuniões com organismos multilaterais, membros dos órgãos da área econômica do Executivo, órgãos de assessoramento do Legislativo, Tribunal de Contas da União, economistas do mercado, parlamentares e jornalistas; realização de palestras ou conversas com instituições privadas e públicas para apresentação dos trabalhos da IFI; participação em seminários acadêmicos; publicação de artigos e concessão de entrevistas à imprensa; e reuniões com acadêmicos da área de economia e contas públicas.

Por fim, ainda sobre as atividades da IFI, nestes quatro primeiros anos, vale destacar o recebimento de dois Prêmios do Tesouro Nacional. Um deles, na 1ª colocação, foi concedido ao trabalho sobre reservas internacionais (custo, nível ótimo e relação com a dívida pública) publicado pelo Diretor Josué Pellegrini, na forma de Estudo Especial[45], e submetido à referida premiação, ocorrida em 2017. O segundo prêmio, uma menção honrosa, também no âmbito do Prêmio de Monografias em Finanças Públicas do Tesouro Nacional, foi concedido em razão do Estudo Especial desenvolvido pelo analista da IFI Alessandro Casalecchi, pelo então Diretor Rodrigo Orair, com apoio do estagiário Pedro Henrique Oliveira. O trabalho versa sobre as despesas dos regimes próprios dos servidores civis da União[46].

Além disso, o reconhecimento dos parlamentares tem sido crescente. A IFI recebe demandas que são, sempre que possível, adequadas aos trabalhos desenvolvidos pela instituição, preservando, assim, sua independência. Realiza, com frequência, reuniões com parlamentares para discutir questões fiscais, cenários e conjuntura econômica. O uso dos relatórios da IFI pelos gabinetes parlamentares é também um indicativo relevante.

Os desafios, para os próximos anos, concentram-se no maior fortalecimento institucional, incluindo questões de estrutura e orçamento, na manutenção do ritmo de publicações e da repercussão na imprensa especializada e geral, na ampliação da equipe e no desenvolvimento de mais trabalhos envolvendo o cálculo de medidas que tenham efeito fiscal relevante. Na parte de elaboração de projeções e no acompanhamento das metas fiscais, entende-se que a IFI já avançou de maneira significativa, mas pode dar novos passos para consolidar metodologias de projeção, por meio de publicações técnicas, tempestivamente. Uma questão adicional, que deve ser debatida, é a eventual vinculação constitucional da IFI, a partir da experiência acumulada até aqui e do modelo vigente, fundamentado na Resolução do Senado, que tem força de lei.

 

  1. Conclusões

Neste capítulo, discutimos o contexto geral de criação e consolidação das Instituições Fiscais Independentes (IFIs) ou Conselhos Fiscais, à luz da literatura relevante e da experiência internacional. Em seguida, discute-se o caso da IFI do Senado Federal, o conselho fiscal brasileiro, criado em novembro de 2016 como resposta à crise econômica e fiscal vivenciada pelo Brasil. Uma preocupação central dos países europeus, principalmente, que criaram boa parte de suas instituições no pós-crise de 2008, é o chamado “viés deficitário” da política fiscal e a necessidade de se ter maior acompanhamento e transparência nas contas públicas. As regras fiscais, isoladamente, não se mostraram suficientes para levar a condutas fiscais mais responsáveis, o que está na gênese das IFIs.

Os estudos disponíveis sobre a efetividade da atuação das IFIs indicam que elas exercem seu papel em contextos em que está garantida a independência de seu corpo diretivo, sobretudo na definição dos estudos, análises e trabalhos que escolhe desenvolver. Também a imprensa é fundamental para a atuação dos “watchdogs”, pelo fato de que essas instituições têm o único poder de produzir informações. Assim, para que sua atuação seja efetiva para ajudar a qualificar o debate e melhorar a disciplina fiscal, o uso dos dados produzidos pela imprensa torna-se uma dimensão central.

No caso da IFI brasileira, os quatro anos de atuação revelam que são bastante positivos os resultados colhidos, com ampla presença na mídia e crescente consolidação interna, no Senado Federal, ao qual a IFI está vinculada. O desafio, daqui em diante, é avançar na estrutura de pessoal, orçamentária, mantendo e ampliando o escopo dos produtos entregues pela instituição.

 

——————————————————-

Referências bibliográficas

KOPITS, G. The case for an independent fiscal institution in Japan. International Monetary Fund, 2016.

International Monetary Fund. 2013. “The Functions and Impacts of Fiscal Councils”, IMF Policy Paper, Washington, DC.

HEMMING, R. e PHILIP, J., 2013, “The Role of Fiscal councils in Promoting Fiscal Responsibility”, in Marco Cangiano, Teresa Curristine and Michel Lazare (eds.), Public Financial Management and Its Emerging Architecture, 2013 (Washington, DC: International Monetary Fund).

CALMFORS, L. e WREN-LEWIS, S., 2011, “What Should Fiscal Councils Do?” Economic Policy, 26, pp. 649-695.

CARLIN, W.; SOSKICE, D. Macroeconomics: Institutions, instability, and the financial system. Oxford University Press, 2015.

LLEDÓ, V. The effectiveness of fiscal councils: Emerging international evidence em Beetsma Roel and Xavier Debrun (ed.) Independent Fiscal Councils: Watchdogs or lapdogs? CEPR, 2018.

HAGEMANN, R. (2011), “How Can Fiscal Councils Strengthen Fiscal Performance?”, OECD Journal: Economic Studies, Vol. 2011/1.

DEBRUN, X. e KINDA, T. Strengthening Post-Crisis Fiscal Credibility—Fiscal Councils on the Rise. A New Dataset. International Monetary Fund, 2014.

BEETSMA et al. Independent Fiscal Councils: Recent Trends and Performance. International Monetary Fund, 2018.

VON TRAPP, L. e NICOL, S. Designing effective independent fiscal institutions. OCDE (2018).

PONTES, F. (2018). Governança fiscal num contexto de elevada rigidez da despesa: uma análise da aderência do caso brasileiro aos padrões internacionais. Dissertação apresentada ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2018.

______________________________________________________

[1] Felipe Scudeler Salto é diretor-executivo da IFI e membro do Instituto Fernand Braudel.

[2] Rafael da Rocha Mendonça Bacciotti é analista da IFI.

[3] Pode ser consultado em: https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:32013R0473&from=EN

[4] Disponível em: http://www.oecd.org/gov/budgeting/recommendation-on-principles-for-independent-fiscal-institutions.htm

[5] Disponível em: https://www.imf.org/external/np/fad/council/

[6] OECD Independent Fiscal Institutions Database (2019), http://www.oecd.org/gov/budgeting/OECD-Independent-Fiscal-Institutions-Database.xlsx  

[7] A IFI brasileira estima o custo de eventos fiscalmente relevantes, por exemplo, a reforma previdenciária que teve aprovação definitiva em 2019 e as medidas de combate à crise do coronavírus ao longo de 2020.

[8] No Brasil, a equipe é composta por 8 analistas (já incluídos os 3 diretores) e 1 secretária e assistente administrativa. Note-se que os 3 diretores também produzem estudos técnicos, junto com os analistas.

[9] Média simples do número de funcionários (tempo integral) das 36 IFIs em operação.

[10] No Brasil, a IFI explica e mostra suas hipóteses e tem como objetivo publicar todas as metodologias e questões técnicas no futuro. Em setembro de 2020, por exemplo, foi publicado o Estudo Especial n. 13 sobre a metodologia de previsões das variáveis macroeconômicas, que pode ser acessado aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/estudos-especiais/2020/setembro/estudo-especial-no-13-metodologia-de-previsao-das-variaveis-macroeconomicas-set-2020-1

[11] Disponíveis na página da OCDE sobre o “Network of Parliamentary Budget Officials and Independent Fiscal Institutions”: http://www.oecd.org/gov/budgeting/parliamentary-budget-officials/

[12] Disponível em: http://www.oecd.org/economy/surveys/Brazil-2018-OECD-economic-survey-overview.pdf

[13] Veja aqui a matéria da Agência Senado sobre o assunto, com o link para acesso ao relatório do FMI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/08/07/fmi-destaca-criacao-da-instituicao-fiscal-independente

[14] A Resolução 42 foi um projeto inserido na chamada “Agenda Brasil”, do Senado Federal, tendo sido desenvolvida pelo então Presidente Renan Calheiros e pelo Senador José Serra, com apoio do corpo técnico do Senado, destacando-se o papel do servidor do Senado Federal Leonardo Ribeiro neste processo. Acesse aqui a íntegra da Resolução – https://legis.senado.leg.br/norma/582564/publicacao/17707278

[15] Ainda que, como resultado do trabalho, os parlamentares se beneficiem do trabalho, acessando os relatórios, dialogando com a equipe e o corpo diretivo da IFI sobre conjuntura, cenários etc.

[16] Matéria jornalística sobre a posse do 1º Diretor-Executivo e início das atividades da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/11/30/diretor-executivo-da-instituicao-fiscal-independente-toma-posse

[17] Salto tem experiência em análise das contas públicas, tendo trabalhado em consultoria, academia e no Legislativo. Possui Mestrado em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e experiência em docência na mesma instituição. Foi também Assessor Legislativo no Senado e, à época, havia publicado o livro “Finanças públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade” (Editora Record, 2016. Prêmio Jabuti – 2017), junto com o economista Mansueto Almeida, ex-Secretário do Tesouro Nacional. Foi um dos primeiros economistas do mercado a falar sobre a chamada “contabilidade criativa”, ainda em novembro de 2009, em parceria com o ex-Ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega. https://www.estadao.com.br/noticias/geral,contabilidade-criativa-turva-meta-fiscal,474130

[18] Matéria jornalística sobre a criação da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/11/29/felipe-salto-e-aprovado-para-direcao-executiva-da-instituicao-fiscal-independente

[19] Vídeo da aprovação em plenário da primeira indicação à Diretoria-Executiva da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2016/11/senado-aprova-indicacao-de-felipe-salto-para-diretor-da-instituicao-fiscal-independente

[20] Acesse aqui o Ato nº 10 e modificações feitas no mesmo ano, pelo Ato nº 18 – https://www12.senado.leg.br/ifi/sobre-1/copy_of_sobre

[21] O Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) nº 1 pode ser acessado aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/relatorio/2017/fevereiro-de-2017/raf-relatorio-de-acompanhamento-fiscal-fev-2017

[22] Reportagem da Agência Senado sobre o primeiro relatório da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/02/02/instituicao-fiscal-aponta-que-emenda-do-teto-de-gastos-nao-conseguira-tirar-pais-do-vermelho

[23] Acesse aqui o RAF nº 48 – https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/583296/RAF48_JAN2021.pdf

[24] Vídeo sobre a 1ª coletiva à imprensa realizada pela IFI –  https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2017/02/instituicao-fiscal-independente-retomada-economica-depende-de-novas-medidas

[25] Leia aqui a íntegra do artigo – https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-papel-da-instituicao-fiscal-independente,10000097557

[26] Esta Comissão foi alterada, desde a publicação da Resolução 42, mas a sua designação atual é esta: CTFC. A alteração implicou mudança no texto da Resolução 42, que pode ser vista no link indicado anteriormente, no texto compilado da norma.

[27] Gabriel Barros já era membro da equipe de analistas da IFI, com experiência em análise das contas públicas, no setor privado, em banco e no Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV

[28] Rodrigo Orair é pesquisador do Ipea, com experiência na análise das contas públicas e da economia nacional, sobretudo no assunto sistema tributário nacional.

[29] Para fins da comparação apresentada na seção 4, não consideramos os estagiários, pois ainda em processo de formação.

[30] Veja os currículos dos Diretores e Equipe da IFI aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/sobre-1/copy_of_equipe

[31] Acesse aqui o Ato do Presidente do Senado Federal que criou o CAT – https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/100325?sequencia=145#diario

[32] Os anais do evento inaugural podem ser encontrados aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/conselho/sobre-1

[33] Veja aqui o Memorando de Entendimentos – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/apresentacoes-e-outros-documentos/2018/julho/memorando-de-entendimento-entre-o-national-assembly-budget-office-da-republica-da-coreia-e-a-instituicao-fiscal-independente-do-senado-federal-do-brasil

[34] Acesse aqui o documento apresentado em Seul – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/apresentacoes-e-outros-documentos/2018/julho/the-creationand-operationof-theindependentfiscal-institutionof-thebrazilianfederal-senate-oecd

[35] Matérias sobre os quatro anos de atividades da IFI – 1. https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ifi-faz-parte-de-rede-global-de-monitoramento,70003533490 e 2. https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,como-funciona-o-cao-de-guarda-das-contas-publicas,70003533476

[36] Veja o “IFI na Mídia”, em nosso site –  https://www12.senado.leg.br/ifi/

[37] Além disso, os membros da IFI publicaram, no período, 39 artigos de opinião em diferentes veículos.

[38] Durante algum tempo, a IFI publicava algumas análises tópicas dentro do próprio RAF, mas passou a criar produtos específicos para atender a esse objetivo.

[39] Os arquivos completos dos Relatórios de Acompanhamento Fiscal (RAF) podem ser acessados aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/relatorio-de-acompanhamento-fiscal

[40] Todos os Estudos Especiais (EEs) da IFI podem ser acessados aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-estudos-especiais.

[41] Comentários da IFI (CI) nº 9 – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/comentarios-da-ifi/ci-comentario-da-ifi-no-9-consideracoes-sobre-o-teto-de-gastos-da-uniao

[42] O painel covid pode ser acessado aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/covid-19/painel-de-creditos-covid-19

[43] Acesse aqui para consultar o repositório da IFI – https://www12.senado.leg.br/ifi/dados/dados

[44] No canal da IFI, no YouTube, podem ser encontrados os vídeos das gravações dos webinários realizados em 2020 e outros vídeos elaborados pela instituição ou decorrentes de entrevistas – www.youtube.com.br/instituicaofiscalindependente.

[45] Veja aqui a íntegra do Estudo Especial nº 1 – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/estudos-especiais/2017/marco-de-2017/estudo-especial-no-01-o-custo-fiscal-das-reservas-mar-2017

[46] Veja aqui a íntegra do Estudo Especial nº 10 – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/estudos-especiais/2019-1/julho/estudo-especial-no-09-despesas-do-rpps-dos-servidores-civis-uniao-jul-2019

 

* Capítulo do livro Governança Orçamentária no Brasil, organizado por Leandro Freitas Couto e Júlia Marinho Rodrigues (Brasília: IPEA, 2021), disponibilizado em early view no site do IPEA.

]]>
Democracia, bem comum e prosperidade no Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3553&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=democracia-bem-comum-e-prosperidade-no-brasil Wed, 05 Jan 2022 14:33:22 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3553 Democracia, bem comum e prosperidade no Brasil

 

O que há de errado com a economia brasileira?

 

Por Eiiti Sato*

 

Democracia e prosperidade

Desde o fim dos governos militares, diante de qualquer problema, os sucessivos governos no Brasil têm insistido na sua preocupação com a “defesa da democracia”, como se fora uma explicação e até uma justificativa para qualquer dificuldade ou para qualquer desenvolvimento em curso. A democracia, no entanto, é um conceito que, no mundo real, só existe no plural, isto é, trata-se de um conceito que, quando levado à prática, transforma-se em “democracia americana”, “democracia francesa”, “democracia britânica” etc., que são substancialmente diferentes entre si, tanto em suas trajetórias históricas quanto na organização e no funcionamento de suas instituições políticas. Além disso, entre as democracias, há também diferenças quanto ao desempenho econômico, que é uma dimensão essencial para qualquer nação tanto na esfera doméstica quanto nas relações com outras nações.

Uma confusão muito frequente nas análises correntes entre regimes e formas de governo é imaginar que cada forma de governo, inevitavelmente, se associa a um determinado padrão de desempenho no funcionamento do Estado e da economia quando, na realidade, monarquias ou repúblicas podem ser mais autoritárias ou mais democráticas, e podem também ser bem administradas ou podem ser mal governadas. Em termos de padrão, ou de prática democrática, uma monarquia pode ser muito mais parecida com uma república do que dois países que adotam formalmente regimes semelhantes com eleições periódicas de seus governantes e de seus deputados. Durante os muitos séculos em que as monarquias governavam a Europa, havia monarquias tirânicas e havia também monarquias governadas por príncipes sensatos, prudentes e sábios. Ou seja, havia diferenças marcantes nos regimes monárquicos que governaram por séculos a Europa. Em geral, regimes tirânicos tinham mais dificuldades para promover a prosperidade por muitas razões, entre as quais estava o fato de que regimes autoritários tendiam a se fechar em si mesmos e, em virtude da desconfiança em relação às mentes independentes, geralmente os tiranos tendiam a desprezar o trabalho e a criatividade de mentes engenhosas e capazes. Na história do Brasil, embora o movimento pela República justificasse suas demandas sobre “vícios da monarquia”, as crônicas relatam que Rojas Paul – presidente da Venezuela – ao tomar conhecimento da Proclamação da República no Brasil em 1889, teria lamentado “Este é o fim da única república que jamais existiu na América”.[1]

Em Siena, há um famoso conjunto de afrescos de meados do século XIV pintados por Ambrogio Lorenzetti para decorar o Salão da Paz no Palácio Público de Siena, que ilustra essa dicotomia entre reinos governados por regentes sensatos e benéficos ao povo e reinos governados por tiranos.[2] Esses afrescos retratam bastante o entendimento da época e identificam o Bom Governo com monarcas portadores de virtudes como o senso de justiça, a honestidade, a temperança e a preocupação com a busca do bem comum, e o resultado desse bom governo seria um ambiente de ordem e prosperidade que beneficiava todo o povo, inclusive o próprio governante, que se tornava respeitado e próspero como seu povo. Por outro lado, no afresco pintado na parede em frente, Lorenzetti retratou o que seria um Mau Governo, que seria caracteristicamente comandado por um rei tirano, sem qualquer preocupação com o bem comum, e marcado por vícios como o egoísmo, a inveja e a crueldade, espalhando a desconfiança e o divisionismo entre seus governados. O produto desse governo tirânico, dominado por vícios, seria um reino assolado pela pobreza, e por um ambiente de desconfiança, e pela infelicidade. Esse ambiente, dominado pelo egoísmo a pela falta de confiança, afasta qualquer possibilidade de ações coletivas tais como investir em negócios e apostar no futuro.

Assim, há muito tempo que a percepção comum em toda parte é a de que a prosperidade é um produto que não depende tanto de formas de governo, mas muito mais das virtudes de seus governantes e da preocupação genuína com a promoção do bem comum. Em outras palavras, mais importante do que formas de governo é a maneira como os governantes encaram suas responsabilidades e como as instituições do Estado são manejadas por aqueles que ocupam cargos de liderança e de responsabilidade pública em seus países. Em suma, o regime considerado democrático não constitui garantia de um Estado operante e de governos capazes de promover o progresso e a prosperidade da nação. No caso do Brasil, há vários fatos que, claramente, indicam que, muito embora o regime possa ser caracterizado como “democrático”, o Estado claramente está doente, isto é, suas instituições públicas e seus governantes não cumprem, ou cumprem apenas precariamente o papel que deveriam cumprir.

Um Estado doente

De acordo com dados do Banco Mundial, entre 2010 e 2020 a economia brasileira teve um desempenho muito ruim – na realidade, uma recessão de mais de 30% em dez anos – e, pior, os dados mais recentes indicam que esse baixo desempenho não tem perspectivas de melhorar nos próximos anos. A economia brasileira, que vinha se mantendo como a 9ª economia do mundo, vai saindo da pandemia como a 13ª economia mais rica do mundo em termos nominais. O que parece claro é que esse desempenho ruim não pode ser atribuído à pandemia e a fatores externos, uma vez que o Brasil ficou bem abaixo da média mundial e abaixo até mesmo da média dos países da região. Considerando as dimensões e o peso da economia brasileira na região, as cifras sugerem que o Brasil foi o principal responsável por “puxar” para baixo a média ruim da América Latina e Caribe.

_________________________________________

Taxa de Crescimento no período 2010-2020 (%)

 

Mundo:                                    27,8

Brasil:                                      (-34,5)

Argentina:                                  (-9,5)

Chile:                                           15,8

Peru:                                            36,9

Uruguai:                                      33,0

México:                                       1,7

Am. Latina & Caribe         (-12,3)

____________________________________________

Fonte: Banco Mundial

O Brasil parece ser hoje uma nova versão da expressão “the sick man of Europe” usada pelo czar Nicolau II para designar o Império Otomano que, nos fins do século XIX, vivia o final de um período de continuada decadência, marcado por tensões políticas internas, pela desindustrialização e pelo crescente empobrecimento. No Brasil, embora não haja grandes tensões internas, a desindustrialização é bastante visível e a desconexão com a economia mundial é crescente, em um ambiente em que até mesmo economias comandadas por um Partido Comunista, como a China e o Vietnã, aumentam seus níveis de integração com a economia mundial.

Além do sentimento de satisfação ou de preocupação, o desempenho econômico pode ser visto também como sintoma de um ambiente político e institucional que favorece ou que dificulta a geração de atividade econômica que resulta em riqueza ou empobrecimento. É certo que o desempenho econômico de um país depende de muitos fatores, mas isto não quer dizer que não seja possível apontar um ou mais fatores que, aparentemente, desempenham papel de relevo no bom ou no mau desempenho de uma economia. Ao se observar o caso brasileiro, a primeira conclusão inevitável, como mostram os dados acima, é que as possíveis razões ou fatores que podem explicar o desempenho negativo da economia, devem ser procurados na esfera doméstica. Além disso, considerando o fato de que o desempenho ruim é um fenômeno consistente, que se estende por sucessivos governos de diferentes orientações políticas, também não se pode culpar eventuais equívocos ou falhas na formulação de políticas econômicas. Assim, só resta entender que os possíveis fatores ou causas do baixo desempenho econômico devem estar situados no ambiente institucional, que orienta a vida econômica e política da nação. Em outras palavras, a única conclusão possível parece ser o entendimento de que Estado está doente – the sick man of Latin America – e a principal enfermidade é a deterioração da ordem, que gera incertezas e afasta os investimentos, sejam de origem doméstica ou internacional. A deterioração da ordem não aparece (por enquanto) na forma de inquietação social, mas na forma de incapacidade de as instituições transmitirem confiança e segurança para a nação e de uma agenda de preocupações da classe governante desacoplada das expectativas das populações. São muitos os sintomas bastante visíveis da deterioração da ordem que, de muitas formas, comprometem o crescimento econômico e complicam até mesmo o dia-a-dia dos cidadãos.

A política e o significado da deterioração da ordem

De forma resumida, a deterioração da ordem pode ser definida como a incapacidade de o Estado fazer cumprir as leis vigentes, isto é, de exercer com eficácia sua soberania. Desde Jean Bodin, nos primórdios do Estado moderno, os teóricos definem soberania como sendo um fenômeno com duas faces. Uma face externa pela qual o Estado soberano revela ser capaz de agir com independência diante de outros Estados e, de outro lado, uma face interna pela qual as instituições do Estado soberano revelam ser capazes de produzir leis e de exercer o poder para fazer com que essas leis sejam cumpridas com respeito e com eficácia no âmbito de seu próprio território. No mundo atual essas duas faces da soberania – externa e interna – tornaram-se mais integradas e, pode-se dizer, que se tornaram até mesmo complementares.[3] Com efeito, na política internacional desde os fins do século XX, as fronteiras perderam muito de sua importância tradicional como peça essencial de demarcação física do espaço de soberania e de independência em relação a outras nações. Excetuando casos absolutamente excepcionais como o da Coreia do Norte que, por razões ideológicas, continua mantendo pesada vigilância militar sobre suas fronteiras, no mundo em geral, as fronteiras são vigiadas e observadas apenas em relação ao fluxo de mercadorias e de migrantes, ou ainda na movimentação de recursos financeiros, para os quais as fronteiras físicas não passam de referenciais contábeis. Ou seja, de muitas formas, as faces externa e interna da soberania hoje se integram e são, na verdade, muito mais complementares do que elementos de separação como o foram em tempos passados. A existência de uma União Europeia é um exemplo visível dessa complementaridade entre os elementos da independência externa e o bom funcionamento das instituições domésticas. Os países que formam a União Europeia jamais deixaram de valorizar a sua independência e a sua individualidade, mas não viram grandes problemas, na verdade viram muitas vantagens em se integrarem em um arranjo regional. Outro exemplo interessante é o caso das fronteiras dos EUA com o Canadá e com o México. Com o Canadá raramente se tem notícia de problemas de fronteira, uma vez que muitos padrões econômicos e sociais internos dos dois países guardam muitas semelhanças entre si enquanto, por outro lado, na fronteira com o México, as notícias na imprensa sobre problemas e preocupações são frequentes, inclusive porque o México tem sido destino de muitas correntes migratórias que tentam ingressar nos EUA em vista das dificuldades vividas por muitas populações em seus países de origem.

O Brasil, que costumava apresentar com orgulho sua história de grande país receptor de migrantes do mundo todo, nos últimos anos, para tristeza da nação, tem sido crescente o número de brasileiros presos tentando entrar ilegalmente nos EUA pelas fronteiras do México. Assim, no caso do Brasil de hoje, a face doméstica do exercício da soberania é que tem sido desafiada de forma bastante generalizada comprometendo a ordem e o funcionamento regular das atividades civis, trazendo como efeito o comprometimento da sua posição da esfera internacional de muitas maneiras.

Do ponto de vista da construção da ordem, o cumprimento e o respeito às leis domésticas são essenciais, uma vez que constituem os sinais mais visíveis daquilo que é valorizado e daquilo que é rejeitado pela nação. Com efeito, a aplicação das leis e o funcionamento da ordem doméstica têm sido continuamente desafiadas no Brasil por variadas forças ou grupos de indivíduos, por vezes estruturados em organizações, tais como traficantes que passam a dominar bairros e regiões inteiras de grandes cidades, grupos marginalizados que formam guetos e que simplesmente se recusam a cumprir as leis vigentes. Há também os interesses corporativos geralmente organizados em sindicatos, muitos deles entranhados no próprio Estado, que são capazes de manter a paralisação de serviços públicos essenciais para a população por semanas e até por meses seguidos. A ordem é desafiada até mesmo por grupos difusamente definidos que alegam direitos de etnias sobre áreas urbanas ou rurais, que fazem prevalecer suas vontades mesmo que precariamente sustentados por documentos ou por meio de outros comprovantes previstos em lei. Uma breve observação de alguns fatos e cifras pode ser bastante ilustrativa e esclarecedora do fenômeno.

Indicadores da deterioração da ordem interna

Um primeiro indicador ou componente institucional dessa deterioração da ordem pode ser observado nos índices de criminalidade de todos os tipos no Brasil que são substancialmente mais elevados do que o da esmagadora maioria dos países. No Brasil, os homicídios são contados anualmente aos milhares. Se forem incluídas as mortes no trânsito, as cifras de mortes violentas praticamente dobram, contrastando fortemente com os padrões internacionais. Enquanto em outros países o número de assassinatos varia em torno de um ou dois assassinatos por ano para cada grupo de 100 mil habitantes, no Brasil esse índice tem permanecido acima de 20 assassinatos a cada ano por grupo de 100 mil habitantes. Nas grandes cidades brasileiras há bairros ou setores urbanos em que as forças policiais são virtualmente impedidas de exercer seu trabalho de contenção do tráfico de entorpecentes e de outros ilícitos tais como construções irregulares de moradias e comercialização de produtos contrabandeados e de sinais de TV a cabo por grupos criminosos que se apropriam criminosamente dos sinais e dos programas de empresas legalmente organizadas. Os casos mais notáveis são as favelas do Rio de Janeiro e a “cracolândia” e a “zona do Glicério” em São Paulo, mas em toda grande cidade brasileira há bairros inteiros nos quais comerciantes e cidadãos ficam à margem da autoridade e da proteção do Estado, vivendo à mercê de grupos de foras-da-lei de todos os tipos. Fenômenos geralmente tratados de forma distinta como a violência contra a mulher e contra crianças fazem parte desse quadro mais geral do fracasso do Estado em proteger e dar segurança ao indivíduo contra o crime e a violência em todas as suas formas. Além dos efeitos imediatos em termos de sofrimento e de frustração, a criminalidade elevada compromete de muitas formas o crescimento econômico, começando pelo estímulo a atividades ilegais, que apenas consomem recursos públicos sem proporcionar retribuição na forma de impostos. Atividades econômicas que não conseguem se desenvolver em um ambiente de insegurança como a indústria do turismo (eventos, hotelaria, bares e restaurantes etc.) são também formas pelas quais a criminalidade prejudica o aparecimento e o desenvolvimento de atividades econômicas. Além disso, de forma generalizada, o comércio e a indústria se ressentem diretamente dos elevados custos para compensar a falta de segurança que deveria ser proporcionado pelo Estado, como ocorre em outros países. Vale lembrar também que roubo de cargas e comercialização em grande escala de mercadorias roubadas é uma forma significativa pela qual a criminalidade dificulta o desenvolvimento regular das atividades econômicas.

Outro sintoma da deterioração da ordem no Brasil, e que o Estado tem responsabilidade direta, são as diversas formas de tolerância a transgressões. Uma prática que se tornou corrente na administração pública brasileira é a adoção do perdão fiscal como procedimento regular. Em geral, sob a justificativa de recuperar receitas e de incentivar e de trazer de volta os inadimplentes, isto é, as pessoas e as empresas que se encontram à margem da ordem legal, as autoridades federais, estaduais e municipais transformaram um recurso de política fiscal, que deveria ser ocasional, aplicada apenas em circunstâncias excepcionais, em prática corrente regular que, ao final, o resultado mais relevante é o incentivo à inadimplência e à desmoralização do sistema fiscal. Diante do fato de que, periodicamente, o poder público promove um “perdão fiscal”, o pagamento de impostos de forma correta e dentro dos prazos estabelecidos por lei passa a ser um “mau negócio”, ou seja, enquanto o mau pagador ganha descontos e vantagens, o bom pagador – grande ou pequeno – sente que, ao pagar corretamente seus impostos, perdeu uma oportunidade de ganhar com a inadimplência e que, afinal, fez papel de tolo aos olhos da sociedade. Em outras palavras, a prática regular do recurso do “perdão fiscal”, faz com que, mais do que as perdas de arrecadação, os prejuízos morais sejam mais relevantes. Embora não seja possível precisar em cifras, é muito provável que a maioria das empresas brasileiras hoje tenham um serviço jurídico e uma área financeira organizados com o propósito específico de avaliar as perspectivas de ganhos com a administração do não pagamento dos impostos no tempo devido. No longo prazo, não apenas o regime fiscal torna-se vicioso, mas a própria atividade empresarial desenvolve distorções incompatíveis com a competição justa, especialmente na esfera internacional.

Outro exemplo notável de sintoma da deterioração da ordem no Brasil pode ser observado no processo de desenvolvimento do Distrito Federal e que, até por ser a capital da nação, o fenômeno pode ser entendido como sendo comum ao país como um todo. Brasília geralmente é apresentada como cidade planejada e notável por sua arquitetura. Apesar de tudo, há muito tempo que os fatos deixaram de respaldar essa visão de Brasília e do Distrito Federal. Com efeito, passados os primeiros anos, os conceitos e os ensinamentos da boa arquitetura foram completamente esquecidos à medida que Brasília se expandia transformando completamente seus padrões de convivência urbana. Seus governantes e representantes – presumidamente eleitos de forma democrática – deixaram completamente de lado os benefícios e as vantagens de uma cidade planejada e construída com elevados padrões arquitetônicos. Um após outro, os governos que se sucederam no comando do Distrito Federal desprezaram a rara oportunidade de uma cidade planejada desde sua fundação, que dispunha inclusive de um plano diretor para orientar legalmente seu desenvolvimento futuro. Com efeito, em pouco mais de duas décadas, Brasília e o Distrito Federal foram diluídos em um aglomerado urbano disforme, sob o comando de predadores e de oportunistas de todos os matizes, que contaram com o beneplácito, e até mesmo com a cumplicidade, de seus governantes que, sistematicamente, vêm mudando ou simplesmente abolindo leis e normas de urbanização em atenção aos interesses e às ações de grileiros e de falsários que passaram a se apropriar de terras públicas e a vender ilegalmente essas terras. Após o loteamento e a ocupação ilegal dessas terras, os governos passaram a promover a “regularização” dos loteamentos sob o argumento do “fato consumado” e de haver um “déficit de moradias” no Distrito Federal.

Hoje a população do Distrito Federal já ultrapassou os 3 milhões de habitantes, dos quais apenas o equivalente a cerca de um quinto dessa população reside em moradias que guardam alguma característica ou padrão urbanístico da cidade originalmente planejada. A construção de espaços urbanos para acomodar a adição dos quase 2,5 milhões de habitantes foi feita abandonando completamente o plano original da cidade e desprezando totalmente as noções e os conceitos da boa arquitetura. Não há qualquer exagero em dizer que toda a expansão urbana de Brasília e do Distrito Federal nas últimas três décadas foi feita substituindo-se o termo planejamento urbano pela expressão regularização, que é exatamente o oposto da boa arquitetura e da organização dos espaços urbanos de acordo com os conhecimentos da arte e da ciência do urbanismo.

Em outras palavras, o planejamento urbano pressupõe a existência de uma autoridade legal e institucional que estabelece os propósitos, os padrões e as características dos espaços urbanos a serem construídos seguindo-se as normas técnicas que devem levar em conta as características geológicas e topográficas da região sobre as quais são traçadas as vias, os logradouros e as construções para atender os requisitos da boa convivência urbana e social em todos os sentidos. A regularização, por sua vez, é o oposto dessa prática, isto é, todo o plano da cidade ou do bairro é feito pelo grileiro, que ocupa ilegalmente uma área de terra que não lhe pertence, e faz o traçado dos lotes e das vias públicas levando em conta apenas as vantagens a serem extraídas do traçado urbano. As autoridades aparecem apenas para “regularizar” as construções feitas ou ainda em curso sob a justificativa de “razões sociais”, mas que, na verdade, são razões apenas políticas pois têm em vista somente o processo eleitoral que se aproxima. Não se afigura necessário comentar as perdas e prejuízos, além dos custos em termos de recursos públicos decorrentes de áreas urbanas mal construídas. O fato é que até mesmo o núcleo original da cidade, que a duras penas, de algum modo, tem sido preservado, passa a sofrer os efeitos deletérios da expansão urbana desordenada do Distrito Federal na forma de inundações, de precariedade dos sistemas de transporte público e da proliferação das variadas formas de ilegalidade e até de ações criminais abertas.

A constituição federal e a deterioração da ordem

Na lista de sintomas da deterioração da ordem no Brasil muitos outros casos poderiam ser incluídos, mas seria um exercício entediante. Apesar de tudo, parece útil comentar mais um fator, que poderíamos chamar de estrutural, que tem contribuído significativamente para a deterioração da ordem no Brasil: a constituição brasileira vigente. Parece paradoxal que o documento básico na construção da ordem, que é a constituição, possa ser visto como fator de deterioração da ordem, mas vale refletir sobre a percepção dessa possibilidade presente na constituição. Com efeito, a constituição, ao definir a estrutura e o funcionamento das instituições centrais do Estado, é a peça central da ordem política e econômica dos países e, no caso do Brasil, muito embora a constituição vigente esteja centrada na orientação democrática, apresenta cláusulas potencialmente problemáticas para o funcionamento regular das instituições do Estado e também para a ordem econômica e social da nação de uma forma geral. Nesta análise parece importante destacar duas dessas dificuldades, particularmente problemáticas para o bom funcionamento da ordem econômica e social da nação.

A primeira dessas dificuldades trazidas pela constituição de 1988 – e a mais evidente – é o fato de que, ao procurar enunciar explicitamente cada possível direito do cidadão em todas as esferas, a constituição traz como consequência imediata o fato de que qualquer pendência envolvendo direitos na esfera civil, penal ou social torna-se uma pendência constitucional. Isto é, passível de ser levada à justiça federal até à mais alta corte da Justiça – ao Supremo Tribunal Federal (STF).

De fato, no momento em que a constituição declara formalmente que “garante o direito de propriedade” e, além disso, que “a propriedade atenderá sua função social”, qualquer disputa envolvendo o direito de propriedade como, por exemplo, a ocupação de terras por invasores ou ainda uma iniciativa de desapropriação ou de venda de terras públicas, a questão se torna constitucional. Em termos processuais, significa que os litigantes poderão levar suas demandas até o STF. Assim sendo, objetivamente, a questão nem deveria ser julgada em instâncias inferiores, uma vez que as cortes inferiores, ao julgar uma demanda sobre propriedade, estarão apenas procrastinando um processo judicial, pois a parte perdedora sempre poderá interpor recurso até que, finalmente – anos mais tarde – vir a ser julgado pelo STF, além do mais porque a constituição estabelece que o resultado de um julgamento se torna passível de aplicação somente após o “trânsito em julgado” (outra cláusula constitucional). O mesmo pode ser dito sobre “a defesa do consumidor”, “a prática do racismo”, a concessão ou não de “habeas corpus” ou de “habeas data”, ou ainda sobre os direitos “à educação”, “à saúde”, “à alimentação”, “ao trabalho”, “à moradia”, “ao transporte”, “à segurança”, “ao lazer”, “à previdência social”, “à proteção da infância e da maternidade”, e “à assistência aos desamparados”, que são mencionados de forma específica no texto da constituição brasileira vigente.[4]

A menção explícita e detalhada desses direitos na constituição deveu-se, basicamente, ao ambiente político de 1988, que ainda vivia a euforia do fim do regime de exceção dos governos militares, que havia se estendido por duas décadas. Nesse ambiente, enunciar e detalhar explicitamente esses direitos na constituição parecia um gesto de cidadania e de apreço pela democracia. O problema é que, do ponto de vista processual, a menção de forma específica e detalhada desses direitos na constituição traz consequências inevitáveis, entre elas a perda praticamente completa da importância e do papel das instâncias jurídicas inferiores e o acúmulo de processos no STF e, ao final, o substancial aumento no tempo de tramitação dos processos.[5] O fato é que para o cidadão individualmente, ou para as organizações empresariais, a demora na tramitação de processos judiciais significa essencialmente a sensação incômoda de que as instituições jurídicas apenas favorecem o malfeitor. Além disso, mesmo que o julgamento final seja favorável à parte prejudicada, na maioria esmagadora das vezes a demora favorece o mau pagador de impostos, o estelionatário, o agente corrupto, o falsário e a todos aqueles que agem de forma ilegal em prejuízo de outros cidadãos ou em detrimento do próprio Estado. Em outras palavras, a demora na tramitação dos processos acarreta prejuízos apenas para aqueles que buscam a Justiça na defesa de seus direitos. “A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta” é uma das frases mais frequentemente lembradas de Rui Barbosa, mas incapaz de sensibilizar governantes e legisladores.[6]

De um ponto de vista da ordem econômica, a demora exagerada significa incerteza jurídica, afastando investidores potenciais, nacionais ou estrangeiros. Ninguém irá investir na criação ou na expansão de qualquer atividade econômica sabendo que seu capital investido e possíveis ganhos podem estar sujeitos a perdas pela ação de predadores (estelionatários, fraudadores, autoridades corruptas etc.) que têm a seu favor o labirinto de uma justiça lenta, complicada e dispendiosa. Não se trata de argumentar em favor de uma “justiça sumária”, mas apenas de uma justiça capaz de acompanhar os padrões internacionais das sociedades organizadas em termos de tempo de tramitação que, conforme estudos realizados por pesquisadores e por entidades como o Conselho Nacional de Justiça é, ao menos, duas vezes maior do que em outros países.

Uma outra cláusula presente na constituição que revela mais uma face bastante problemática da administração do Estado no Brasil refere-se à prática de inserir “emendas ao orçamento” por parlamentares. De uma forma geral, tal como ocorre em outros países democráticos, o orçamento previsto para os gastos públicos deve ser submetido à aprovação pelo Poder Legislativo, que discute e aprova o orçamento introduzindo emendas a respeito de como o Poder Executivo deve gastar o que foi arrecadado da atividade econômica da população, em geral por meio de impostos, de taxas, e das variadas formas de arrecadação de recursos pelo Estado. No entanto, no caso do Brasil, a interpretação dessa prerrogativa dada pelo Legislativo é que difere dos padrões internacionais criando vícios e distorções no emprego do dinheiro público. O termo emendas ao orçamento no caso brasileiro significa basicamente o direito que deputados e senadores têm de se apropriar de parte da arrecadação do Estado e gastar essa parcela sem qualquer consideração a respeito do bem comum e da necessidade de aprovação por qualquer instância. Deputados e senadores agem como se fossem verdadeiros lords de “feudos” obtidos ao conquistarem seus mandatos parlamentares. O Artigo 166, § 9º. da constituição diz que: “As emendas individuais (de deputados e senadores) ao projeto de lei orçamentária serão aprovadas no limite de 1,2% (um inteiro e dois décimos por cento) da receita corrente líquida prevista no projeto encaminhado pelo Poder Executivo, sendo que a metade deste percentual será destinada a ações e serviços públicos de saúde.” O entendimento praticado dessa cláusula é que 1,2% de toda a arrecadação pública deve ser distribuída entre deputados e senadores, que podem gastar esses recursos de forma completamente discricionária, isto é, sem qualquer consideração a outras instâncias normativas ou de controle pelo Estado. Trata-se de um privilégio que distorce substancialmente as funções legislativas uma vez que, por definição, executar o orçamento é prerrogativa exclusiva do Poder Executivo. Uma vez que o país é uma federação, essa mesma interpretação é estendida também ao Poder Legislativo dos Estados.

No conjunto, o fato de que o Poder Executivo no Brasil dispõe de um total aproximado de apenas 5% da arrecadação para ser gasto discricionariamente em políticas governamentais dá uma ideia das dimensões dessa distorção.[7] Em termos de valores, em 2020 significaram cerca de R$ 17 bilhões a serem gastos com emendas parlamentares uma vez que a arrecadação do ano foi de R$ 1,479 trilhão.[8] Para se ter uma ideia do que essas emendas  representam no orçamento público brasileiro, vale lembrar que o total de recursos previstos para investimentos no ano de 2021 foi de R$ 7,5 bilhões para o Ministério da Economia, R$ 1,18 bilhão para o Ministério da Infraestrutura, R$ 1,65 bilhão para o Ministério da Defesa, R$ 235 milhões para o Ministério da Saúde e de apenas R$ 7 milhões para o Ministério da Ciência e Tecnologia. Assim, verifica-se o fato de que o valor previsto como “emenda parlamentar” para apenas um deputado ou para um senador ultrapassa várias vezes o total previsto para investimento pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. A diferença é que até mesmo os ridículos R$ 7 milhões previstos para o Ministério da Ciência e Tecnologia foram um valor examinado e discutido quanto à pertinência e quanto a seus benefícios em termos de “bem comum”, enquanto os R$ 17 bilhões, foram distribuídos aos parlamentares sem discussão de propósitos e na simples presunção de que apenas o fato de que serão gastos por parlamentares é razão suficiente para considerar que serão bem gastos em um país notavelmente carente de recursos financeiros para investimentos sociais e para investimentos capazes de estimular a geração de riquezas.

Obviamente que não é apenas por conta dos montantes de recursos envolvidos em si que o peculiar entendimento do conceito de “emenda parlamentar” produz reflexos no comportamento e no desempenho econômico da nação. Na realidade, muito mais importante do que os montantes financeiros distribuídos entre deputados e senadores, o sentido moral envolvido nas negociações desses valores é que produz os efeitos mais deletérios para a ordem política. A discussão despudorada sobre a distribuição e o uso político dessa interpretação dada ao termo “emenda parlamentar” tem sido elemento de corrosão da confiança na relação entre governantes e governados, uma vez que a confiança constitui um valor essencial para se manter a coesão numa sociedade política organizada sobre valores democráticos.

A construção da ordem na reflexão teórica

Mancur Olson, em seu livro publicado post morten intitulado “Poder e Prosperidade”, discute a velha questão: por que alguns países são ricos e prósperos, enquanto outros vivem às voltas com a pobreza e o atraso? Olson argumenta que tudo começa com o fato de que em alguns países as instituições do Estado são mais efetivos em mostrar que, entre os papéis mais importantes a serem desempenhados pelos governos, destaca-se o de deixar claro o que deve ser reconhecido e recompensado distinguindo-o do que deve ser visto com reprovação e até punido pela sociedade que governa.[9] A estruturação do argumento de Olson acerca dessa hipótese explora o conceito de externalidade econômica de forma ampla. Conceitualmente, as externalidades econômicas podem ser positivas ou negativas. Um exemplo de externalidade positiva seria a construção de uma rodovia, cuja existência passa a estimular e, por vezes, até a viabilizar certas atividades econômicas ao facilitar o transporte de pessoas e de mercadorias naquela região. Por outro lado, exemplos correntes de externalidades negativas são os elementos geralmente referidos de forma conjunta como “custo Brasil” nas análises da imprensa especializada e nas discussões sobre economia brasileira. Burocracia dispendiosa e demorada, infraestrutura precária de comunicações e de transportes e elevados custos de produção de energia são frequentemente lembrados como componentes que tornam muitos produtos brasileiros comparativamente mais caros do que similares produzidos por outros países onde essas externalidades negativas não existem ou existem em escala muito menor do que no Brasil.

Numa sociedade democrática, uma autoridade pública que não coloca o bem comum acima de seus interesses pessoais é um notável elemento de externalidade negativa. Aos olhos do povo, a autoridade torna-se um hipócrita, um falsário, uma vez que foi eleito prometendo colocar sempre o bem comum acima de seus interesses pessoais. Uma economia comandada autoritariamente não depende tanto dessa imagem. Geralmente os governos assumem o poder pela aplicação de regras e do apoio direto de forças políticas e, assim, as autoridades estabelecem taxas e impostos ou realizam gastos públicos sem a necessidade de convencer as populações da real necessidade dessas medidas. Para um governo autoritário vale a máxima com que Maquiavel chocou os pensadores de seu tempo: “o governante precisa ser temido”. Na realidade, nas sociedades democráticas a força das autoridades, em todos os níveis e em todos os ramos do Estado, reside na credibilidade e na confiança que seus governados depositam nas palavras e, principalmente, nas intenções manifestas de seus governantes. Ou seja, credibilidade e confiança são essenciais para que impostos sejam pagos com naturalidade e para que leis e medidas sejam respeitadas, muito embora limitem as ações de indivíduos e de empresas, havendo credibilidade na justificativa de que tais leis e medidas realmente comprometem bens públicos, como o meio ambiente, ou que simplesmente prejudicam outras pessoas e outras organizações que formam a tessitura social e econômica da cidade e da nação.

Além disso, Olson acrescenta outro argumento crucial para o bom funcionamento das sociedades democráticas: o de que os interesses organizados em corporações constituem verdadeiros obstáculos ou empecilhos à promoção do bem comum. Enquanto os bens públicos, como qualidade do meio ambiente ou benefícios advindos da preservação de valores sociais e culturais são generalizados, difusos e de longo prazo (educação de qualidade, segurança pública, saneamento, qualidade ambiental etc.), os interesses corporativos tendem a ser específicos e organizados em associações sindicais, por vezes entranhados no próprio Estado. Nesses casos, o Estado se torna uma espécie de butim a ser disputado e dividido entre interesses corporativos, deixando de ser uma fonte de geração e de proteção de bens públicos necessários à existência de um ambiente de estímulo à inovação e à competição sadia na produção de bens e de serviços pelos indivíduos e pelas organizações empresariais.[10] A defesa despudorada de recursos públicos destinados a “emendas parlamentares” e com gastos eleitorais não ajuda a transmitir o sentimento de que deputados, senadores e outras autoridades eleitas estejam, de fato, interessados em defender e promover bens públicos, além de seus próprios interesses pessoais.

Outro pensador que desenvolveu argumento na mesma direção foi Alain Peyrefitte, para quem a confiança é tida como um valor fundamental para que as instituições de uma sociedade democrática funcionem de modo efetivo. Em sua obra A Sociedade da Confiança, Alain Peyrefitte discute o papel central da confiança como fator fundamental no desenvolvimento ou no atraso econômico dos países.[11] Em uma incursão pela antropologia política, Peyrefitte identifica dois tipos de sociedade na história: as sociedades da confiança e as sociedades da desconfiança. As sociedades do primeiro tipo tendem a desenvolver relações harmônicas e construtivas, enquanto as sociedades do segundo tipo são definidas pelo conflito e pela disputa constante e, portanto, por um clima de insegurança permanente na qual a ordem só pode ser conseguida por meio do emprego da força pela autoridade. No caso do Brasil, com grandes carências sociais bastante evidentes, gastos públicos voltados claramente para beneficiar ganhos e interesses da própria classe política corroem o respeito e a credibilidade de seus governantes. A falta de credibilidade da classe política compromete o uso da força necessária à manutenção da ordem. Além disso, no Brasil, o uso da força pelas autoridades para a manutenção da ordem é significativamente limitada por disposições legais que, na constituição vigente, aceita a existência de poderes concorrentes com a autoridade do Estado como a dos interesses corporativos organizados em sindicatos e em outras organizações genericamente referidas como “sociedade civil organizada”.

Sob um ponto de vista ainda mais geral, isto é, da filosofia política, vale lembrar a obra de Thomas Hobbes. Para muitos historiadores a figura de Hobbes ficou associada ao absolutismo, no entanto, um olhar mais atento revela que a preocupação de Hobbes não era justificar o emprego da força pelos príncipes, mas sim o fato de que sem “ordem”, não apenas o progresso se torna difícil, mas a própria liberdade política e civil torna-se impossível. Sem essa forma de ver a questão da ordem e do exercício da autoridade pelo Estado, a obra de Hobbes não poderia ser apreciada com respeito e até com admiração pelos pensadores da tradição liberal, que sempre rejeitaram a tirania e a intervenção do Estado. Com efeito, particularmente no século XVII, a ordem só poderia ser produto da ação de príncipes bem instruídos – alegoricamente ilustrada nos afrescos de Ambrogio Lorenzetti.

A famosa frase atribuída a Louis XIV “l’État c’est moi” pode ser vista como uma afirmação de sua autoridade diante de seus ministros e de seus súditos mas, muito provavelmente, seria mais apropriado entender essa afirmação como uma simples constatação de um fato corrente, uma vez que, à época, as instituições do Estado moderno e democrático ainda não existiam. Com efeito, até o século XVII eram os reis que se sucediam de forma hereditária, ouviam seus súditos e distribuíam diretamente a justiça, além de decidir sobre a guerra e a paz. Os reis podiam manter um pequeno círculo de conselheiros e até convocar estados gerais, mas era apenas para serem consultados. Tais instâncias colegiadas até podiam ter algum poder, mas esse poder era sempre exercido através do soberano. No século XVI, juristas como Francisco de Vitória não tinham qualquer dúvida quando perguntados sobre “a quem cabia declarar a guerra”, a resposta era simples e imediata: cabia ao soberano.[12] É o que explica os afrescos alegóricos de Ambrogio Lorenzetti sobre “O Bom Governo” e “O Mau Governo”, e explica também a preocupação dos iluministas do século XVIII sobre a necessidade de príncipes e de reis serem bem instruídos e educados para produzir governos prudentes e sábios. Em suma, foi somente a partir do século XVIII que os Estados passaram a estabelecer instituições políticas e jurídicas que hoje chamamos de democráticas para construir e manter a ordem em substituição a “déspotas esclarecidos”.

A ordem nos Estados modernos

Na realidade, uma das facetas mais admiráveis do movimento liberal que se disseminou a partir do século XVIII foi a capacidade de conceber, de construir e de garantir a ordem social e política por meio de instituições e não mais por meio de governantes hereditários, que usassem seu poder e sua autoridade com sensatez, prudência e sabedoria em benefício da nação. A criação de instituições substituía com vantagens os déspotas esclarecidos, uma vez que, por mais sábios e mais benevolentes, os déspotas esclarecidos seriam um dia substituídos por outros governantes sobre os quais não havia qualquer garantia de que usariam seu poder com justiça, moderação e sabedoria. Louis XIV foi um governante que levou a França a viver uma era de realizações e de notável esplendor a ponto de Voltaire comparar os tempos de Louis XIV com a era de ouro da Grécia de Péricles e com a Itália renascentista.[13] Após duas gerações, no entanto, Louis XVI herdou a mesma França, o mesmo Estado, com as mesmas instituições e com as mesmas crenças, que haviam servido tão bem a Louis XIV, mas viu o colapso da ordem política e social até viver sua própria desgraça pessoal na guilhotina. Os historiadores dizem que Louis XVI era um bom homem, mas sem qualquer interesse pela política e desprovido da personalidade e da capacidade de liderança de Louis XIV. Ou seja, o Estado não poderia depender tanto de seu governante que, por melhor que fosse, um dia morreria e seria substituído.

Assim, sem sombra de dúvida, foi uma aposta de enorme ousadia e de notável visão política dos liberais dos séculos XVIII e XIX investir no desenvolvimento de instituições políticas de grande complexidade que substituíssem a formação e a educação de príncipes que, na imagem alegórica de Ambrogio Lorenzetti, fossem capazes de produzir bons governos. Isto é, para dar certo, as instituições políticas do Estado moderno deveriam ser capazes de produzir a ordem social e política por meio de um delicado equilíbrio entre governantes capazes de gozar da confiança da sociedade e que passavam a aceitar limites ao seu poder enquanto, de outro lado, o povo, isto é, os governados, por sua vez, precisariam ser capazes de aceitar o fato de que seus interesses particulares deveriam ser sempre avaliados à luz do bem comum.

No mundo atual, pode-se dizer que a China é um caso notável de sociedade organizada por meio de um partido político único, que não constrói a ordem a partir de instituições liberais que manejam e que exercem o poder por meio desse delicado equilíbrio entre diferentes ramos do poder do Estado e por meio da substituição de governantes com eleições periódicas das quais participa toda a população adulta. De certo modo, a ordem na sociedade chinesa é assegurada por uma grande e complexa burocracia estruturada não mais em torno de uma ideologia comunista – apesar de a denominação do partido permanecer a mesma – mas em larga medida a ordem é estruturada a partir dos ensinamentos recuperados da sabedoria milenar do confucionismo.[14] A eficácia dessa solução para a construção da ordem é visível na transformação da China – de nação pobre e inexpressiva em um país capaz de exercer papel de liderança econômica e tecnológica no mundo. Com efeito, quando as nações do Ocidente liberal, a partir dos fins da década de 1970, lideradas pelos Estados Unidos, passaram a investir na China, uma crença bastante central dos formuladores dessa estratégia era a de que um eventual sucesso econômico da China levaria à democratização daquela sociedade comandada pelo Partido Comunista. Ou seja, acreditava-se que, à medida que a nação prosperasse e que bolsões de eficiência econômica e de mercados dinâmicos se formassem, haveria também uma crescente formação de focos de pressão sobre as instituições políticas restritivas do Estado, que seriam vistas cada vez mais como burocracias resistentes a mudanças e, principalmente, refratárias à adoção de políticas de integração aos grandes mercados internacionais. Após mais de três décadas de sucesso econômico persistente e consistente da China, os teóricos do Ocidente, que viam o sucesso econômico como um fenômeno associado aos Estados organizados por meio de instituições políticas liberais, passaram a rever seu entendimento sobre essa relação entre sucesso econômico e ordem política liberal. Além do mais, os casos de sucesso econômico nas últimas décadas não se restringem ao caso da China, que continua comandada pelo Partido Comunista, mas também tem ocorrido em várias outras nações da Ásia, que vêm obtendo notável sucesso econômico, embora continuem comandadas por instituições governamentais com forte viés intervencionista na ordem econômica.

Considerações finais

 Em linhas gerais, pode-se dizer que a adoção da democracia – ou, mais especificamente, da democracia liberal – como forma de governo, não significa, por si só, que a nação será, ou que esteja sendo bem governada. Na realidade, no caso do Brasil, as cifras mostram que os sucessivos governos têm fracassado em promover a ordem e em produzir um nível de desempenho econômico capaz de reduzir a pobreza e, assim, proporcionar mais e melhores oportunidades de trabalho a seus cidadãos. Em termos objetivos, esse mau desempenho não se reflete e não é visível apenas na estagnação ou na redução do PIB, mas se reflete também em outros indicadores que derivam diretamente desse mal desempenho. Por exemplo, no comércio exterior, apesar dos superávits comerciais, as exportações passaram a se concentrar, cada vez mais, em commodities e em bens de baixo valor agregado. A produção de commodities, apesar de ser um desenvolvimento desejável, proporcionalmente, gera muito menos oportunidades de trabalho do que a indústria e a produção de serviços. Assim, não basta “apostar” na produção agrícola e na produção de outras commodities. No comércio mundial, na década de 1950 os bens agrícolas eram ainda responsáveis pela metade das exportações mundiais, enquanto, neste início do século XXI, os bens agrícolas respondem por menos de 10% das exportações mundiais. Ou seja, os dados revelam que a evolução da economia brasileira nas últimas décadas não tem acompanhado tendências mundiais importantes. Assim, o pouco dinamismo da economia brasileira também é visível na evolução da pauta de exportações, cada vez menos diversificada em razão da pouca integração à economia mundial. O resultado é que, em termos dos benefícios que uma nação pode auferir do comércio internacional, observa-se que, enquanto outras nações em desenvolvimento têm expandido significativamente sua participação nos fluxos de comércio mundial por meio da diversificação, há décadas a participação brasileira no comércio mundial tem permanecido em torno de 1%.[15] Em larga medida, essa diferença entre o desempenho do setor agrícola e de produção de commodities em relação aos setores da indústria e de serviços pode ser explicada pelo fato de que as principais motivações na produção de commodities estão nos mercados internacionais onde há ordem e consistência, enquanto a produção industrial e de serviços dependem basicamente dos mercados domésticos nos quais a ordem tem sido precária.

Um Estado democrático precisa ouvir a sociedade, principalmente as demandas não expressas – as demandas mais íntimas, mais caras e mais difíceis de serem expressas em manifestações ruidosas. Mas ouvir não basta, é preciso discernimento, integridade e coragem para transformar as demandas da sociedade em providências e em medidas sempre à luz do bem comum. O termo bem comum pode parecer algo difuso, mas não o é para o Estado. Para o Estado, bem comum deve ser o objetivo primário a ser promovido e a ser buscado por governantes e por todos aqueles que ocupam cargos públicos. Aumentos salariais, subsídios a certas atividades econômicas, perdão fiscal, e até mesmo ajudas emergenciais são medidas que a sociedade pode demandar a qualquer tempo e a qualquer hora, mas cabe às autoridades públicas examinar essas demandas à luz do bem comum, que é um termo que o economista pode utilizar como sinônimo de externalidade econômica positiva. A economia, como qualquer atividade humana, depende da dedicação e dos talentos individuais, no entanto a produção econômica é também uma atividade social, e sua vitalidade e seu bom desempenho dependem do comportamento e dos níveis de organização social das nações. Nesse quadro, a ordem social é a condição necessária – embora não suficiente – para o sucesso de qualquer economia. A ordem social é a externalidade econômica cuja deterioração compromete não apenas o bom funcionamento dos mercados, mas o próprio futuro econômico e político da nação.

Do ponto de vista social, o mau desempenho da economia se reflete claramente nos movimentos migratórios. As nações bem governadas e cujas economias crescem e oferecem estabilidade e boas oportunidades profissionais tendem a atrair fluxos de migrantes enquanto, por outro lado, as sociedades que não prosperam e nas quais as oportunidades de bons empregos e de boas oportunidades profissionais se tornam mais escassos “exportam” migrantes. Em um extremo está um país como os EUA que constroem barreiras normativas e até físicas para conter os fluxos de migrantes que querem ingressar no país em busca de oportunidades de trabalho. No outro extremo, estão as nações muito pobres ou vítimas de crises sociais e políticas persistentes que, sistematicamente, “expulsam” suas populações. O Brasil é um caso de nação que não chega a viver crises sociais e políticas graves e generalizadas, mas tem sido um país em que o mau funcionamento da economia vem produzindo continuados déficits no balanço entre estrangeiros que procuram se estabelecer no país e o fluxo de brasileiros que vão para outros países em busca de oportunidades. Apesar de continuar fazendo parte do entendimento popular corrente de que o Brasil é um país que recebe imigrantes, esse entendimento não é mais confirmado pelos fatos. Além de os balanços nos fluxos migratórios serem negativos, significando que o número de estrangeiros que ingressam no país tem sido menor do que o de brasileiros que deixam o país, recentemente, dados divulgados pelo Itamaraty e pelo Ministério da Justiça mostram que no ano de 2020 havia cerca de 3 milhões de brasileiros residindo em outros países (destaque para Portugal, Estados Unidos e Japão), enquanto havia o registro de apenas 750 mil estrangeiros residindo no Brasil, um número significativamente menor do que em países vizinhos como Argentina, Uruguai e Paraguai. Tais dados revelam uma faceta preocupante desse processo. Na essência, revela que o Brasil está “exportando” profissionais qualificados, isto é, pessoas de talento e nas quais a sociedade brasileira investiu por anos a fio, para serem aproveitados por outras sociedades. Assim, ao observar fatos como esses, é inevitável a tentação de – tal como ocorreu com o sociólogo Robert Merton – refletir com humildade e com espírito construtivo sobre a sabedoria dos Evangelhos: àquele que tem, mais lhes será dado, e terá em abundância; mas ao que não tem, até aquilo que tem ser-lhe-á tirado (Mateus 25, 14-30).[16]

 

 

[1] Ernest Hambloch, Sua Majestade o Presidente do Brasil. Senado Federal, Brasília, 2000 (p. 34)

[2] Randolph Starn. Ambrogio Lorenzetti. The Palazzo Pubblico, Siena. George Braziller, N.York, 1994.

[3] Há uma extensa literatura que, sob o tema “globalização”, discute essas mudanças no conceito de soberania e de seu exercício diante de um mundo cada vez mais integrado social e economicamente.

[4] O Artigo 5º. enuncia 78 direitos individuais e coletivos, bem como mecanismos de proteção desses direitos. O Artigo 6º. afirma que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. O Artigo 7º. lista 34 direitos sociais e as circunstâncias e condições em que o Estado deve proteger esses direitos. O Artigo 8º. trata com detalhes o direito de associação de trabalhadores em sindicatos, enquanto o Artigo 9º. trata especificamente do direito de greve.

[5] Enquanto a Suprema Corte dos EUA julga anualmente algumas poucas dezenas de processos, segundo dados do CNJ, o STF no Brasil proferiu 17.400 julgamentos no ano de 2020, ou seja, o STF julgou uma média de 66,9 processos por dia útil. Por quanto tempo esses processos tramitaram na Justiça? Será que é possível julgar uma tal quantidade de processos com o devido rigor e cuidado?

[6] Extraída da “Oração aos Moços” dirigida aos formandos da Faculdade de Direito de São Paulo (1921).

[7] Nada menos do que 95% da arrecadação do Estado por meio de impostos, taxas e outras receitas são usados para pagar despesas sobre as quais o Poder Executivo não tem poder discricionário tais como folha de pagamento do serviço público, despesas com previdência oficial, pensões estabelecidas por lei, transferências para estados e municípios etc.

[8] O que representa cerca de R$ 30 milhões para cada senador e para cada deputado.

[9] Mancur Olson, Power and Prosperity. Outgrowing Communist and Capitalist Dictatorships. Basic Books, 2000.

[10] Na realidade esse argumento foi que deu grande notoriedade a Mancur Olson, quando publicou seu livro intitulado The Logic of Collective Action em 1971.

[11] Alain Peyrefitte, A Sociedade da Confiança. Topbooks, 1999.

[12] Não apenas Francisco de Vitória, mas os juristas em geral nos séculos XVI e XVII ao discutirem o conceito de “guerra justa”, em suas obras afirmaram essa prerrogativa exclusiva dos soberanos. Algo bem diferente, por exemplo, do que ocorreu com Roosevelt que, em 1941, após o ataque de Pearl Harbor, concentrou sua preocupação em levar uma mensagem ao Congresso oferecendo razões para sustentar os congressistas a declararem a guerra ao Império Japonês.

[13] Voltaire, Le Siècle de Louis XIV, 1751.

[14] Embora a intervenção do Estado continue muito forte, propriedade privada e mercados dinâmicos, inclusive de ativos financeiros, hoje fazem parte da ordem social e econômica da China.

[15] No início da década de 1980 a China tinha uma participação no comércio mundial menor do que a brasileira; atualmente, responde por 14,5%. Outro caso notável de evolução da participação no comércio mundial é o da Coreia do Sul, que hoje responde por cerca de 3% do comércio mundial, isto é, praticamente três vezes maior do que a brasileira.

[16] O sociólogo Robert Merton, refletindo sobre a lógica dos avanços no pensamento científico, que tende a premiar mais facilmente aqueles que já ganharam notoriedade na atividade de pesquisa científica, encontrou nesse Evangelho uma maneira de explicar essa estranha e incômoda lógica presente nas coisas humanas (R. K. Merton, The Matthew Effect in Science. Science, 159(3810) 56-63, January, 1968).

 

*Eiiti Sato é professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

]]>
Reforma Administrativa: principais aspectos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3502&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=reforma-administrativa-principais-aspectos Mon, 27 Sep 2021 14:07:24 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3502 Principais aspectos da Reforma Administrativa aprovada na

Comissão Especial da Câmara dos Deputados

 

Por Magno Antonio Correia de Mello*

 

Introdução 

A PEC 32, de 2020, destinada a reformar o sistema constitucional que rege a administração pública, sofreu profundas alterações em decorrência da aprofundada discussão travada no âmbito da Comissão Especial encarregada de apreciá-la. O texto original propunha a extinção gradativa do regime jurídico atualmente aplicável aos servidores públicos, substituído por uma profusão de vínculos entre os quais figuraria a contratação de pessoal por tempo determinado, inserida no mesmo sistema aplicável aos demais agentes, e a divisão dos servidores integrantes do quadro permanente em dois grupos, um deles reservado aos ocupantes de cargos que seriam classificados como “típicos de Estado” e outro destinado aos titulares dos postos que não mereceriam tal qualificação.

Nesta configuração, os atuais servidores não seriam aproveitados em nenhuma das situações concebidas pela proposição original. Mesmo aqueles cujos cargos fossem reconhecidos como integrantes do segmento ao qual se atribuiria tratamento diferenciado não se submeteriam ao mesmo regime dos que ingressassem após a introdução da nova sistemática.

O resultado produzido, talvez não percebido pelos autores do texto encaminhado ao Poder Legislativo, seria trágico. A atual força de trabalho da administração pública deixaria de receber a devida atenção dos gestores públicos. Os servidores que viabilizam o funcionamento da máquina estatal sofreriam um processo longo e irreversível de depreciação.

O problema foi felizmente percebido pelo relator da proposição, que optou por implementar mudanças atinentes também ao atual quadro de pessoal. Feitas as adaptações necessárias, o substitutivo aprovado pelo colegiado que examinou a matéria não permite o súbito e descabido rompimento da unidade que precisa nortear o serviço público.

Estes breves apontamentos abordam os principais aspectos do texto aprovado e buscam demonstrar que seu eventual acolhimento no âmbito do Plenário da Casa Legislativa irá além de evitar os graves danos que seriam provocados pelo texto original da proposição. É possível, de fato, se forem desfeitas as desinformações de toda sorte veiculadas a respeito do texto de que se cuida, perceber no novo conjunto de regras um sensível aperfeiçoamento nas normas que regem a administração pública. 

Código Administrativo

Na situação atual, cada ente federado administra seus recursos de forma absolutamente específica. Não existem parâmetros previstos em lei federal que os obriguem a adotar critérios de aplicação geral, o que leva a descompassos e assimetrias indesejáveis no âmbito da administração pública.

Cumpre recordar que a federação brasileira não se confunde com a dos Estados Unidos. Não se verificam códigos penais ou civis específicos. As regras de conduta impostas a cidadãos do Amazonas são as mesmas que obrigam os gaúchos.

Assim, a atribuição de competência à União para editar normas gerais sobre inúmeros aspectos relativos ao funcionamento da administração pública é uma oportunidade que não pode ser desprezada para que uniformizem critérios e se equiparem condutas. Entre os temas abordados, estará a disciplina de concursos públicos, que exige regulamentação há bastante tempo, dada a lamentável disseminação de arbitrariedades e abusos, decorrente justamente da ausência de normas acerca do assunto em âmbito federal. 

Contratação por tempo determinado

Os adversários da reforma usam este assunto para detratá-la sem nenhuma razão. As regras produzidas no substitutivo aprovado pela Comissão Especial são, sem nenhuma exceção, racionais e restritivas.

Na sistemática atual, prevê-se que a lei estabeleça autorizações específicas, por meio da definição de casos concretos em que se verifique “excepcional interesse público”. Tal qualificação, absolutamente subjetiva, predomina sobre a natureza do instituto.

Em outros termos, se for reconhecido o “excepcional interesse público” não se examinará se a necessidade a ser atendida se reveste de caráter temporário ou não. Estará autorizada pelo legislador a formalização do ajuste, sem nenhum limite de prazo e sem qualquer restrição de objeto.

E o que poderia ser considerado “excepcional interesse público”? Infelizmente, não há parâmetro ou delimitação para adjetivos. Na prática, será tudo que o legislador assim qualifique. Na legislação federal, há autorização – por se considerar de “excepcional interesse público” – para que contratações por tempo determinado incidam indefinidamente sobre as “atividades finalísticas do Hospital das Forças Armadas”. Outra permite contratações voltadas à “admissão de professor para suprir demandas decorrentes da expansão das instituições federais de ensino”.

Estas “demandas decorrentes da expansão” serão supridas eternamente por temporários e não houve qualquer ação judicial contra elas, porque atenderiam, de acordo com a lei, ao supramencionado “excepcional interesse público”, a despeito de se tratar de objeto obviamente despido de caráter temporário. O critério, portanto, ao invés de coibir, convive com absolutamente tudo.

Por outro lado, o gestor é obrigado a depender da capacidade de prestidigitação do legislador. Se não houver sido “adivinhada” previamente determinada situação de caráter temporária que exija a atuação da administração pública, a contratação não poderá ser promovida, ainda que literalmente desabem a ponte ou o mundo.

Seria como exigir, em relação a licitações e contratos, que a lei relativa ao assunto efetivasse um rol exaustivo de objetos específicos que podem ser contratados pela administração pública. Presente a analogia, se não constar deste fictício rol exaustivo, determinado bem, a despeito de indispensável para o funcionamento da administração pública, não poderia ser adquirido. Simplesmente não faz sentido.

Na lógica decorrente do substitutivo aprovado pela Comissão Especial, a lei, a exemplo do que ocorre nas compras púbicas, disciplinará as contratações, mas não especificará os casos sobre os quais elas incidem. Não obstante, exigirá o óbvio: que se trate de necessidade temporária, porque o instituto passará, de forma constitucional e explícita, a não se ajustar mais às demandas rotineiras e permanentes que norteiam o funcionamento do aparato estatal.

Pode até ocorrer, e a realidade de modo algum impediria isto, ainda que a Constituição proibisse, a intercorrência de necessidade temporária em atividades realizadas de modo permanente. Se isto acontecer, a contratação será autorizada pela própria Carta, sem que se necessite de regra específica inserida na legislação inferior, mas não se poderá prescindir do caráter transitório da necessidade atendida, vale dizer, o contrato deverá ser fixado por período que cubra o surgimento da necessidade e sua satisfação. Não se acomodará, portanto, ao atendimento de atividades permanentes sem que se apresente justificativa específica.

Contingências podem surgir inclusive em atividades que serão, de acordo com o substitutivo, classificadas como “exclusivas de Estado”. O conceito é sem dúvida discutível, porque sugere a existência de categorias funcionais mais relevantes que outras, mas ainda assim a concessão do título não impede a incidência de necessidades circunstanciais e imprevistas, muitas das quais não podem ou não devem ser atendidas pelo quadro de pessoal permanente.

Acionada na Califórnia, a União poderia optar por notórios especialistas norte-americanos e celebrar com eles contratos administrativos, o que não daria ao ente poder hierárquico sobre os indivíduos contemplados, ou contratar por tempo determinado advogados norte-americanos, que ao governo federal se subordinarão diretamente. O que se resolverá, em um ou em outro caso, será a atividade finalística da Advocacia-Geral da União, órgão cuja atuação, a despeito da competência a ele atribuída, não se ajusta ao exemplo citado.

O prazo de dez anos, estabelecido como limite dos contratos por prazo determinado, não constitui regra de aplicação universal, mas duração limite. O contrato não pode ser celebrado por prazo tão dilatado se for extrapolado o tempo de atendimento do objeto a cuja satisfação se destina. O que deverá pautar o prazo do contrato será o período estabelecido ou estimado para suprimento da necessidade temporária que o justifica, porque todas terão, a partir do novo texto, esta singular característica. Não se poderá fazer com que o mecanismo incida sobre atividades permanentes, sem nenhuma circunstância que justifique, para atender “excepcional interesse público”, conforme ocorre no caso do Hospital das Forças Armadas acima aludido.

Passarão a ser garantidos, por outro lado, direitos trabalhistas que hoje não são assegurados, o que tornará a contratação menos atraente para os gestores. Se forem obrigados a pagar direitos trabalhistas, é razoável esperar que Prefeitos e Governadores passem a refletir melhor sobre a conveniência de substituir efetivos por temporários.

De outra parte, haverá a exigência de processo seletivo impessoal, o que de igual modo não se verifica no texto constitucional vigente. A nomenclatura empregada – “processo seletivo simplificado” – tem como único objetivo evitar que o aprovado reivindique o reconhecimento de que faz jus à efetividade, porque a regra a respeito assegura que o procedimento em questão se sujeita a “ampla divulgação e competição”, o que o torna praticamente equivalente ao concurso público.

Por fim, ao contrário do que se verifica na situação atual, o problema será tratado de forma análoga às licitações e contratos administrativos. A disciplina a respeito será estabelecida em lei que veiculará normas gerais, no âmbito do art. 22 da Constituição[1], o que faculta aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exclusivamente a edição de normas residuais e específicas, prerrogativa que via de regra sequer é utilizada em relação às operações atualmente disciplinadas pela extensa e minuciosa Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021 (a nova lei de licitações), que chega a prever um portal eletrônico único para que os entes efetuem aquisições de bens necessários ao  funcionamento de suas administrações públicas.

Conforme se verifica, o resultado atingido é o oposto do que tem sido disseminado. Ao invés de ampliar a aplicação das contratações por tempo determinado e torná-las o instrumento a ser utilizado na realização de atividades que não sejam imputadas a cargos exclusivos de Estado, o recurso ao mecanismos passará a ser disciplinada por normas claras e terá alcance mais restrito do que o atualmente registrado. 

Automatização da administração pública

O substitutivo insere no texto constitucional a obrigação de se introduzirem sistemas automatizados que facilitem o contato entre os contribuintes e a administração pública. Tanto quanto nos dois assuntos anteriores, em que são editadas normas de caráter transitório que permitem a imediata alteração dos padrões vigentes, também aqui é feita alusão a uma lei já vigente para que se produzam efeitos imediatos.

Com efeito, de acordo com o § 5º do art. 3º e o art. 8º do substitutivo, vigorará, a respeito, até que se edite lei específica, a Lei nº 14.129, de 29 de março de 2021[2]. A progressiva automatização dos serviços prestados pelo governo federal é evidente e efetiva. A lei em questão não a estabeleceu, apenas legitimou e reduziu ao direito posto procedimentos que já eram materializados pela administração pública federal. Há determinação de que seja aplicada aos demais entes públicos, providência que atualmente se estabelece de modo opcional e que passaria a se revestir de caráter vinculante. 

Limite remuneratório

Foi recentemente aprovado projeto de lei que disciplina a exclusão de parcelas indenizatórias do limite remuneratório. O substitutivo explicita no texto constitucional a validade da metodologia empregada. Embora já exista compatibilidade entre o texto constitucional vigente e a sistemática adotada, a medida é salutar, porque se trata de tema sensível e se deve evitar a eventual declaração de inconstitucionalidade do futuro diploma, que poderia ser motivada pelo desejo de resguardar interesses feridos.

Veja-se que a regra já trabalha, sem que se precise incluí-los de forma expressa, para que magistrados e procuradores sejam abrangidos por regras restritivas. É que o aludido projeto de lei afeta de modo bastante contundente a concessão de férias em período superior a trinta dias para magistrados e membros do Ministério Público.

Sobre o assunto, é relevante também regra que exclui da incidência do teto parcelas pagas em moeda estrangeira a servidores em exercício no exterior. Será afastada a despropositada comparação entre variáveis de teor divergente e serão evitados cortes remuneratórios decorrentes exclusivamente da flutuação do dólar, como resultado de turbulências econômicas sem nenhuma ligação com a realidade em que os referidos pagamentos são feitos. 

Instrumentos de cooperação

Não há restrição de objeto nem na Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, que trata de parcerias público-privadas, nem na Lei nª 13.019, de 31 de julho de 2014, que disciplina o relacionamento entre a administração pública e as ONG’s. Ambos os diplomas foram aprovados em governos petistas, a partir de propostas apresentadas pelo Poder Executivo.

As parcerias que seguem as regras estabelecidas nas referidas leis causam significativamente menos problemas que as demais, por se subordinarem a critérios que permitem o controle por parte da administração pública. O art. 37-A que se pretende acrescentar à Constituição, que vem sendo atacado de forma veemente pela esquerda, permitirá, ao cabo, paradoxalmente, que sejam universalizados os parâmetros corretos que governos de esquerda implantaram no funcionamento da administração pública federal.

A única ressalva é justamente no sentido contrário. Foi mantida regra no substitutivo aprovado pela Comissão Especial que proíbe parcerias destinadas a atividades ditas “exclusivas de Estado”. A restrição precisa ser excluída. Impedirá, entre outros problemas de natureza semelhante, que a Receita Federal e a Polícia Federal se entendam com concessionárias de aeroportos para executar serviços de alfândega, o que não se justifica. 

Avaliação de desempenho de servidores públicos

O assunto foi introduzido na Constituição Federal da pior forma possível. É vexaminoso que se vincule, no texto vigente, estritamente ao desligamento de servidores públicos. Trata-se de situação que causa profundo constrangimento e situa o Brasil nos dez mil anos que antecederam a idade da pedra no que diz respeito à administração pública.

É imprescindível, neste contexto, que as redentoras regras a serem introduzidas na Carta sobre o tema comecem a se defender por si mesmas. Trata-se de abordar a questão na forma como se verifica nas empresas mais avançadas e nos países de primeiro mundo: para que se atinjam os resultados visados pela administração pública e para que ela preste melhores serviços aos contribuintes.

É mantida a possibilidade de desligar servidores por mau desempenho e se introduzem regras muito objetivas para que a providência se efetive, mas é preciso enxergar na eventual adoção rotineira da medida o completo fracasso da avaliação de desempenho, tal como concebida no substitutivo. Com efeito, ao invés de se visar tal resultado, o sistema será inserido no texto constitucional para evitar que os servidores percam seus cargos por insuficiência de desempenho.

Se começarem a ocorrer desligamentos em massa por conta de mau desempenho, os procedimentos de avaliação precisarão ser imediatamente revistos. Será bastante provável, talvez até mesmo líquido e certo, nesta hipótese, que não terão sido respeitados os critérios expressamente introduzidos na Constituição da República.

Cumpre recordar que o desligamento de servidores públicos nas circunstâncias aqui referidas representará, em todos os casos, a frustração de objetivos estabelecidos pela administração pública. É certo que o servidor será prejudicado, porque perderá o cargo que ocupa, mas antes dele o sacrifício foi imposto à coletividade, que não viu seus propósitos cumpridos. 

Estabilidade

Seria reduzida a pó pelo texto original e limitada a menos de vinte por cento do contingente de pessoal mantido pela administração púbica. Como se trata de instituto imprescindível para o bom funcionamento do aparato estatal, foi mantido na exata extensão que atualmente abrange.

Mas o substitutivo suprime distorções que só desmerecem a aplicação da garantia e em nada contribuem para uma boa imagem da administração pública. Não se criou a estabilidade para que servidores sem nenhum rendimento ou utilidade permaneçam retribuídos indefinidamente pelos contribuintes.

Os recursos públicos devem se destinar apenas a servidores que prestam bons serviços e que retribuam os investimentos a eles dirigidos. Evitar que o contrário se verifique de modo algum representa a abertura de oportunidade para desmandos praticados por gestores públicos. Se estes ocorrerem, o sistema de controle, inclusive judicial, deverá entrar em ação. Não faz sentido impor prejuízos indevidos aos que sustentam a administração pública sob o pretexto de evitar abusos, os quais de modo algum estarão autorizados pelo novo texto constitucional.

É preciso assinalar que o corte de servidores integrantes de quadros excedentes ou incumbidos de atividades obsoletas não atingirá os atuais servidores. As regras transitórias introduzidas no substitutivo permitirão que estes, se alcançados pelas referidas situações, sejam aproveitados de maneira racional em outras atividades.

Trata-se de uma providência com cada vez menor viabilidade. É óbvio que o enxugamento de quadros que decorrerá da progressiva e inevitável automatização não permite que medidas da espécie sejam perpetuadas e aplicadas aos futuros servidores. Parece bem mais razoável, destarte, que quando o cenário ocorrer os quadros de pessoal da administração pública já se encontrem concisos e enxutos.

Proibição da pena de cassação de aposentadoria

É uma sanção administrativa descabida. Incide sobre direito constituído, a partir de motivos que nenhuma ligação possuem com sua aquisição. Cabe lembrar, para não ocupar espaço demasiado sobre o assunto, que nunca se cogitou o corte imotivado da aposentadoria de segurados do regime geral de previdência, nem mesmo quando cometem crimes. 

Redução de jornada com corte remuneratório

Não há como enxergar a medida senão de forma positiva. Será introduzida no texto constitucional para ser usada apenas em contexto de crise fiscal, como alternativa evidentemente mais suave do que a exoneração de servidores efetivos.

Na discussão sobre o assunto houve a afirmação, por um parlamentar de oposição, que o mais correto teria sido eliminar a referida possibilidade, ao invés de se introduzir medida paliativa. A partir da premissa do atendimento de interesses corporativos, seria uma solução de fato mais positiva. Difícil seria encontrar no meio social quem fizesse idêntica assertiva.

A fórmula adotada insere no texto constitucional providência que o Supremo Tribunal Federal considerou incompatível com o sistema vigente. Salvo melhor juízo, não poderá mais ser considerada irregular medida admitida de forma expressa pela Carta da República. 

Carreiras exclusivas de Estado

A lista é extensa e denota a eficácia de entidades que defendem, com legitimidade, registre-se, interesses corporativos, mas que em nada contribuíram para nenhum outro aspecto do texto. Será inserida no único local do texto constitucional em que o problema é mencionado: no art. 247 da Constituição.

Passou a servir de anteparo exclusivamente para o corte de servidores estáveis em cenário de crise fiscal. Não se prestará mais à imoral, indecente e abusiva outra finalidade hoje estabelecida, porque não faz sentido que servidores “exclusivos de Estado” ou que outras características tenham sejam privilegiados no que diz respeito ao desempenho a que se obrigam. 

Aposentadoria de policiais

A influência dos servidores integrantes do aparato dedicado à segurança pública sobre as posições adotadas pelo atual governo não evitou problemas de relacionamento. Os policiais não ficaram satisfeitos com o teor da Emenda Constitucional nº 103, de 2019, a despeito de se tratar de texto que tratou a categoria de forma bem menos ríspida do que a que se verificou em relação aos demais servidores.

De todo modo, a introdução do assunto no substitutivo se ateve a critérios bastante bem delineados. No que diz respeito à pensão, foi suprimido um critério cruel, na medida em que só se contemplava as famílias com benefícios integrais caso os policiais sofressem agressão em serviço. Trata-se de atividade estressante e reconhecidamente mais sujeita a intempéries que as exercidas por outros servidores públicos. Admitida a necessidade de tratamento diferenciado a pensionistas, a referida limitação se revela descabida.

A norma introduzida no substitutivo assegura de forma universal o acesso a pensões com valor não inferior ao salário-mínimo. No texto vigente, a garantia é combinada com outras rendas percebidas pelos pensionistas, as quais não possuem ligação alguma com o benefício.

A aposentadoria integral de policiais, de sua parte, limita-se a materializar o que a administração pública federal já pratica. A tentativa de estender a garantia a outras unidades federativas foi abortada pelo relator da reforma administrativa. 

Conclusão

Este texto não visa impor a visão do autor como indiscutível e absoluta. É próprio do sistema democrático que opiniões distintas convivam. A contribuição que se espera ter conferido à discussão reside em outro aspecto: que se busque, a partir das ponderações aqui promovidas, uma análise que enfrente o verdadeiro conteúdo do substitutivo aprovado pela Comissão Especial encarregada de examinar a reforma administrativa. Causa grande preocupação que boa parte dos posicionamentos a respeito venham sendo disseminados a partir de evidentes inverdades e condenáveis distorções interpretativas.

 

[1] Define as competências privativas da União.

[2] Lei que dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o Governo Digital e para o aumento da eficiência pública.

 

* Magno Antonio Correia de Mello é consultor legislativo da Câmara dos Deputados.

]]>
O crime compensa? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3479&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-crime-compensa Wed, 14 Jul 2021 19:36:21 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3479 O crime compensa?

Por Luiz Alberto Machado*

Chama a atenção o volume de matérias divulgadas na mídia ou nas redes sociais envolvendo temas relacionados ao crime e à corrupção no Brasil.

Mesmo admitindo que há crime e corrupção no mundo todo e que a pandemia  expandiu os estímulos à prática de atos ilícitos em razão da redução do nível de atividade econômica e da menor oferta de empregos formais, a sensação que se tem é que no Brasil o volume supera o normal.

Sensação, aliás, confirmada pela Transparência Internacional, organização não governamental dedicada à produção de um índice comparativo da percepção de corrupção em 180 países. A escala do índice vai de 0 a 100, em que 0 significa que o país é percebido como “altamente corrupto” e 100 é a avaliação de um país percebido como “muito íntegro”. Notas abaixo de 50 indicam níveis graves de corrupção.

Na última edição do IPC (Índice de Percepção da Corrupção), publicada janeiro de 2021, a nota do Brasil (38) ficou abaixo da média da América Latina (41) e mundial (43) e distante da média dos países do G20 (54) e da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) (64).

A combinação de elevado volume de matérias sobre crimes e de alto índice de percepção da corrupção leva à seguinte pergunta: o crime compensa no Brasil?

Uma possível resposta a essa pergunta pode ser buscada na teoria econômica, graças, sobretudo, à contribuição de Gary Becker, ganhador do Nobel de Economia em 1992, “por haver estendido os domínios da análise microeconômica ao vasto campo do comportamento humano e das suas interações, incluindo o comportamento não mercadológico”.

Becker, que se engajara, de 1964 a 1967, numa linha de pesquisa liderada por Jacob Mincer e Theodore Schultz voltada à teoria do capital humano, ampliou consideravelmente a problemática neoclássica (base da teoria do capital humano) ao estender para diversos outros fenômenos da vida social o mesmo argumento utilizado na análise do investimento em capital humano, fundamentada na racionalidade dos indivíduos. Nas mais diferentes situações – para se casar, para se dedicar ao crime, para consumir drogas, para ter filhos, para comprar um eletrodoméstico ou para se divorciar – o indivíduo toma sua decisão comparando racionalmente os custos e os benefícios, tendo em mente a maximização de sua satisfação.

Como observa Shikida[1], “a economia do crime, portanto, é uma das abordagens no campo das ciências sociais aplicadas que procura entender as motivações para o crime a partir da análise econômica. No artigo “Crime and punishment: an economic approach”, publicado em 1968, Becker, utilizando-se de modelagem matemática, ressaltou que uma pessoa propensa ao crime pondera, racionalmente, os custos e benefícios esperados de sua prática ilícita, para, a partir daí, escolher atuar (ou não) no mercado econômico ilegal”.

Detalhando mais o argumento, o indivíduo racional compara os ganhos que pode obter com as atividades ilícitas aos seus custos, considerando as possibilidades de ser capturado e a extensão da pena. Pode parecer simples, mas há uma série de variáveis envolvidas nessa análise. Pelo lado dos benefícios, o indivíduo compara o que será possível ganhar e em quanto tempo de “trabalho”. Leva em conta, alternativamente, quanto ganharia no exercício de uma atividade profissional regular, na qual provavelmente teria que trabalhar em tempo integral. Pelo lado dos custos, ele vai levar em conta as chances de ser flagrado, de ser condenado e de efetivamente ter que cumprir a pena. Se, por exemplo, for um indivíduo de baixa qualificação, sem maiores oportunidades de obter um emprego com remuneração elevada, a perspectiva de correr risco na atividade criminosa torna-se mais atraente. Se ele considerar que a chance de ser flagrado e condenado é remota em razão do número reduzido de policiais, do despreparo dos mesmos ou dos equipamentos limitados de que dispõem, a perspectiva torna-se mais atraente ainda. Se, ainda por cima, ele constatar que a legislação oferece uma série de atenuantes e que por falta de presídios a tendência dos juízes é de aplicar penas suaves, sendo, portanto, muito remota a hipótese de ter que passar um período muito longo de tempo atrás das grades, a chance de optar pelo crime é muito grande. Afinal, com essas variáveis todas, a conclusão a que o indivíduo chega é de que “o crime compensa”.

Evidentemente, se as variáveis fossem outras, como por exemplo: de um lado, o indivíduo possui bom nível de qualificação, a atividade econômica está em fase de expansão, estão surgindo boas oportunidades de emprego e a chance de obter salários elevados é alta; e de outro lado o sistema de segurança é eficiente, recebe polpudos investimentos públicos, resultando num efetivo policial bem preparado e equipado, capaz de exercer com competência o combate ao crime, agindo tanto na prevenção como na repressão, o sistema judicial é ágil, permitindo a tramitação rápida dos processos e as penas são duras, tendo que ser cumpridas à risca, a possibilidade de se sair bem na atividade criminosa se reduz acentuadamente, e o indivíduo irá pensar muito mais antes de se dedicar a ela, já que na sua percepção, “o crime não compensa”.

Diante de tais considerações, a conclusão inevitável é de que no Brasil o crime compensa, pois, além de graves problemas na educação, que geram enorme quantidade de profissionais com baixa qualificação, temos um número muito baixo de crimes esclarecidos ou de atos de corrupção efetivamente punidos. E, quando ocorre a punição, a possibilidade de cumprimento integral da pena também é muito baixa.

Entre outros prejuízos decorrentes dessa situação, está o afugentamento de investimentos estrangeiros diretos, algo fundamental para um país cuja população – ou por não ter condições ou por uma questão cultural – não cultiva o hábito da poupança, pré-requisito indispensável para o investimento. Por isso, a atração de capitais provenientes do exterior é essencial para a preservação da nossa incipiente taxa de investimento.

 

* Luiz Alberto Machado é economista, mestre em Criatividade e Inovação e conselheiro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no Blog de Fausto Macedo em O Estado de S. Paulo em 14 de julho de 2021.

[1] Disponível em http://www.brasil-economia-governo.org.br/2021/06/07/economia-do-crime/.

]]>
Como o Open Banking pode aumentar a concorrência bancária? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3476&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-o-open-banking-pode-aumentar-a-concorrencia-bancaria Wed, 07 Jul 2021 07:16:23 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3476 Como o Open Banking pode aumentar a concorrência bancária?

 Por Olavo Severo Guimarães*

  1. O que é Open Banking?

Como parte da Agenda BC# do Banco Central, que abriga uma série de medidas destinadas a modernizar, digitalizar e fomentar a inovação no sistema financeiro nacional[1], o Open Banking (OB) possibilita e estabelece padrões de compartilhamento de dados bancários dos consumidores de uma instituição por outras, permitindo a elaboração de novos produtos e serviços.

Na prática, alguns tipos de serviços que devem emergir do OB são os de (i) agregamento de dados, que fornecem em um só aplicativo uma visão das finanças do usuário em seus vários bancos, possibilitando a comparação e a administração unificada e automatizada; (ii) marketplaces, que agregarão ofertas personalizadas de diferentes instituições em uma só plataforma; e (iii) melhoria de processos, agilizando processos contábeis e de concessão de crédito, por exemplo.

Segundo o Bacen[2], os objetivos da abertura de dados são (a) incentivar a inovação, (b) promover a concorrência, (c) aumentar a eficiência do Sistema Financeiro Nacional e do Sistema de Pagamentos Brasileiro e (d) promover a cidadania financeira. Tais metas serão atingidas através da solução de imperfeições do mercado bancário há muito apontadas pela literatura, as quais são a seguir abordadas. 

  1. Assimetrias de informação entre instituições e seleção adversa

Saber é poder – ao menos para as instituições bancárias. Esta foi, em outras palavras, uma das conclusões da autoridade antitruste britânica (CMA) na investigação sobre o mercado bancário que lançou as sementes para a regulação de OB no Reino Unido[3], principal referência para o OB brasileiro. Para a agência britânica, o acesso aos dados de amplas bases de consumidores confere aos bancos uma significativa vantagem potencial, podendo a ausência deste acesso configurar, de mais de uma maneira, uma barreira à entrada e expansão de novos players.

Em primeiro lugar, as instituições já estabelecidas no mercado, detentoras de dados, podem ter condições muito melhores para desenvolver, direcionar e vender os produtos e serviços para seus consumidores. O relacionamento prévio com uma ampla base de clientes, além de um forte insumo para detecção de demandas e desenvolvimento de futuros produtos, também possibilita uma maior diferenciação dos usuários, o que é útil para estratégias de venda cruzada, retenção e aquisição de consumidores. Tais vantagens são observáveis em cada vez mais mercados na emergência do Big Data, razão pela qual este tema tem ocupado um posto central nas discussões sobre posse de dados e defesa da concorrência nos últimos anos.

Em segundo lugar, os bancos que já possuem um histórico de relação com o cliente conseguem avaliar melhor suas requisições de crédito, o que otimiza as decisões e o pricing destas instituições em relação à concessão de seus fundos. Ou seja, o banco competidor, com menos informações sobre a qualidade dos tomadores de crédito, tem mais dificuldade de avaliar os riscos envolvidos na operação, estando mais propício a precificá-las erroneamente ou rejeitar oportunidades profícuas. Neste sentido, por exemplo, Stiglitz e Weiss[4] e Dell’ariccia et al.[5] concluíram que um banco, ao ingressar no mercado de crédito, sempre se depara com um problema de seleção adversa: a perspectiva de receber de seus concorrentes seus piores pagadores.

Diante desta assimetria de informação dos bancos em relação a características relevantes de novos consumidores, uma solução desenvolvida em diversos países, incluindo o Brasil, foi a criação dos bureaux de crédito, os quais coletam, arquivam e distribuem tais dados, auxiliando o mercado a calcular os riscos de crédito. Com o afloramento do OB, os bureaux creditícios terão a oportunidade de expandir ainda mais seus bancos de dados, o que irá aprimorar a performance de seus modelos e a precisão de seus escores. Além disso, as instituições credenciadas poderão ter acesso ao histórico transacional de novos clientes mesmo sem o intermédio de bureaux de crédito. Assim, a redução de assimetria informacional deve gerar aumentos de eficiência e expansão da oferta de crédito, pois as instituições conseguirão descobrir novas oportunidades e precificá-las corretamente. 

  1. Inércia do consumidor

Outro aspecto que diminui a concorrência no mercado bancário é a própria imobilidade da demanda. Segundo o levantamento da CMA[6], referida agência britânica, apenas 3% dos titulares de contas correntes pessoais mudavam de instituição financeira anualmente. A situação não foi diferente em relação aos titulares de contas correntes empresariais, com uma taxa de 4%.

No Brasil, salvo melhor juízo, não há dados públicos a respeito do percentual de pessoas físicas e jurídicas que mudam de banco anualmente[7]. Contudo, dados do Bacen[8] do ano de 2019 indicam que a portabilidade bancária no país ainda está aquém de seu potencial. Na modalidade de crédito imobiliário, estimou-se ao final de 2019 que havia ao menos 570 mil operações (R$102,8 bilhões) que poderiam se favorecer da portabilidade, e os 36 mil contratos (R$2,15 bilhões) que se beneficiaram da portabilidade configuram apenas 6,4% desse potencial.

  1. Custos de transferência de banco

Uma das explicações para tal inércia da demanda se dá por uma série de custos de transferência com os quais o consumidor tem de arcar ao mudar de banco, dentre os quais destacamos (a) a dificuldade de fechamento de conta corrente no banco de origem (devido a débitos automáticos, pagamento de salário etc.); (b) procedimentos burocráticos necessários à troca; (c) cancelamento de cartões antigos, muitos com financiamento de compras a prazo; (d) memorização de novas senhas[9].

O Open Banking amenizará alguns destes custos. Por exemplo, aplicativos que permitam o manejo centralizado de diversas contas bancárias (em instituições diferentes) diminuirão a necessidade de memorização de diversas senhas e facilitarão a organização financeira dos usuários. Além disso, aplicações podem descomplicar tremendamente o processo de abertura de contas ou de tomada de créditos, reduzindo a burocracia. Estas funções devem encorajar os usuários a estabelecer relações com mais instituições financeiras, bem como ajudar a difundir uma cultura de portabilidade bancária, tanto de contas correntes quanto de créditos.

  1. Complexidade das estruturas de cobrança 

A agência britânica[10] também concluiu que contas correntes, tanto para pessoas físicas quanto para jurídicas, têm estruturas de cobrança complicadas, as quais dependem do uso particular de cada cliente. Particularmente, o sistema de cobrança pelo uso do cheque especial se revelou complexo – tratando-se justamente de serviço que tende a ser subestimado pelo consumidor. Tudo isto dificulta a comparação dos serviços e produtos contratados com outros disponíveis no mercado.

O caso brasileiro também oferece indícios neste sentido. Acessando-se o ranking do Bacen de reclamações do consumidor a respeito de instituições reguladas, nota-se a participação expressiva de reclamações na categoria “Oferta ou prestação de informação a respeito de produtos e serviços de forma inadequada”. Nos quatro trimestres de 2019, reclamações enquadradas nesta classificação ficaram em primeiro lugar no levantamento[11].

Neste cenário, o OB tem o potencial de trazer muito valor aos consumidores. Com acesso a dados, aplicativos poderão ajudar usuários a identificar seus perfis de uso de modo a encontrar as ofertas bancárias mais adequadas. A análise retrospectiva da contratação também deve ser facilitada: programas poderão simular quanto os agentes teriam pago de encargos caso tivessem optado por diferentes instituições financeiras, o que os incentivará a tomar melhores decisões futuras. Em verdade, este tipo de funcionalidade aumentaria a competição em diversos setores, motivo pelo qual o OB já inspira, na Austrália, a implementação do Open Energy.

  1. Contratos sem termo final 

Por fim, outro aspecto que contribui para a inércia do consumidor neste mercado são as suas características contratuais. Ao abrirem contas correntes, clientes e bancos costumam estabelecer contratos sem termo. Assim, diferente de contratos de seguro, que costumam ter gatilhos regulares (renovação anual, por exemplo), não há, na relação bancária, um momento em que o consumidor é estimulado a se perguntar se ele poderia obter melhores ofertas de outras instituições financeiras. Neste contexto, aplicativos de gestão financeira unificada e marketplaces podem compensar a falta de termo final com frequentes comparações e ofertas personalizadas.

  1. Conclusão 

Visto de forma mais ampla, o OB é a aplicação, no setor bancário, de um movimento mundial que visa conferir aos consumidores mais controle sobre seus dados, em defesa da privacidade e também em fomento da inovação e da concorrência. Neste contexto, é digno de nota que o OB brasileiro promete ser um dos mais completos do mundo, pois, ao final de sua última fase, em Dezembro de 2021, haverá também o compartilhamento de informações sobre produtos de investimentos, seguros e câmbio, o que já é chamado de “Open Finance”.

O sistema financeiro aberto, resultado destas medidas, tem o potencial de solucionar ou atenuar diversas imperfeições observadas no mercado bancário, tanto do lado da oferta quanto da demanda, como assimetrias de informação dos consumidores e também das instituições entre si, além de reduzir custos de mudança de bancos.

Os novos aplicativos provocarão nudges pró-competitivos a compensar características do setor que contribuem para a inércia dos usuários, como a falta de termo final nos contratos. Além disso, o movimento, conjugado com outras medidas do Bacen no sentido de digitalizar os bancos, deve ainda incentivar entradas de fintechs e big techs neste mercado, o que aumentará a pressão competitiva nele. Por isto tudo, espera-se que o OB melhore a qualidade, o custo e a variedade dos serviços contratados pelo público.

 

[1]  Neste sentido, a apresentação da Agenda BC# pelo presidente do Bacen Roberto Campos Neto: https://www.bcb.gov.br/conteudo/home-ptbr/TextosApresentacoes/ppt_balanco_agenda_bc_2019.pdf

[2] BRASIL. Banco Central do Brasil (BACEN). Resolução Conjunta nº 1. Dispõe sobre a implementação do Sistema Financeiro Aberto (Open Banking). Brasília: BACEN, 2020. Disponível em: https://bit.ly/3eRv2s3. Acesso em: 13 mar. 2021.

[3] COMPETITION AND MARKETS AUTHORITY (CMA). Retail banking market investigation: Final report. Londres: CMA, 2016. Disponível em: https://bit.ly/2WeHDdJ. Acesso em: 24 fev. 2020.

[4] STIGLITZ, Joseph E.; WEISS, Andrew. Credit rationing in markets with imperfect information. The American Economic Review, v. 71, n. 3, p. 393-410, 1981. Disponível em: https://bit.ly/2W9TQ3u. Acesso em: 15 fev. 2020.

[5] DELL’ARICCIA, Giovanni; FRIEDMAN, Ezra; MARQUEZ, Robert. Adverse Selection as a Barrier to Entry in the Banking Industry. The RAND Journal of Economics, v. 30, n. 3, p. 515–534, 1999. Disponível em: www.jstor.org/stable/2556061. Acesso em: 30 jan. 2020.

[6] Vide item 4.

[7] Este autor pesquisou sem êxito nos sites do Bacen e da Febraban, bem como na internet em geral.

[8] BRASIL. Banco Central do Brasil (BACEN). Relatório de Economia Bancária 2019. Brasília: Banco Central do Brasil, 2019. Disponível em: http://bit.ly/3vsBifR. Acesso em: 12 mar. 2021.

[9] Voto do Conselheiro César Costa Alves de Mattos no âmbito do Ato de Concentração nº 08012.011736/2008-41, reproduzido no corpo do Anexo ao Parecer Técnico nº 12/2016 do Ato de concentração nº 08700.010790/2015-41.

[10] Vide item 4.

[11] RANKING de Reclamações. Banco Central do Brasil, 2019. Disponível em: https://bit.ly/2SmhOaM.

[12]GUIMARÃES, Olavo Severo. Concorrência bancária e o Open Banking no Brasil. Revista de Defesa da Concorrência do CADE, v. 9 n. 1, p. 125-147, jun. 2021. Disponível em: https://revista.cade.gov.br/index.php/revistadedefesadaconcorrencia/article/view/709/533. Acesso em: 04 jul.

* Olavo Severo Guimarães é a advogado, mestrando em Economia (UFRGS).

Artigo inspirado em publicação do autor na Revista de Defesa da Concorrência do CADE, v. 9 n. 1 (2021)[12].

 

 

]]>
As Constituições e seu papel nas Relações Internacionais https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3395&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=as-constituicoes-e-seu-papel-nas-relacoes-internacionais Wed, 20 Jan 2021 19:39:45 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3395 Por Eiiti Sato

Neste artigo, procurar-se-á discutir o papel das constituições diante da realidade internacional desde que se tornaram elementos centrais no Direito moderno, uma vez que definem os limites das ações e as características do Estado Nação. Com efeito, no estudo das relações internacionais as constituições tornaram-se a peça que define não apenas os padrões da convivência política doméstica, mas também os princípios que devem orientar as ações e o caráter de um Estado nas relações com outros Estados. Para esse propósito parece útil, e até mesmo necessário, iniciar com algumas considerações de base histórica para, em seguida, discutir o papel desempenhado por esse tipo de documento nas relações internacionais contemporâneas.

A trajetória percorrida pelas sociedades desde a formação do Estado moderno marcado pelo “contrato social” em substituição ao Estado patrimonialista baseado em costumes ancestrais e em leis não escritas, foi uma trajetória tão complexa e variada como o da própria convivência humana. Assim, este texto está longe de presumir que, em poucas páginas, seria capaz de resumir toda essa longa e rica trajetória e procura apenas apontar para algumas questões que, no entendimento do autor, refletem um mundo que, em poucos séculos, passou por transformações na esfera social e política, muito mais amplas e profundas do que nos muitos milênios que antecederam a era que chamamos genericamente de “modernidade”. Além disso, a centralidade da experiência europeia se explica pelo fato de que muito embora o Estado em seu sentido genérico tenha sido uma instituição presente em toda a humanidade, o Estado Nacional que conceitualmente organiza a relações entre povos em nossos dias deriva da experiência europeia.

A constituição escrita como contrato social

Na Antiguidade foram relativamente poucas as leis escritas e registradas como o Código de Hamurabi ou as leis de Moisés. Da Grécia Antiga, chegaram até nossos dias alguns documentos como as leis que formaram o que chamamos de democracia ateniense. Na Idade Média, as sociedades europeias ainda se organizavam muito mais em torno de costumes, de normas e de instituições sociais não escritas. A Magna Carta assinada por João Sem Terra e seus barões (1215, d.C.) foi um dos poucos acordos de alcance mais amplo registrados na forma de documento escrito. De qualquer forma, no mundo ocidental, a prática de produzir compromissos sustentados em documentos organizados e escritos na forma de códigos estruturados começou a se disseminar ainda na Baixa Idade Média.

Na realidade, quando a Idade Média chegava ao fim, as sociedades na Europa tornavam-se mais populosas e complexas demandando tratados e acordos definindo formalmente direitos sobre propriedades, sobre territórios bem como sobre questões como direitos hereditários e práticas religiosas. Esses documentos podiam ter por base costumes e direitos ancestrais mas, de forma crescente, precisavam ser também expressos e registrados em documentos escritos, coerentes com a força da razão e do direito praticado de forma consolidada por gerações. Uma característica marcante dessa época aparece como fato histórico fundante da história da nação brasileira. Aprende-se nas escolas a importância da Bula Papal Intercœtera (1493) e do Tratado de Tordesilhas (1494) promulgados pelo Papa Alexandre VI. Do ponto de vista do presente ensaio, esses episódios são bastante ilustrativos do caráter universal da autoridade da Igreja Católica que, nesses documentos, revelava possuir a notável prerrogativa de arbitrar e até de dividir o mundo que se estendia para além do Mediterrâneo e do Mar do Norte, entre os reinos de Portugal e de Espanha.[1]

A partir do século XVI, com a progressiva substituição das instituições feudais pelo Estado Nacional moderno, caracterizado pela racionalidade, pela laicidade e pela impessoalidade, a organização e o funcionamento do Estado na Europa passaram a ser expressos e registrados em documentos escritos. A emergência do contrato social como elemento definidor de um Estado Nação, figurativamente representado por Hobbes em seu Leviathan (1651), foi marcada por esse declínio do ancien régime que identificava as unidades políticas com as posses de nobres senhores, que podiam ser reis, duques, condes, ou portadores de outros títulos que correspondiam a seus feudos. O Estado Nacional moderno, por sua vez, marcado pela territorialidade estável, pela impessoalidade e por direitos e obrigações racionalmente concebidos e estruturados, passou a depender também de documentos escritos que refletissem os compromissos assumidos por governantes e governados em torno de princípios e de motivos pelos quais esses compromissos eram formalmente assumidos. A expressão latina verba volant, scripta manent tornava-se cada vez mais essencial para registrar e assegurar direitos e compromissos entre famílias que se ampliavam, entre povos que se misturavam e entre gerações que se sucediam.[2]

Alguns escritos deixados por pensadores da época refletem essa passagem da ordem feudal católica para a modernidade onde, de forma crescente, no ambiente político e cultural europeu, as populações passavam a se misturar e a conviver com outras religiões e com outras culturas e etnias. Um jurista e teólogo como Francisco de Vitória, situado nesse ponto de inflexão da história europeia, apesar de formado na educação escolástica católica medieval, passou a divergir e a questionar o entendimento corrente de que os europeus tinham o direito de fazer a guerra contra os nativos das Américas apenas porque seus reis não eram cristãos.[3] A esse respeito, uma das obras mais notáveis e abrangentes dessa época em que se redefinia a ordem social e política foi deixada por Jean Bodin. Seu “Six livres de la République” (1576) foi escrito na forma de um compêndio sobre o entendimento do Estado e a forma de governá-lo. Nesse esforço de definição do Estado, seu ponto de partida foi enunciar a compreensão da soberania, um atributo que existia desde tempos imemoriais associado às prerrogativas dos governantes mas que, no Estado moderno emergente, ganhava um sentido diferente, tornando-se um atributo primordial do próprio Estado e não mais de seu governante que, na ordem antiga, era confundido com o sentido de “proprietário”. Assim, nesse esforço para definir e compreender o Estado e suas instituições, Bodin precisava, antes de tudo, começar por explicar onde começava e onde terminava a autoridade desse Estado.[4]

Com efeito, no direito medieval não havia o conceito de país e nem de cidadão, mas apenas de senhores, de vassalos, de reinos e de feudos distribuídos de forma pouco distinta pela cristandade. Ademais, nesse processo de surgimento do Estado moderno, foi preciso também que o conceito de cidadão substituísse o de vassalo na ordem social, juntamente com o de país como unidade central da ordem política. O conceito de cidadão é importante porque, em essência, somente um cidadão poderia “subscrever” um “contrato social”. Como argumentava Hobbes, os cidadãos é que integram a sociedade civil e, mesmo que não fossem portadores de títulos e de virtudes morais desejáveis, o fato de desfrutarem uma condição de igualdade natural entre si tornava importante sua adesão ao contrato social. Para Hobbes, objetivamente, os homens não seriam iguais por uma abstrata dignidade inerente a todos os seres humanos, mas eram iguais pelo mal ou pelo bem que potencialmente podiam trazer à convivência humana. Hobbes, uma mente arguta e sempre atenta aos acontecimentos e à História, observava as turbulências políticas de seu tempo. Na sua Inglaterra, o rei Charles I era abertamente confrontado em sua fé e em sua autoridade por barões e também pelo povo até ser decapitado (1649), além disso, em 1610, ainda jovem, Hobbes certamente havia observado o homem mais poderoso da França – Henrique IV, denominado “O Grande” – ser assassinado por um simples mestre-escola.[5] Em outras palavras, embora um rei pudesse ser rico, poderoso e alvo de muitas honrarias, e até mesmo dispor de uma guarda pessoal, a igualdade natural continuava a existir, uma vez que ainda podia assassinar ou ser assassinado por um homem comum.

Na concepção de Hobbes, o meio internacional seria formado por vários Leviatãs, cada qual resultante de cidadãos que, hipoteticamente, se reuniam em torno de um “contrato social” para definir sua organização política e defender suas crenças, seus interesses e, de uma forma geral, suas principais motivações de vida. Na literatura corrente sobre relações internacionais, reconhece-se o fato de que o termo “internacional” foi utilizado pela primeira vez apenas no século XVIII, por Jeremy Bentham na sua obra An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, publicada em 1789. Antes de Bentham os termos utilizados para Direito Internacional eram Direito das Nações ou Direito das Gentes.[6] Também foi apenas nos fins do século XVIII que, formalmente, aparece o primeiro “contrato social” – a primeira constituição – estabelecendo um Estado Nacional na acepção moderna: os Estados Unidos da América.

A constituição define o país

Como já mencionado, a constituição é o “contrato social” que define os limites e as características essenciais da organização social e política do Estado Nação, que passou a receber a denominação genérica de país. Como já mencionado, na filosofia política a constituição seria a expressão prática e escrita do contrato social preconizado por Thomas Hobbes na figura de seu Leviathan.[7] Na realidade, conceitualmente, a expressão contrato social é mais genérica uma vez que, filosoficamente, o termo designa o momento em que o ser humano deixa de viver no estado de natureza e passa a viver como um ser que, exatamente, se destaca da natureza estabelecendo leis morais, sociais e políticas para organizar a convivência em sociedade. Nesse sentido, não se pode dizer que no mundo feudal europeu os povos não viviam segundo um contrato social, no entanto, tratava-se de um contrato social baseado essencialmente em costumes e direitos ancestrais e na fé cristã. Da leitura das obras de contratualistas como Locke, Rousseau e do próprio Hobbes, pode-se deduzir que o sentido contido no termo passava a ter um conteúdo essencialmente racional no sentido moderno do termo, associado à noção de que, ao invés de vassalo, o indivíduo tornava-se cidadão, capaz de pensar e de julgar por si próprio seus interesses e seu lugar na sociedade.

Objetivamente, a reinterpretação da expressão contrato social era um reflexo bastante visível de um mundo em que as populações se expandiam e se integravam por meio de relações cada vez mais complexas. Ao mesmo tempo em que algumas relações tornavam-se cada vez mais estáveis e até permanentes, outras podiam ter duração mais curta, como no comércio, mas que, apesar disso, demandavam garantias impessoais e atemporais. De qualquer modo, valorizava-se cada vez mais a razão e o entendimento de que cada povo podia ter seus próprios costumes ancestrais e suas próprias tradições religiosas sem que, no entanto, fossem razões para torná-los inimigos uns dos outros, os quais deveriam ser combatidos, convertidos, ou mesmo eliminados. Com os reformadores dos séculos XVI e XVII, a religião passava a ser vista cada vez mais como algo a ser vivido essencialmente na consciência do indivíduo misturando-se, cada vez menos, com as normas e padrões de convivência na ordem política e social.[8] Dessa forma, a disseminação do conceito de Estado Nação a partir do século XVII foi, em grande parte, um desdobramento desse processo, primeiramente como forma de acomodar diferenças dentro do próprio cristianismo e, depois, como forma de estender esse entendimento a outras culturas e a outras tradições religiosas e étnicas.

Nesse quadro, é possível entender que, na modernidade, a produção de uma constituição passou a ter o papel simbólico de definidora de um Estado Nação em um sentido bastante semelhante ao da coroação nos tempos das monarquias feudais. Com efeito, pode-se lembrar como exemplo a figura de Joana D’Arc que, no início do século XV, emergiu em meio a um tempo sombrio quando a existência do reino de França, na forma como havia sido herdado dos tempos de Carlos Magno, estava ameaçada.[9] Após 100 anos de guerra em que membros da casa real da Inglaterra reivindicavam a coroa da França, Joana D’Arc, apesar de ser apenas uma jovem camponesa iletrada, por intuição ou por revelação divina, se apresenta diante dos franceses anunciando que sua divina missão era derrotar os exércitos ingleses e fazer coroar o Delfin Carlos, ungindo-o com os óleos sagrados em Reims, tornando-o assim Carlos VII da França.[10] Em outras palavras, coroar o rei na forma estabelecida pelos costumes, era fundamental porque, ao fazê-lo, tornava inequívoca a existência de um reino no qual os barões, que comandavam feudos como Champagne, Normandie, Anjou, Poitiers, Acquitaine ou Toulouse, reconheciam o direito de Carlos VII de exercer os direitos de suserania sobre esses feudos com seus barões, suas autoridades locais e suas populações, com todos os seus bens e propriedades. Ou seja, na ordem medieval, pela força dos costumes ancestrais, ao definir a relação de vassalagem das populações e de seus barões, a coroação definia também os limites da jurisdição do reino.

Com as constituições acontece algo semelhante no sentido de que elas definem o alcance da jurisdição sobre a qual uma certa autoridade é exercida por direito a partir de instituições formalmente estabelecidas. Do mesmo modo que nas monarquias, os reis emitiam ordenações e as tornavam públicas significando que seus súditos e vassalos deveriam obedecer e se comportar de acordo com essas ordenações, nas democracias modernas, os cidadãos, por meio de seus representantes, estabelecem suas constituições e se comprometem a se submeterem a leis e a normas que são produzidas por um Congresso ou Parlamento, constituído de forma permanente, e sancionadas e tornadas públicas pelos governantes constitucionalmente estabelecidos.

O fato é que na história do mundo, a produção de constituições nacionais escritas é uma prática relativamente recente datando apenas dos fins do século XVIII, quando avança o processo de separação entre Estado, direitos de família e religião, e que os costumes, embora importantes, já não se revelavam mais suficientes para orientar com clareza os direitos e o comportamento de governantes e das pessoas e dos grupos organizados. Os historiadores costumam chamar de era da razão. É nesse ambiente que a convivência social e política passou a demandar uma revisão do contrato social sob novos princípios e sob nova forma de expressão, o que ajuda a entender porque o grupo de colônias americanas, após sua separação da Grã-Bretanha, se viu diante da necessidade de elaborar uma constituição.

Com efeito, comprovando o argumento de que a constituição define o contrato social que está por trás do Estado Nação, o processo de aprovação pelas 13 ex-colônias foi longo e difícil, mas percebido como essencial para o estabelecimento dos Estados Unidos da América como Estado Nação. A revolta contra a Coroa inglesa iniciada em princípios da década de 1770 com eventos como o Boston Tea Party e que ganhou forma definida de uma revolução com a Declaração da Independência de 1776, não formava ainda um Estado Nação, mas um movimento político de colônias britânicas na América que haviam se rebelado contra a Metrópole e que, a partir do Congresso Continental (1774-1775), estavam organizadas na forma de um acordo comum com o objetivo de arregimentar um exército entre os habitantes das 13 colônias para enfrentar as forças do exército britânico. Cada colônia tinha seus próprios líderes, suas próprias autoridades e até mesmo suas próprias leis locais. A guerra contra as forças inglesas havia demonstrado o valor e a importância da união, mas restava saber se as 13 ex-colônias estavam dispostas a se unir em tempos de paz, formando uma unidade política estável a que hoje chamamos de país. Assim, a produção de uma constituição tornou-se um passo fundamental para o estabelecimento dos Estados Unidos da América, como nova unidade política independente e permanente, com o mesmo status da própria Inglaterra, de quem as 13 colônias haviam se separado formalmente em conjunto pelo Tratado de Paris de 1783.

Os fatos mostram que a ideia de formação de um Estado Nação a partir da união das 13 ex-colônias estava longe de ser uma ideia clara, e muito menos facilmente aceita pelas lideranças políticas e pela própria população das 13 ex-colônias. Apenas alguns líderes como George Washington e Alexander Hamilton viam com clareza a necessidade de reunir as 13 colônias em uma união mais completa e permanente. O Congresso convocado para Filadélfia em 1786 teve por finalidade inicial a revisão dos Artigos da Confederação, que assegurara a união das colônias para lutarem juntas contra a Inglaterra, mas tal como a própria denominação dizia, formavam apenas uma confederação, isto é, uma reunião de unidades políticas independentes. O fato é que, após o término do Congresso da Filadélfia, houve um intenso debate até que as ex-colônias ratificassem o texto de uma Constituição formando, um novo Estado Nação – um novo país – resultante da união das 13 ex-colônias. O longo debate para saber se as 13 ex-colônias deveriam formar um agregado de unidades políticas ou se passariam a ser uma união, uma só nação, se estendeu por mais de um ano e os principais argumentos em favor da formação de uma união permanente estão registrados na coleção de textos que ficou conhecida como The Federalist Papers.[11]

Em alguma medida, a experiência vivida pelos EUA nos fins do século XVIII, isto é, a definição de um Estado Nação distinto por meio de uma Constituição, foi vivida por todas as nações modernas. Com efeito, as experiências individuais das nações variaram bastante. Em alguns casos como o de Portugal, cuja existência a história registra como tendo sido definida desde o ano de 1130, a primeira constituição definindo Portugal como um Estado moderno surgiu apenas em 1822, como um pacto da sociedade que se movia do antigo regime para uma monarquia constitucional. Também é notável o caso da Inglaterra, que se considera como tendo sido estabelecida no ano de 927, quando o rei Æthelstan, com a conquista de York, deixou de ser Rei dos Anglo-Saxões para tornar-se Rei da Inglaterra e, a partir de então, acordos, tratados e leis – como a Magna Carta de 1215 ou como o Bill of Rights de 1689 – foram sendo assinados e, juntamente com costumes ancestrais não escritos, passaram a compor o que tem sido chamado de uma “constituição não escrita”. O fato desse conjunto de normas e de leis não ter sido jamais reunido e sistematizado em uma carta constitucional orgânica, não quer dizer que não exista uma ordem constitucional que estabelece os limites do Estado britânico e que orienta o comportamento e as ações de governantes, de representantes de condados e da própria população britânica nos planos doméstico e internacional.[12]

As constituições e a ordem internacional na atualidade

A ONU registra hoje a existência de 193 países membros, cada qual com sua respectiva carta constitucional definindo os limites de suas jurisdições e demarcando padrões e princípios em torno dos quais, povo e governo organizam sua convivência doméstica e também as relações com outros países. Como já mencionado, a experiência constitucional dessas quase duas centenas de países foi muito variada e, em sua grande maioria, datam do século XX, um século no qual a adoção do conceito de Estado Nacional, territorial e soberano, tornou-se efetivamente global. Com efeito, foi no século XX que o conceito de Estado Nacional praticamente completou a substituição de outras formas tradicionais de organização política. Em alguns lugares tribos e clãs reuniram-se formando Estados e, na velha Europa, eliminou-se os sistemas coloniais que resultavam da incorporação de povos e de territórios por meio da superioridade tecnológica, econômica e militar. Foi também no século XX que os sistemas imperiais na Europa sofreram grandes abalos, ou finalmente se fragmentaram como ocorreu com o Império Habsburg na esteira da Primeira Guerra Mundial.

Sob uma ótica institucional de longo prazo, é possível dizer que as duas grandes guerras, que marcaram a primeira metade do século XX, refletiram o ocaso desses sistemas de organização política que, na essência, se tornaram incompatíveis com a evolução dos padrões de convivência política internacional. O Estado Nação revelou-se um modelo de organização institucional que melhor se adequava à realidade internacional marcada pela variedade étnica e cultural e também pelas muitas tradições e valores dos povos no que se refere ao ordenamento social e político. Na realidade, mais da metade dos países membros da ONU foram formados ou tornaram-se independentes depois da Segunda Guerra Mundial, refletindo o avanço do processo de consolidação de um sistema internacional verdadeiramente global.

Ainda no século XIX algumas organizações internacionais foram formadas como a União Telegráfica Internacional (1865), a União Postal Universal (1874) e a Convenção da União de Paris para a Propriedade Industrial (1883). Eram organizações de natureza eminentemente técnica que revelavam dois aspectos presentes na natureza da crescente integração internacional. De um lado, a base tecnológica do processo, que proporcionava os meios materiais para uma aproximação sem precedentes entre os povos e, de outro, a crescente centralidade da vida civil em torno de Estados Nacionais constitucionalmente estabelecidos, conformando uma ordem social e política distinta no plano doméstico, mas cada vez mais coerentes entre si na esfera internacional.

Com efeito, a partir dos fins do século XIX, além do comércio e das comunicações sistemáticas por meio postal e por meio da expansão da rede telegráfica, as viagens internacionais de civis começavam a contar com linhas marítimas intercontinentais regulares, além das atividades comerciais e industriais que passavam a ter na esfera internacional uma importante dimensão. Assim, já havia uma percepção crescente acerca das vantagens e até mesmo da necessidade de se estabelecer padrões comerciais e industriais comuns às nações. A intensificação do comércio e dos investimentos internacionais tornava a padronização técnica um desdobramento inevitável. Com efeito, em 1914, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, os investimentos internacionais já somavam quase US$ 20 bilhões e um país como a Inglaterra exportava quase 70% de sua produção industrial e importava mais de 80% dos bens primários de que necessitava.[13] Nesse quadro, embora menos visível, padrões industriais comuns passavam a ser adotados pelas indústrias das principais economias.

O fato é que, apesar de alguns conflitos até mesmo de grandes proporções, desde meados do século XIX as atividades e os interesses da vida civil, ganharam espaço de forma contínua e crescente na ordem social, política e, principalmente, na esfera econômica. Na realidade, não seria exagero entender o surgimento dessas organizações internacionais, embora voltados para assuntos técnicos, como verdadeiros precursores do multilateralismo que iria marcar as relações internacionais da segunda metade do século XX. Muito embora a Liga das Nações tenha sido criada em 1919, foi apenas na esteira da Segunda Guerra Mundial que, realmente, os conceitos de segurança coletiva e de multilateralismo tornaram-se elementos marcantes do sistema internacional. Na economia foram criadas as instituições como as de Bretton Woods (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional), o GATT, além de muitas organizações regionais na Europa e em outros continentes, voltadas para o comércio e o desenvolvimento. Na política, além do sistema ONU, também foram criadas várias organizações regionais com propósitos semelhantes, isto é, como foros de debate e de promoção da cooperação internacional em matéria de segurança e de relações políticas.

A ideologia nas constituições e seus efeitos na esfera internacional

Ao longo da história, o fator ideológico sempre foi um elemento de notável relevância nas relações entre povos e até mesmo nas relações entre segmentos de um mesmo grupo social ou nação. Um fato notável envolvendo ideologias é que não precisam estar presentes em constituições ou em outros documentos oficiais. Os recentes acontecimentos associados às eleições nos EUA, uma das grandes democracias do mundo, revelam o caráter conflituoso que as ideologias podem assumir mesmo em uma sociedade formada em torno de valores e de ideologias de tolerância às diferenças religiosas e a outras formas de diferenças que marcam a humanidade. A própria formação do Estado Nacional ocorreu em um ambiente de confrontação ideológica de base religiosa.

No século XVI todas as nações europeias eram cristãs. As diferenças entre católicos e reformistas, portanto, não diziam respeito à substância já que eram todos cristãos, mas baseavam-se em diferenças na prática religiosa e em sua projeção nas instâncias do poder temporal. Em outras palavras, aqueles que não praticavam a religião da maneira que consideravam como sendo “a forma correta” eram considerados hereges e podiam ser discriminados e até condenados ao suplício. Algo semelhante pode ser dito a respeito da milenar diferença e oposição entre as correntes do islamismo que, até hoje, servem de base para sustentar radicalismos e hostilidades mútuas.

No século XX, a existência da URSS por sete décadas representou um caso particular de ideologia, refletida no quadro constitucional da nação e que, na ordem internacional, desempenhou papel de grande relevância. A constituição promulgada em 1918 estabelecia a República Socialista Federativa Soviética Russa anunciando que rompia radicalmente com as tradições da ordem social e política das potências tradicionais, criando uma sociedade comunista, com base nas formulações de Karl Marx e de Friedrich Engels.[14] Em seu Artigo 3º. essa constituição estabelecia o caráter e os princípios da ordem social e política de uma república cuja base ideológica socialista contrastava notavelmente com a ideologia que moldava a ordem social e política de outras potências no cenário internacional. Vale reproduzir parte desse artigo que ajuda a compreender essas peculiaridades do ordenamento social e político e suas implicações para as relações internacionais:

Artigo 3º. “… sendo sua tarefa fundamental (do Estado) a abolição de toda a exploração do homem pelo homem, a completa eliminação da divisão da sociedade em classes, a impiedosa repressão da resistência dos exploradores, o estabelecimento de uma organização socialista e o atingimento da vitória do socialismo em todos os países, o III Congresso de Deputados Trabalhadores, Soldados e Camponeses de Toda a Rússia resolve:

a) Visando à concretização da socialização da terra, fica abolida a propriedade privada da terra. Todos os imóveis agrícolas são declarados propriedade de todo o povo trabalhador e entregues, sem qualquer indenização, aos trabalhadores, com base no princípio da utilização igualitária da terra.

b) Todas as florestas, todos os recursos naturais e todas as águas de significado estatal-geral, assim como todos os bens vivos ou mortos, fazendas de espécies e empresas agrícolas são declarados propriedade nacional.

c) Como primeiro passo para a completa passagem das fábricas, empresas, minas, estradas de ferro e demais meios de produção e de transporte à propriedade da República dos Conselhos (Sovietes) dos Trabalhadores e Camponeses, ratificam-se as Leis Soviéticas sobre o Controle Operário e o Conselho Supremo da Economia, visando a assegurar o poder dos trabalhadores sobre os exploradores. Como um primeiro golpe a ser desferido contra o sistema bancário internacional, o capital financeiro, o III Congresso dos Conselhos (Sovietes) está deliberando uma Lei sobre a Anulação (Aniquilação) dos Empréstimos, contraídos pelo Governo Czarista, pelos Proprietários Fundiários e pela Burguesia, ao mesmo tempo em que expressa a sua confiança em que o Poder dos Conselhos (Sovietes) prosseguirá, com firmeza, nessa direção, até à mais plena vitória da insurreição internacional dos trabalhadores contra o jugo do capitalismo.”

Em 1936 foi promulgada uma nova constituição – a Constituição Stalinista – introduzindo cláusulas de liberdade religiosa e de direitos políticos e sociais. Apesar de tudo, a rejeição à URSS por parte das principais potências não se reduziu, tanto pelo fato de que na nova constituição as características básicas de uma sociedade comunista, descritas em sua primeira constituição, foram mantidas, quanto em virtude de a URSS continuar sendo uma sociedade fechada da qual notícias eram “vazadas” para o meio internacional relatando a realização de julgamentos sumários de vozes discordantes do regime, que significavam perseguições, prisões nos temíveis campos gelados da Sibéria, e até mesmo execuções de pessoas consideradas inimigas do regime.[15] Com efeito, os princípios de organização social e política enunciados na constituição, como o confisco e o não reconhecimento da propriedade privada, contrastavam radicalmente com as tradições sociais, políticas e até culturais das potências tradicionais mas, provavelmente mais crítico e mais problemático de imediato, era o fato de que a família do czar e muitas outras famílias importantes da velha Rússia faziam parte de famílias tradicionais da Europa e, tal como o próprio Czar, haviam sido perseguidos, assassinados e seus bens confiscados na forma descrita pelo Artigo 3º. acima transcrito.

Após sete décadas de tensão, o colapso da URSS em 1991 provocou não apenas a redução das tensões com as potências ocidentais tradicionais, mas provocou também um movimento nas relações internacionais no sentido de motivar a produção de novas constituições nos países do Leste Europeu que, desde o final da Segunda Guerra Mundial, haviam vivido sob a esfera de influência direta da URSS. Essas nações, rapidamente, produziram novas constituições procurando reorientar suas instituições políticas, sociais e econômicas de acordo com os padrões do Ocidente liberal-capitalista. Além disso, um dos casos mais notáveis decorrente desse processo foi a absorção, pela República Federal da Alemanha (RFA) do território que havia sido a Alemanha Oriental, que passara a existir desde 1949, quando fora promulgada a constituição da República Democrática Alemã (RDA). Ao voltar a ser unificada, a Alemanha dava também um novo perfil à distribuição internacional de poder, especialmente no âmbito europeu, ao incorporar uma população de 16 milhões de pessoas, unificar a cidade de Berlin, que voltou a ser capital da nação, e incorporar centros urbano-industriais importantes da RDA e aumentar em quase 1/3 o território da República Federal da Alemanha.

Do ponto de vista das consequências internacionais do colapso da URSS vale destacar também a verdadeira corrida das nações que deixavam a esfera de poder soviética no sentido de agregar-se o mais rapidamente possível à União Europeia. Na realidade, a União Europeia, apesar de, formalmente, ter nascido de um arranjo internacional voltado para a integração econômica, sua natureza política baseada nas tradições do pensamento liberal sempre esteve presente. Além disso, a trajetória de sucesso da integração europeia servia de inspiração não apenas para as nações europeias, mas para todo o mundo, mesmo para as nações de tradições políticas e culturais que antecediam a própria Europa. O fato é que, rapidamente, mais de uma dezena de nações que viviam sob o regime soviético passaram a integrar a União Europeia e todas elas, ao mesmo tempo em que se associavam ao sistema europeu, recuperavam sua identidade histórica e cultural ancestral. Até mesmo a ex-URSS (a Federação Russa) que, apesar de não ter se integrado à União Europeia, foi em busca de seus símbolos ancestrais, além de produzir uma nova constituição alinhada aos padrões do Ocidente. Na bandeira a Federação Russa abandonou a foice e o martelo e recuperou as cores branca, azul e vermelha com toda a sua simbologia da velha ordem. Na antiga Rússia a cor vermelha simbolizava a coragem; o azul, a lealdade e a pureza moral; e a cor branca, a magnanimidade. A bandeira tricolor (branca, azul e ver­melha) teria sido usada pela primeira vez nos barcos de guerra da Marinha Russa que, sob o comando do czar Pedro, o Grande, nos fins do século XVII, tomaram a Fortaleza de Azov dos turcos. Além disso, igualmente notável, ocorreu com o brasão da Federação Russa, que recuperou a águia de duas cabeças coroadas e a figura de São Jorge cujas origens remontam ao império bizantino.

Na Ásia, a reconstrução do Japão após a Segunda Guerra Mundial deu-se dentro do espírito de harmonização com a ordem internacional sob o comando do Ocidente. Apesar de manter a família imperial e suas antigas tradições, a constituição japonesa foi elaborada sob as forças de ocupação americana e todo o processo de reconstrução, modernização e desenvolvimento da economia japonesa baseou-se essencialmente na cooperação e na integração às instituições e à vida econômica internacional. Historicamente, as diferenças religiosas e culturais foram problemáticas, mas nunca se constituíram em grandes obstáculos na mesma medida em que haviam se manifestado em outras regiões. O isolamento de dois séculos e meio desde a implantação do xogunato de Tokugawa (início do século XVII) se deveu essencialmente a razões políticas. Dessa forma, apesar das diferenças étnicas e culturais, ao longo da guerra fria o Japão não se constituiu em obstáculo à construção da ordem internacional. Na realidade, além de não alimentar nem mesmo quaisquer ressentimentos decorrentes da Segunda Guerra Mundial, o Japão atuou como importante aliado na construção da ordem internacional do pós-guerra.

Por outro lado, em alguns países como a China, a Coreia e o Vietnã, formaram-se governos e movimentos de oposição ao Ocidente liberal-capitalista e, em alguns casos, constituíram-se em focos de conflitos armados ou geradores de tensões internacionais contínuas ao longo da guerra fria. A Guerra da Coreia (1950-1953) foi um caso bastante ilustrativo da dramaticidade dessas tensões. Com efeito, o conflito foi, em larga medida, um reflexo da guerra fria, que ganhava momentum nos fins da década de 1940, e que terminou com a divisão da nação. Uma divisão que permanece até hoje mesmo tendo já passado duas décadas desde o fim da guerra fria. Também no caso do Vietnã as tensões seriam marcantes e somente deixariam de existir após um conflito armado que se estendeu por duas décadas e que terminou com a derrota do Vietnã do Sul, apoiada pelos EUA. Embora a denominação oficial da nação seja República Socialista do Vietnã, no que tange às relações com a comunidade internacional, sua trajetória em muitos aspectos se assemelha ao da China, no sentido de progressiva integração à economia globalizada.

A China, por suas dimensões, é um caso que demanda uma reflexão adicional. A política na China está assentada sobre antigas tradições e experiências históricas na política substantivamente diferentes daquelas vividas pelo Ocidente. Ao longo do século que antecedeu a ascensão de Mao Tsé-Tung (1949) a experiência política vivida pela China foi a de uma sucessão de governos notavelmente fracos em todos os sentidos. Desde o século XIX não apenas as potências coloniais mantinham formas variadas de dominação sobre a sociedade chinesa. Mesmo no plano doméstico, sob a dinastia Qing, a China enfrentava sérios problemas de governabilidade. A revolta dos Boxers (1899-1901) foi uma típica manifestação desses intermináveis problemas de governabilidade. John Delury, estudioso da cultura e da política da China, usa de uma metáfora para fazer um relato dramático da situação da China que antecedeu à tomada de poder por Mao Tsé-Tung e pelo Partido Comunista em 1949: “Nos fins do século XIX a Dinastia Qing era como um touro feroz na arena que sangrava por todos os membros por ter sido lancetado, perfurado e cortado desde os anos 1830 – quando os problemas realmente se tornaram óbvios – e, no início do século XX, estava apenas à espera de que o matador desferisse o golpe de misericórdia”. Nesse sentido, a maioria dos historiadores entende que o principal legado político do período da China revolucionária de Mao Tsé-Tung foi um Estado renovado, fortalecido e bem disciplinado, em condições de manter unidas as províncias e as lideranças locais. Sob o comando absolutista de Mao Tsé-Tung e do Partido Comunista as instituições do Estado e seus governantes recobraram a autoridade e o controle, ou seja, reconstruíram a ordem sem a qual é impossível prosperar, seja qual for a forma de organização da sociedade. Mesmo nos países ocidentais, em termos de prosperidade, um diferencial importante entre as várias sociedades qualificadas como democráticas é o nível de ordem vigente. Países onde indicadores como elevados índices de criminalidade, práticas generalizadas de ilícitos e transgressões, baixa eficiência dos serviços públicos ou corrupção generalizada, que indicam baixos teores de ordem social e política – isto é, de governabilidade – são os países que apresentam problemas crônicos de estagnação econômica.

O fato é que a ascensão da China trouxe ao mundo não mais uma ameaça baseada em ideologias hostis, mas uma ameaça à liderança das potências tradicionais. O fator ideológico tornou-se um elemento secundário e, na realidade, o que é notável no caso chinês é que, de um lado, a organização e a liderança da sociedade exercida pelo Partido Comunista Chinês não constituiu problema para que a ascensão da China ocorresse por meio de uma política de longo prazo de cooperação com as potências econômicas do Ocidente. De outro lado, há o fato de que, apesar de o Partido Comunista Chinês continuar controlando com mão forte o poder, na prática, esse poder e esse controle da economia e da sociedade não têm sido exercidos por meio de instituições e práticas de inspiração marxista, como era o caso da URSS. Regimes duros e autoritários nunca foram privilégios exclusivos de governos de inspiração marxista. Entre as notáveis diferenças entre o regime da China e o que seria um regime tipicamente marxista pode ser apontada a existência de propriedade privada e de mercados livres e dinâmicos, inclusive para ativos financeiros. Outra diferença notável é que, na educação, nas escolas controladas pelo Estado, valoriza-se a prática de tradições e até mesmo de ritos e celebrações tradicionais e o respeito a valores como a senioridade, os ritos sociais e outros costumes antigos.[16] Práticas essas condenadas pela doutrina marxista.

Com efeito, mesmo na primeira constituição produzida sob o comando do Partido Comunista da China (1954) a propriedade privada não fora abolida, sendo admitida até mesmo a existência de “capitalistas”. No Artigo 5º, a constituição declara: “Na República Popular da China existem atualmente as seguintes formas fundamentais de propriedade dos meios de produção: a propriedade do Estado — isto é: a propriedade de todo o povo —; a propriedade cooperativa — isto é: a propriedade coletiva dos trabalhadores —; a propriedade dos trabalhadores individuais; e a propriedade dos capitalistas.” Vale reproduzir também trechos do Artigo 10º. da constituição chinesa onde se explica como a constituição entende a propriedade do capital e seu uso: “… Mediante a direção exercida pelos órgãos administrativos do Estado, a direção exercida pelo setor estatal e o controle por parte das massas trabalhadoras, o Estado aproveita o papel positivo da indústria e do comércio capitalistas, que é útil ao bem-estar nacional e à prosperidade do povo; limita seu papel negativo, que prejudica o bem-estar nacional e a prosperidade do povo; estimula e orienta sua transformação em setor do capitalismo de Estado, sob diferentes formas, e substitui gradualmente a propriedade dos capitalistas pela propriedade de todo o povo”.

Observa-se que, diferentemente da URSS, mesmo a constituição produzida por Mao Tsé-Tung, nos primeiros anos da revolução comunista, a propriedade privada não deixava de existir significando, assim, que mesmo sem as reformas introduzidas por Deng Xiaoping (1978-1992) a ordem constitucional não proibia nem o lucro e nem a existência de propriedade privada. Em larga medida, as reformas introduzidas por Deng Xiaoping relacionavam-se muito mais com a forma de entender e de exercer o poder especialmente nas relações com o meio internacional, em particular no que tange ao trato com o capital estrangeiro. Popularizou-se a frase atribuída a Deng Xiaoping “não importa se o gato é preto ou branco, desde que cace os ratos”, que reflete o fato de que as mudanças institucionais não foram, nem de longe, tão importantes quanto as mudanças na atitude e na forma de conduzir o Estado Chinês, em especial nas relações com outros países. Na realidade, a história tem mostrado que as atitudes dos governantes e as políticas praticadas geralmente são bem mais importantes na formação de focos de tensão do que ideologias expressas em documentos oficiais. Com efeito, durante a maior parte da Idade Média, os reinos europeus eram todos católicos, mas esse fato não impedia que governos e governantes variassem em um amplo espectro de possibilidades: governantes podiam ser sensatos, benevolentes e sábios ou podiam ser tiranos e ambiciosos, ou ainda podiam ser egoístas e presunçosos, mas também inseguros em suas decisões. Ou seja, reinos e baronatos guerreavam entre si por direitos de sucessão, por ofensas e injúrias, por ambição de governantes ou por quaisquer outras motivações que movem povos e governantes até os dias de hoje. Pode-se dizer que o autoritarismo do regime na China hoje apresenta muito mais semelhanças com o absolutismo dos regimes praticados na Europa nos séculos XVII e XVIII do que com aquele praticado pelo próprio Mao Tsé-Tung da revolução comunista. Em outras palavras, mesmo dentro de uma mesma ideologia laica ou religiosa, Estados e nações podem ter desempenhos muito diferentes, dependendo de muitos fatores, em especial do conjunto de virtudes, qualidades e percepções de seus governantes. A política da détente foi praticada tanto pelas nações líderes do Ocidente quanto pela URSS e pela China nas décadas de 1970 e 1980. Nesse quadro apenas a URSS mudou seu regime, uma mudança motivada muito mais pela evolução do quadro político e econômico da própria URSS do que em eventuais transformações ocorridas nas visões ideológicas de seus governantes. Os principais intérpretes da mudança de regime na URSS concordam que a perda da força da ideologia comunista acompanhou a deterioração das condições econômicas do país.

Nesse quadro pode-se extrair duas observações ou hipóteses a respeito da experiência vivida pela China nos últimos 40 anos. A primeira é que, internamente, as mudanças introduzidas na constituição nas últimas décadas refletiram uma verdadeira redescoberta das tradições ancestrais da China. A famosa frase de Deng Xiaoping sobre a cor dos gatos bem poderia ser adicionada aos Analectos legados por Confúcio.[17] A segunda é que, durante o período de Mao Tsé-Tung, os excessos da Revolução Cultural foram objeto de preocupação, sobretudo moral, das grandes potências, mas a ascensão da China à condição de potência mundial de primeira grandeza transforma substancialmente a forma de ver e as preocupações da comunidade internacional em relação à China. Claramente o que se destaca é a disputa por liderança internacional e não uma suposta guerra ideológica. Objetivamente, para as nações mais pobres e com recursos de poder mais limitados, a China torna-se uma alternativa entre as opções disponíveis no mundo, enquanto para as grandes potências a China torna-se um rival formidável nas suas equações e hipóteses sobre o futuro das relações internacionais, independente de sua ordem política e jurídica doméstica.

A grande preocupação da comunidade internacional com o fator ideológico não mais reside no que pode estar presente na constituição, mas com as práticas ideológicas que não estão definidas nas constituição, como é o caso do terrorismo islâmico, que é negado por todos os Estados organizados constitucionalmente sob a orientação da fé islâmica. Em termos substantivos, o caso dos países islâmicos são os mais notáveis da presença da religião na constituição como elemento de orientação ideológica para as nações em nossos dias. Em alguma medida, a trajetória constitucional dos países árabes se desenvolveu entre a experiência do Irã, onde a religião e as tradições dominam completamente a estrutura do comando político, e o caso do Egito, onde embora o islamismo seja oficialmente a religião do Estado e da nação, é bastante relevante a influência do pensamento ocidental na ordem econômica e política. Entre as lideranças do Ocidente não há grande preocupação com os termos em que as constituições desses países estão expressas. O mais importante é que o fato desses países declararem seguir a fé islâmica nenhum deles declara adotar o terrorismo como forma de ação. Na realidade, o terrorismo islâmico que, em nosso tempo, tem estado na base de tensões internacionais importantes, tem sido conduzido essencialmente por organizações clandestinas isto é, sem qualquer suporte formal até mesmo a respeito de suas existências. De fato, muito embora os serviços de inteligência das potências do Ocidente busquem com insistência indícios de apoio de governos de países islâmicos a essas organizações, essa ligação jamais foi cabalmente comprovada.

As constituições e as relações internacionais de seu tempo

Pode-se dizer que a constituição dos EUA guarda uma notável peculiaridade em relação às demais constituições. Ao longo de mais de duzentos anos de existência, a constituição americana apenas adicionou emendas que introduziram cláusulas a respeito de mudanças importantes ocorridas na sociedade e que a constituição não contemplava ou que não deixava explícitas, como foram os casos da abolição da escravidão e da limitação dos mandatos presidenciais. Com efeito, durante os debates ocorridos antes da eclosão da guerra civil em 1861, uma das preocupações centrais de Abraham Lincoln era a de mostrar que a constituição, embora não expressasse explicitamente, a postura anti-escravidão estava de acordo com as crenças e o modo de pensar dos Pais Fundadores que a haviam concebido.[18] Outra emenda notável à Constituição Americana foi a limitação para dois, os mandatos presidenciais após as quatro eleições sucessivas de F. D. Roosevelt.[19] Neste caso, vale lembrar que em seu discurso de despedida da vida pública, George Washington começa por explicar porque não deveria aceitar um terceiro mandato apesar da insistência das principais lideranças e de seus amigos, argumentando que um terceiro mandato não faria bem nem para ele e nem para o país.[20]

Também chama a atenção o fato de a constituição americana ser muito mais concisa do que outras constituições.[21] Em larga medida, pode-se dizer que a experiência constitucional dos EUA foi fortemente influenciada pela tradição jurídica anglo-saxônica, que valoriza costumes e tradições não escritas, ou seja, procura antes expressar princípios e normas de comportamento presentes nos códigos e nas decisões das cortes do que enunciar providências, medidas e recursos específicos. O filósofo poderia argumentar que reflete mais um desses curiosos paradoxos da natureza humana, ou seja, pelo fato de não serem escritos, costumes e tradições tendem a apresentar níveis de resiliência mais elevados do que documentos escritos que, exatamente por serem escritos, podem ser reescritos, dependendo da vontade de governantes e da opinião pública, sempre cambiantes e sujeitas às tentações das circunstâncias e das oportunidades, aparentemente sempre ao alcance das mãos. Apesar de tudo, talvez a explicação mais objetiva para que uma constituição permaneça vigente por longo tempo, inclusive para servir de base para que as sociedades se adaptem às mudanças trazidas pelo tempo, seja oferecida pelo historiador Octaciano Nogueira que, ao analisar a constituição brasileira de 1824, aponta para o Artigo 178 da Carta Imperial:

“Só é constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos; tudo o que não é constitucional pode ser alterado, sem as formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias”.[22]

O fato é que a tentação no sentido de mudar ou de reescrever as constituições é sempre muito forte. Ditadores e usurpadores sempre justificam suas causas a partir do argumento de que uma intervenção é necessária para “salvar a nação” e que, para tanto, é necessário produzir uma nova constituição para que torne o país governável e para que novos princípios sejam introduzidos na ordem política e social e da nação.

O fato é que as constituições da grande maioria dos 193 Estados, hoje Membros das Nações Unidas, como peças jurídicas refletindo sociedades vivas e dinâmicas, não se apresentam mais na forma como foram concebidas originalmente. Na Venezuela a constituição vigente é a 27ª. de uma série que se iniciou em 1811 e tudo indica que o fim do chavismo será marcado pela produção de mais uma nova constituição. Na Argentina, considera-se que a primeira constituição produzida em 1853 foi reformada em 7 ocasiões, sendo a última em 1994, após o fim dos governos militares. Mesmo a França tem em sua história mais de uma dezena de constituições que refletiram primeiro as fases revolucionárias e, depois, a fase napoleônica, a restauração da monarquia Bourbon, seguidas pelas constituições republicanas. A constituição vigente na França corresponde à V República e data de 1958. No Brasil, a constituição vigente é a sexta, não incluindo a reforma de 1967, que muitos constitucionalistas alegam ter introduzido modificações tão profundas que pode ser considerada como uma nova constituição. O fato é que revoluções e mudanças políticas com alguma profundidade resultam em reformas constitucionais amplas ou mesmo em novas constituições. As alegações podem ser variadas, mas a base dos argumentos geralmente se assenta no entendimento de que o governante se vê impossibilitado pelos dispositivos constitucionais vigentes de produzir justiça social e os bens públicos de que a nação precisa para seu bem-estar e progresso.

Em certos casos, alterações constitucionais podem ter origem em desenvolvimentos ocorridos na esfera internacional, como foi o caso dos países do Leste europeu diante do colapso da URSS em Dezembro de 1991. Por outro lado, o caso do avanço da integração europeia é um dos casos mais notáveis de como desenvolvimentos na esfera internacional, mesmo em ambiente ordeiro e pacífico, podem influenciar as constituições nacionais. Nos primeiros anos do processo de integração, o estabelecimento da Comunidade Econômica Europeia (CEE) em termos jurídicos implicava essencialmente negociações com organismos internacionais como o GATT e com outras nações dentro e fora do bloco, uma vez que, nos primeiros anos, a CEE vivia as fases iniciais da integração econômica nas quais o bloco poderia ser classificado como um agregado de soberanias, semelhante ao que tem sido até hoje o Mercosul.

Com o aprofundamento da integração, especialmente a partir do Tratado de Maastricht (1992), surgiu a necessidade de os países integrantes do bloco reverem suas bases constitucionais, em particular no que tange a um dos princípios essenciais de qualquer Estado moderno: o princípio da soberania. Com efeito, após o Tratado de Maastricht (1992) a CEE foi transformada em União Europeia, e os países membros viram-se diante da necessidade de rever suas constituições nacionais, introduzindo o princípio da subsidiaridade. Por esse princípio, os Estados membros da União Europeia reconhecem soberanamente que há questões econômicas, políticas e sociais para as quais os governos nacionais não podem mais decidir sem a aprovação de instâncias decisórias da União Europeia.[23]

A existência de uma moeda comum – o euro – é um dos exemplos mais materialmente visíveis da impossibilidade de manter intocado o princípio da soberania em sua forma original na União Europeia. Antes do euro, as moedas nacionais, quase tanto quanto as bandeiras, desempenhavam um papel simbólico como representativas das nações e, além disso, a própria teoria econômica corrente afirmava que a moeda define um país, em grande parte pelo reconhecimento da importância das políticas cambiais e monetárias para as economias nacionais.[24] Por essa razão Robert Mundell que, no início da década de 1960, já previa o advento de uma moeda europeia, ficou sendo considerado por muito tempo como um visionário até que, afinal, o advento do euro acabou por se tornar um forte argumento para que, em 1999, Mundell fosse agraciado com o Prêmio Nobel de Economia. O fato é que a evolução da economia, especialmente na Europa onde os mercados de bens, serviços e de mão de obra já haviam se integrado, para a maioria das economias da Europa os custos de transação decorrentes da manutenção de várias moedas sob o argumento da soberania, haviam se tornado um peso adicional que não mais compensava manter.

Outro caso interessante da experiência europeia em relação às pressões sobre o princípio da soberania é o dos Acordos de Schengen, que trata da liberdade da livre movimentação de pessoas através das fronteiras europeias.[25] Os acordos preveem a uniformização das exigências e dos procedimentos no que tange à movimentação de pessoas, isto é, concessão de vistos e de asilo a refugiados e de tratamento de migrantes oriundos de outras regiões, além de ampla cooperação judiciária e policial entre os países europeus. Embora os Acordos de Schengen tenham sido incorporados pela União Europeia, a eclosão de conflitos e guerras civis em regiões próximas do Mediterrâneo têm alimentado discussões sobre as normas e as práticas sob os Acordos Schengen, uma vez que as pressões migratórias geradas por esses conflitos não afetam da mesma forma as nações integrantes da União Europeia. Tanto pela maior proximidade geográfica quanto pelo destino desejado pelos migrantes que passaram a chegar em grande número em alguns pontos da Europa a pressão dos fluxos migratórios se fazem sentir de forma diferente pelas sociedades e pelos governos europeus dificultando a prática de políticas comuns.

O Artigo 23 da Constituição da República Federal da Alemanha trata especificamente do comprometimento do país com a União Europeia e enuncia como o princípio da subsidiaridade será aplicado pelo governo e pelas instituições políticas e jurídicas da nação. Também a constituição Francesa, produzida sob a liderança de Charles De Gaulle em 1958, ao longo do tempo introduziu emendas significativas para se adequar às mudanças em curso na cena internacional, especialmente europeu. Uma delas foi a inclusão da “Carta Ambiental de 2004” na qual declara o profundo comprometimento da nação com as causas ambientais. Por exemplo, no Artigo 2º. e 3º. da Carta estabelece que “Toda pessoa tem o dever de participar da preservação e da melhoria do meio ambiente… (e que) deve, nas condições definidas pela lei, prevenir as ameaças que pode causar ao meio ambiente ou, caso contrário, limitar suas consequências”. Em relação à União Europeia, a Constituição Francesa dedica o Capítulo XV que, embora sem empregar o termo subsidiaridade, tal como o faz a Constituição da Alemanha, estabelece os termos dentro dos quais o Tratado da União Europeia será respeitado e posto em prática naquele país, reconhecendo as muitas situações em que disposições da União Europeia devem prevalecer sobre o que poderia ser a vontade soberana da França.

De forma semelhante, os demais países integrantes da União Europeia incorporaram em suas constituições as instituições e práticas estabelecidas pelo bloco. Na realidade, o próprio processo de ingresso na União Europeia já inclui, além da aceitação dos Tratados da União Europeia e dos princípios contidos nesses tratados, a aceitação e o cumprimento de condições tais como os padrões de desempenho macroeconômico que devem estar em harmonia com o bloco de tal forma que não prejudique a estabilidade econômica e social do bloco. A integração europeia que havia se iniciado com 6 países membros chegou a ter 28 integrantes até a saída do Reino Unido. No caso do Reino Unido, obviamente, a saída da União Europeia, formalmente, implica a denúncia do Tratado da União Europeia enquanto as discussões do Brexit referem-se principalmente à negociação sobre custos e prazos dos compromissos assumidos durante o período em que foi membro pleno da União Europeia. Em um sentido mais geral, a saída formal da União Europeia significa que o Reino Unido deixará de participar dos custos e das facilidades oferecidas pela União Europeia, passando a depender de seu próprio dinamismo a forma pela qual serão definidos os padrões de relacionamento tanto com a Europa quanto com o resto do mundo.

Considerações finais: as constituições e as nações no mundo

Na essência, a história tem mostrado que a posição de uma nação diante de outras nações depende diretamente das práticas, dos valores e dos padrões locais de conduta e de comportamento da população, e também da qualidade dos governantes. A qualidade do governante é essencial muito menos pelos atos de governo em si, mas muito mais pelo que representa para a nação como modelo de conduta, de caráter e de valores que devem ser representativos das expectativas da nação, frequentemente não expressos em documentos e manifestações públicas. Vale notar que a expressão “qualidade do governante” não se restringe apenas ao rei ou ao presidente, mas refere-se a toda classe dirigente da nação, ou seja, parlamentares, magistrados, ministros, e dirigentes de instituições que comandam a ordem social e política da nação. Foi assim que, ao longo da história, povos e culturas se destacaram e algumas nações se tornaram grandes potências enquanto outras permaneceram à sombra dos acontecimentos, ou ainda, em casos muito particulares, deixaram um notável legado de cultura e de civilização.

O fato de que alguns povos prosperaram e se tornaram ricos, poderosos e influentes enquanto outros não se destacaram, sendo até mesmo dominados por povos menos numerosos, continua sendo até nossos dias objeto de curiosidade e de reflexão. Pensadores como Arnold Toynbee, Michael Oakeshott e Johann Herder procuraram oferecer um painel amplo e geral da história de povos e de civilizações que deixaram marcas notáveis como testemunho de terem vivido no passado eras de glória e de realizações políticas e culturais. Em tempos mais recentes alguns fatos como a revolução industrial continuam a intrigar historiadores e pensadores por seu enorme alcance que, como raros eventos na história, efetivamente mudaram de forma bastante radical os padrões de vida de toda a humanidade. Por que um desenvolvimento tão amplo e poderoso teve sua origem e seu desenvolvimento inicial na Inglaterra e não no âmbito de outras nações? Além disso, por que se estendeu para outras sociedades no mundo de modos tão diferentes em intensidade e em características, diferenças essas que se manifestaram até mesmo em partes da Europa? Embora hajam interpretações bastante correntes na economia que destacam o papel do capital no processo de industrialização da Inglaterra, sempre fica a sensação de que não explicam a essência da questão, já que à época havia outras nações bastante ricas. Por exemplo, a França no século XVIII vivia um momento cultural e econômico de grande prestígio, mas houve a coroação de Louis XVI, que estava longe de possuir as qualidades de um bom governante, associada ao fato de que no substrato da sociedade francesa se gestava a revolução que iria lançar a nação num torvelinho de revolta e de paixões que, por décadas, iria consumir os recursos e as energias da nação. Raymond-Leopold Bruckberger, historiador e pensador, integrante da Academia Francesa, argumenta que a revolução industrial foi o modo inglês de realizar as transformações sociais e políticas que a França iria tentar realizar de forma trágica e turbulenta a partir de 1789.[26]

A história mostra que, tal como ocorre com a abundância de recursos naturais e com as condições geográficas, as constituições e a ordem política por elas estabelecida são importantes, mas não impedem a ocorrência de maus governantes e nem são as únicas responsáveis pela produção de bons governos. Com efeito, no ancien régime houve um Louis XIV que, nas palavras de Voltaire, conduziu a França em um momento de grande esplendor nas ciências e na cultura – um verdadeiro século de ouro.[27] No entanto, foi sob o mesmo ancien régime que Louis XVI foi coroado meio século após a morte de Louis XIV e foi sob Louis XVI que a França viu-se vivendo o caos e a revolução de 1789. Por outro lado, na história da república americana, houve um Abraham Lincoln e um Franklin D. Roosevelt, que conduziram a nação com notável denodo e competência em tempos difíceis de grandes incertezas e turbulências. No entanto, sob o mesmo regime e sob a mesma constituição, houve também vários presidentes que se notabilizaram pela pouca competência e por exercerem uma liderança sem brilho e bem pouco benéfica para a nação.[28] Assim, nos tempos modernos, as constituições definem regimes e estabelecem padrões e normas de conduta para os governantes, mas não impedem que as nações convivam com a alternância entre bons e maus governantes.

Provavelmente, nesse aspecto, as maiores diferenças entre os tempos do ancien régime e a era das modernas repúblicas é que no ancien régime o sistema era basicamente hereditário, quando o poder não era obtido pela força, enquanto nas repúblicas modernas estabelecem-se mandatos com períodos definidos para os governos eleitos.[29] Com efeito, nas monarquias hereditárias o tempo de duração de um mau governo era limitado apenas pela morte do governante que poderia ocorrer de forma natural, após arrastar o reino por décadas através de um reinado sem brilho e marcado por um ambiente de insatisfação e de desânimo ou, por vezes, um mau governo podia ser encerrado por um fim trágico como foi o caso de Louis XVI, deposto e guilhotinado pelos revolucionários em 1793.  Nas artes, os trágicos dilemas do poder que assolavam os homens antigos foram retratados em tragédias imortalizadas pelo teatro grego ou por dramaturgos como Shakespeare.  Para além da ambição, do ódio e da inveja, entre os dilemas cruciais, um dos aspectos mais angustiantes era o do sentimento moral entre o respeito às leis e às instituições e a consciência de que os destinos da nação estavam inexoravelmente ligados às qualidades, ou à falta delas, que caracterizavam governantes e que afetavam a vida e a prosperidade das nações. Entre os antigos, o lado trágico desse dilema emergia do fato de que só a morte poderia interromper os efeitos nefastos de um mau governo.

Nesse sentido, pode-se dizer que a alternância de poder trazida pelas sociedades abertas, típicas da modernidade, praticamente eliminou o conteúdo trágico dessa relação entre a nação e o destino de seus governantes. Além disso, a modernidade também diluiu os impulsos para a ambição em uma miríade de possibilidades no campo das artes, das ciências, dos negócios e até mesmo da própria política ao limitar, por meio de leis, o poder dos governantes. Na realidade, a história mostra que os maus governantes na ordem antiga, em razão de suas fraquezas diante de ambições desmedidas, geralmente transformavam-se em tiranos, fazendo com que suas ações se tornassem ainda mais odiosas e insuportáveis.

Nos fins do século XVIII houve um intenso debate intelectual sobre as diferenças entre o mundo antigo e o mundo moderno. Benjamin Constant de Rebecque argumentava que uma diferença essencial era o do entendimento da liberdade que, no mundo antigo valorizava as liberdade das nações, mas não havia o governo representativo. Este sistema (representativo) é uma descoberta dos modernos e vós vereis, Senhores, que a condição da espécie humana na antiguidade não permitia que uma instituição desta natureza ali se introduzisse ou se instalasse. Os povos antigos não podiam nem sentir a necessidade nem apreciar as vantagens desse sistema. A organização social desses povos os levava a desejar uma liberdade bem diferente da que este sistema nos assegura, escreve Benjamin Constant.[30]

O grande problema é que a representatividade não é um conceito absoluto e precisa ser transformada em um sistema de escolha de representantes, isto é, em um sistema eleitoral. Dessa forma, como qualquer sistema construído pelo homem para organizar sua convivência, pode ser falho e necessita sempre de melhorias, de aperfeiçoamentos e, principalmente, de adaptações contínuas a uma realidade sempre em transformação. Além disso, como já lembrava Aristóteles em seu tratado sobre a política, os regimes podem ser bons e eficazes, mas podem degenerar-se. Os iluministas no século XVIII, preocupados com as tiranias em que as monarquias se degeneravam com certa frequência, propunham o conhecimento e a educação dos príncipes como forma de recuperar e de fazer valer as virtudes de um bom regime monárquico. De acordo com Aristóteles, a demagogia seria a forma degenerada das democracias, isto é, governos, embora escolhidos e constituídos pelo povo, ao invés de serem benéficos a esse povo, os governantes, valendo-se de argumentos distorcidos, mas aparentemente corretos e convincentes, podem produzir leis e agir em benefício próprio e não em benefício da sociedade e da nação. Isto é, mesmo governos representativos (democraticamente eleitos) ao invés de cuidarem da promoção do bem comum, podem ceder à tentação de usar da autoridade do Estado para seu próprio benefício.

Obviamente, distinguir até onde, ou a partir de quando, um interesse particular se choca com o bem comum não é uma tarefa simples e, provavelmente mais difícil, é transferir essa distinção para um sistema político de forma que seja capaz de produzir bons representantes e bons governantes. Além disso, a deterioração de um sistema político não deixa de ser uma manifestação das leis gerais da entropia a que estão sujeitos todos os sistemas, sejam eles do mundo físico ou da ordem social.[31] O conceito de entropia foi originalmente desenvolvido no âmbito da termodinâmica. Por esse conceito, os sistemas perdem gradativamente suas características originais na medida em que interagem com o ambiente. O exemplo mais simples dessa lei é o do cubo de gelo em um copo de água que, gradativamente, vai perdendo seus contornos e sua consistência à medida que vai derretendo em razão da troca de calor com a água.

O entendimento de que as constituições refletem um sistema político e social sujeito à entropia, ajuda a explicar porque devem mudar ao longo do tempo ou, como no caso da constituição americana ou de vários países na Europa, recebem emendas que incorporam transformações ocorridas tanto na esfera doméstica quanto na cena internacional. A esse respeito, pode-se dizer que algumas constituições como a brasileira apresentam o problema do excessivo detalhamento. Por exemplo, o Título II da Constituição que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais em seu Capítulo I intitulado “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” compreende basicamente o Artigo 5º. onde são enunciados 78 direitos e garantias que devem ser assegurados e providos pelo Estado. Além disso, no Capítulo II (Artigo 6º.) são estabelecidos os “Direitos Sociais” que também devem ser assegurados pelo Estado aos indivíduos organizados ou não em corporações. Nesse artigo, são enunciados mais 34 direitos ou circunstâncias em que direitos podem emergir criando gastos e obrigações a serem cumpridas pelo Estado. O Artigo 9º, por exemplo, trata especificamente do “direito de greve”, algo que praticamente só existe na constituição brasileira. Em suma, de um lado, uma constituição desse tipo está muito mais sujeito às demandas por alterações pelo simples passar do tempo pois, em uma analogia, retomando o exemplo da termodinâmica, seria como um cubo de gelo esculpido artisticamente por um mestre escultor e que, em razão da riqueza e das sutilezas dos detalhes, perde seus contornos e suas formas originais muito mais fácil e mais rapidamente. Por outro lado, o que os artigos 5º.  e 6º. dizem é que praticamente tudo é constitucional. Qualquer assunto relativo à defesa de direitos civis, econômicos e sociais seja em relação a atores públicos ou privados, nacionais ou internacionais, tudo está mencionado nos referidos artigos, ou seja, são questões constitucionais. Em termos práticos, significa que qualquer causa pode, sem dificuldades, ser tratado como questão constitucional e levado até a instância do Supremo Tribunal Federal. É o que explica em grande parte, porque o STF no Brasil tem dezenas de milhares de processos a serem julgados enquanto seu equivalente nos EUA julga apenas poucas dezenas de processos por ano.

Em termos econômicos, esse quadro ajuda a explicar também porque a economia brasileira, ao longo das duas décadas deste milênio, cresceu significativamente menos do que a economia mundial, isto é, a nação ficou mais pobre em relação à média mundial. Em termos da posição internacional do país, o Artigo 4º. que trata especificamente das relações exteriores tem muito pouca importância, ou simplesmente é diluída nas dobras e nas sutilezas jurídicas de uma constituição barroca e marcada por cuidados que, na prática, protege prioritariamente as autoridades constituídas nos três poderes. Um sistema judiciário que leva em média anos para julgar as inevitáveis pendências que emergem da atividade econômica e da convivência social de uma forma geral, torna-se um forte desestímulo à inovação e ao empreendedorismo. Na teoria econômica trabalha-se com o conceito de “custo de transação” para referir-se aos custos tanto em termos financeiros quanto em termos de tempo e de esforço para a realização dos negócios em geral. Ou seja, os custos de transação impostos pela constituição são excessivamente elevados quando comparados com os padrões mundiais.

A constituição brasileira de 1988 pode não ser a causa do declínio da posição brasileira no cenário internacional, mas certamente vem dando uma considerável contribuição a esse processo ao estabelecer normas e cláusulas que transformam o Estado e suas instituições em fatores de verdadeiras externalidades negativas à atividade econômica, isto é, funciona ao contrário das externalidades positivas como aquelas geradas pela construção de uma ponte que, ao ser construída, favorece o desenvolvimento da indústria, do comércio, do turismo, e de outras atividades econômicas na região. Pelo quadro jurídico atual, nada menos do que 94% de toda a arrecadação fiscal prevista no orçamento estão comprometidos com despesas compulsórias (União, Estados e Municípios) tais como o pagamento de salários dos três poderes, aposentadorias, pensões, indenizações, subsídios e benefícios a certas categorias e atividades, etc. Ou seja, são despesas derivadas de leis e de decisões judiciais que os governos eleitos não podem deixar de cumprir. Em países como os EUA a proporção das despesas compulsórias gira em torno de 65% da arrecadação fiscal. Por essa razão, no Brasil, qualquer esforço adicional, ou que não estejam previstos no orçamento anual, é transformado inevitavelmente em déficit público, como está ocorrendo com os gastos inevitáveis com o enfrentamento da crise gerada pela disseminação da Covid-19. Mesmo antes da crise da Covid-19 a previsão de déficit público para 2020 já era de R$ 124 bilhões e calcula-se que em 2020 tenha atingido a casa dos R$ 800 bilhões. Em outros países grande parte dos gastos públicos com a Covid-19 está sendo coberta por meio de transferência de gastos previstos em outras rubricas. No Brasil, cada tostão gasto com o combate à Covid-19 tem sido feito por meio de endividamento. Os efeitos desse quadro parecem óbvios: pressões inflacionárias crescentes, grandes dificuldades na retomada do crescimento econômico, pressão por aumento nos impostos e, de uma forma geral, maior distanciamento dos padrões tecnológicos e econômico mundiais. Em larga medida, esse quadro é uma decorrência das possibilidades abertas e até estimuladas ao longo do tempo pela constituição vigente, que vê com desconfiança a eficiência econômica e a integração à economia mundial.

[1] O Tratado de Tordesilhas alterou de 100 para 370 léguas a oeste de Cabo Verde, o meridiano separando os territórios atribuídos à Espanha e aquelas atribuídas a Portugal. Com o declínio do poder universal da Igreja Católica e com ascensão do Estado Nacional moderno, os tratados patrocinados por Alexandre VI passaram a ser contestados politicamente por outras potências europeias como a Inglaterra, a França e a Holanda que ainda lutava para se separar do reino de Espanha.

[2] A expressão significa literalmente “as palavras voam, os escritos permanecem” foi popularizada ainda na Idade Média.

[3] Francisco de Vitória. Relectiones. Sobre os Índios e o Poder Civil. Editora UnB e Funag, 2016. A primeira edição de Relectiones data de 1532. O direito dos cristãos fazerem a guerra contra os “bárbaros” era enunciado claramente em documentos como a Bula Papal Intercœtera (1493).

[4] O foco de interesse de Bodin era o Estado Francês, que era um dos Estados mais poderosos e organizados da Europa. A soberania é o objeto de seu Livro Primeiro pois, na essência, tudo começava por compreender até onde se estendia a autoridade do governo do reino de França.

[5] Thomas Hobbes em De Cive (1642) explica esse sentido do termo cidadão.

[6] Ver M. W. Janis, Jeremy Bentham and the Fashioning of “International Law”, publicado em The American Journal of International Law. Vol. 78, No. 2 (Apr., 1984), pp. 405-418. O livro de Emer de Vattel, pioneiro na elaboração de um código estruturado de Direito Internacional, foi publicado em 1758 e tinha por título Le Droit des Gens.

[7] A capa da primeira edição de Leviathan (1651) apresenta o gigante bíblico tendo uma espada em sua mão direita e o cetro do poder na mão esquerda e tem seu corpo composto por pessoas. A ilustração foi criada por Abraham Bosse.

[8] A Constituição Brasileira de 1824 é um bom reflexo dessa transformação. O Artigo 5º., ao mesmo tempo que estabelece o cristianismo de Roma como religião oficial do Império, reconhece a liberdade de culto de seus cidadãos. Por outro lado, a noção de que a religião deveria ser vivida na consciência dos indivíduos já era percebida no século XIII, como se pode deduzir da obra de Dante Alighieri (Da Monarquia) e da figura da heráldica da águia das duas cabeças coroadas.

[9] Pelo Tratado de Verdun (843 d.C.) os três filhos de Carlos Magno (Lotário, Luís o Germânico e Carlos o Calvo) dividiram entre si o Império Carolíngio, cabendo a Carlos o Calvo a parte do território aproximadamente correspondente ao que é a França de hoje.

[10] Biógrafos de Joana D’Arc, em alguma medida, tomaram partido na discussão sobre a origem divina de sua sabedoria e de sua determinação, mas não questionaram em nenhum momento a clareza com que Joana D’Arc via a necessidade de coroar o Delfin em Reims. O fato é que será sempre um enigma da história saber como uma pastora iletrada, mal saída da adolescência e, portanto, sem qualquer cultura e experiência política, pudesse ver com tanta clareza que coroar o rei era tão importante quanto vencer o inimigo no campo de batalha (J. Guitton, Problema e Mistério de Joana D’Arc. Dominus Editora, S. Paulo, 1963).

[11] The Federalist Papers é uma coleção composta de 85 artigos ou ensaios escritos por Alexander Hamilton, James Madison, e John Jay sob o pseudônimo “Publius” e publicado em 1787. O objetivo principal desses ensaios era o de convencer líderes e o povo em geral das 13 ex-colônias britânicas acerca da importância e das vantagens da ratificação da Constituição formando uma só nação, os Estados Unidos da América.

[12] Walter Bagehot, em 1867, publicou seu The English Constitution no qual reúne esse conjunto de leis, normas, costumes e as instituições e procedimentos que compõem essa constituição não escrita e define a ordem política da nação. Vale notar que, apesar de não reunida organicamente, a monarquia constitucional inglesa serviu de inspiração para muitas das nações modernas, inclusive o Brasil, que foi uma monarquia constitucional até o advento da república em 1889.

[13] A. G. Kenwood & A. L. Lougheed. The Growth of the International Economy, 1820-1980. Unwin Hyman, London, 1983.

[14] A denominação União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) foi adotada na Constituição de 1924, após o tratado de união, ou incorporação pela Rússia, da Ucrânia, da Bielorrúsia e da República Transcaucasiana, realizada em 1922.

[15] Após a morte de J. Stalin, Nikita Kruschev (Secretário Geral do Partido Comunista da URSS) preparou um relatório dos crimes cometidos pelo regime durante o período em que Stalin esteve à frente do governo da União Soviética (1922-1953)

[16] Vale notar que autores como Norberto Bobbio enfatizaram em seus escritos o fato de que o marxismo jamais produziu uma teoria do estado, até por entender que o Estado constituía uma “superestrutura”, um instrumento de dominação.

[17] Diferentemente da tradição ocidental, o confucionismo não deixou tratados filosóficos, mas deixou os Analectos, que é uma coleção de “sabedorias” sobre o papel dos governantes e sobre a moral e as virtudes necessárias para bem governar um Estado (Confúcio. Os Analectos, Folha de S. Paulo, 2015).

[18] A 13ª. Emenda à Constituição dos EUA foi aprovada pelo Senado em 8 de abril de 1864 e, depois pela Câmara dos Representantes em 31 de janeiro de 1865 e adotada formalmente em 6 de dezembro de 1865.

[19] Roosevelt havia sido eleito sucessivamente em 1932, 1936, 1940 e 1944, falecendo em abril de 1945. A 22ª. Emenda à Constituição dos EUA foi aprovada pelo Congresso em 1947 estabelecendo que os presidentes não poderiam mais eleger-se para além de dois mandatos. Alguns constitucionalistas como Walter Costa Porto costumam dizer que, de fato, o sistema americano estabelece um mandato de 8 anos para o presidente que, no entanto, na metade de seu mandato precisa ser “confirmado” pelo voto popular. É o que explica porque o presidente candidato a re-eleição goza de certos privilégios no processo eleitoral em relação a outros candidatos.

[20] Washington’s Farewell Address, 1796.

[21] A Constituição dos EUA é composta apenas por sete artigos que definem basicamente a composição do governo e a ordem federativa. O longo do tempo foram sendo introduzidas as emendas constitucionais cuja aprovação necessita da aprovação de dois terços do Senado e da Câmara dos Deputados e da ratificação pelos Estados.

[22] O. Nogueira, A Constituição de 1824. Centro de Ensino à Distância, Brasília, 1987 (p. 3). Obviamente essa afirmação não se aplica ao caso brasileiro, uma vez que no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) a constituição inclui praticamente todas as situações em que eventuais direitos de cidadãos e de corporações podem ser objeto de disputa.

[23] O enunciado clássico do princípio da subsidiaridade que aparece nos dicionários, diz que esse princípio está presente quando uma autoridade central deve ter apenas uma função subsidiária, agindo somente em questões que não podem ser decididas em um país individualmente.

[24]R. A. Mundell, em A Theory of Optimum Currency Areas. American Economic Review, Sept. 1961 (pp.657-665) levanta a hipótese da adoção de uma moeda supranacional. Outro trabalho importante de R. Mundell dessa época foi publicado pelo FMI em 1962 intitulado The Appropriate Use of Monetary and Fiscal Policy for Internal and External Stability.

[25] O 1º. Acordo de Schengen foi assinado em 1985 entre Alemanha, Bélgica, França, Luxemburgo e os Países Baixos. Em 1990, esses países assinaram a Convenção de Schengen que introduzia regras, condições e garantias para a livre movimentação de pessoas nesse espaço. Outros países decidiram aderir ao acordo e, em 1997, o Acordo foi incorporado pela União Europeia muito embora sem a obrigação de que todos os países integrantes do bloco participassem do arranjo.

[26] R. L. Bruckberger, La République Américaine. Librairie Gallimard, Paris, 1958.

[27] Voltaire publicou Le Siècle de Louis XIV em 1751 no qual compara a França de Louis XIV à Grécia de Péricles, à Roma dos Césares e à Itália dos Médici e dos Sforza em termos de brilho nas ciências e na cultura.

[28] Nathan Miller, em seu livro Star spangled men. The America’s ten worst presidents, faz um apanhado do desempenho de uma dezena de presidentes que, na sua avaliação, foram governantes fracos e incompetentes (Simon & Schuster Pub. N.Y. 1998).

[29] Em O Príncipe Maquiavel argumenta que “Os principados ou são hereditários … ou são totalmente novos …” por meio de aquisição ou pela força das armas (O Príncipe, Capítulo I).

[30] Discurso pronunciado em 1819 por Benjamin Constant de Rebecque no Athénée Royal de Paris. Tradução de Laura Silveira, edição organizada por Marcel Gauchet, intitulada De la Liberté cliez les Modernes  (Le Livre de Poche, Collection Pluriel. Paris, 1980).

[31] A entropia é entendida como o processo físico que rege a segunda lei da termodinâmica, a qual estabelece que nos sistemas abertos, no limite, a entropia do universo avança pela troca de calor de forma contínua, devendo aumentar até atingir um valor máximo num estado de equilíbrio.

Eiiti Sato

Professor de Relações Internacionais na Universidade de Brasília

]]>
A regra de transição de 30 anos das linhas de ônibus interestaduais https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3394&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-regra-de-transicao-de-30-anos-das-linhas-de-onibus-interestaduais Tue, 19 Jan 2021 15:08:50 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3394 Por Liliane Galvão e Rodrigo Novaes

“Se quisermos que tudo continue como está,

é preciso que tudo mude”.

Giuseppi Tomasi de Lampedusa

O Transporte Rodoviário Interestadual e Internacional de Passageiros (TRIIP), a partir da promulgação da Lei nº 12.996, de 18 de junho de 2014, passou a ser outorgado por autorização. A Lei alterou dispositivos da Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, que trata das competências da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), reguladora do setor.

A autorização como forma de outorga do TRIIP é estabelecida pelo  art. 43, inciso II, dessa Lei, e tem as seguintes características:

  1. a) independe de licitação;
  2. b) é exercida em liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competição;
  3. c) não prevê prazo de vigência ou termo final, extinguindo-se pela sua plena eficácia, por renúncia, anulação ou cassação.

O modelo de autorizações para o TRIIP tem sido alvo de ataques tanto no Poder Judiciário – por meio de duas ações diretas de inconstitucionalidade que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) –, como no Poder Legislativo – por meio do Projeto de Lei (PL) n° 3.819, de 2020.

O objetivo dessas investidas parece ser a permanência da situação atual de um mercado fechado e sem concorrência – ou seja, manter os atuais incumbentes com liberdade de praticar os preços que entenderem adequados aos seus interesses sem serem ameaçados por novos entrantes.

O Poder Executivo, por meio do Decreto nº 10.157, de 4 de dezembro de 2019, buscou, justamente, equacionar essas questões, regulamentando o comando atual da Lei nº 10.233, de 2001. Espera-se com isso beneficiar a população, proporcionando um sistema de preços livres, em um ambiente competitivo e sem exclusividade de linhas, o que deve levar à queda de preços e ao aumento de oferta.

Na contramão desta iniciativa, no último dia 22 de dezembro, o Senado Federal remeteu à Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei (PL) nº 3.819, de 2020, que altera a Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, para – novamente – alterar os critérios para a outorga de autorização da operação do TRIIP.

Apesar de o projeto ter sido aprovado na forma de um substitutivo, que manteve a possibilidade da operação do TRIP no regime de autorização, o texto proposto para o art. 47-B da Lei nº 10.233, de 2001, estabelece um conceito de “inviabilidade técnica, operacional e econômica” para limitar o número de autorizações e obrigar a realização de um processo seletivo público para escolha das empresas autorizatárias. Os critérios para a caracterização desta “inviabilidade” serão definidos pelo Poder Executivo; as regras do processo seletivo, pela ANTT.

Na prática, a depender das regras a serem criadas pelo Poder Executivo, poderá ser exigida a realização de processo de seleção, cujas regras da competição, como mostra a história recente do TRIIP, tendem a ser bastante restritivas. Além disso, regulamentos deixados a cargo do Poder Executivo podem ser alterados ao sabor das conveniências do momento, como se vê em todos os setores regulados.

Nesse contexto, o objetivo deste artigo é contribuir para a avaliação do modelo legal vigente para o mercado do TRIIP. Iniciaremos com a apresentação de um relato cronológico da regulamentação do TRIIP. Em seguida, argumentaremos sobre a adequação do marco regulatório vigente para a operação do TRIIP.

Relato cronológico da regulamentação do TRIIP

Ao longo da história, o transporte rodoviário de passageiros no Brasil sempre foi prestado por meio de autorizações outorgadas pela União a particulares, em caráter precário e sem licitação.

Com o advento da Constituição de 1988, que previa licitação para outorga de concessão ou permissão de serviços públicos (art. 175, parágrafo único e incisos), foi editado o Decreto nº 99.072, de 8 de março de 1990, para alterar o regulamento dos serviços públicos rodoviários de transporte coletivo de passageiros, e exigir licitação, na modalidade de concorrência, para a exploração dos “serviços públicos rodoviários de transporte coletivo de passageiros, interestaduais e internacionais, quando não prestados diretamente”.

Como as linhas existentes não haviam sido licitadas, foi estabelecido por decreto que elas somente poderiam ser exploradas até outubro de 2008 – tempo mais do que suficiente para amortizar os investimentos em ônibus, cuja depreciação se dá, em média, entre sete e dez anos. Mesmo contando com prazo tão extenso, as licitações que regularizariam as linhas do TRIIP jamais foram realizadas. Assim, as autorizações vigentes foram sucessivamente prorrogadas com a justificativa de que os serviços de transporte não poderiam sofrer descontinuidade.

Quando, finalmente, foi publicada a licitação das linhas, em 29 de agosto de 2013, o edital foi questionado por um sindicato de empresas de transportes do estado de São Paulo. A licitação foi suspensa por decisão judicial, e, posteriormente, cancelada em razão da entrada em vigor da Lei nº 12.996, de 18 de junho de 2014, que estabeleceu a autorização como modalidade de outorga do TRIIP, fosse ele regular ou especial.

Embora a nova lei preveja, em seu art. 5º, que as autorizações especiais deveriam ter sido extintas no período de um ano contado de sua publicação, também consta nela que tal prazo poderia ser prorrogado a critério do então ministro de Estado dos Transportes, mediante proposta da ANTT. Somente um ano após a alteração do marco legal do setor é que a Agência editou a Resolução nº 4.770, de 25 de junho de 2015, para disciplinar o novo regime de outorgas.

Essa norma criou um regime de transição para que a ANTT promovesse “estudos de avaliação dos mercados, com o objetivo de detalhar e estabelecer os parâmetros de avaliação dos casos enquadrados como inviabilidade operacional”. Nesse período, o número de autorizatárias por mercado (ligação entre pares de cidades) ficou limitado (i) à quantidade de autorizatárias existentes por mercado e (ii) a duas transportadoras em cada mercado novo.

Ao impor o número de vagas por mercado e conferir preferência aos transportadores nele estabelecidos, a ANTT criou, sem previsão legal, barreiras à entrada de novas transportadoras, em favorecimento às incumbentes.

Assim, pela via regulatória, a ANTT manteve o mercado em completo desacordo com as características do modelo de autorização que, conforme o art. 43, inciso II, da Lei nº 10.233, de 2001, “é exercida em liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competição”.

Somente em 18 de junho de 2019, em decorrência do que previa o art. 4º da Lei nº 12.996, de 2014, que estabeleceu prazo de cinco anos para o controle de preços máximos e mínimos no TRIIP, o mercado passou a atuar em regime de liberdade de preços. As transportadoras, porém, continuam, em sua grande maioria, prestando os serviços em caráter precário, usufruindo do regime de autorização especial que lhes fora anteriormente concedido.

Na prática, a situação atual, então, é a de um mercado fechado, sem concorrência, em que os incumbentes, paradoxalmente, têm liberdade de preços. Não há elementos que indiquem que essa situação atenda ao interesse público de forma satisfatória, já que o estabelecimento tanto de monopólios quanto de oligopólios em que haja um líder claro de mercado produz a chamada “perda de peso morto”. Em suma, o monopolista (ou o líder do oligopólio) estabelece um preço acima do que seria possível com competição eficiente, abrindo mão da parte da demanda que poderia pagar esse preço menor, para extrair mais lucro dos consumidores dispostos a desembolsar o preço cobrado.

Com a edição do Decreto nº 10.157, de 4 de dezembro de 2019, que “institui a Política Federal de Estímulo ao Transporte Rodoviário Coletivo Interestadual e Internacional de Passageiros”, esperava-se que, finalmente, fosse possível fazer valer o regime de liberdade tarifária, em ambiente competitivo e sem exclusividade das linhas, nos termos previstos pela Lei nº 12.996, de 2014. Isso, porém, ainda não ocorreu, visto que tanto o Decreto quanto a Lei que o fundamenta são alvos de enormes embates jurídicos, que têm como objetivo claro a permanência do regime de transição que dura até os dias atuais.

E assim, o mercado de TRIIP, passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição, ainda vive em uma situação que poderia ser descrita como o “jeitinho brasileiro”, sob o eterno pretexto da necessidade de continuidade dos serviços.

A adequação da operação do TRIIP no regime de autorizações

As autorizações trazem benefícios ao interesse público na grande maioria dos casos, pois se destinam a reduzir, de forma bastante significativa, os custos para entrada no mercado. Ao acabar com critérios de escolha discricionários, já que, sendo ato vinculado, a autorização deve ser dada a todos os que preenchem os critérios estabelecidos em Lei, amplia-se a competição no mercado, que atualmente é inexistente ou ineficaz.

Não vemos boa razão para essa proteção do mercado do TRIIP. O argumento principal é que o regime de competição pode deixar localidades desatendidas. Porém, em primeiro lugar, não há razão econômica para que as empresas incumbentes façam grandes desinvestimentos em linhas superavitárias. Mesmo que isso ocorra pontualmente – por exemplo, para atendimento a uma rota potencialmente mais lucrativa em um mercado próximo – deve-se considerar que, sendo livre a entrada de qualquer empresa, de qualquer porte, em pouco tempo outro operador reestabelecerá o serviço. Não havendo exigências excessivas de frequência mínima e de idade da frota, o investimento necessário é bastante pequeno. Considerando uma região com cidades com distância de 400 km entre elas, um único ônibus consegue distribuir passageiros de um ponto central a, no mínimo, sete outras localidades, com frequência semanal, restando ainda tempo suficiente para sua manutenção.

O transporte de longa distância, como é o caso do transporte interestadual, não tem a característica pendular que marca o transporte semiurbano, em que a disponibilidade de determinados horários é extremamente importante, já que o passageiro não compra a viagem com antecedência. Nos serviços de longa distância, os passageiros simplesmente se programarão para viajar nos dias e horários disponíveis, e o mercado pode se ajustar sem grandes dificuldades.

Portanto, não consideramos que haja prejuízo à qualidade do transporte com as autorizações.

Também não deverá haver prejuízo ao acesso ao transporte pela descontinuidade de rotas de menor demanda. A grande maioria das rotas deve ser superavitária, já que as empresas que as operam estão no mercado há décadas. As rotas que sejam deficitárias, inclusive as que estejam nessa condição após a pandemia da covid-19, podem sofrer ajustes de preços de modo a refletir seu real custo. De fato, com a redução das barreiras, o número de rotas ofertadas deve ser maior do que seria com a regulação anterior nas mesmas condições de mercado, seja porque rotas antes inviáveis passam a fazer sentido econômico, seja porque operadores que antes trabalhavam na clandestinidade podem se regularizar, formando empresas ou cooperativas autorizadas.

A linha de argumentação de redução de acessibilidade parte do pressuposto de que há linhas cronicamente deficitárias no sistema, e que essas linhas são de interesse social. Se esse for o caso, no entanto, devemos no perguntar: será que, de fato, é essencial o acesso frequente de passageiros de pequenas localidades a centros maiores em uma unidade da federação diferente daquela em que residem? Caso a resposta seja positiva, prosseguimos: quem deve pagar por esse acesso? Dificilmente há algum sentido econômico ou mesmo social em fazer com que o passageiro de ônibus da cidade vizinha pague essa conta, que é o que aconteceria em um modelo de operação em linhas superavitárias e deficitárias. Nesse caso, deveria haver a definição de uma rede de interesse social e de uma fonte de recursos pública para subsidiar essa operação.

Outra alegação bastante presente na argumentação contrária ao regime de autorizações é o “problema” do excesso de oferta em rotas superavitárias.

Parte da suposta injustiça causada por essa situação se explicaria pela utilização das receitas obtidas na operação dessas linhas para subsidiar linhas deficitárias, argumento que não deve prosperar, pelo motivo que acabamos de expor.

Outra parte é, simplesmente, a busca de compensação por uma posição de antiguidade no mercado, comportamento observado em diversos setores diante de potenciais mudanças de regras. Contudo, a história demonstra que os reguladores devem evitar encampar esse tipo de ideia, já que, cedo ou tarde, tecnologias disruptivas destroem o excedente de arrecadação proveniente de uma posição inicialmente vantajosa – como aconteceu com a entrada das linhas aéreas de baixo custo, ou com a concorrência dos aplicativos de transporte com os táxis.

Além do mais, onde é permitida a exploração de posições de mercado privilegiadas, seja por antiguidade ou por monopólio natural, o correto é que ao menos parte dos recursos arrecadados seja destinada ao poder público, para reinvestimento em outros setores, mediante o pagamento de outorga. Ainda que o modelo outorgado do TRIIP contivesse linhas deficitárias, se a soma dos lucros econômicos esperados é positiva, o pagamento ao Estado pela continuidade da operação das linhas seria devido, como mostram as concessões de aeroportos em blocos. No entanto, no caso do TRIIP, nada é repassado ao poder público em razão do usufruto do direito de explorar linhas de ônibus antigas, apenas se paga uma taxa de fiscalização à ANTT, de valor irrisório.

Ainda nesse quesito, há uma ressalva importante a fazer: o que se chama muitas vezes de “concorrência predatória” é a entrada de uma empresa mais eficiente no mercado, em relação à incumbente. Essa empresa consegue vender a preços menores porque produz a preços menores, não porque tenha uma estratégia de criação de monopólio. Certamente, é uma situação muito difícil para a incumbente, que precisa cortar custos ou ganhar escala de produção para sobreviver. Esse movimento, porém, é considerado parte das regras do jogo no sistema capitalista, já que se entende que a redução de ineficiências é, em geral, positiva para a sociedade. É verdade que a empresa mais eficiente pode aumentar seus preços após a falência da incumbente original. Porém, em um mercado contestável, há uma margem bastante pequena para esse tipo de comportamento, já que ele atrairia novos entrantes. De toda forma, socialmente, o aumento de excedente do produtor ainda é mais positivo do que a perda por ineficiência, já que pode estimular a inovação e a entrada em outros mercados, fomentando a competição.

Quanto aos questionamentos de lisura nos processos de autorização, embora seja possível que agentes corruptos retardem alguns processos e favoreçam outros, esse é um problema de polícia, que não pode ser resolvido por uma lei ou decreto. Ora, naturalmente, em uma rota que não estivesse sendo operada, não haveria nenhum mal em conceder autorização a quem quer que fosse para que se pudesse testar a viabilidade de uma entrada. O que está em jogo realmente é se o “sistema que funciona hoje” – com uma ou duas empresas, muitas vezes pertencentes ao mesmo grupo atuando em cada mercado – deve ser protegido da entrada de novos autorizados, sob o pretexto de que pode haver algum tipo de falha de governo nessa transição. Acreditamos que os potenciais benefícios da opção por uma menor regulação sejam muito superiores a esses prejuízos, que, de todo modo, sempre podem ser objeto de correção de rumo por parte da Agência Reguladora.

Também é improcedente argumentar que as autorizações prejudicarão o usuário, já que não há qualquer diferença nas regras de gratuidade, de segurança, e de regularidade e constituição de pessoa jurídica entre uma empresa autorizada e outra – e as atuais operadoras devem, de toda forma, se enquadrar no novo regime, já que a situação delas é, como vimos, bastante problemática.

A autorização não passa pelo processo de “concorrência pelo mercado” (licitação) justamente porque ela está livremente disponível para qualquer empresa que atenda aos critérios preestabelecidos e publicados de participação no mercado, e que tenha interesse comercial na operação. Ou seja, a concorrência se dá diretamente no mercado, onde as empresas têm capacidade de demonstrar diretamente suas boas práticas e sua eficiência. Ao contrário, a concorrência pelo mercado privilegia empresas de maior porte, bem estabelecidas e, muitas vezes, com conexões políticas na Agência Reguladora.

Quanto a possíveis alegações de que o modelo de autorização facilitaria conluios ou a concorrência predatória, esses são crimes contra a ordem econômica, tipificados pela Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990 (art 4º, I e II).

Não se deve, em nossa opinião, questionar o novo modelo pelo potencial de produzir atos criminosos, já que existe o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para lidar justamente com esses casos. E, ainda que fôssemos por esse caminho, é muito mais fácil fazer acordos para divisão de licitação entre poucas empresas do que uma ação coordenada com todas as empresas do mercado para evitar entradas em um ambiente livre.

Neste momento em que a ANTT busca colocar em prática novas regras, acreditamos que o melhor caminho seria observar o comportamento do mercado e promover as correções necessárias – seja em nível infralegal ou legal – com base nas falhas que surgirem. Alterar mais uma vez o marco regulatório quando se está prestes a resolver o problema do mercado terminará por estender a situação transitória, o que contribuirá para perpetuar o privilégio das empresas incumbentes, que exploram os serviços sem nem mesmo oferecer qualquer contrapartida à União.

Conclusão

O setor de transporte rodoviário internacional e interestadual de passageiros vem operando por mais de vinte e cinco anos sem licitação, por meio de autorizações precárias.

A configuração atual do mercado é péssima para o interesse público e extremamente benéfica para os operadores incumbentes, que se encontram, neste momento, no melhor de dois mundos: possuem ao mesmo tempo a liberdade de preços de um sistema competitivo e a proteção de mercado de um sistema concedido.

O que nos parece o mais adequado à realidade tanto do mercado quanto da capacidade regulatória da ANTT é a efetivação, na prática, do modelo de autorizações proposto desde 2014, pois nada indica que o resultado de um eventual esforço de realização de alguma forma de processo seletivo para entrada no mercado será diferente do ocorrido na última tentativa de licitação das linhas, em que foi travada uma guerra na Justiça para procrastinar o andamento da licitação. Mantido o comportamento histórico dos agentes do setor, a situação atual de privilégio dos operadores incumbentes prosseguirá por mais alguns anos, quiçá décadas.

Embora tenha havido tentativas de regularizar a situação das empresas que se encontram no mercado, ao que tudo indica, muitas dessas próprias empresas se dispõem a lutar para que a situação atual permaneça, adotando o caminho ilustrado na obra O Leopardo, de Giuseppi Tomasi de Lampedusa: “se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”.

Liliane Galvão e Rodrigo Novaes são consultores do Senado Federal.

]]>
O novo marco do saneamento e a remoção da barreira aos investimentos privados https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3391&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-novo-marco-do-saneamento-e-a-remocao-da-barreira-aos-investimentos-privados Mon, 18 Jan 2021 19:57:49 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3391 Por Cíntia Leal Marinho de Araújo, Gabriel Godofredo Fiuza de Bragança & Diogo Mac Cord de Faria

A aprovação da Lei 14.026/2020 (Novo Marco Legal) é um divisor de águas no saneamento básico brasileiro. Ela traz inúmeras inovações liberalizantes no aparato legal do mercado e estabelece obrigações para a universalização dos serviços de água e esgoto até 2033[1]. Os investimentos necessários para a consecução dessa universalização são estimados em R$ 753 bilhões de reais[2]. Trata-se de um montante vultoso que demandará uma participação significativa de recursos privados. Dada a magnitude desse desafio, concentraremos o presente artigo em analisar a contribuição do atual marco legal para a remoção de barreiras históricas ao investimento privado nos setores de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Por conta disso, a análise do setor de saneamento básico neste artigo terá como foco esses dois segmentos[3].

Os setores de água e esgotamento sanitário quando pensados conjuntamente, além de tratarem da provisão de um bem essencial e sem substitutos, possuem peculiaridades como economia de escala e elevado custo dos investimentos que os caracterizam como um caso clássico de Monopólio Natural em que não é economicamente eficiente ter mais do que uma firma provendo os serviços. Essa característica faz com que seja economicamente eficiente que a prestação desse serviço seja estruturada de forma que uma localidade seja atendida por apenas um prestador. Por outro lado, para evitar que haja abuso de poder de mercado, capturar ganhos de eficiência e maximizar o bem estar social, monopólios naturais demandam uma regulação apropriada e ainda mais cuidados para garantir que haja concorrência pelo direito de oferta do serviço de partida. Em outras palavras, é primordial que se promova no saneamento básico uma concorrência efetiva pela prestação do serviço (competição pelo mercado) ainda que não seja salutar que haja concorrência na prestação do serviço (competição no mercado).

Apesar de se tratar de um princípio econômico plenamente consolidado, o aparato normativo do setor de saneamento básico brasileiro escolheu ignorá-lo até a sanção do Novo Marco Legal. A legislação que vigorava até a edição da Lei 14.026/2020 inviabilizava a devida competição pelo serviço através de um processo licitatório, criando barreiras quase intransponíveis para que o prestador privado concorresse pela prestação do serviço. Na prática, a estrutura normativa posta impossibilitava que ganhos de eficiência fossem exauridos no início da operação em benefício da sociedade.

O mais curioso é que essa incongruência econômica se dava também ao arrepio de comandos constitucionais. O art. 175[4] da Constituição Federal é bastante claro com a necessidade de que esse tipo de prestação seja submetido a um procedimento licitatório, havendo inclusive manifestação pela irregularidade de contrato de prestação de serviço por contrariar a regra constitucional[5].

O que se verificou na prática foi a utilização de artifícios jurídicos engenhosos para não submeter a prestação desse serviço a um procedimento competitivo e delegar a prestação do serviço à Companhia de Saneamento do Estado. Esses subterfúgios, além de violarem o preceito constitucional, também se caracterizam como uma barreira à entrada para que o privado dispute essa prestação de serviço público.

O preço pago pela sociedade é alto. Essa situação tem óbvia relação com o atual cenário do saneamento básico, em que quase 100 milhões de brasileiros não possuem acesso a esgotamento sanitário, e mais de 30 milhões ainda não possuem abastecimento de água[6].

1           A situação de atendimento do setor e a necessidade de endereçar

Atualmente, o setor de saneamento básico conta, majoritariamente, com a operação das companhias estaduais de saneamento básico – CESBs, que estão presentes em 72% dos municípios. Por outro lado, o setor privado atende apenas 5,2% dos municípios e 25,7% são atendidos pelos serviços municipais (ABCON, 2020). Nota-se que a somatória[7] ultrapassa 100%, isto se deve ao fato de que em muitos municípios o operador público presta apenas o serviço de abastecimento de água, cabendo ao privado o serviço de coleta e tratamento de esgoto.

A prestação do serviço de abastecimento de água e de esgotamento sanitário por diferentes operadores não tende a ser eficiente por não se beneficiar das economias de escopo pela prestação concomitante desses serviços pelo mesmo operador (NAUGES; VAN DEN BERG, 2008). Todavia, a prestação desses serviços por diferentes operadores está entre uma das inúmeras ineficiências observadas no setor.

Muitas vezes isso ocorre pela falta de capacidade do público em prestar o serviço de esgotamento sanitário, que muito se deve pela indisponibilidade de capacidade econômica financeira para realizar os investimentos necessários para o serviço. Assim, esse serviço é subdelegado a um prestador privado com capacidade para tal, o que explica a diferença entre o número total de prestadores e o número de municípios.

Apesar de estar presente em apenas 5,2% dos municípios, dados da Abcon (2020) mostram que o setor privado foi responsável por mais de 20% dos investimentos direcionados ao setor em 2018.

Segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS, em 2018, o total de investimentos realizados por todos os prestadores de serviços no setor correspondeu a R$ 10,959 bilhões. Esses valores estão muito aquém do necessário para universalizar o saneamento no Brasil. Conforme mencionado anteriormente, serão necessários R$ 753 bilhões em investimentos para que a universalização do setor seja possível até o ano de 2033, conforme meta do Plano Nacional de Saneamento Básico – Plansab.

Para se atingir essa meta nos próximos anos, serão necessários muito mais investimentos do que o montante investido atualmente no setor. A grande necessidade de investimentos ocorre pois além dos investimentos necessários para a expansão do atendimento, também sendo preciso realizar investimentos para compensar a depreciação.

Segundo destacou o estudo da Abcon, do montante total estimado de investimentos, R$ 255 bilhões serão necessários apenas para repor a depreciação do estoque de capital, enquanto para a expansão da rede para a universalização do serviço serão necessários mais R$ 144 bilhões para abastecimento de água e R$ 354 bilhões para esgotamento sanitário, totalizando R$ 498 bilhões.

Esses investimentos na melhoria, manutenção e recomposição dos sistemas de saneamento básico se fazem extremamente necessários, especialmente quando se avalia os dados de perdas de água na distribuição. A Tabela 1 abaixo apresenta os dados de perdas por região no país.

Tabela 1: Índice de perdas na distribuição (IN049) – SNIS2018

Macrorregião IN049
Norte 55.50%
Nordeste 46.00%
Centro-Oeste 35.70%
Sudeste 34.40%
Sul 37.10%
Brasil 38.50%

Observa-se que o Brasil ainda apresenta índices altos de perdas na distribuição de água, o que contribui para onerar o serviço, além de significar um prejuízo à conservação dos recursos hídricos. O destaque negativo está nas regiões mais pobres. A região Norte tem uma perda superior a 50% de seus insumos. Já a região nordeste, onde a escassez hídrica é um tema extremamente sensível, possui uma perda de água próxima a 50%, demostrando que apenas programas na região para aumento da oferta hídrica precisam ser aliados a uma melhoria desse índice e redução dos níveis de perdas.

1.1         Despesas operacionais no saneamento: público x privado

Com o objetivo de se avaliar a eficiência dos gastos pelos operadores no setor, Araújo (2020) busca decompor as despesas de exploração do serviço de saneamento básico para comparar os componentes de despesa operacional das companhias públicas de saneamento básico – CESBs, representativas da operação pública, com os componentes de despesa operacional das empresas privadas. O objetivo do exercício é comparar cada item que compõe as despesas de operação, de forma que seja possível identificar quais seriam os maiores gastos, verificando a diferença entre os componentes da função entre operadores públicos e privados. Essa comparação busca, inclusive, incentivar uma melhor gestão de recursos, para que seja possível aumentar o percentual destinado aos investimentos no setor na busca da universalização da prestação do serviço.

Araújo (2020) considera ainda que a despesa operacional da exploração do serviço de abastecimento de água e esgotamento sanitário seria dada pelo somatório das despesas de pessoal, produtos químicos, despesa de energia elétrica, despesa com água bruta importada, despesa de esgoto exportado, impostos e outras despesas de exploração. Os dados foram extraídos do SNIS (2018) e para a definição do tipo de prestador aplicou-se o filtro por natureza jurídica, sendo selecionadas apenas “empresa privada” e “sociedade de economia mista com administração pública”. Esta última equivale à natureza jurídica das companhias estaduais de saneamento básico.

Com base nesse exercício, a autora observou que o componente que apresenta maior discrepância entre prestadores é o gasto com despesa de pessoal. O estudo verificou que o prestador público possui um gasto com salário de 42,73% em relação ao total das despesas de exploração, enquanto o valor dos gastos com salários proporcionalmente à despesa de exploração do prestador privado é de 24,82%.Avaliando-se esses montantes despendidos com despesa de pessoal por tipo de prestador, verifica-se ainda que os valores médios gastos pelas CESBs é quase três vezes o valor médio gasto pelo privado. Enquanto as CESBs possuem uma média salarial de R$ 158 mil anual, a média salarial do operador privado é de R$ 66 mil (SNIS 2018).

Conforme apresentado por Araujo, C.L.M; Bragança, G.G.F e Faria, D.M.C., em POZZO, 2020, no gráfico 1 abaixo de investimentos potenciais, caso os salários médios pagos pelos prestadores públicos fossem equivalentes aos pagos aos empregados das empresas privadas, R$ 78 bilhões a mais poderiam ter sido investidos no período de 2007 a 2018.

Gráfico 1: Investimentos Potenciais

Fonte: Pozzo (2020)

Os dados apresentados indicam uma eficiência significativamente maior na operação pelo prestador privado, gerando ganhos de eficiência para o setor, que poderão ser revertidos para a sociedade na forma de investimentos para universalizar a prestação do serviço.

2           Alterações propostas pela Lei nº 14.026/2020

A Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, atualiza o marco legal do saneamento básico e altera outras sete leis que regulamentam o setor, conforme discriminado a seguir:

  • Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, para atribuir à Agência Nacional de Águas competência para editar normas de referência nacionais sobre o serviço de saneamento;
  • Lei nº 10.768, de 19 de novembro de 2003, para alterar as atribuições do cargo de Especialista em Recursos Hídricos;
  • Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005, para vedar a prestação por contrato de programa dos serviços públicos de que trata o art. 175 da Constituição Federal;
  • Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, para aprimorar as condições estruturais do saneamento básico no País;
  • Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, para tratar dos prazos para a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos;
  • Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole), para estender seu âmbito de aplicação às microrregiões;
  • Lei nº 13.529, de 4 de dezembro de 2017, para autorizar a União a participar de fundo com a finalidade exclusiva de financiar serviços técnicos especializados.

Cada um desses dispositivos legais versa sobre um aspecto do setor de saneamento básico. A figura abaixo apresenta a forma como esses aspectos se integram na lei, trazendo uma reforma completa para o setor.

Figura 1: Integração dos Componentes de Reforma Estrutural do Setor de Saneamento Básico

Fonte: Elaboração Própria

A figura 1 apresenta a forma como os componentes estruturais se relacionam, entre eles e com os temas de abastecimento de água e esgotamento sanitário, que para fins de simplificação estão representados pelo saneamento, e resíduos sólidos. Observa-se que o componente institucional regulatório possui um destaque pela transparência, segurança jurídica e estabilidade que trará ao setor. O outro componente de destaque é o organizacional geográfico, que trata de um elemento central abordado na lei e essencial na busca da universalização.

No centro, a figura apresenta os temas mais impactados pelo novo marco, água, esgoto e resíduos. O abastecimento de água e esgotamento sanitário têm um destaque pois as alterações legais foram desenhadas com o objetivo principal de solucionar os déficits no setor. O tema de resíduos sólidos também teve pontos importantes endereçados pelo marco, como a obrigatoriedade de instituição da cobrança pelo serviço ao usuário final, o que trará sustentabilidade para o setor. O tema de drenagem também é um aspecto importante de saneamento básico, mas por não se tratar do foco principal das mudanças do marco, não está retratado na figura.

Por último os últimos dois componentes, o elemento contratual representa um dos instrumentos utilizados para viabilizar as alterações no setor para atingir a universalização. Na outra ponta, as fontes de financiamento público também são utilizadas como um instrumento para possibilitar e garantir que essas novas regras sejam implementadas.

Abaixo esses elementos serão descritos individualmente, bem como as alterações legais específicas as quais estão relacionados.

O componente institucional-regulatório da figura 1 representa, principalmente, as primeiras duas alterações legais do novo marco legal. Ao atribuir à Agência Nacional de Águas – ANA a competência de editar normas de referência nacionais sobre o serviço de saneamento e possibilitar aos servidores da agência o respaldo legal para exercer esse papel, se buscou estabelecer um ambiente regulatório mais seguro, aperfeiçoando a legislação de gestão de recursos hídricos e saneamento básico.

Essa nova atribuição proporcionará uma maior uniformização das normas do setor, que hoje possui mais de sessenta agencias subnacionais, com diferentes normas e níveis de maturidade institucional.

Entre as regras que deverão ser tratadas pela ANA, estão:

  • Governança das agências reguladoras subnacionais, para que a regulação seja desempenhada por entidade autárquica, com independência decisória e autonomia administrativa, orçamentária e financeira, atendendo os princípios de transparência, tecnicidade, celeridade e objetividade das decisões (art. 21 Lei 11.445/2007);
  • Regulação Econômica com normas de regulação tarifária, contabilidade regulatória e indenização de ativos;
  • Regulação Técnica, estabelecendo padrões de qualidade e eficiência para a prestação do serviço; metas de universalização e formas de avaliar o cumprimento dessas metas; regras para redução e controle de perdas; medidas de segurança, emergência, contingenciamento e racionamento; regras para reuso da água; e regras de substituição do sistema unitário para o sistema separador absoluto;
  • Regulação Contratual, buscando a padronização dos modelos de contrato; estabelecer parâmetros de determinação de caducidade contratual; conteúdo mínimo para a prestação regionalizada[8]; e procedimentos de fiscalização e sanções contratuais.

Com relação ao componente Contratual apresentado na Figura 1, ele possui o aspecto formal de padronização de instrumentos a ser elaborada pela ANA, mas também se refere a um dos maiores benefícios trazidos pelo novo marco: a retirada de barreiras à entrada do prestador privado. As alterações sobre a forma de contratar o serviço de saneamento, ratificadas no art. 10 da Lei nº 11.445/2007, reforçam a necessidade de se cumprir o art. 175 da Constituição Federal, obrigando que a prestação do serviço, quando não prestada diretamente, seja precedida de licitação.

Assim, as alterações na Lei 11.445/2007 trazem grandes contribuições sobre a forma de contratar o serviço, especialmente do art. 10 ao art. 11-B, em que são elencadas as regras contratuais para aprimoramento da prestação do serviço.

Outro ponto que o novo marco vem esclarecer no art. 10-A, diz respeito à importância de que os contratos de pactuação do serviço contenham as cláusulas previstas no art. 23 da Lei nº 8.987/1995, equiparando em exigência e regra de atendimento a prestação por “contrato de concessão” e “contrato de programa”.

A prestação atual do serviço se saneamento muitas vezes é pactuada pelos chamados “contratos de programa”. Esses contratos são pactuados entre as empresas públicas e os municípios, sem licitação prévia. Esse formato de contratação representava uma vantagem do prestador público sobre o privado, além de constituir um descumprimento da Constituição, conforme mencionado anteriormente.

Outro ponto que representava uma grande barreira ao prestador privado era o fato de a lei prever que em caso de privatização, esses contratos de programa seriam automaticamente extintos[9], fazendo com que a empresa perdesse todo o valor.

Ainda sobre os “contratos de programa”, o que se verifica no setor é a falta de padronização desses instrumentos, sendo a prestação do serviço feita muitas vezes de forma precária, sem contrato, quando existem esses contratos não possuem metas de universalização do serviço, muito menos estão vinculados a regras regulatórias pactuadas no início da operação.

O objetivo do novo marco é uniformizar os contratos de prestação do serviço, equiparando em exigências os contratos de programa aos contratos de concessão, com a inclusão das cláusulas essenciais dos contratos de concessão para os contratos de programa. que não possuem metas ou regras regulatórias. A inclusão dessas exigências busca mensurar o esforço necessário para a expansão do serviço e universalização no prazo definido na Lei.

Além das regras da Lei nº 8.987/1995, os contratos de prestação do serviço de saneamento também precisarão conter:

  • Metas de expansão e eficiência dos serviços;
  • Possíveis fontes de receitas alternativas, complementares ou acessórias;
  • Metodologia de cálculo de eventual indenização relativa aos bens reversíveis não amortizados por ocasião de extinção do contrato;
  • Repartição de riscos entre as partes.

As metas de universalização que precisam ser perseguidas nesses contratos estão estabelecidas no art. 11-B, que define que essas metas de universalização precisam garantir o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033.

Dessa forma, a lei inclui a obrigatoriedade de metas de universalização do serviço, o que busca mensurar o esforço necessário para a expansão do serviço e universalização no prazo definido na Lei.

Além disso, para possibilitar que os contratos atuais que não possuam essas metas sejam ajustados, se estabeleceu um prazo até 31 de março de 2022 para que seja feito esse ajuste. Destacando ainda que, contratos licitados com metas diversas deverão ser mantidos, permanecendo inalterados. Nesse caso, as metas de universalização deverão ser buscadas de três formas:

  1. pela prestação direta da parcela que não está incluída no contrato de prestação de serviço;
  2. com uma licitação complementar dessa parcela não atendida pelo contrato original; ou
  3. por meio de um aditivo no contrato original licitado, com o devido reequilíbrio econômico-financeiro para inclusão das metas, com a condição que o prestador desse contrato concorde com esse ajuste.

O art. 10-B complementa os anteriores ao prever a necessidade de avaliação da capacidade econômico-financeira da contratada. Dessa forma, se garante que a empresa que prestará o serviço de saneamento terá capacidade financeira para realizar os investimentos necessários para a universalização da prestação do serviço em determinada localidade. Essa exigência é mais uma forma de equiparar os atuais contratos de prestadores públicos ao contrato do privado, já que este último passa por essa avaliação de capacidade no momento da licitação.

Para a aferição do cumprimento dessas metas, serão utilizados os seguintes critérios:

  • O cumprimento das metas deverá ser verificado anualmente pela agência reguladora;
  • O critério de aferição considera que para cada intervalo dos últimos cinco anos, as metas deverão ter sido cumpridas em, pelo menos, três anos;
  • A primeira fiscalização deverá ser realizada apenas após o término do quinto ano de vigência do contrato;

Caso a agência reguladora verifique que as metas não estão sendo cumpridas, deverá iniciar procedimento administrativo com o objetivo de avaliar as ações a serem adotadas, incluídas medidas sancionatórias, com eventual declaração de caducidade da concessão.

O terceiro componente trata do aspecto Organizacional/Geográfico também necessário para que se atinja a universalização de forma completa no território brasileiro. Para que seja possível atender a todos os municípios do nosso país, é importante que se avalie a região de uma forma completa. Para isso, os requisitos de prestação regionalizada preveem três possibilidades de regionalização: A “Região Metropolitana”, de caráter compulsório, as Unidades Regionais de Saneamento Básico – URSB, em que o Estado desenha o agrupamento no qual o município se insere de forma voluntária; e por último, o “Bloco de referência”, no qual a União proporá o desenho para que os municípios se agrupem, caso a URSB não tenha sido estabelecida.

A agregação desses municípios é essencial para que se estabeleçam ganhos de escala que possibilitem a universalização do serviço de saneamento. Além disso, o agrupamento de municípios também possibilita o melhor gerenciamento de recursos hídricos sob o ponto de vista da Bacia Hidrográfica, possibilitando a internalização de externalidades ambientais.

Além disso, conforme destaca KINDGOM (2005),  a associação entre municípios pode aumentar a capacidade de endividamento do grupo, e melhorar o acesso a financiamentos. Verifica-se dessa forma, que o componente geográfico tem sinergia com o quarto componente que trata das fontes de financiamento. Dessa forma, a Lei prevê a regionalização como um condicionante para a disponibilização de recursos pela União para saneamento básico.

O quarto componente trata das fontes de financiamento, elemento essencial para viabilizar os investimentos e também instrumento utilizado pelo marco como enforcement para adoção das diretrizes estabelecidas pela ANA e como forma de incentivar a prestação regionalizada, já que esses pois pontos são condicionantes para o acesso às fontes públicas de financiamento.

As regras das fontes de financiamento apresentadas na Lei estão previstas no art. 50 da Lei nº 11.445/2007 e no art. 13 da Lei nº 14.026/2020, bem como na Lei 13.529/2017. Todos esses dispositivos buscam adequar o serviço ao Novo Marco, disponibilizando recursos da União para esses ajustes.

Por fim, verifica-se que a figura 1 busca apresentar a percepção de que esses componentes possuem sinergias importantes entre si e se influenciam mutuamente.

A Lei prevê ainda que as normas de referência devem ser orientadas para estimular a concorrência, a cooperação entre os entes federativos, a regionalização e assegurar a prestação concomitante dos serviços de água e esgotamento sanitário.

Estudos do setor ressaltam que a agregação dos serviços proporcionam maior eficiência por meio de economias de escala e compartilhamento de custos, bem como maior capacidade humana, ressaltando que economias de escala na agregação e regionalização estão relacionadas a despesas gerais de gestão, custos operacionais e faturamento, maior capacidade profissional e troca de conhecimento, gestão integrada de recursos hídricos, maior acesso a financiamento e capacidade de atrair investimentos do setor privado (FERRO, 2017).

Observa-se assim que o novo marco legal do setor de saneamento buscou estabelecer regras que propiciam a entrada do parceiro privado, retirando barreiras à entrada, garantindo tratamento igualitário com o prestador público, e estabelecendo regras regulatórias mais uniformes para o setor, como forma de garantir a estabilidade jurídica.

3           Conclusão

Barreiras legais e artificiais vigentes durante décadas prejudicaram o serviço de saneamento básico em nosso país. O novo marco do setor mapeou essas barreiras e procurou removê-las, estabelecendo regras que permitam aos prestadores privados competir nas mesmas condições que o prestador público. Além disso, o Novo Marco Legal estabeleceu regras claras para a universalização do serviço, com metas de atendimento a 99% da população com serviço de abastecimento de água e 90% da população com coleta de esgoto até o ano de 2033.

Para que seja possível atingir esses objetivos é fundamental que os regulamentos infralegais previstos sejam publicados e que garantam a efetiva aplicação da Lei (enforcement).

Também é importante que a ANA publique as normas de referência previstas para o setor e que a adoção dessas normas, bem como as alterações contratuais previstas, seja realizada com transparência para que a universalização do serviço chegue a todos os cidadãos.

Referências bibliográficas

ABCON. Panorama da participação privada no saneamento 2020: Tempo de avançar..

BAIN, J. S. Barriers to New Competition. [s.l.] Harvard University Press, 1959.

BAUMOL, W. J. On the Proper Cost Tests for Natural Monopoly in a Multiproject Industry. American Economic Review, v. 67, n. 5, p. 809–822, 1977.

BAUMOL, W. J.; WILLIG, R. D. Fixed Costs , Sunk Costs , Entry Barriers , and Sustainability of Monopoly. The Quarterly Journal of Economics, v. 96, n. 3, p. 405–431, 1981.

BRASIL. Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o marco legal do saneamento básico. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 158, n. 135, p. 1-91, 16 jul. 2020.

Dados SNIS acessado em 10/08/2020: http://app4.mdr.gov.br/serieHistorica/.

ECONOMIA, M. DA; SECRETARIA ESPECIAL DE PRODUTIVIDADE, E. E C.-S. Guia de Advocacia da Concorrência. [s.l: s.n.].

FERRO, G. Literature Review : global study on the aggregation of water supply and sanitation utilities. n. August, p. 1–35, 2017.

GOMEZ-IBÁÑEZ, J. A. Regulating Infrastructure: Monopoly, Contracts and Discretion. [s.l.] Harvard University Press, 2003.

KINDGOM, W. D. Models of aggregation for water and sanitation provision. [s.l: s.n.].

KPMG(ABCON). Quanto custa universalizar o saneamento no Brasil ? [s.l: s.n.].

NAUGES, C.; VAN DEN BERG, C. Economies of density, scale and scope in the water supply and sewerage sector: A study of four developing and transition economies. Journal of Regulatory Economics, v. 34, n. 2, p. 144–163, 2008.

POZZO, A. N. D. O Novo Marco Regulátorio do Saneamento Básico. [s.l.] THOMSON REUTERS, 2020.

STIGLER, G. J. The Theory of Economic Regulation. The Bell Journal of Economics and Management Science, v. 2, n. 1, p. 3–21, 1971.

WEIZÄCKER, V. Barriers to Entry: A Theoretical Treatment. [s.l: s.n.].

[1] O §9º do Art. 11-B dispõe sobre condições excepcionais em que o prazo dessa universalização pode ser estendido até no máximo 2040.

[2] KPMG/ABCON (2020) disponível em https://assets.kpmg/content/dam/kpmg/br/pdf/2020/07/kpmg-quanto-custa-universalizar-o-saneamento-no-brasil.pdf (04/01/2021).

[3] Isso não desmerece a importância econômica e social dos segmentos de resíduos sólidos e drenagem pluvial que também fazem parte do setor de saneamento básico. Estes subsetores ficaram de fora da análise mais pormenorizada por guardar características bastante particulares e distintas dos segmentos de água e esgoto.

[4] Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos

[5] A decisão do TJRJ na Apelação Cível nº 0004772-52.2013.8.19.0064, é um exemplo deste caso, o desembargador Camilo Rulière destacou em seu parecer:

Fosse intenção dos demandados firmar convênio, providência inarredável seria a abertura de certame licitatório, pena de ferimento ao artigo 175 da Constituição Federal.

Tanto o Convênio de Cooperação firmado entre o Munícipio de Valença com o Estado do Rio de Janeiro e a CEDAE, como o Contrato de Programa celebrado, na sequência, entre o Ente Municipal e a CEDAE, são inequivocamente inválidos, por violação aos requisitos de validade da delegação dos serviços de saneamento básico previstos na Lei 11.445/2007.

Na mesma medida, afronta regras da Lei de Licitações, da Lei de Concessões e Permissões e da Lei de Contratação de Consórcios Públicos.

Mais que isso. Afeta os princípios gerais da atividade econômica, mais precisamente, os artigos 170, inciso IV e 175 da Carta Política Nacional.

Arremate-se que, nada obstante a roupagem dada pelos réus à avença em comento, nominando-a de convênio, disso não se trata, posto que se cuida de verdadeiro contrato, certo que a delegação dos serviços de fornecimento de água e tratamento de esgoto sanitário deve ser formalizada através de contrato, vedada a disciplina por convênio, contrato de programa ou termos de parceria.

Tudo bem expendido, restou evidente que o Convênio de Cooperação e o Contrato de Programa firmado pelos réus foram uma manobra engendrada, um subterfúgio para mascarar a necessidade de delegação dos serviços através de prévio procedimento licitatório, a implicar a invalidade dos ajustes, como bem delineado na Sentença.

[6] Cálculo feito a partir de dados do SNIS2018 que informa que o déficit de coleta de esgoto é de 46,80% e de abastecimento de água de 16,40%.

[7] O SNIS 2020 apresenta dados referentes a 5.627 prestadores.

[8] O conceito de prestação regionalizada em saneamento será devidamente explicado adiante no texto.

[9] §6º, art. 13 da Lei 11.107/2005 – Revogado

Cíntia Leal Marinho de Araújo é economista de carreira da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, onde atualmente ocupa o cargo de assessora da Diretoria. Possui graduação e mestrado em Economia e pós-graduação em Defesa da Concorrência e Direito Econômico – FGV/CADE.

Gabriel Godofredo Fiuza de Bragança é servidor de carreira do IPEA e atualmente ocupa o cargo de subsecretário de Regulação e Mercado da Secretaria de Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia. É PhD em Economia pela Victoria University of Wellington (VUW), mestre em Economia pela EPGE/FGV e mestre em Métodos Matemáticos em Finanças pelo IMPA.

Diogo Mac Cord de Faria é secretário Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia. Engenheiro mecânico, mestre em Administração Pública pela Harvard University e doutor em Sistemas de Potência pela USP.

]]>
A Vacina para a Covid-19 e a Regulação de Riscos no Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3388&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-vacina-para-a-covid-19-e-a-regulacao-de-riscos-no-brasil Thu, 07 Jan 2021 20:03:21 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3388 A Vacina para a Covid-19 e a Regulação de Riscos no Brasil[1]

 Por César Mattos

Nunca estivemos tão atentos a um processo de autorização de vacinas e medicamentos na Anvisa como no caso da prevenção à Covid-19.

Os últimos lances deste drama estão ocorrendo no processo de autorização das vacinas da Pfizer[2], Coronavac e Astrazeneca. No caso da Pfizer, a empresa alega que a Anvisa está demandando requisitos mais rigorosos que seus congêneres americano, europeu e britânico, para os quais já foi concedida a autorização, tendo, inclusive, iniciado a imunização. O Instituto Butantan, que está produzindo a Coronavac, a “vacina chinesa”, anunciou que iria começar a vacinar em janeiro de 2021, mesmo sem a autorização da Anvisa[3]. Já a Astrazeneca, com a chamada “vacina de Oxford”, já conseguiu a aprovação no Reino Unido e, tendo parceria com a Fiocruz, está com perspectiva de apresentar documentos para autorização à Anvisa em janeiro. A agência reguladora já sinalizou até 10 dias para a aprovação[4] após protocolo, apesar de o ministro da Saúde ter falado de 60 dias[5].

O ponto que desejamos desenvolver aqui diz respeito aos trade-offs ou escolhas feitas pela agência nas análises de medicamentos e vacinas e suas implicações para o bem-estar social. Primeiro, por que se requer a intervenção de uma agência reguladora para autorizar ou não a aplicação de uma vacina? A necessidade de intervenção do Estado aqui é evidente pela elevada assimetria de informação do consumidor de produtos de saúde em relação à sua eficácia e segurança, uma falha de mercado a ser corrigida por um órgão sanitário, no caso do Brasil, a Anvisa. A questão aqui qual o grau de exigência sobre os testes e estudos sobre a eficácia e segurança dos produtos realizados pelas empresas farmacêuticas deve ser exigido pelo regulador?

A partir da década de 60, os países passaram a ser mais rigorosos nos requisitos de segurança. Nos EUA, em 1962, as Emendas Kefauver-Harris ao Federal Food, Drug and Cosmestic Act fortaleceram os requisitos de segurança em razão da tragédia da talidomida que resultou no nascimento de crianças com malformações em virtude de ingestão durante a gravidez. Vários países desenvolvidos também adotaram regulações similares. Isso implicou aumento substancial dos custos de desenvolvimento de vacinas e medicamentos. Não à toa o assustador tamanho das bulas nos capítulos sobre “efeitos adversos”.

Se, de um lado, este aumento no rigor dos testes levou a uma maior garantia para os pacientes sobre a eficácia e os riscos de efeitos adversos, também aumentou muito o período requerido de estudos e testes, adiando significativamente o tempo para que as pessoas pudessem usufruir dos benefícios de vacinas e medicamentos. Ou seja, há um “custo da espera” que pode ser muito caro quando há mortes decorrentes da doença que se pretende tratar com medicamentos ou prevenir com vacinas como na Covid-19.

O World Economic Forum[6] publicou um artigo em junho de 2020 mostrando o tempo médio atual de desenvolvimento de uma vacina em cinco estágios[7]. São entre 2 e 5 anos só para a pesquisa de descoberta, 2 anos para testes pré-clínicos, entre 1 e 2 anos para saber se a vacina é segura, 2 a 3 anos para saber se ela ativa uma resposta imune no corpo humano, 2 a 4 anos para saber se ela protege mesmo o corpo da doença e, enfim, entre 1 e 2 anos para a aprovação regulatória. São pelo menos 10 anos de desenvolvimento com um custo médio de US$ 500 milhões em que se parte de cerca de 100 vacinas potenciais para se chegar a apenas uma efetiva.

O fato é que desde a década de 90 as principais agências sanitárias no mundo começaram um movimento inverso ao da época da talidomida, passando a considerar o “custo da espera” em que se aguarda para disponibilizar uma vacina ou remédio em função do elevado rigor dos requisitos dos reguladores. Em função desse custo, houve pressão sobre a Food and Drugs Administration americana (FDA) para acelerar a autorização do coquetel de medicamentos antirretrovirais da AIDS na década de 90 e que acabou por ser autorizado com substanciais atalhos na via crucis burocrática usual. Como o “custo da espera” estava muito evidente pela quantidade de pessoas morrendo, a aceleração da autorização se tornou inevitável.

Em 1997, o FDA Modernization Act de 1997 criou um Fast Track para medicamentos “cuja intenção seja o tratamento de uma condição séria e que ameaça a vida”, o que claramente tinha sido o caso dos antirretrovirais. Isto reduziu o tempo de desenvolvimento em cerca de 2,5 anos. A União Europeia também introduziu procedimentos Fast-Track quando os benefícios esperados compensam os riscos e pacientes precisam ter acesso mais rápido ao medicamento devido a uma “necessidade médica não preenchida de outra forma”. A aprovação será condicional, tornando-se definitiva após mais estudos.

O dilema da agência reguladora pode ser compreendido como uma escolha entre as probabilidades de dois tipos de erros que ocorrem quando se desacelera (acelera) o processo de autorização, sendo mais (menos) rigoroso nos testes exigidos para a autorização de um medicamento ou vacina.

O erro tipo I ocorre quando o regulador é muito rigoroso, fazendo atrasar o cronograma de liberação do medicamento ou vacina. Pessoas que ficam doentes ou mesmo morrem e que poderiam ter sido imunizadas (curadas ou com sintomas atenuados) pela liberação mais tempestiva de uma vacina (um remédio) são custos associados a este erro.

O erro tipo II ocorre quando o regulador é menos rigoroso, tornando mais célere o cronograma de liberação do medicamento ou vacina. Envolve não apenas a probabilidade de constatar a não eficácia da vacina ex-post, mas também efeitos adversos. Estes últimos podem ocorrer em um prazo maior e apenas serem identificados com mais tempo de pesquisa. Por exemplo, no caso da vacina contra a dengue[8], pesquisas pós autorização indicaram que os pacientes sem histórico de infecção podiam desenvolver quadros mais graves se tomassem a vacina. Isso limitou a aplicação da vacina apenas àqueles que já tiveram a doença.

O quadro a seguir resume o dilema decisório da Anvisa.

Quadro I – Balanço de “Tipos de Erros” no Rigor da Anvisa no Processo de Autorização

Efetividade e Segurança da Vacina ou Medicamento
Vacina ou medicamento é eficaz e seguro Vacina ou medicamento NÃO é eficaz e seguro
Rigor da Anvisa no Processo de Autorização Menor Decisão correta Erro tipo II
Maior Erro tipo I Decisão correta

Elaboração própria.

 

O problema é que toda vez que se procura diminuir a probabilidade de um dos tipos de erros, aumenta-se a probabilidade do outro tipo de erro. É um trade-off ou uma escolha que se faz ex-ante com base na informação disponível. É possível que se constatem custos significativos gerados pela realização de qualquer um desses erros ex-post. Assim, é possível que uma vacina da Covid-19 gere problemas de saúde até agora não detectados? Claro que sim. E esta probabilidade é tanto maior quanto menor o tempo de testagem da vacina.

No caso da imunização contra a Covid-19, assim como em qualquer pandemia, o “custo da espera” decorrente do erro tipo I é simplesmente gigantesco, devendo ser medido não apenas nas pessoas que ficarão doentes e eventualmente morrerão, mas também no elevado custo econômico que a quarentena tem gerado e que se torna exponencial com o alongamento da crise sanitária na presente segunda onda do vírus.

De outro lado, a probabilidade de erro tipo II não é pequena. Se o tempo de desenvolvimento destas vacinas da Covid-19 foi reduzido da média de 10 anos para menos de um ano, é evidente que o risco de efeitos adversos também é mais elevado. A não ser que tenha havido um salto gigantesco na tecnologia de testagem das novas vacinas, este risco não é desprezível. No caso da vacina da Pfizer, em meados de dezembro de 2020 se detectaram casos de reações alérgicas graves à vacina[9], mas sem mortes. Isto levou os reguladores de EUA e Reino Unido a indicarem para os pacientes com histórico de grave reação alérgica a medicamentos e alimentos não tomar a vacina. Este custo associado ao erro tipo II, no entanto, parece pequeno relativamente à eficácia deste imunizante que chegou a 95%.

Baseado em uma avaliação custo/benefício de que, na epidemia da Covid-19, o erro tipo I é mais relevante que o erro tipo II, o Brasil criou dois importantes instrumentos: I)a Lei 14.006, de 28 de maio de 2020 permitiu uma autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde, sem registro na Anvisa, mas considerados essenciais na pandemia do coronavírus, desde que registrados por pelo menos uma das seguintes autoridades sanitárias estrangeiras: Food and Drug Administration (FDA) americana, European Medicines Agency (EMA), Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (PMDA) britânica e a National Medical Products Administration (NMPA) chinesa e ; II) o Guia 42/2020 da Anvisa sobre os requisitos mínimos para submissão de solicitação de autorização temporária de uso emergencial, em caráter experimental, de vacinas Covid-19[10], para acelerar as autorizações.

Note-se que esta aceleração do processo de autorização do Guia 42/2020 para a Covid-19 não implicou a Anvisa abrir mão da análise da vacina. Como destacado no Guia, o órgão regulador fará, ainda que de forma muito expedita, uma análise custo/benefício que tem por base o reconhecimento da matriz de erros do quadro I, considerando “os dados apresentados, a população-alvo, as características do produto, os resultados dos estudos pré-clínicos e clínicos e a totalidade das evidências científicas disponíveis relevantes para o produto, ou seja, os resultados provisórios de um ou mais ensaios clínicos que atendam aos critérios de eficácia e segurança para o uso pretendido, devendo os benefícios da vacina superar seus riscos, de forma clara e convincente”.

Mais do que isso, o Guia 42/2020 requer que a empresa farmacêutica fará uma “avaliação contínua de seus benefícios e riscos em manter o uso da vacina na condição de uma autorização temporária e emergencial” e terá “um plano adequado para a coleta de dados de segurança entre indivíduos vacinados sob a referida autorização”. Ou seja, a eventual detecção de um erro tipo II deve ser realizada o mais rápido possível, minimizando os custos associados.

O risco e incerteza, por sua própria natureza, são relacionados à ansiedade e ao medo, com elevada carga emocional que detona uma reação de irracionalidade na avaliação do público e dos políticos em relação às ações dos reguladores quando a percepção (e não obrigatoriamente a sua realização) de qualquer um desses erros acontece. Na área da saúde esta reação é particularmente exacerbada, havendo sempre uma grande necessidade de encontrar culpados pela realização destes riscos, especialmente em um quadro de excessiva politização da vacina como no caso do Brasil da Covid-19.

Pode-se simplesmente alcunhar o regulador de incompetente por não ter sido capaz de prever tudo que iria acontecer. Ou seja, o público e, principalmente, os políticos têm a expectativa de um regulador “deus ex machina”, infalível, desconsiderando a existência (e inevitabilidade) de ocorrer pelo menos um dos dois tipos de erros, o que acaba por comprometer a decisão acertada ex-ante. A ciência não dá respostas 100% confiáveis, especialmente com tão pouco tempo como no caso presente das vacinas para a Covid-19.

Se, de um lado, o regulador não tiver qualquer rigor na aprovação de vacinas e medicamentos, corre um grande risco de incorrer no erro tipo II, aprovando um produto sem efeito e/ou com substanciais efeitos colaterais negativos. De outro lado, se o regulador desejar prevenir todo efeito adverso, ele demorará demais em aprovar medicamentos ou vacinas e incorrerá no erro tipo I. Não há como e nem é desejável prevenir todo efeito adverso sob pena de aumentar demasiadamente o “custo da espera”, o que é especialmente válido na pandemia que vivemos.

O comportamento do regulador em relação aos dois tipos de erros em seu processo decisório depende bastante também do quanto o efeito de cada um deles é mais visível para a sociedade. O viés do regulador será maior na direção de evitar aquele erro cujos efeitos aparecem mais, que não obrigatoriamente são os que apresentam a pior combinação de probabilidade de ocorrer X consequências negativas.

Podemos afirmar que erros tipo II, em grande parte dos casos, têm maior visibilidade quando se realizam. Isso gera um viés ex-ante do lado de evitar erros tipo II. Já no caso atual das vacinas para a Covid-19, o erro tipo I adquiriu uma visibilidade incomum dado i) ser uma pandemia, ii) um número de mortes alto[11], iii) um delongado período com medidas de distanciamento social em que se constata uma segunda onda do vírus e iv) vários países já iniciaram a vacinação.

O fato é que a existência de vieses decorre muito fortemente do grau de visibilidade das consequências dos erros, em uma típica aplicação de economia comportamental, o que está longe de ser uma característica apenas brasileira. E isso decorre de dois fatores. Primeiro, a “vaidade burocrática” do regulador faz com que este possa estar mais preocupado com a sua reputação evitando os erros mais visíveis do que a maior proteção à saúde da população.

O segundo fator é, de longe, o mais relevante. Diz respeito à capacidade do regulador de se proteger da acusação de que teve culpa nas consequências negativas geradas em alguma decisão, especialmente frente a órgãos de controle. Conforme Black (2010)[12], o Better Regulation Commission – BRC- (2008) britânico destaca que “a natureza do “jogo de acusação” torna os reguladores excessivamente avessos ao risco, sendo que os incentivos são viesados no sentido de prevenir todo o risco possível. O BRC reporta que a grande parte dos servidores ingleses contatados foram céticos de que, em uma inquirição por um órgão de controle, eles poderiam contar com a defesa de que “naquele momento parecia um risco gerenciável e eu decidi tomá-lo”.

Este tem sido um problema dramático para os gestores do Poder Executivo brasileiro em sua relação com os órgãos de controle, Tribunal de Contas da União, Ministérios Públicos Federal e Estaduais, Controladoria Geral da União ou mesmo direto no Judiciário.

A despeito da percepção do erro tipo I ter ficado muito aguçada na Covid-19, é plausível que o custo percebido pelo erro tipo II para o regulador frente ao órgão de controle continue maior que o custo percebido pelo erro tipo I, mesmo com as consequências para a população sendo tão severas neste último.

Vamos considerar apenas os efeitos da vacina sobre o número de mortes para exemplificar como isso pode funcionar. Suponha que se estime que possa ocorrer um efeito adverso grave pela vacina que cause a morte em uma pequena parcela dos vacinados, digamos 70 pessoas[13]. Suponha que se estima que se a Anvisa tivesse aguardado mais um ano de testes, antes de autorizar a vacina, este problema poderia ter sido identificado e prevenido.

Agora suponha que se estime que adiantar a autorização da vacina antes de concluídos estes testes por um ano evite um número de mortes de cerca de 70 mil pessoas por Covid-19. Apesar das dificuldades éticas em comparar a vida de indivíduos, é razoável postular que, com os dados ex-ante, a antecipação da autorização, com a estimativa de 70 mil pessoas salvas, compense a estimativa de morte de 70 pessoas por efeitos adversos. Daí que a antecipação seria a decisão correta ex-ante, buscando evitar um erro tipo I, ainda que haja também um erro tipo II, só que com consequências bem menos desastrosas.

No entanto, se houver percepção dos reguladores da Anvisa que os órgãos de controle poderão responsabilizá-los por aquelas 70 mortes em função da antecipação, independente dos 70 mil salvos, pode haver um viés convencional de evitar a ocorrência do erro tipo II, mesmo à custa do erro tipo I.

Mais do que isso, estimativas podem estar erradas. Se o número de mortos pelos efeitos adversos acabar sendo bem maior, por exemplo, gerando 1000 mortos, a possibilidade de responsabilização pelos órgãos de controle aumenta. Torna-se mais plausível que os órgãos de controle entendam, com base em um número de mortos pelos efeitos adversos maior, que os reguladores da Anvisa poderiam sim ter previsto que a probabilidade de efeitos adversos era, na realidade, maior. Como não se vê o número de pessoas salvas com a antecipação, os órgãos de controle podem também ex-post questionar a estimativa ex-ante de 70 mil salvos.

Ademais, de um lado, com a decisão da antecipação, as 70 vítimas dos efeitos adversos são identificáveis, têm um nome, família conhecida. As 70 mil vidas poupadas são uma estimativa, sendo todas anônimas. Ninguém sabe a princípio quem seriam elas, nem elas próprias. Sendo assim, é plausível que os órgãos de controle responsabilizarão os reguladores pelas 70 ou 1000 vítimas dos efeitos adversos. Quanto maior o número de fatalidades com os efeitos adversos, maior a possibilidade de contestação de uma antecipação da autorização da vacina.

De outro lado, é possível também que se a Anvisa atrasar a antecipação também haja reação dos órgãos de controle. Nesse caso, o regulador fica na tradicional sinuca de bico: se avançar o bicho pega e se ficar o bicho come. A questão é qual o risco maior para o regulador da Anvisa frente aos órgãos de controle, as vítimas dos efeitos adversos com a antecipação ou as vítimas da Covid-19 com a postergação da antecipação?

A visão convencional é que os órgãos de controle não devem punir a Anvisa por seguir os protocolos burocráticos estabelecidos, mas terão um espaço maior para questionamento com novidades como é o caso de uma antecipação de autorização de uma vacina ou mais vacinas com menos de um ano de testes. Especialmente considerando que este tipo de contestação será realizada mais tarde, fora do atual calor do momento da “segunda onda”, quando tudo parece valer a pena pela imunização à Covid-19, a sensibilidade do órgão de controle para os trade-offs erro tipo I x erro tipo II, se torna menor. Mais uma vez, isto pode gerar um viés na direção de aceitar mais o risco do erro tipo I e menos o risco do erro tipo II. E isto independe das reais consequências de cada um destes erros sobre a saúde e bem-estar da população.

Este problema ficou popularizado no Brasil como o “apagão das canetas” em que há várias situações em que o regulador opta por burocratizar/dificultar a atividade econômica do privado visando reduzir ao máximo a probabilidade do erro tipo II, o que eleva a probabilidade do erro tipo I.

O rigor a mais que as farmacêuticas estão indicando nas demandas da Anvisa sobre os estudos e testes das vacinas, ainda que com um procedimento extraordinário como o Guia 42/2020, pode ser um reflexo deste problema.

E este balanço equivocado também se aplica a outras áreas da política pública como no licenciamento ambiental, por exemplo: é melhor para o burocrata ser excessivamente rigoroso e atrasar obras de enorme impacto social (gerando erro tipo I) do que arriscar que alguma contingência que realize um erro tipo II gere uma contestação de um órgão de controle que implique um processo que o comprometa financeiramente. De fato, o que mais se ouve no Poder Executivo federal com o “apagão das canetas” é “no meu CPF, nem pensar”.

Mudanças recentes na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Decreto-Lei nº 4.657, de 1942, procedidas pela Lei nº 13.655, de 2018, constituíram um grande avanço e podem mitigar este problema de desvalorização do erro tipo I. O novo art. 28, por exemplo, restringiu os casos em que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas apenas para os casos de dolo ou erro grosseiro. Isso afasta, em tese, o caso em que o burocrata do órgão de controle simplesmente discorda da avaliação ex-ante do regulador sobre o balanço de erros tipo I e tipo II com base na realização do erro tipo II ex-post e insiste em responsabilizá-lo.

Outra mudança relevante ocorreu no art. 20 do Decreto-Lei nº 4.657, de 1942, em que se determinou que cabe decidir com base nas consequências práticas da decisão e não em valores jurídicos abstratos sem vínculo com o mundo real, o chamado “consequencialismo” bastante advogado na disciplina de “Direito e Economia”. É fundamental que os órgãos de controle considerem que a aplicação relevante destes dispositivos deve ser realizada com base nos dados e análises à disposição do regulador ex-ante, ou seja, no momento da decisão.

Não é claro ainda se estas inovações “pegaram” ou não nos órgãos de controle, remanescendo o medo e, portanto, o viés favorável dos reguladores a enfatizar o erro tipo II, com todo o seu custo em termos de erro tipo I ou o “custo da espera”. Na terrível pandemia da Covid-19, a aplicação destes dispositivos poderá representar muitas mortes a menos.

 

César Mattos é doutor em Economia e consultor da Câmara dos Deputados.

[1] Agradeço a Gabrielle Troncoso da Anvisa por comentários a versões preliminares deste artigo. Erros remanescentes (tipo I e tipo II) são de minha exclusiva responsabilidade.

[2] Segundo a Pfizer (https://static.poder360.com.br/2020/12/Pfizer-uso-emergencial-Brasil-28dez2020.pdf), a Anvisa requereu “a análise dos dados levantados exclusivamente na população brasileira, sendo que “outras agências regulatórias que possuem o processo de uso emergencial analisam os dados dos estudos em sua totalidade, sem pedir um recorte para avaliação de populações específicas”. A Anvisa, por sua vez, replica que não exigiu (e não exige) estudos específicos para a população brasileira. A decisão de conduzir estudos com brasileiros teria sido da própria Pfizer (3 mil dos 44 mil voluntários eram brasileiros). O que a agência teria solicitado seria uma análise em separado dos 3 mil brasileiros, já que os testes já haviam sido realizados. Se, de um lado, não é claro como uma amostra de 3 mil voluntários brasileiros permitirá alguma inferência útil para o Brasil diferente dos 44 mil cidadãos voluntários do mundo, o atendimento da demanda da Anvisa, por sua vez, também não demandaria mais tempo ou recursos relevantes da empresa.

[3]https://www.terra.com.br/noticias/brasil/coronavac-sera-aplicada-sem-registro-da-anvisa-diz-doria,2122298ff79addd47818f462aee1a7510n3kyigq.html.

[4] https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/anvisa-vacina-coronavirus/.

[5] Se a agencia reguladora chinesa conseguir aprovar em até 3 dias, como destaca a reportagem (https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/12/14/sao-paulo-documentos-registro-coronavac-anvisa.htm), o prazo da Anvisa ficaria de 72 horas também.

[6] https://www.weforum.org/agenda/2020/06/vaccine-development-barriers-coronavirus/.

[7] No caso de medicamentos são quatro fases que estão bem resumidas no INCA https://www.inca.gov.br/pesquisa/ensaios-clinicos/fases-desenvolvimento-um-novo-medicamento.

[8] https://saude.abril.com.br/medicina/anvisa-muda-indicacao-da-vacina-contra-dengue-quem-deve-tomar-agora

[9] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55346473.

[10] https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2020/anvisa-define-requisitos-para-pedidos-de-uso-emergencial-de-vacinas/guia-uso-emergencial.pdf.

[11] No início de 2021 chegando muito próximo a 200 mil mortos no Brasil.

[12] Black,J.: “The role of risk in regulatory processes”. In Baldwin, R, Cave, M e Lodge, R.: The Oxford Handbook of Regulation. Oxford Economic Press, 2010.

[13] Note-se que, neste exemplo, trocamos as probabilidades entre os dois tipos de erros pelas consequências dos dois tipos de erros em número de mortes. Assim, em lugar do trade-off entre as probabilidades de cada tipo de erros, podemos pensar em termos do trade-off entre as consequências dos dois tipos de erros, sendo que espera-se que ambos vão ocorrer.

]]>
Legalização de jogos de azar no Brasil e sua vulnerabilidade à lavagem de dinheiro: liberalização, regulamentação ou proibição https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3381&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=legalizacao-de-jogos-de-azar-no-brasil-e-sua-vulnerabilidade-a-lavagem-de-dinheiro-liberalizacao-regulamentacao-ou-proibicao https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3381#comments Tue, 22 Dec 2020 16:08:11 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3381 Por Mauro Salvo

 

1 – Introdução

O artigo propõe analisar as possíveis vulnerabilidades que a liberalização e regulamentação dos jogos de azar traria à economia brasileira, incluindo o risco de contágio a outros setores no que diz respeito à lavagem de dinheiro. O problema está na atividade econômica de exploração das casas de apostas e seu modus operandi, que traz riscos para a sociedade e para o sistema econômico que as hospeda. A decisão sobre permitir ou proibir as apostas carece de uma análise de seus custos e benefícios em administrar os riscos inerentes ao seu funcionamento. O principal argumento contrário à legalização dos jogos de azar é a sua frequente utilização por organizações criminosas como meio para lavagem de dinheiro. Uma casa de jogos pode facilmente ser utilizada com a finalidade de dar aparência de legitimidade para recursos de origem criminosa.

Em outras palavras, quanto mais canais disponíveis para a lavagem de dinheiro, maior será o incentivo para o crime, já que é por meio dela que os criminosos viabilizam o usufruto destes recursos e reduzem a probabilidade de serem descobertos e punidos pelos seus atos. O texto explora os argumentos dos defensores da legalização (lobistas), considerados simplistas pelos críticos, pois não levam em conta a vasta gama de custos e externalidades negativas. Baseado no exposto, a abordagem julgada mais adequada é a de seleção .

A legalização dos jogos de azar é reconhecida como causadora de alguns danos à sociedade, todavia a atividade apresentou uma forte onda de legalização nos últimos 25 anos, principalmente em países em desenvolvimento, decorrente da alta demanda pelo serviço e pela renda gerada para o governo através da tributação. Outros motivos são a atração de investimentos estrangeiros e o incremento do turismo e atividades correlatas. Portanto, a legalização é facilmente defendida por ter seus benefícios facilmente quantificáveis, enquanto os contra-argumentos são dificilmente mensuráveis e têm seus custos difusos na sociedade, dado seu caráter subterrâneo (FATF Report[1], março, 2009)

Levando-se em conta as características econômicas, geográficas e culturais do Brasil seria recomendável especial atenção na regulamentação da atividade. A experiência brasileira em passado recente, e muitos casos ao redor do mundo, demonstram que a preocupação com a lavagem de dinheiro nesse setor de atividade não é mero preconceito ou apenas uma possibilidade teórica. Mesmo sendo regulamentado, manter a sua operação constitui um risco elevado. Assim, fica claro que o motivo para defender a não legalização dos jogos de azar é a sua facilitação ao crime, direta ou indiretamente.

 

2 – Base teórica

As pessoas respondem por incentivos, ou seja, tomam decisões comparando custos e benefícios, assim seu comportamento pode mudar quando esta relação se altera. Este pensamento pode ser utilizado para qualquer ação humana, inclusive para ações criminosas, visto tratar-se de atividades humanas. Gary Becker (1968), com o artigo seminal “Crime and punishment: an economic approach”, impôs um marco à abordagem sobre os determinantes da criminalidade ao desenvolver um modelo formal em que o ato criminoso decorreria de uma avaliação racional em torno dos benefícios e custos esperados nele envolvidos, comparados aos resultados da alocação do seu tempo no mercado de trabalho legal. Basicamente, a decisão de cometer ou não o crime resultaria de um processo de maximização de utilidade esperada, em que o indivíduo confrontaria, de um lado, os potenciais ganhos resultantes da ação criminosa, o valor da punição e as probabilidades de detenção e aprisionamento associadas e, de outro, o custo de oportunidade de cometer crimes, traduzido pelo salário alternativo no mercado de trabalho.

Na perspectiva da teoria econômica do crime, em sua esmagadora maioria, o criminoso é uma pessoa normal que pondera e decide dentro de uma determinada estrutura de incentivos ou condicionantes. Portanto, o evento “crime” é visto como uma decisão onde são ponderados os benefícios e os custos, e, também, como uma troca intertemporal, entre o benefício imediato e um custo provável no futuro (punição). Os benefícios consistem nos ganhos monetários e psicológicos proporcionados pelo crime. Por sua vez, os custos englobam a probabilidade de o indivíduo que comete o crime ser preso, as perdas de renda futura decorrentes do tempo em que estiver detido, os custos diretos do ato criminoso (tempo de planejamento, instrumentos etc.) e os custos associados à reprovação moral do grupo e da comunidade em que vive. Uma notação possível desta equação seria: Crime = b – p * c, onde b é o benefício do crime, p é a probabilidade de prisão e c os custos medidos pela perda de renda durante o tempo de prisão mais os custos diretos e morais.

 

3 – Lavagem de dinheiro através dos jogos de azar

Agentes que tenham obtido recursos de forma ilícita têm a necessidade de que, pelo menos, parte destes recursos seja incorporado ao mercado formal de modo a dificultar o rastreamento de sua origem criminosa e assim possa ser utilizado livremente por seus detentores. A este procedimento dá-se o nome de “lavagem de dinheiro”.

A lavagem de dinheiro pode ocorrer em qualquer setor de atividade. Todavia, há aqueles mais vulneráveis. Para que o lavador de dinheiro tenha êxito ele costuma buscar setores com características que facilitem alcançar seu objetivo. Em termos genéricos, os lavadores de dinheiro procuram setores com falhas no trinômio regulação-monitoramento/fiscalização-punição. Mais especificamente, os setores que oferecem as melhores condições para que criminosos reciclem os ativos obtidos ilegalmente apresentarão algumas (ou todas) características como: a) algum grau de informalidade; b) os preços apresentam forte oscilação (como característica inerente ao setor); c) regulamentação inexistente ou frágil; d) fiscalização inexistente ou frágil; e) difícil avaliação quanto ao preço e qualidade dos bens negociados (parâmetros subjetivos); f) difícil rastreamento; g) raras punições.

Os métodos de reciclagem de ativos e suas tipologias, em qualquer local, são fortemente influenciados pela economia, pelos mercados financeiros, e pelas políticas adotadas para combatê-los. Consequentemente, os métodos variam de lugar para lugar e ao longo do tempo.

Em relatório sobre a efetividade dos programas de PLD/CFT (Prevenção à Lavagem de Dinheiro e Combate ao Financimento do Terrorismo) o FMI apresenta as três chaves para a avaliação de risco – ameaça, vulnerabilidade e conseqüências – e suas aplicações à Lavagem de Dinheiro (LD) e Financimento do Terrorismo (. As normas internacionais de gestão de risco definem o risco como uma função da probabilidade de ocorrência e a conseqüência de eventos de risco, sendo a primeira uma função da coexistência de ameaça e vulnerabilidade. Em outras palavras, os eventos de risco ocorrem quando uma ameaça explora a vulnerabilidade. Formalmente, R, um nível de risco de LD de uma jurisdição, pode ser representado como: R = f [( T ), ( V )] x C, em que T representa “ameaça”, V representa “vulnerabilidade”, e C representa “consequência”. Assim, o nível de risco pode ser atenuado através da redução do tamanho das ameaças, vulnerabilidades, ou suas conseqüências. (FMI, 2011 pg. 64)

Quando se trata de LD, uma “ameaça” é em grande parte relacionada com a natureza e a escala da demanda potencial por LD, ou seja, o conjunto de ativos ilegalmente adquiridos que precisam ser lavados. Assim, a avaliação de risco de LD implica compreensão e geração de indicadores para os produtos do crime (POC) que são gerados ou trazidos para a jurisdição. (FMI, 2011 pg. 65)

A “Vulnerabilidade” na avaliação de risco LD ou FT engloba os produtos, serviços, canais de distribuição, bases de clientes, instituições, sistemas, estruturas e jurisdições (incluindo deficiências nos sistemas, controles ou medidas) que permitem LD ou abuso FT. Os indicadores de vulnerabilidade são numerosos, mas eles podem ser agrupados em categorias, tais como localização geográfica, serviços e produtos financeiros, os níveis de informalidade em vários setores, deficiências nos sistemas de PLD/CFT e da adequação dos controles de PLD/CFT existentes, os níveis gerais de corrupção, a eficácia das agências de aplicação da lei e do sistema de justiça criminal, e outras características da jurisdição que poderia facilitar sucesso da LD ou do FT. (FMI 2011 pg. 65-6)

As “Consequências” relacionam os resultados com a ocorrência dos eventos de risco. As consequências podem se relacionar com o custo, dano causado, ou com a significância dos resultados. De um ponto de vista, os processos de LD e FT geram dois tipos de consequências: em primeiro lugar, aqueles associados com a lavagem em si, e, em segundo lugar, os associados com o uso dos ativos, depois de terem sido lavadas com sucesso. (FMI, 2011 pg. 66)

De acordo com o Relatório do GAFI (Grupo de Ação Financeira, 2009), há uma ampla gama de fatores a incluir numa avaliação de risco para o setor de cassinos e dos jogos de azar: ambiente jurídico e regulamentar; as características da economia, bem como do próprio setor; estrutura de propriedade, integridade dos controles internos e governança corporativa das instituições de cassino/jogos, de intermediários e de negócios associados (promotores de junke, agentes, equipamentos de jogos, provedores de serviços financeiros); estrutura de propriedade ; tipos de produtos e serviços oferecidos e clientes atendidos; atividades criminosas e produtos do crime gerados domesticamente, bem como gerados no exterior, mas lavados a nível nacional.; serviços financeiros oferecidos pelas instituições de cassino/jogos e por seus intermediários. (Relatório do GAFI, 2009, p. 22)

Antes de permitir o seu funcionamento, a avaliação objetiva compreender:

– O escopo do setor de cassino: número, tipo, localização, propriedade, perfil de risco etc.

– Como os casinos são usados como intermediários financeiros.

– Casos de aplicação da lei/inteligência de como os casinos são usados para lavagem de dinheiro ou estão associados com delitos subjacentes (fraude, agiotagem etc).

– Tendências criminais ligadas aos cassinos. (Relatório do GAFI, 2009, página 23)

Os cassinos são, por definição, instituições não financeiras. Como parte de sua operação, os casinos oferecem apostas para entretenimento, mas também podem realizar várias atividades financeiras que são semelhantes às instituições financeiras, o que os coloca vulneráveis ao risco de lavagem de dinheiro. A maioria, se não todos, os cassinos realizam atividades financeiras semelhantes às instituições financeiras, incluindo: aceitar depósitos em conta; realizar troca de dinheiro; realizar transferências de dinheiro; realizar câmbio de moeda estrangeira; serviços de depósito de valores (ativos físicos); saques de cartões de débito, resgate de cheques; cofres; etc. Em muitos casos, estes serviços financeiros estão disponíveis 24 horas por dia. (Relatório do GAFI, 2009, p.25 e p. 36)

A função essencial de todos os reguladores de cassino é assegurar que o jogo seja conduzido honestamente ao aprovar as regras dos jogos e exigir dos operadores que forneçam um alto padrão de sistemas de vigilância e segurança. Isso garante a confiança do público no produto do jogo, minimiza as oportunidades de atividade criminosa e fornece certeza de fluxos de receita ao governo. A exploração de cassinos por criminosos ou via sua influência parece ser motivada tanto para lavagem de dinheiro, quanto para a recreação e em alguns casos para complementar seus empreendimentos criminosos fora do cassino. (Relatório do GAFI, 2009, p.26-7)

Todos os tipos de consequências têm direta ou indiretamente impactos financeiros, micro ou macroeconômicos, tanto no setor público quanto no privado. Portanto, é dever de todos colaborarem para a prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, visto que seus efeitos causam danos por toda a sociedade. Cabe salientar que as políticas de prevenção à lavagem de dinheiro existem não como um fim em si mesmo, mas como auxílio no combate à criminalidade. Tornar a equação do crime desfavorável aos criminosos, aumentando seus custos e a probabilidade de pegá-los, é a melhor maneira de combatê-los.

 

4 – O caso brasileiro: liberalização, regulamentação ou proibição?

De acordo com matéria publicada no sítio da ABRABINCS (http://www.abrabincs.com/#!blank/izdul) o tema há muito é controverso e mostra que os sucessivos governos demonstravam insegurança, mesmo quando favoráveis à legalização. A proibição de jogos de azar foi instituída no Governo de Eurico Gaspar Dutra através de Decreto-Lei n°. 9.215/46 que, em seu art. 1º, determinava a restauração, em todo o território nacional, da vigência do art. 50 e seus parágrafos da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei n°. 3.688/41 do Governo de Getúlio Vargas).

Em 1993 a Lei n° 8.672 com a finalidade de angariar recursos para serem utilizados no fomento da atividade desportiva, permitiu a exploração de sorteios da modalidade denominada “Bingo”. Nova redação foi dada pela Lei n° 9.615/98, revogando o instrumento anterior. Todavia, apesar da modernização das leis, os problemas continuaram.

Na própria exposição de motivos da Medida Provisória 168/2004 que proibia todas as modalidades de bingo e jogos “caça-níqueis” no Brasil – jogos também considerados de “azar” – constava como argumento para a proibição que “em torno desses estabelecimentos formou-se um círculo de sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e corrupção, a ponto de ameaçar a estabilidade institucional e gerando até mesmo reflexos nos investimentos econômicos”.

No Congresso, desde que o bingo foi proibido, deputados discutem propostas sobre o assunto. De 2004 até hoje, mais de dez projetos de lei foram criados em volta do tema, alguns a favor e outros contra a regulamentação dos jogos. Em 2011, todos eles foram unificados no PL 2.944/04, de autoria do deputado federal Valdemar Costa Neto (PR-SP), que determina a regulamentação dos jogos de bingo e das máquinas caça-níqueis no país. (BOECHAT, B. 2014)

Toda atividade econômica passa pelo “filtro” da liberalização, regulamentação ou proibição. O “filtro” que determinará se a atividade será totalmente livre, ou seja, se as relações entre ofertantes e demandantes não sofrerão qualquer intervenção estatal. Se não for o caso de liberalização total a atividade pode ser autorizada desde que respeite determinadas condições, isto é, regras para seu funcionamento que estabelecerá certos limites. No outro extremo à liberdade total está a sua proibição. O que determinará o destino da atividade econômica é o seu potencial de causar danos às partes envolvidas ou a terceiros. Como destacam Ragazzo e Ribeiro (2012):

 

Atividades que acreditamos gerar impactos negativos, que superem os possíveis benefícios (se houver), tendem a ser desestimuladas por meio de proibição. Isso se aplica a qualquer atividade que gere risco. Isso abre espaço para a implementação de uma cultura regulatória que leve a sério uma devida e criteriosa análise dos potenciais custos e benefícios associados a cada possível linha regulatória, para avaliar cada alternativa antes de se chegar a uma conclusão. (RAGAZZO e RIBEIRO, 2012, p. 629-630)

Em 2014 começou a tramitar no Senado Projeto de Lei n° 186 sobre o tema. De acordo com o projeto a justificativa para a legalização dos jogos pode ser sumarizada da seguinte forma.

 

“Em termos econômicos, além da geração (manutenção) de empregos e da maior circulação (formal) de riquezas, destacamos que a descriminalização dos jogos de azar terá como consequência o aumento das receitas públicas devido à tributação incidente sobre a atividade. Ademais, a proposição prevê a instituição, por lei complementar, de contribuição social que incidirá especificamente sobre os jogos de azar. Trata-se de criar nova fonte de custeio destinado a manter e expandir a seguridade social por meio da chamada competência residual tributária da União. Desse modo, a saúde, a previdência e a assistência social poderão contar com mais recursos, oriundos da nova atividade agora legalizada. Isso significa que, além de todos os tributos que já incidirão normalmente sobre os jogos de azar, haverá uma nova contribuição sobre a atividade, específica e exclusiva, e cuja arrecadação beneficiará um grande número de cidadãos brasileiros, em todo o País.” (PLS 186)

 

Arrecadação a qualquer custo? Melhor não.

O principal argumento para a legalização é o potencial de arrecadação de tributos, todavia existem muitas outras atividades que podem ser fomentadas com vistas ao aumento de arrecadação. É muito importante destacar que para fins de lavagem de dinheiro os criminosos estarão mais propensos a pagar tributos, pois a prioridade é reduzir a probabilidade de que as autoridades descubram a origem ilícita dos recursos. Os lavadores de dinheiro sabem que pagar impostos tende a acalmar os órgãos fiscalizadores e entendem que os tributos fazem parte inerente ao processo de reciclagem de ativos.

Os valores propagandeados na mídia como estimativas dos ganhos em termos de investimentos, arrecadação e geração de empregos aparentemente estão superestimados. Na realidade, há indícios de que se trata apenas de meros “chutes”. Em suas manifestações são citadas estimativas que variam entre R$ 20 bilhões e R$ 200 bilhões. Os defensores da legalização, quando indagados, esquivam-se e não apresentam estudos ou estimativas com o mínimo de metodologia. Oportunidades e tempo não faltaram, tendo em vista vários projetos de lei protocolados nas últimas décadas. Cabe também ponderar que juntamente com novas receitas virão novas despesas, que incluiriam, por exemplo, segurança, fiscalização e saúde pública, dentre outras, dependendo de quais modalidades de jogos serão regularizadas e como isso será feito. Não é perfeitamente claro se o impacto final no orçamento público vai ser positivo. (RAGAZZO e RIBEIRO, 2012, p. 628).

 

Não aposte na religião

O argumento de que os opositores à legalização dos casinos e jogos de azar no Brasil assim se posicionam por motivos religiosos não procede. Este argumento vem sendo repetido por décadas e todas as menções referem-se apenas a uma narrativa fantasiosa ou baseadas em boato datado da década de 1940. Porém o que temos de fato é que após seu banimento em 1946, nos curtos lapsos de tempo em que foi permitido algum tipo de jogo de azar, como por exemplo os bingos, sua relação com atividades criminosas foi instantânea. Isso levou a nova proibição muitas décadas após a não comprovada tese do tal “motivo religioso”. Ademais, se a religiosidade dos brasileiros fosse o motivo para a restrição dos jogos no Brasil, as loterias estatais não teriam tantos apostadores (que inclusive pedem aos deuses para serem agraciados com o prêmio). Aliás, o brasileiro não aposta, faz uma “fezinha”.

Quando se diz que o Brasil é o único país não muçulmano a proibir jogos de azar comete-se um grande equívoco. O relatório do GAFI, já citado, aponta numa lista não exaustiva de mais de 20 países onde os jogos não são permitidos, dentre eles, há vários não muçulmanos distribuídos pelos 5 continentes.

 

Cassinos lavam dinheiro pelo mundo afora

Mesmo dentre os países nos quais é permitido jogos de azar há que se diferenciar alguns aspectos, tais como:

  1. Permitido sem ser regulamentado
  2. Permitido com regulamentação, porém não menciona políticas de PLD-CFT
  3. Permitido com regulamentação que inclui políticas PLD-CFT
  4. Proibido

Outro aspecto importante é que há casos de lavagem de dinheiro através de casinos em muitos países (talvez todos) onde o jogo é permitido e regulamentado. Vejamos alguns casos.

Recentemente uma empresa alemã (Wirecard) lavou dinheiro para a máfia italiana num cassino em Malta, conforme matéria publicada no Financial Times[3].

Matéria publicada pela Bloomberg aborda caso de lavagem de dinheiro em Cingapura por meio de uma grande rede internacional de Cassinos, Las Vegas Sands Corp. O artigo também relata tratar-se de um contumaz reincidente[4].

O maior operador de cassinos na Austrália, The Crown, foi relacionado ao crime organizado, lavagem de dinheiro e concessão de vistos para grandes apostadores, fato que demonstrou falhas na supervisão e regulação daquele país, conforme notícias veiculadas[5].

Na França, o governo também esteve reticente em autorizar novos cassinos em Paris após a multiplicação de casos ligados a criminalidade, de acordo com o Le Parisien[6].

No Canadá uma série de reportagens investigativas da CBC News vem denunciando há mais de uma década suspeitas de lavagem de dinheiro nos cassinos[7].

Mesmo na China, onde os jogos de azar são proibidos (não consta que a China seja islâmica) pode-se encontrar fraudes para direcionar recursos para cassinos situados em outros países para fins de lavagem de dinheiro[8].

No Reino Unido reguladores dos jogos de azar estão aumentando as multas dos operadores que falham nas políticas de prevenção à lavagem dinheiro, incluindo grandes bookmakers como a Ladbrokes Coral, por exemplo. O dinheiro das multas está sendo direcionados para amenizar os danos causados pelos jogos[9]

Na Itália não há operação ou investigação contra as máfias que não contém pelo menos um capítulo dedicado à interferência criminosa na indústria de jogos e apostas. O jornal italiano Corriere dela Sera citou algumas das operações nas quais jogos de azar e máfia estavam envolvidas: Rischiatutto, Black Monkey, Clean Game, Criminal Games, Elite 12 Argo, Last Bet, Game Over.

Os EUA também não poderiam ficar de fora dos países aqui mencionados, tendo em vista que sempre são lembrados como exemplo de país onde o jogo é liberado e regulamentado. Por isso, é importante mostrar algum contraponto. Matéria publicada no Review Journal mostra caso no qual o FBI – Federal Bureau of Investigation indiciou 21 pessoas por lavagem de dinheiro num esquema que tinha como epicentro cassinos de Las Vegas[10].

A indústria de jogos dos EUA é um dos setores de negócios mais fortemente regulamentados e controlados em todo o mundo. Além das regulamentações estaduais de jogos abrangentes e rigorosas, a maioria das operações de jogos dos EUA também está sujeita aos requisitos federais de prevenção à lavagem de dinheiro (PLD). Desde 1985, os cassinos comerciais norteamericanos foram definidos como “instituições financeiras” pela Lei do Segredo Bancário (BSA – Bank Secret Act). De forma mais ampla, a BSA também exige que os cassinos formulem e implementem programas de prevenção à lavagem de dinheiro baseados em risco. (AGA-AML Best Practices Compliance 2019-2020, pp. 1-2)

Também corroboram com os argumentos pró-restrição, seja proibição ou liberalização regulamentada, da atividade de casinos no Brasil as estatísticas das unidades de inteligência financeira – UIF de vários países. Estes números mostram quantidade elevada e crescente de operações suspeitas reportadas na atividade de jogos de azar. No quadro abaixo foram selecionados 3 países de economias avançadas nos quais o jogo é permitido e regulamentado e o setor de jogos é obrigado a comunicar operações suspeitas à sua unidade de inteligência financeira para fins de combate à lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. Até mesmo nestes países o número de operações consideradas suspeitas e foram comunicadas pelos agentes do mercado à Unidade de Inteligência Financeira de cada país tem sido crescentes ano após ano.

Quantidade de Comunicações de operações suspeitas nos países selecionados

 

Turismo pode ser fomentado sem cassinos

Outro argumento em defesa da legalização é o fomento ao turismo com a possibilidade de atração de investimentos estrangeiros e consequente geração de empregos. Embora tenha fundamento deve-se considerar que o setor de turismo pode ser estimulado por muitas outras medidas, por exemplo, investimentos em infraestrutura que possuem efeito multiplicador muito maior, maior capacidade de atrair investimentos e de estímulo a outros setores da economia, maiores benefícios a toda a sociedade e geração de mais postos de trabalho. Como já mencionado na introdução deste trabalho, muitas atividades que movimentam grandes somas não são legalizadas por serem consideradas nocivas, mesmo que resultassem em elevação expressiva da arrecadação e geração de empregos. Ademais, a atividade econômica “jogos de azar” não é essencial e, portanto, a ausência de sua oferta no território nacional nada afeta o bem-estar social dos brasileiros.

 

Livre iniciativa sim, criminalidade não

O argumento de que o Brasil estaria impedindo a livre iniciativa cai por terra quando comparamos com Israel onde os jogos de azar também são proibidos. O Brasil ocupa a 144ª posição (entre 180 países) no índice de liberdade econômica (https://www.heritage.org/index/ranking) de 2020, situando-se no grupo de países majoritariamente não-livres, enquanto Israel ocupa a 26ª posição no grupo de países majoritariamente livres. Ou seja, mesmo num país com muita liberdade econômica a exploração de jogos de azar é vista como atividade cujo custo-benefício é negativo, ou no mínimo duvidoso, dados seus riscos inerentes. Com este exemplo também evapora o argumento de que somente países muçulmanos proíbem jogos de azar.

 

Já temos jogos, para que mais?

O argumento de que já existem outras loterias também deve ser relativizado, visto que são estatais. Outrossim, pode-se contra argumentar dizendo que por já existir jogos legalizados não seriam necessários outros tipos para atender à demanda. Vale ressaltar que novas loterias têm sido criadas e nem por isso a atividade ilegal foi reduzida, isso leva a crer que não há garantia de que a legalização atraísse todos para a economia formal. O fato de as loterias estarem sob controle estatal no Brasil, no que tange à lavagem de dinheiro, acrescenta uma barreira a mais visto que seria necessário haver a participação de servidores públicos em conluio com os criminosos. Ou seja, aumentaria os custos, mais um crime e o risco de ser pego. Não impede, mas dificulta.

 

Lucros privados, danos socializados

Outros dois argumentos é de que na maioria dos países os jogos são legalizados e que em outras atividades legalizadas há sonegação e lavagem de dinheiro. Nestes dois pontos convergimos para a questão chave do artigo, qual seja, o custo-benefício. Talvez as externalidades negativas sejam toleradas devido ao elevado benefício gerado para aquela economia em comparação aos custos. É uma hipótese. Outras hipóteses são o interesse de governos nas atividades criminosas, o grande poder de grupos de interesses, pode também não ter sido feita uma análise criteriosa dos possíveis danos à sociedade, entre outras. Se nem estimativas minimamente confiáveis dos ganhos seus defensores conseguiram apresentar em décadas, o que dizer de estimativas dos custos?

Por fim, o argumento de que produtos como fumo e bebidas alcoólicas são legalizados e arrecadam um enorme volume de recursos introduzem no debate um tema de extrema importância quanto ao impacto regulatório que é o dano causado e quem é a vítima. Nos casos de fumo e bebidas alcoólicas a regulamentação evoluiu no sentido de limitar o dano ao próprio agente – fumante ou bebedor. Além disso, nos casos em que o agente causar danos a terceiros, a vítima é facilmente identificada e pode ser indenizada. Quando se trata da lavagem de dinheiro através dos jogos de azar a vítima não é identificada, pois é a sociedade como um todo. Em situações como essa o recomendado é que o ônus da prevenção recaia sobre o fornecedor do produto ou serviço que está sendo utilizado para tal finalidade. RAGAZZO e RIBEIRO (2012, p. 631-3) categorizam os custos associados aos jogos em quatro grupos: crimes, doenças, falência pessoal e aspectos produtivos.

 

Seleção Adversa e regulamentação excludente

Um possível problema quando a regulamentação aumenta excessivamente os custos de sua observância é inibir o ingresso no setor de agentes honestos, promovendo uma seleção adversa. Ou seja, só são atraídos para o setor os agentes que desejam utilizar a atividade para encobertar ganhos ilícitos. Sempre que observamos a substituição dos agentes ou produtos ótimos pelos de menor qualidade em razão de uma falha de mercado (é o que ocorre com a lavagem de dinheiro) estamos diante da seleção adversa, usualmente causada pela assimetria de informação (AKERLOF, 1970).

Caso o Congresso Brasileiro opte por legalizar os jogos de azar novamente, o passo seguinte seria definir o grau de regulamentação que será aplicada ao setor. Seria importante a regulamentação considerar as características de cada jogo, tendo em mente seus eventuais problemas particulares e suas intensidades para elaborar um conjunto de normas específicas e eficazes na mitigação de possíveis danos, seja para os apostadores, seja para o funcionamento da economia, seja quanto os impactos criminais etc. A regulação é necessária para se corrigir os efeitos negativos decorrentes de falhas de mercado, como no caso de assimetria de informação entre o ofertante do jogo e o jogador.

 

Legalização como “Cavalo de Tróia”

A ideia de ver a legalização dos jogos de azar como “cavalo de Troia” remete à possibilidade de posteriormente à aprovação da liberalização abrirem-se brechas para a permissão de procedimentos mais arriscados, assim como incrementar o risco de contágio. O contágio ocorreria quando as casas de jogos fossem utilizadas para reciclar recursos de origem criminosa, causando um choque nos setores da cadeia produtiva.

A partir do momento em que se permite a inserção e manutenção de um fluxo de recursos originários do crime em setores produtivos legítimos torna-se mais difícil combater o crime antecedente. Além disso, o possível choque positivo inicial sobre emprego e renda causado pelo investimento em busca da ocultação de sua origem torna medidas de combate ao crime impopulares, visto que podem gerar desemprego e redução da atividade nos setores envolvidos quando repreendidos. Um dos setores mais preocupantes é o setor financeiro devido ao seu papel como alocador de recursos e inerente ramificação por toda a economia.

 

5- Considerações Finais

No artigo defendeu-se uma regulamentação bastante pormenorizada e específica para o setor, a fim de minimizar os riscos e reduzir sua vulnerabilidade. Todavia, não se pode negligenciar que uma regulamentação extremamente rígida normalmente eleva os custos de sua observância tanto para os agentes privados que operarão o negócio, quanto para os agentes públicos que fiscalizarão e punirão os desvios de conduta, quando houver. Há a possibilidade de que os custos da adoção de medidas de aderência inviabilizem alguns investimentos privados ou que os custos para o Erário anulem os benefícios do incremento da atividade econômica.

É importante esclarecer que caso o Brasil opte por permitir os jogos de azar novamente em seu território, especial atenção deve ser dada às vulnerabilidades do setor de ser utilizado por organizações criminosas para fins de lavagem de dinheiro e suas consequências socioeconômicas.

 

Referências

AKERLOF, George A. The Market for “Lemons”: Quality Uncertainty and the Market Mechanism. The Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, 1970.

BECKER, G. Crime and punishment: an economic approach. Journal of Political Economy. Vol. 76, 1968, pp. 175-209.

FATF/GAFI. Vulnerabilities of Casinos and Gaming Sector (March 2009). Available at http://www.fatf-gafi.org/media/fatf/documents/reports/Vulnerabilities%20of%20Casinos%20and%20Gaming%20Sector.pdf access in May 2016

IMF. Anti-Money Laundering and Combating the Financing of Terrorism (PLD/CFT) – Report on the review of the effectiveness of the program. Work Paper. May 2011.

RAGAZZO, C. E. J. e RIBEIRO, G. S. S. de A. O Dobro ou Nada: a regulação de jogos de azar. Revista Direito GV, São Paulo, B(2) p. 625-650, jul-dez 2012.

[1] Recomendo a leitura do relatório do FATF (Financial Action Task Force) sobre a vulnerabilidades do setor de jogos de azar no qual são expostos com detalhes diversos casos, tipologias e estruturas normativas em diferentes países.

[2] Junket é um grupo de jogadores que viajam para locais onde há cassinos, em outras palavras, excursão com a finalidade de apostas em casas de jogos.

[3] https://www.ft.com/content/b3eb9a37-ed8a-4218-9064-685b181740f0

[4] https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-06-04/adelson-s-singapore-casino-probed-over-money-laundering-controls

[5] https://theconversation.com/the-crown-allegations-show-the-repeated-failures-of-our-gambling-regulators-121173

[6] https://www.leparisien.fr/faits-divers/paris-renoue-avec-les-jeux-d-argent-25-04-2018-7683810.php

[7] https://www.cbc.ca/news/canada/british-columbia/organized-crime-money-laundering-vancouver-casinos-1.4158902

[8] https://www.scmp.com/abacus/culture/article/3100107/e-commerce-schemes-involving-empty-boxes-qr-codes-and-fake-tracking

[9] . https://www.caseware.com/alessa/blog/uk-gambling-watchdog-casino-fines/

[10] https://www.reviewjournal.com/crime/courts/21-charged-in-casino-based-money-laundering-scheme/ acesso em 12 de outubro de 2020.

 

 

Mauro Salvo é doutor em Economia e analista do Banco Central do Brasil

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3381 1
O projeto da nova lei de licitações que vai à sanção do Presidente da República https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3378&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-projeto-da-nova-lei-de-licitacoes-que-vai-a-sancao-do-presidente-da-republica https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3378#comments Fri, 18 Dec 2020 12:30:36 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3378 Por Francisco Eduardo Carrilho Chaves

Na condição de consultor do Senado, pudemos acompanhar a fecundação, a gestação e estamos prestes a ver o nascimento da nova lei de licitações. Ela decorrerá do pontapé inicial dado pela Comissão Temporária de Modernização da Lei de Licitações e Contratos, instituída pelo Senado Federal em 2013. Estivemos envolvidos nesse processo desde os seus estertores, acompanhando e atuando em tão importante projeto, que agora está em vias de virar lei que o Brasil inteiro utilizará.

Sem ignorar que o projeto de lei está pendente da sanção presidencial, que pode vir com vetos, visando a simplificar, lhe faremos referência já como nova lei.

Não temos ambição – nem espaço – de esmiuçar lei tão caudalosa (190 artigos) nas duas partes em que se divide este artigo. Menos ainda detalhar procedimentos. Seguiremos a ordem dos comandos para tratar de disposições julgadas essenciais e informadoras da nova lei como um todo, de modo a servir de guia àqueles que pretendam conhecê-la mais a fundo. Há respeitáveis avanços, mas a nova lei é imperfeita, como todas as leis sempre serão.

Na primeira parte, evidenciaremos das inovações mais importantes do diploma que substituirá, no curso dos dois próximos anos, a Lei 8.666/93, a Lei do Pregão e a parte atinente a licitações da Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC). Na segunda etapa, teceremos críticas quanto a constitucionalidade, juridicidade e mérito de alguns de seus comandos.

Temas que destacamos da nova lei de licitações e contratos

Comecemos pelos princípios da licitação (art. 5º), onde há significativa inovação. Acrescentam-se expressamente os princípios da eficiência, do interesse público (inclusão sujeita a certa censura, por sua vagueza e subjetividade), da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da motivação, da segregação de funções, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável. Deverão ser também seguidas as disposições da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

Quanto às fases da licitação, para todas, estabeleceu-se a inversão de fases atualmente vigentes. Apenas mediante ato motivado e desde que o edital preveja, a habilitação poderá anteceder a apresentação de propostas e lances e o julgamento (art. 17, § 1º). Será uma opção do gestor, mas que deve justificá-la.

As licitações serão realizadas, preferencialmente, sob a forma eletrônica (art. 17, § 2º). A forma presencial será admitida, desde que haja motivação. Nesse caso, a sessão será pública e gravada em áudio e vídeo, com registro em ata e juntada da gravação aos autos do processo licitatório depois de seu encerramento.

O instrumento convocatório poderá contemplar matriz de riscos entre o contratante e o contratado (caput do art. 22). É, assim, opcional. Caso seja prevista, o cálculo do valor estimado da contratação poderá considerar taxa de risco compatível com o objeto da licitação e os riscos atribuídos ao contratado, de acordo com metodologia predefinida pelo ente federado. A matriz de riscos é obrigatória nas contratações de obras e serviços de grande vulto ou quando forem adotados os regimes de contratação integrada e semi-integrada (§ 3º do art. 22).

As modalidades licitatórias serão: pregão, concorrência, concurso, leilão e diálogo competitivo (art. 28). Este último surge no momento em que se extingue o convite e a tomada de preços, e o valor estimado da contratação deixa de ser parâmetro para definir a modalidade a ser empregada.

O art. 29 trata da concorrência e do pregão, que seguirão o rito procedimental comum do art. 17. A primeira transformou-se na modalidade de licitação apta a contratar bens e serviços especiais e obras e serviços comuns e especiais de engenharia, sem limite de valor. O objeto do pregão continua sendo o mesmo da legislação atual, sendo expressamente determinado que não se aplicará às contratações de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual e de obras e serviços de engenharia, à exceção dos comuns.

Os critérios de julgamento estão alinhados no art. 33: i) menor preço; ii) maior desconto; iii) melhor técnica ou conteúdo artístico; iv) técnica e preço; v) maior lance (exclusivo para leilões); e vi) maior retorno econômico.

O § 1º do art. 36 prevê os objetos a contratar para os quais, se o estudo técnico preliminar demonstrar que a avaliação e a ponderação da qualidade técnica das propostas que superarem os requisitos mínimos estabelecidos no edital forem relevantes aos fins pretendidos pela Administração, deverá ser empregado o critério de julgamento por técnica e preço.

O § 2º do art. 37 determina que, exceto os casos de inexigibilidade de licitação, ao se promover disputa para contratar determinados serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual e cujo valor estimado da contratação seja superior a R$ 300 mil reais, utilize-se melhor técnica ou técnica e preço, na proporção de 70% de valoração da proposta técnica. Naturalmente, a regra é inaplicável a inexigibilidades.

Os serviços de que trata o parágrafo anterior são: estudos técnicos, planejamentos, projetos básicos e projetos executivos; fiscalização, supervisão e gerenciamento de obras e serviços; e controles de qualidade e tecnológico, análises, testes e ensaios de campo e laboratoriais, instrumentação e monitoramento de parâmetros específicos de obras e do meio ambiente e demais serviços de engenharia que se enquadrem na definição do inciso XVIII do caput do art. 6º.

A nova lei contém disposições setoriais específicas, para: compras, obras e serviços de engenharia, serviços em geral, locações de imóveis e licitações internacionais.

O art. 45 prevê os seguintes regimes de execução para obras e serviços de engenharia: empreitada por preço unitário, empreitada por preço global, empreitada integral, contratação por tarefa, contratação integrada, contratação semi-integrada e fornecimento e prestação de serviço associado.

O § 1º do art. 45 veda a realização de obras e serviços de engenharia sem projeto executivo, proibição que pode ser ressalvada em obras e serviços comuns de engenharia para os quais estudo técnico preliminar demonstrar a inexistência de prejuízos para aferição dos padrões de desempenho e qualidade almejados. Nessas hipóteses, será admitida a indicação da especificação do objeto apenas em termo de referência, (§ 3º do art. 18).

Nos regimes de execução empreitada por preço global, empreitada integral, contratação por tarefa, contratação integrada e contratação semi-integrada, a licitação será por preço global e se adotará sistemática de medição e pagamento associada à execução de etapas do cronograma físico-financeiro vinculadas ao cumprimento de metas de resultado, vedada a adoção de sistemática de remuneração orientada por preços unitários ou referenciada pela execução de quantidades de itens unitários (§ 9º do art. 45).

Exceto pelas contratações destinadas a viabilizar projetos de ciência, tecnologia e inovação e de ensino técnico ou superior, não poderão ser utilizados os regimes integrado e semi-integrado para obra, serviço e fornecimento cujo valor seja superior ao que autoriza contratações de parcerias público-privadas, da Lei 11.079/2004 (§§ 7º e 8º do art. 45).

Para as licitações de serviços em geral, foram acrescidos princípios específicos (art. 46): da padronização, considerada a compatibilidade de especificações estéticas, técnicas ou de desempenho; do parcelamento, quando for tecnicamente viável e economicamente vantajoso; e da vedação à caracterização exclusiva do objeto como fornecimento de mão de obra.

Ainda quanto aos serviços em geral, quando o objeto da contratação puder ser executado de forma concorrente e simultânea por mais de um contratado e a múltipla execução for conveniente para atender à Administração, ela poderá contratar mais de uma empresa ou instituição para executar o mesmo serviço, mediante justificativa expressa e desde que a contratação não implique perda de economia de escala, (art. 48).

O art. 49 determina que nas contratações de serviços com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, o contratado deverá apresentar, quando solicitado pela Administração, sob pena de multa, comprovação do cumprimento das obrigações trabalhistas e com o FGTS em relação aos empregados diretamente envolvidos na execução do contrato.

Voltamos a comentar regras genericamente aplicáveis falando do edital e de sua divulgação. Há determinação expressa de que o órgão de assessoramento jurídico da Administração faça controle prévio de legalidade do processo licitatório (art. 52), mediante análise jurídica da contratação. O parecer jurídico deverá ser redigido em linguagem simples e compreensível, de forma clara e objetiva, devendo apreciar o processo licitatório conforme critérios objetivos prévios de atribuição de prioridade, tratando de todos os elementos indispensáveis à contratação e expor os pressupostos de fato e de direito levados em consideração na análise jurídica. O mesmo ocorrerá com contratações diretas, acordos, termos de cooperação, convênios, ajustes, adesões a atas de registro de preços, outros instrumentos congêneres e de seus termos aditivos.

A conclusão do parecer deve ser apartada da fundamentação, ter uniformidade com os seus entendimentos prévios, ser apresentada em tópicos, com orientações específicas para cada recomendação, a fim de permitir à autoridade consulente sua fácil compreensão e atendimento, e, se constatada ilegalidade, apresentar posicionamento conclusivo quanto à impossibilidade de continuidade da contratação nos termos analisados, com sugestão de medidas que possam ser adotadas para adequá-la à legislação aplicável (art. 52, § 1º).

O parecer jurídico que desaprovar a continuidade da contratação pode ser rejeitado. Contudo, essa rejeição compete exclusivamente à autoridade máxima do órgão ou entidade, que deve motivá-la. Nesse caso, essa autoridade passará a responder pessoal e exclusivamente pelas irregularidades que, em razão desse fato, lhe forem eventualmente imputadas (art. 52, § 2º).

O parecerista será civil e regressivamente responsável quando agir com dolo ou fraude na elaboração do documento (§ 6º do art. 52).

Infelizmente, demonstrando o grande poder dos jornais impressos que remanesce sobre o meio político, na undécima hora, voltou ao texto disposição anacrônica em tempos de Internet que havia sido retirada pela Câmara dos Deputados: a obrigatoriedade de publicação de extrato do edital no Diário Oficial da União, do estado, do DF ou do município, ou, no caso de consórcio público, do ente de maior nível entre eles, bem como em jornal diário de grande circulação (§ 3º do art. 53). Cabe outra severa admoestação ao comando, de ordem técnico-jurídica: não há hierarquia entre entes federados. Portanto, no caso de consórcio público, será incabível definir o diário oficial em que se fará a publicação.

Pelo § 3º do art. 53, serão cogentes também a divulgação e a manutenção do inteiro teor do edital e de seus anexos à disposição do público no ora criado Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), sendo facultativa a divulgação adicional em sítio eletrônico oficial do ente federativo do órgão ou entidade responsável pela licitação ou, no caso de consórcio público, do ente de maior nível entre eles. Repetiu-se o equívoco.

No que se refere à apresentação de propostas e lances, o modo de disputa poderá ser, isolada ou conjuntamente, aberto ou fechado, como ocorre hoje no RDC (art. 55). Quando forem adotados os critérios de julgamento de menor preço ou de maior desconto, não poderá ser empregado isoladamente o modo de disputa fechado (§ 1º). Por sua vez, é vedado utilizar o modo de disputa aberto quando o critério adotado for de julgamento de técnica e preço (§ 2º).

Na apresentação da proposta, poderá ser exigido recolhimento de garantia de até 1% do valor estimado da contratação como requisito da pré-habilitação (art. 57). No RDC há regra similar no julgamento pela maior oferta de preço, como requisito de habilitação, no patamar de 5% do valor ofertado.

Também vinda do RDC é a permissão de que a Administração negocie condições mais vantajosas com o primeiro colocado (art. 60), agora generalizada.

Das hipóteses de licitação dispensável, registramos o significativo acréscimo dos limites máximos para contratação direta por baixo valor (incisos I e II do art. 74). Os limites duplicam para consórcios públicos ou autarquia ou fundação qualificadas como agências executivas. Já hoje, a maioria das aquisições feitas pelo governo federal se dá sem licitação. Com a alteração, espera-se que as contratações diretas representem ainda mais.

Pelo § 3º do art. 74, as contratações por baixo valor serão preferencialmente precedidas por divulgação em sítio eletrônico oficial, pelo prazo mínimo de 3 dias úteis, de aviso com a especificação do objeto pretendido e com a manifestação de interesse da Administração em obter propostas adicionais de eventuais interessados, devendo ser selecionada a proposta mais vantajosa. O comando nos parece positivo, mas ainda assim é confuso. Propostas adicionais a quê? Já haveria proposta de um potencial fornecedor? Não há clareza quanto a isso.

Na forma do novo § 4º do art. 74, as contratações por baixo valor serão preferencialmente pagas por meio de cartão de pagamento, cujo extrato deverá ser divulgado e mantido à disposição do público no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP).

No inciso VIII do art. 74, que permite a dispensa de licitação nos casos de emergência ou calamidade pública, foi vedada não apenas a prorrogação dos respectivos contratos, como também a recontratação de empresa já contratada com base no disposto no inciso. Esta última mudança merece elogio. Anota-se que a recontratação proibida é pelo uso da dispensa por emergência. Não se impedirá a recontratação caso a empresa, por exemplo, sagre-se vencedora da licitação que suceder o momento emergencial.

A Administração poderá se servir dos seguintes procedimentos auxiliares (art. 77): credenciamento, pré-qualificação, procedimento de manifestação de interesse (PMI), sistema de registro de preços e registro cadastral. A incorporação do PMI ao marco legal das licitações é a maior novidade, mas há inovações em todos os procedimentos, notadamente no registro de preços.

A lei trouxe uma positiva inovação, ao nosso ver: a possibilidade de restrição de PMI a startups, assim considerados os microempreendedores individuais, as microempresas e as empresas de pequeno porte, de natureza emergente e com grande potencial, que se dediquem à pesquisa, desenvolvimento e implementação de novos produtos ou serviços baseados em soluções tecnológicas inovadoras que possam causar alto impacto (art. 80, § 4º).

No que é afeto ao sistema de registro de preços, ainda que não seja a única inovação na matéria, salientamos que se previu, conforme dispuser o regulamento, sua utilização também nas hipóteses de inexigibilidade e dispensa de licitação, para a aquisição de bens ou contratação de serviços por mais de um órgão ou entidade (art. 81, § 6º).

Destacamos também quanto a esse procedimento auxiliar as limitações às aquisições ou contratações adicionais, de que tratam os §§ 4º e 5º do art. 85. A trava do § 5º foi excepcionada para a adesão à ata de registro de preços gerenciada pelo Ministério da Saúde (§ 7º do art. 85). Inseriu-se, por fim, vedação à adesão, por órgãos da Administração Pública federal, à ata de registro de preços gerenciada por órgão ou entidade estadual, distrital e municipal (§ 8º do art. 85).

O capítulo pertinente às garantias (arts. 95 a 1010) trouxe alterações dignas de nota. Por exemplo, há previsão expressa de que, na hipótese de suspensão do contrato por ordem ou inadimplemento da Administração, o contratado fique desobrigado de renovar a garantia ou endossar a apólice de seguro até a ordem de reinício da execução ou adimplemento pela Administração (§ 2º do art. 95).

Como regra geral, foi estabelecido o patamar máximo de 5% do valor inicial do contrato para as garantias em contratações de obras, serviços e fornecimento de bens. O mesmo previsto no art. 56, § 2º, da Lei 8.666/1993. Contudo, o percentual pode chegar a 10%, desde que se justifique por meio de análise da complexidade técnica e dos riscos envolvidos (art. 97, caput).

Sobrelevamos o seguro-garantia, cujo objetivo é garantir o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelo contratado perante a Administração, inclusive as multas, os prejuízos e as indenizações decorrentes de inadimplemento (art. 96, caput). Ele será prestado anteriormente à assinatura do contrato, resguardado o prazo mínimo de 1 mês da data da homologação da licitação (art. 95, § 3º). Previu-se, ainda, que o prazo de vigência da apólice será igual ou superior ao prazo estabelecido no contrato principal e que ele continuará em vigor mesmo se o prêmio não tiver sido pago pelo contratado nas datas convencionadas (art. 96, I e II).

Nas contratações de obras e serviços de engenharia, o edital poderá exigir a prestação da garantia na modalidade seguro-garantia e prever cláusula de retomada, que é a obrigação de a seguradora, em caso de inadimplemento pelo contratado, assumir a execução e concluir o objeto do contrato (art. 101). Se a obra ou serviço de engenharia for de grande vulto, e exigido o uso do seguro-garantia, que poderá prever também cláusula de retomada, o percentual máximo passa para até 30% do valor inicial do contrato (art. 98).

Esta solução é um arremedo do recentemente tão louvado performance bond norte-americano, uma tentativa efetiva de emplacar algo parecido. A concepção de que a adoção do performance bond afastaria a corrupção e a possibilidade de paralisação de obras possui uma série de imprecisões e inconsistências. Nutrimos fundadas dúvidas quanto à sua efetividade para o aumento da segurança conferida à Administração Pública na contratação, bem como receamos que as medidas tenham como único e real efeito a elevação do custo de formalização do seguro – e, por consequência, da contratação como um todo –, tendo em vista que a seguradora incorrerá em maior risco durante a execução do contrato. Questionamos a efetividade, a razoabilidade e a proporcionalidade da medida.

Sobre o tema, indicamos a leitura do Texto para Discussão 206 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal – Reformulação da Lei de Licitações e Contratações Públicas: fragilidades na proposta de uso de seguro-garantia como instrumento anticorrupção, de autoria do consultor Cesar van der Laan (https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td206).

Ademais, em inúmeras situações, é o próprio poder público quem causa ou concorre para a paralisação de uma obra ou serviço, dando azo ao emprego do princípio venire contra factum proprium. A seguradora pode se recusar a honrar o seguro, até porque ele se presta, lembramos, a garantir o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelo contratado (art. 6º, LIV).

Temos reservas quanto à visão extremamente otimista que se têm em relação ao seguro-garantia desenhado na nova lei, alertando para que atrasos em obras também passam por desacordos comerciais envolvendo questões controversas em que não há como atribuir, de antemão, a responsabilidade exclusivamente ao contratado – como demonstram as inúmeras desavenças que acabam em discussões prolongadas no Judiciário. Isso obsta que se atribua certeza de que o seguro-garantia tenha um papel realmente amplo, pois não cobrirá esses riscos, tão comuns nas grandes obras públicas brasileiras.

Não podemos olvidar do fato de que a garantia obrigatória do valor do contrato por seguro não motiva uma companhia seguradora a fiscalizar mais ou menos uma obra. O seu lucro não depende disso. Importa-lhe a precificação do risco, feita no momento da contratação do seguro. Existe evidente conflito de interesse na relação entre a companhia seguradora e o ente público, que impõe restrição relevante ao desempenho da seguradora como interveniente nas contratações públicas. Isso porque seu faturamento é função direta do preço do contrato a ser segurado. Qual o incentivo teria a seguradora para fiscalizar superfaturamentos?

Não menos relevante é questionar por que se defende tanto o emprego do seguro-garantia no âmbito das obras públicas, se o seu uso não é generalizado em contratações de obras no setor privado?

Sublinhamos também que seguradora não é empreiteira. Dificilmente terá interesse em assumir uma obra (step in rights) – sequer é habilitada para isso – ou administrar sua execução por um subcontratado. Como a possibilidade do sinistro foi precificado lá atrás, quando da contratação do seguro, a seguradora simplesmente deseja pagar o prêmio avençado e seguir sua vida, cumprindo seus fins sociais, entre os quais, certamente, não está edificar obras civis.

Seguro-garantia não é vacina anticorrupção.

Para concluir o tema, não basta a lei querer que, em caso de descumprimento do contrato pelo contratado, a seguradora se sub-rogue nos direitos e obrigações. Os efeitos podem ser absolutamente contrários aos objetivados pela norma. Estamos em um Estado Democrático de Direito. Não é despropositado imaginar que, simplesmente, nenhuma seguradora oferte o produto, por desinteresse ou pela impossibilidade de dar as garantias exigidas pela legislação que rege o mercado de seguros.

Quanto ao Capítulo V, relativo à duração dos contratos, foi estatuída expressamente a exigência de inclusão da despesa no Plano Plurianual quando o contrato ultrapassar um exercício financeiro (art. 104).

O art. 105 autoriza a Administração a celebrar contratos com prazo de até 5 anos, com observância de diretrizes alinhavadas na lei, para serviços e fornecimentos contínuos, no qual se incluem aluguel de equipamentos e utilização de programas de informática. Outros contratos também poderão ter duração mais elástica.

Ainda em se tratando de contratos de serviços e fornecimentos contínuos, estes poderão ser prorrogados sucessivamente, respeitada a vigência máxima decenal (art. 106). Para tanto, exige-se previsão no edital e que a autoridade competente ateste que as condições e os preços permanecem vantajosos para a Administração. Permite-se a negociação com o contratado ou a extinção contratual sem ônus para qualquer das partes.

Os contratos que geram receita e os de eficiência que geram economia (art. 109, I), sem investimento, e certas avenças que envolvem tecnologia, defesa nacional e insumos estratégicos (art. 107) passíveis de advirem de contratações diretas (licitação dispensável), poderão ter duração prevista de até 10 anos.

Por sua vez, os contratos que geram receita e os de eficiência que geram economia, mas que demandam investimento, poderão ser firmados pelo prazo limite de 35 anos, nos contratos com investimento (art. 109, II).

Outra excepcionalidade em prazos contratuais é o de operação continuada de sistemas estruturantes de tecnologia da informação, que poderão ter vigência máxima de 15 anos (art. 113).

Sobre a execução dos contratos, evidenciamos a criação de contas vinculadas a despesas de obras. A expedição da ordem de serviço para execução de cada etapa de uma obra será obrigatoriamente precedida de depósito em conta vinculada dos recursos financeiros necessários para custear as despesas correspondentes à etapa a ser executada (art. 114, 2º). Os valores depositados nessas contas são absolutamente impenhoráveis (art. 114, § 3º).

Damos destaque a outra disposição relativa à execução de contratos de obras, que busca mitigar o problema das obras paradas. Trata-se do § 6º do art. 114, pelo qual, em caso de impedimento, ordem de paralisação ou suspensão do contrato, por mais de 1 mês, a Administração deverá divulgar, em sítio eletrônico oficial e em placa a ser afixada em local da obra de fácil visualização pelos cidadãos, aviso público de obra paralisada, com o motivo e o responsável da inexecução temporária do objeto do contrato e a data prevista para o reinício da sua execução.

Criou-se um capítulo inteiro na lei para disciplinar alteração de contratos e preços (arts. 123 a 135), merecedor de atenta leitura. O mesmo ocorre com o disciplinamento da extinção dos contratos (arts. 136 a 138). A lei não emprega mais o termo “rescisão”. Em seu lugar, utiliza-se “extinção”.

Importante contribuição é a nova lei de licitações e contratos prever expressamente o uso de meios alternativos de resolução de conflitos (arts. 150 a 153), objetivando evitar demandas judiciais intermináveis e deletérias aos interesses tanto da Administração quanto do contratado.

A nova lei prediz a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica, inexistente na Lei 8.666/1993. Observados o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia, o art. 159 a autoriza sempre que a pessoa jurídica for utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos na nova lei, bem como quando empregada para provocar confusão patrimonial.

Entendemos que a intenção do legislador foi de que, em qualquer caso, todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica serão estendidos aos seus administradores e sócios com poderes de administração, à pessoa jurídica sucessora ou à empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado. Fazemos esta observação porque a redação pode ser interpretada de outra forma. Vejamos:

Art. 159. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, e, nesse caso, todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica serão estendidos aos seus administradores e sócios com poderes de administração, à pessoa jurídica sucessora ou à empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado, observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia.

O trecho “para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, e, nesse caso, todos os efeitos das sanções” é, no mínimo, dúbio, para não dizer indicador de que apenas na hipótese de confusão patrimonial todos os efeitos das sanções somente serão aplicados aos referidos em sequência. Alvitramos que em lugar de “e, nesse caso,” deveria estar escrito, p.e., “de forma a que”. Esperemos pelo que dirão os tribunais.

O capítulo exclusivamente dedicado às impugnações, pedidos de esclarecimento e recursos abrange os arts. 163 a 167.

Quanto ao controle das contratações (Capítulo III), comentamos a definição na lei de três linhas de defesa da legalidade e eficiência, imbuídas de verificar o emprego de práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo (art. 168).

Das disposições gerais, conferimos importância especial à criação do PNCP, já referenciado no artigo. Trata-se de sítio eletrônico destinado à divulgação centralizada e obrigatória dos atos exigidos pela lei e à realização facultativa das contratações pelos órgãos e entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todos os entes federativos (art. 173, I e II).

O PNCP será gerido pelo Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas, que será presidido por representante indicado pelo Presidente da República e por representantes dos entes federativos.

Dentre as informações que deverão constar no PNCP, estão as seguintes: a) planos de contratação anuais; b) catálogos eletrônicos de padronização; c) editais de credenciamento e de pré-qualificação, avisos de contratação direta e editais de licitação e seus respectivos anexos; d) atas de registro de preços; e) contratos e termos aditivos; f) notas fiscais eletrônicas, quando for o caso.

O art. 174 prevê, ainda, que os entes federativos poderão instituir sítio eletrônico oficial para a divulgação complementar e realização de suas respectivas contratações.

Dispositivos da nova lei em que se identificam inconstitucionalidades ou injuridicidades

Continuamos a apresentação da nova lei de licitações nesta terceira parte, dedicada a alertar para vícios de constitucionalidade e juridicidade que identificamos.

Há pontos merecedores de severas críticas, como quando promove inconstitucionais delegações legislativas externas, reiteradamente condenadas pela jurisprudência do STF, terceirizando totalmente a competência para legislar. P.e., isso ocorre em repetição ao se transferir para o indefinido “regulamento” regras de natureza tipicamente legal. Registra-se que o profícuo e minudente artigo dedicado às definições de termos utilizados na lei (art. 6º) pecou ao não definir o regulamento.

O hermeneuta cuidadoso perceberá as várias acepções possíveis para “regulamento”, não obstante o legislador haver “autorizado” estados, DF e municípios a aplicar os regulamentos editados pela União para execução da lei (art. 187), e indicado aos entes federados que, ao regulamentá-la, preferencialmente, editem apenas um ato normativo (art. 188). Incabível tal autorização na lei federal, já que o poder de decisão na matéria decorre da administrativa de estados, DF e municípios, bem como a lei não se presta a fazer recomendação ou sugestão. Um dos atributos da norma legal é a coercitividade. O art. 188 não a possui. Além disso, os comandos parecem ignorar a existência das competências legislativas específicas dos membros da Federação em licitações e contratos, inclusive a da própria União, que a ela se limita.

Assim, em vez de caracterizar descentralização e busca de flexibilidade diante das particularidades de cada ente federado, dando-lhes condições de enfrentar com maior efetividade questões idiossincráticas que variam em um país de dimensões continentais como o nosso, o comissionamento de competência para regulamento(s) – que a lei sequer especifica – acarreta insegurança jurídica e potencializa uma miríade de interpretações sobre sua natureza jurídica e autoridades ou órgãos autorizados a editá-los.

Há outros dispositivos que transbordam o âmbito das normas gerais de licitação e contratação, ferindo a autonomia administrativa e a acima citada competência legislativa específica dos entes subnacionais. Em vários momentos, a lei ambiciona determinar-lhes o agir em temas desse jaez, atribuindo ao nível federal editar normas infralegais a serem seguidas por todos.

A primeira crítica vem do final da lei: a vacatio legis. Poderia se prever um prazo dilatado, mas os arts. 190 e 191 criaram uma regra híbrida. Os arts. 89 a 108 da Lei 8.666/1993 – que tratam de crimes e penas, nem assim do processo e do procedimento judicial – serão revogados na data de publicação da nova lei (art. 190, I). Em redação que nos leva a pensar em conflito com o inciso I, o inciso II do art. 190 determina que “a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47 da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei”. Nesses 2 anos, a Administração indicará no edital por quais leis licitará, sendo vedado aplicá-las combinadamente (art. 191, § 2º).

A nova lei não veda a que órgãos e entidades decidam caso a caso qual lei será aplicada em uma outra contratação. Vislumbramos situações de confusão administrativa, em que um mesmo setor gestor – assim como os licitantes – terão de lidar com dois marcos legais simultaneamente. Potencializa-se a ocorrência de erros, que podem resultar em prejuízos significativos, além de disputas jurídicas.

Censuramos também o § 4º do art. 1º, pela retrocitada delegação legislativa externa. A prática condenável não é inovação, contudo. Contratações relativas à gestão das reservas internacionais do País serão disciplinadas integralmente em ato normativo do Bacen. Uma verdadeira carta em branco. Vão-se os anéis… e os dedos. É inequívoco que o legislador está abrindo mão de legislar. Quando o constituinte atribuiu à União a competência privativa para legislar do art. 22, XVII, deu ao Congresso, e a mais ninguém, essa atribuição. O Bacen não a possui. O legislador ordinário não tem o poder de terceirizar a competência, ainda mais de forma completa como fez. Sequer se deu ao trabalho de prescrever mínimos parâmetros e regras. Adverte-se que impor “observância dos princípios estabelecidos no caput do art. 37” da CF não é exercer a competência de legislar na matéria, dado ser regra antes posta pelo constituinte e de inafastável aplicação pela Administração, seja o legislador infraconstitucional, seja o administrador. Optou-se pela única escolha que não poderia ser feita: legislar por não legislar, que difere de simplesmente deixar de legislar.

Os incisos do art. 3º vão na mesma linha, indicando determinadas situações jurídicas que não se subordinarão ao regime da futura lei, que deveria entregar bem mais do que isso. Conforme dissemos, o legislador ordinário não pode redefinir a competência legislativa firmada pelo constituinte, mas, se pudesse, não bastaria dizer que a lei não se aplicaria a contratos do tipo X ou Y. Deveriam ser decretadas as normas que se aplicariam a tais contratos. Ora, trata-se da lei geral. Surpreendentemente, além de inconstitucional, s.m.j., a lei promove anomia. Nesse caso, o legislador está abrindo mão de sua competência legislativa. E não há quem possa cumprir esse papel por ele de forma hígida.

Compreendemos que operações de crédito externas não devam ser feitas por meio de licitação, pela sua singularidade. Seria de certa forma incoerente, v.g., o Banco Mundial “vender” crédito. Pode-se advogar pelo não cabimento de licitação ou, talvez, que seja desinteressante, mas isso não retira tais operações do âmbito das licitações e contratos da administração pública. Seria, então, caso de se definir inexigibilidade ou dispensa. A saída poderia ser incluir a situação específica nos artigos correspondentes a uma ou outra forma de contratação direta, mas não abrir mão da competência de legislar. Convém que se faça análise mais apurada frente à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), cujos arts. 32 a 40 tratam das operações de crédito.

O inciso II do art. 3º traz clara incoerência conceitual. A lei veicula normas gerais para licitações e contratos, às quais, por óbvio, devem se submeter todas as normas específicas em seu campo de abrangência. O raciocínio é cartesiano: a lei específica deve seguir a lei geral, podendo adicionar peculiaridades. Contudo, define-se que na hipótese de haver legislação específica (própria), a lei geral não se aplicará. Verdadeira esquizofrenia legislativa.

O art. 4º define que sobre as licitações e contratos regidos pela lei incidirão os arts. 42 a 49 do Estatuto da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, a Lei Complementar 123/2006. O § 1º do artigo exclui dessa incidência duas hipóteses legais (incisos I e II). Por seu turno, o § 2º condiciona a “obtenção dos benefícios do caput” e o § 3º define parâmetros para aplicação dos dois parágrafos que o antecedem.

O caput do art. 4º é injurídico, pois não inova no ordenamento. É insuspeito que, diante da alínea d do inciso III do art. 146 da Lei Maior, pelo qual cabe à lei complementar definir tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, e da existência do Estatuto, os arts. 42 a 49 deste último são aplicáveis.

Avaliamos que, não obstante regras gerais de licitações e contratos sejam matéria de lei ordinária, não incumbe a esta revogar ou derrogar disposições aplicáveis às compras públicas em prol de determinado setor preconizadas pelo constituinte e criadas pelo legislador infraconstitucional em diploma de quórum qualificado. A Constituição não limitou o alcance das prerrogativas que poderiam ser concebidas, logo a lei ordinária não pode se arvorar a fazê-lo.

Constatamos uma passagem digna de nota nas regras atinentes ao edital. No § 5º do art. 25, os senhores deputados acrescentaram à redação originária do Senado a possibilidade de o edital prever a responsabilidade do contratado de realizar desapropriação autorizada pelo poder público. Ora, desapropriação é exercício de poder de polícia, privativo do Estado e indelegável. Como, à exceção deste ponto, a redação da Câmara aprimorou a inicialmente aprovada pelos senadores, não seria interessante recuperar essa última. A saída encontrada foi aprovar uma emenda de redação que dividia em duas alíneas as responsabilidades atribuíveis ao contratado. Assim, abriu-se a possibilidade de o presidente da República opor veto jurídico apenas em relação à alínea que trata da desapropriação. Ao que tudo indica, houve entendimento com o Executivo. Recursos da lógica legislativa.

Cremos que as regras de margens de preferência (art. 26) também possuem inconstitucionalidades. A primeira é de que, para determinados bens e serviços, a margem de preferência será definida pelo Executivo federal. Entendemos que se está subjugando outros poderes e membros da Federação à vontade do Executivo da União. No mínimo, viola-se a autonomia dos entes federados.

Além disso, os estados poderão estabelecer margem de preferência de até 10% para bens manufaturados nacionais produzidos em seu território. Os municípios poderão fazer mesmo em relação aos produzidos no estado em que estejam situados. Não para aí. Os municípios com até 50 mil habitantes poderão estabelecer outra margem de preferência de até 10% para empresas neles sediadas. Há jurisprudência consolidada do STF considerando o favorecimento em licitações de empresas sediadas no ente federado comprador incompatível com o art. 19, III, da Carta de 1988. Ademais, as sucessivas imposições de margens de preferência levarão a distorções absurdas, que materialmente impedirão a disputa, especialmente em mercados extremamente competitivos, nos quais os preços são muito próximos.

No que tange aos diálogos competitivos, o inciso XII do § 1º do art. 32 autoriza que o órgão de controle externo os acompanhe e monitore, opinando, no prazo máximo de 40 dias úteis, sobre a legalidade, a legitimidade e a economicidade da licitação, antes da celebração do contrato. O comando é despiciendo, dado que a competência para o órgão de controle externo exercer suas funções decorre do texto constitucional. Na matéria, o tribunal de contas já poderia atuar e não opina, decide. Outrossim, é incabível estabelecer em lei prazo para que o órgão exerça competência recebida da Constituição, quando ela própria fez tal imposição ou atribuiu à lei defini-lo.

Ademais, não há coerência em o Tribunal de Contas ter a faculdade de acompanhar e monitorar os diálogos competitivos e, ao mesmo tempo, obrigação de opinar em determinado prazo. Se cabe a ele escolher se acompanha e monitora ou não, natural que seja de seu exclusivo alvedrio opinar ou não.

O art. 66 versa sobre a documentação relativa à qualificação técnico-profissional e técnico-operacional. Identificamos um problema no seu § 12, pelo qual na documentação referente à apresentação de profissional detentor de atestado de responsabilidade técnica por execução de obra ou serviço de características semelhantes, para fins de contratação (tratada no inciso I do caput do artigo) não serão admitidos atestados de responsabilidade técnica de profissionais que tenham dado causa à aplicação das sanções de impedimento de licitar e contratar ou de declaração de inidoneidade para licitar ou contratar, em decorrência de orientação proposta, de prescrição técnica ou de qualquer ato profissional de sua responsabilidade.

Por não haver limitação temporal, algo como: “enquanto estiverem em vigor as sanções”, o texto prescreve uma penalidade de caráter perpétuo para o profissional, o que é vedado pela nossa Constituição. Pior ainda pelo fato de que o objetivo é afastar da disputa uma empresa que apresente profissional com esse tipo de problema. As empresas estarão sempre atentas quanto a este fato e nunca contratarão profissional que, em algum momento, tenha sofrido tais apenações. Ao fim e ao cabo, será apenas o profissional que estará permanentemente impedido de trabalhar em obras contratadas pelo poder público, pois nenhuma empresa o arregimentará. Há fundadas razões para acreditarmos que o dispositivo será contestado nos tribunais.

No campo das contratações diretas, somos obrigados a abrir parênteses para comentar sobre tema abordado em artigo de nossa autoria publicado em maio de 2020[2].

São inúmeros os casos de contratações diretas “autorizadas” em leis e que não se confundem nem com as situações previstas na atual nem na nova Lei de Licitações, e que, de fato, representam inconstitucionalidades. Não é desígnio deste artigo discutir o tema, motivo pelo qual apenas damos notícia, resumidamente, de opções legislativas que descumprem a Carta Política quando autorizam órgãos ou entidades governamentais a contratar diretamente, sem licitação, pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública que atuam em regime concorrencial para fornecer bens ou serviços que igualmente poderiam ser fornecidos pela iniciativa privada. Algumas leis chegam a violar o princípio da impessoalidade, pois não se limitam a definir hipóteses às quais devem se subsumir eventuais estatais beneficiárias das escolhas do legislador, mas chegam ao ponto de nominar os contemplados com as benesses. Individualização por razão social e CNPJ mesmo. Também se vulneram os princípios da isonomia e da moralidade, bem como o art. 37, XXI, c/c o art. 173, § 1º, III, e § 2º, da Constituição. São inúmeros os casos em que se franqueiam contratações diretas, por exemplo, de Petrobras, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, para citar apenas algumas das maiores estatais.

Da nova lei, enfatizamos preceito inspirado no inciso VIII do art. 24 da Lei 8.666/1993, reeditado com pequenas adaptações no inciso IX do art. 74 da nova lei. Ambos, de acordo com o que defendemos, em interpretação conforme a Constituição, abrigam potencial inconstitucionalidade caso sejam utilizados para contratar sem licitação estatais que desempenham atividade econômica em regime de concorrência de mercado.

A excepcionalidade somente poderia ser utilizada para aquisição de bens produzidos ou serviços prestados por entidade que não se enquadre no art. 173, § 1º, da Lei Maior. Para as estatais exercentes de atividade econômica em regime concorrencial aplica-se a regra do § 2º do art. 173 da CF, não podendo elas gozar de privilégios fiscais não extensivos às empresas do setor privado. Privilégios fiscais são benesses na relação com o Estado, não se resumindo a regalias de natureza tributária. Ora, uma empresa ter a possibilidade de ser contratada sem licitação é um imenso privilégio de natureza fiscal. Qual empresa do setor privado não gostaria de desfrutar dessa prerrogativa na comercialização de seus produtos ou serviços?

Outro dispositivo da nova lei sujeito a reprimenda é o parágrafo único do art. 158, que conduz a significativas dúvidas interpretativas e abarca possíveis violações da competência constitucionalmente definida para o Tribunal de Contas competente e do princípio federativo.

O parágrafo permite que, na hipótese de haver celebração de acordo de leniência, os particulares participantes do acordo poderão se ver isentos de sanções impostas por tribunal de contas – previstas na lei respectiva orgânica –, caso este se manifeste favoravelmente.

A primeira questão a obstar a aprovação do dispositivo é a violação do princípio federativo. As sanções administrativas impostas pelos tribunais de contas são dispostas em legislações próprias dos respectivos entes federados, não em legislação nacional editada pelo Congresso Nacional. No âmbito do Direito Administrativo, a autonomia dos entes federados somente é mitigada em situações expressamente previstas na Constituição Federal, e não se trata de uma dessas excepcionalidades.

Alerta-se para o fato de que uma sanção somente pode ser imposta pelo tribunal de contas mediante uma deliberação colegiada sua (normalmente denominada acórdão), e sua reforma depende do emprego dos meios recursais próprios, para os quais há prazos a respeitar, sob pena de preclusão do direito de recorrer. Vencidos os prazos, constitui-se a coisa julgada.

De toda sorte, a resposta a eventual recurso exigiria novo julgamento. Nem mesmo a lei pode violar essa regra, que visa a garantir os direitos do administrado, além de lhe conferir segurança jurídica e proteção à coisa julgada.

Mesmo que se entendesse pela possibilidade nada ortodoxa – para não dizer antijurídica – de que o Tribunal de Contas pudesse alterar um julgado seu por iniciativa própria, conforme frisamos, haveria necessidade de se formalizar a modificação por meio de um novo julgamento. Tal fato, por si só, inviabilizaria o propósito da solução rápida buscada no acordo de leniência, trazendo mais lentidão e burocracia ao processo.

Igualmente grave é não estar especificado que tipo de manifestação viria do Tribunal, dando a ideia de que poderia ser uma simples comunicação da sua Presidência, por exemplo. Essa situação abre brechas para potenciais violações da competência constitucional desses colegiados.

Ainda, não está claro se a manifestação do Tribunal seria anterior ou posterior à formalização do acordo de leniência.

A nova lei tem mais uma previsão afrontosa às competências dos tribunais de contas. O § 1º do art. 171, determina que o tribunal de contas, ao suspender cautelarmente processo licitatório, deverá se pronunciar definitivamente sobre o mérito da irregularidade que deu causa à suspensão no prazo de 25 dias úteis, prorrogável por igual período uma única vez. A fixação de prazo para o exercício de competências constitucionalmente asseguradas aos tribunais de contas viola a autonomia desses órgãos. Quando o constituinte quis definir o prazo para a atuação das casas de contas – bem como de outros órgãos ou poderes –, o fez diretamente na norma matriz. Não cabe à lei, a nosso ver, limitá-lo.

A bem da verdade, todo o Capítulo III – Do Controle das Contratações (arts. 168 a 172) é inconstitucional. A matéria a que se dedica é, de fato, fiscalização financeira da administração, para a qual se exige lei complementar (art. 163, V, da CF).

A inconstitucionalidade das disposições é ainda mais flagrante pelo intento de disciplinar também a conduta de tribunais de contas das demais unidades da Federação. O art. 171 pretende dirigir o exercício das competências constitucionais das cortes de contas e o art. 172 invade suas competências de se auto-organizar, que extraem dos arts. 73 e 96 da Lex Magna.

A criação do PNCP igualmente suscita contestações. Apesar de reconhecermos a aptidão que o Portal terá de facilitar o acesso às informações sobre as contratações públicas, registramos a possibilidade de questionarem sua constitucionalidade, diante do caráter impositivo da participação dos demais entes da Federação, que indica afronta às suas autonomias.

Ressaltamos, contudo, que cadastros nacionais de natureza semelhante já foram criados, a exemplo do Cadastro Nacional de Empresas Punidas – CNEP e do Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas – CEIS, previstos, respectivamente, nos arts. 22 e 23 da Lei 12.846/2013.

Mesma pecha recai sobre o art. 179, que impõe a todos os entes federativos instituir centrais de compras, com o objetivo de realizar compras em grande escala, para atender a diversos órgãos e entidades sob sua competência e atingir as finalidades da nova lei.

Encerramos o artigo na esperança de haver contribuído para que se comece a entender melhor o novo marco geral de licitações e contratos, diploma que, se tomarmos por exemplo sua antecessora Lei 8.666/1993, será objeto de trabalho de gestores, empreendedores e agentes de controle por muitos anos.

[1] Não é de agora que a matriz de riscos está na legislação. A Lei 13.190/2015, fruto da conversão da MPV 678/2015, a reconheceu como instrumento para estimar o valor da contratação de obra. O mesmo diploma introduziu o mecanismo de arbitragem para resolução de disputas no âmbito das contratações públicas, com o intuito de reduzir o tempo de paralisação das obras públicas.

[2] Texto para Discussão 278 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal – Contratação direta, sem licitação, de estatais que atuam em regime concorrencial: uma prática inconstitucional? (https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td278).

Francisco Eduardo Carrilho Chaves é advogado, engenheiro, consultor legislativo do Senado Federal, ex-auditor do TCU, autor do livro Controle Externo da Gestão Pública: a fiscalização pelo Legislativo e pelos tribunais de contas, com especializações em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e pela Fundação Escola do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3378 1
Financiando a Recuperação : A Reforma da Lei de Falências https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3374&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=financiando-a-recuperacao-a-reforma-da-lei-de-falencias Wed, 25 Nov 2020 13:51:50 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3374 Por Jairo Saddi 

É da maior relevância o Projeto de Lei n. 4458/2020, que foi aprovado na Câmara dos Deputados e seguiu para o Senado Federal, e que trata da reforma da Lei de Falências, Lei n. 11.101/2005. Entre as matérias de inovação legislativa está a concessão de financiamento às empresas que estejam em recuperação judicial.

Já se disse que uma empresa em recuperação é exatamente igual a uma empresa em funcionamento normal: ela compra, necessita de estoques, tem o seu giro e também precisa de caixa. Portanto, para que o princípio maior da Lei seja cumprido e a empresa se recupere, são fundamentais a existência de capital de giro e a continuidade do crédito. Atualmente, o cenário é muito diferente. O que se sabe é que qualquer empresa em recuperação judicial é obrigada a pagar praticamente tudo antecipadamente, de maneira que seu crédito se evapora no momento em que ajuíza o pedido de recuperação. 

Há justificativas para tanto. Por ordem do concurso de credores, ainda que sejam pagamentos extraconcursais, a prática do mercado entende que há um risco maior de inadimplência. Daí, praticamente inexistir crédito para empresas em recuperação.

O PL, portanto, avança no sentido de alterar a ordem de pagamento dos créditos que hoje está nos Art. 83 e 84 da atual Lei, criando um novo artigo, o Art. 69, e especialmente uma autorização a este financiamento no Art. 69-B. Nesse sentido, a natureza extraconcursal do financiamento passa a ter prioridade absoluta no seu pagamento. Ou seja, é uma tentativa de suprir a possível falta de caixa e de liquidez para fazer frente a despesas correntes como pagamento de fornecedores, salários, despesas administrativas, produção etc. com uma linha específica de crédito.

Esse mecanismo é denominado Debtor-in-Possession Financing (DIP) e se originou nos Estados Unidos na década de 1960. Entre nós, a Lei n. 11.101/2005 não regulou o assunto, deixando para a jurisprudência a análise individual dos conflitos lá provocados.

O assunto não é novo. Paulo Fernando Campos Salles de Toledo já indicava há tempos que “mecanismos devem ser criados para que realmente se incentive a concessão de crédito”, pois a dificuldade das recuperandas para acesso ao crédito (…) chega a impossibilitar a efetiva reorganização da empresa”. Finalmente, o projeto corrige e aperfeiçoa o mecanismo do DIP e promete novos tempos para empresas em recuperação.

O Art. 69-A e B do Projeto afirma que, durante a recuperação judicial, “o devedor poderá celebrar contratos de financiamento garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos, seus ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante, para financiar as suas atividades, as despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos” e que “até a votação do plano de recuperação judicial, o devedor poderá apresentar nos autos proposta que conterá:  I – descrição detalhada dos termos da proposta de financiamento; II – indicação dos financiadores que apresentaram proposta de financiamento;  III – indicação do devedor destinatário do financiamento;  IV – descrição das garantias com indicação de bens e direitos a serem onerados ou alienados fiduciariamente;  V – indicação do processo competitivo a ser adotado no caso de eventual proposta concorrente de financiador interessado;  VI – descrição dos benefícios do financiamento para a coletividade de credores;  VII – minuta de edital com a indicação de data, hora e local de realização de assembleia geral de credores, se houver, para deliberar sobre a proposta de financiamento a ocorrer no prazo máximo de quarenta e cinco dias da data da apresentação da proposta; e  VIII – análise da viabilidade da qual conste a estrutura financeira do financiamento, o nível máximo de alavancagem permitido e os elementos para proteção dos credores não sujeitos à recuperação judicial”.

Trata-se, portanto, de proposta de financiamento sujeita à aprovação, já que não pode caber ao administrador judicial maior endividamento da empresa.

Não é por outra razão que o parágrafo 3o do mesmo artigo permite aos credores contrários à proposta de financiamento, que corresponderem a mais de 20% do valor total de créditos sujeitos à recuperação judicial, que manifestem ao administrador judicial o interesse na realização da Assembleia Geral de Credores indicada na proposta para autorizar a contratação. Quem autoriza o endividamento extraconcursal, portanto, é a Assembleia Geral de Credores.

Neste momento, o administrador judicial apresentará ao juiz um relatório das manifestações recebidas e requererá a convocação da Assembleia apenas na hipótese de as manifestações corresponderem a mais de 20% do valor total de créditos sujeitos à recuperação judicial. Na ausência de manifestações que superem aquele percentual ou comprovada a adesão dos credores à proposta do devedor, a proposta de financiamento será considerada aprovada. Sendo aprovada, o juiz autorizará a realização da operação. 

No entanto, mediante prévia autorização judicial, o financiador poderá adiantar ao devedor até 10% do valor do financiamento indicado na proposta antes da realização da Assembleia Geral de Credores que deliberará sobre a proposta de financiamento. Esse crédito permanecerá como extraconcursal e deverá ser pago com prioridade absoluta, sendo que, na hipótese de a proposta de financiamento ser rejeitada, o devedor deverá restituir imediatamente ao financiador a quantia efetivamente recebida sem incorrer em multas e encargos decorrentes da rescisão. 

Muitos têm criticado o mecanismo e mencionam um certo condão burocrático presente nos procedimentos e o risco da incerteza jurisdicional, já que qualquer decisão cabe agravo, segundo o processo judicial.

Maria Fabiana Sant’Ana e Thomaz Sant’Ana, em preciso artigo, afirmam que a proposta não endereça “problemas e questões comuns relacionados ao financiamento de empresas em recuperação judicial, como a compatibilização da prioridade do investidor com a expectativa de recebimento dos credores concursais, a eventual reforma da decisão que autoriza o DIP Financing pelo Tribunal, o controle do uso do valor mutuado para que ele seja realmente empregado no fomento da atividade empresária, dentre outros”. 

Sugerem que o texto poderia ter “se aproveitado de previsões contidas nas legislações estrangeiras mais modernas de Direito Falimentar a fim de tornar o procedimento de concessão do DIP Financing mais ágil e mais seguro, como a lei chilena, promulgada em 2014, que possibilita a obtenção de empréstimos no valor equivalente a até 20% (vinte por cento) do passivo concursal, bem como a oneração de bens em garantia deste empréstimo até o limite de 20% (vinte por cento) do ativo contabilizado sem necessidade de qualquer autorização, tornando a efetiva tomada do financiamento algo mais prático e célere, como são as relações comerciais atuais e o cotidiano das empresas, estejam elas em crise ou não”. Citam ainda o Codice della Crisi di Impresa e dell’Insolvenza italiano, que entrou em vigor em agosto de 2020, e que “possibilita que o juiz estabeleça, de início, um valor máximo para a obtenção do DIP Financing sem necessidade de autorização específica, deixando os interessados cientes dessa possibilidade desde o início do processo de insolvência”.

O fato é que há duas opções inteiramente distintas no processo e Maria Fabiana Sant’Ana e Thomaz Sant’Ana têm certa razão na crítica. Mas legislar implica em escolhas. Há caminhos de maior liberdade ao juiz e, em oposição, maior poder à Assembleia, sob a égide da máxima de que uma empresa em recuperação deve ser gerida em nome dos credores e apenas para satisfazê-los. 

Realmente, é difícil estabelecer procedimentos que fujam de fraudes e de más intenções, o que justifica o procedimento burocrático e a exigência da aprovação em assembleia.

No entanto, sob a ótica de maior certeza ao credor – e, não por outra razão, crédito é confiança – exatamente com tais preceitos burocráticos talvez se consiga ampliar a oferta de crédito para essas empresas.

Acho, portanto, que o projeto avança, ainda que de modo imperfeito, mas certamente melhor do que o regime da regra atual, vago e sem qualquer certeza de recebimento. E não há como não negar que sem crédito, a recuperação da empresa é praticamente impossível.

Jairo Saddi é advogado em São Paulo

]]>
A Reforma Administrativa deve preceder a Reforma Tributária https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3344&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-reforma-administrativa-deve-preceder-a-reforma-tributaria Tue, 06 Oct 2020 12:50:24 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3344 A capacidade de uma sociedade de sustentar o seu Estado é o elemento básico para o estabelecimento de um adequado sistema tributário. É fundamental, portanto, definir o tamanho do Estado que se deseja, antes de desenvolver um novo arcabouço de tributos.

Qualquer coisa diferente desse princípio que se tente no presente momento tende a tornar-se mais um desgaste no já esgarçado modelo de produção brasileiro.

Objetivamente, como paliativo, é fundamental que se implante imediatamente uma simplificação tributária para poder melhorar o ambiente de negócios e que se comece a construir uma Reforma Administrativa para reduzir a dimensão do Estado brasileiro, comprovadamente maior do que a sociedade pode sustentá-lo.

Redimensionar o Estado é uma tarefa política, árdua e necessária e se baseia no princípio de que o Estado deve atuar nos espaços não ocupados pela iniciativa privada por desinteresse econômico, por medida de segurança e criação de condições para estímulos a atividades privadas, como algumas obras de infraestrutura. Os custos dessas atividades devem ser de responsabilidade da sociedade como um todo.

A título de exemplo, deveríamos ter como monopólio do Estado o exercício da justiça, a segurança pública, o ministério público, a defesa nacional, a política externa, a elaboração de leis reguladoras, algumas obras de infraestrutura para estímulo a atividades, o exercício da política econômica etc.

Atividades onde a atuação do Estado deve ter caráter corretivo por não haver interesse inicial do setor privado em atender à demanda, cabe àquele a função de reduzir as externalidades negativas e/ou estimular as externalidades positivas. Educação, saúde, infraestrutura de comunicações em alguns casos, transporte público, mobilidade urbana, através de parcerias privadas em habitação, portos, cabotagem, aeroportos, estradas, gasodutos, geração de energia etc. E, mesmo assim, nestas atividades como ajuste e participação por tempo limitado.

Em outras atividades tipicamente bem atendidas pela iniciativa privada ou, ainda que não estejam sendo atendidas em todo território nacional, não sejam essenciais para o bem-estar da população (bares, restaurantes, hotéis, comércio em geral, indústria de transformação, produção de bens e serviços em geral), a intervenção do Estado é mais custosa do que benéfica, e ele deve se manter alheio a essas atividades. Nessas atividades, a iniciativa privada tem maior eficiência e aloca melhor os recursos para atendimento adequado da demanda. 

Estes princípios simplificados deixam claro que o Estado brasileiro exacerbou suas atribuições. O uso do dinheiro público se converteu em descontrole e má gestão. O Estado brasileiro está presente de modo significativo em atividades onde sua atuação é pouco eficiente (ou quase completamente ineficiente), ou seja, com participação majoritária em empresas de comunicação, hotéis, empresa de projeto de trens (Trem Bala), refinarias, bancos, milhares de imóveis, geradoras e distribuidoras de energia elétrica, fábricas de remédios, mineradoras, entre outras muitas atividades que seriam melhor administradas pelo setor privado. 

Uma pergunta que cabe, a título de exemplo, é por que o Estado mantém ativos imobiliários sem utilidade e que geram despesas?

Estas questões demonstram ser este o melhor motivo para inibir qualquer mudança tributária sem que se realizem os ajustes pertinentes. A receita tributária significa cerca de 35% do PIB e os gastos, em condições normais, sem os efeitos da pandemia, chegam a 40% do PIB. 

A tarefa de ajuste dessa diferença é grandiosa. Para chegar ao limite de carga tributária em torno de 25%, aceitável para uma economia como a brasileira, seriam necessários 15 anos mantendo-se uma continuidade de políticas que permitissem uma redução de 1% ao ano. Alguém acredita neste ajuste em face das experiências históricas e confia que o atual governo está assumindo essa tarefa?

Essa redução de gastos passa, necessariamente, por rever e retirar privilégios das mais variadas esferas, comumente aquelas de natureza salarial e extra salarial de parte do funcionalismo público, além de rever condições de servidores públicos ativos, de forma negociada, colaborativa, gradual, mas inevitável. É possível acreditar nisso? 

Esses são os pontos de partida para que se discutam os princípios de uma Reforma Administrativa – o primeiro passo e único alicerce capaz de suportar a construção de uma engenharia tributária que não prejudique o contribuinte, aumentando a carga do Estado sobre o cidadão que trabalha, produz e consome e que com seus impostos sustenta a estrutura do Estado. É preciso ter em conta alguns pontos relevantes para entender a dificuldade de avançar numa Reforma Administrativa, senão vejamos.

  1. Teto dos Gastos Federal. Para uma redução de 1/40 avos nos gastos atuais, ou seja, uma redução de R$40 bilhões a cada ano, considerando zero de inflação e zero de crescimento do PIB, começando no primeiro ano com uma queda de R$1,6 trilhão e ir decrescendo anualmente até chegar a R$1 trilhão no 15º ano;
  2. Teto de Gastos Estadual e Municipal. A regra é semelhante, obrigando estados e municípios a acompanharem o orçamento federal. Gastos dos estados e municípios têm que ser reduzidos descontando-se os repasses recebidos e enviados, de forma a que somados, os gastos do setor público não ultrapassem 25% do PIB após 15 anos do ajuste. Esse ajuste não pode ser linear, dado que há repasses da União para estados e municípios e de estados para municípios de acordo com certas disparidades regionais. Mas as reduções de gastos de todos devem ser proporcionais a 1/40 avos da proporção do PIB local que gastam atualmente ao ano durante 15 anos;
  3. Após o ajuste de 15 anos o teto de gastos de cada nível acompanharia o crescimento da economia para manter o nível da carga tributária;
  4. Manutenção da regra de ouro de que o Governo não pode tomar créditos para pagar despesas correntes, só podendo captar para aquisição de capital incorporado ao patrimônio público;
  5. Desvinculação das Receitas dos Tributos. Saúde, segurança e educação terão metas de desempenho e não de gastos. As metas de gastos mínimos têm gerado aumento das despesas sem melhoria nos serviços. Caberia ao gestor público ser o mais eficiente possível e identificar suas prioridades de acordo com o momento e com a região. Onde o desempenho escolar está adequado e a segurança vai mal, o gestor poderia alocar recursos onde realmente precisa;
  6. Definir Meta de Resultado Nominal do PIB: em 15 anos o resultado nominal deverá ser zero, ou seja, o resultado primário deverá melhorar ano a ano a ponto de em 15 anos ser capaz de cobrir todo custo de juros do País, ou seja, servir a dívida. Como em regra geral o PIB cresce, e diante de resultados fiscais anuais neutros, a dívida pública irá sendo reduzida gradativamente;
  7. Definir redução da relação dívida/PIB até que essa proporção seja de 50% ou menos. Não há prazo para que se atinja essa meta, dado que o mais relevante é manter a trajetória da dívida em queda, o que será atingido certamente com o cumprimento das outras metas (teto de gastos, resultado nominal zero e redução de gastos contínua).  

Como fazer com que União, estados e municípios reduzam seus gastos em 15 anos?

A chamada PEC emergencial desenhada em 2019 pela equipe econômica continha várias das medidas necessárias para que, se implementadas de forma adequada e definitiva, a economia brasileira se tornasse mais robusta, crível e melhorariam o ambiente de negócios.  Os pontos principais vão a seguir.

  1. Reforço da Reforma da Previdência com previsão para aumento da idade de aposentadoria e do tempo de contribuição vinculados a mudanças demográficas (aumento da expectativa de vida);
  2. Nova rodada de Reforma Previdenciária para estados e municípios – critérios a definir, mas de forma geral acompanhar os critérios da regra geral de previdência em todos os níveis de governo – exceções de militares por serem carreira de Estado e em tese não se aposentarem no caso do exército e ajustada à expectativa de vida de policiais militares pelo risco (quando as condições de segurança melhoram e a expectativa de vida dos militares de policiais aumentam, as exigências também crescem);
  3. Vedação da criação de novas despesas obrigatórias pela União, estados ou municípios, até que os objetivos da redução dos gastos públicos sejam atendidos;
  4. Apenas 5% dos funcionários públicos poderão ser promovidos a cada ano, com exceção de promoções que impliquem alteração de atribuições e aquelas de carreira militar ou policial;
  5. Vedação da promoção por tempo de serviço;
  6. Vedação da realização de concursos e a criação de cargos públicos, assim como o reajuste de salários já existentes;
  7. Diminuição em até 25% da carga horária de funcionários públicos com consequente redução salarial, no ano subsequente ao não atingimento da meta para o período anterior, permanecendo nesses patamares até o efetivo reequilíbrio;
  8. Em havendo excesso de arrecadação ou superávit financeiro (se o dinheiro arrecadado no ano vigente for maior do que as despesas previstas para o próximo ano), o excedente será reservado para o pagamento das dívidas públicas;
  9. Vedação da ampliação e a concessão de novos benefícios tributários (diminuir impostos sobre um produto, por exemplo);
  10. Em caso de aumento da demanda por mão-de-obra, fomentar a contratação terceirizada para áreas estatais não caracterizadas como aquelas de monopólio do Estado;
  11. Instituir medidas em todas as esferas federadas, de processos de digitalização e atendimento eletrônico, diminuindo sobremaneira a burocracia e a necessidade de atendimento presencial.
  12. Observações e Ajustes Periódicos.
    1. Muitas dessas medidas já existem no art. 109 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
    2. Revisão de metas e critérios do plano a cada 15 anos, sempre por Emenda Constitucional. Caso não sejam revistas, as metas permanecem;
    3. Revisão de benefícios fiscais a cada 10 anos (quando não forem concedidos por prazo determinado) podendo ser mantidos ou finalizados;

O que fazer após metas finais atingidas?

  1. Meta de Gastos Públicos: não há limite inferior de gastos, até porque o valor proporcional a 25% do PIB pode ser maior ou menor a depender do crescimento do produto ao longo dos anos. É imperioso que o governo garanta seu bom funcionamento na manutenção das despesas que são de seu monopólio como Justiça, Segurança Pública, Defesa Nacional, Política Externa e Controle da Moeda, e cumprir seu papel subsidiário e complementar a contento em saúde, educação e habitação. Certamente, com ganhos de eficiência, 25% do PIB é suficiente para que o setor público garanta a manutenção adequada dessas despesas e ainda seja capaz de induzir os mecanismos de crescimento sendo parceiro na composição de investimentos de infraestrutura e manter um mínimo de planejamento estratégico de desenvolvimento econômico;
  2. Meta de Superávit Nominal: o superávit nominal adicional (que tende a não ser muito grande quando o governo passar a arrecadar 25% do PIB e limitar seus gastos em mesmo percentual) quando ocorrer, deve ser utilizado para um de dois fins: investimento público ou redução da dívida pública;
  3. Meta de Dívida Pública: também não há limite inferior para a Dívida Pública, mas um país de renda média como o Brasil deve garantir que a dívida líquida não ultrapasse os 50% do PIB. Não há problemas em reduzir o patamar da dívida pública para um patamar inferior, garantindo espaço para enfrentamento de eventuais crises como a atual. 

O que fazer com eventuais excedentes fiscais (eventuais superávits nominais)?

Pagamento de dívida pública até que esta atinja seu patamar de 50% do PIB e, posteriormente, criação de um Fundo Soberano cujos recursos devem ser geridos com base em um Conselho de Lideranças políticas, presidente da República, presidente do senado, presidente da Câmara e presidente do STF, contando com um representante do setor privado e um representante laboral. Estatuto do Fundo Soberano deve prever critérios de aplicação segura dos recursos (quando financeiras em moeda nacional ou estrangeira) e limites e critérios para investimento em infraestrutura, educação, saúde e segurança no Brasil, de forma a que o retorno financeiro e/ou social sejam contabilizáveis. 

Por todo o exposto, é essencial que a sociedade civil, através de suas entidades representativas, núcleos de pensamento e seus representantes, siga no diálogo direto e permanente com as mais variadas esferas públicas e privadas, visando a construção de uma Reforma Administrativa que venha trazer significativa redução das despesas estatais, concomitante a um ganho significativo de produtividade e eficiência, para que se possa, com a redução do gigantismo da máquina estatal, desenhar um arcabouço tributário adequado que sustente ao longo dos anos de forma equilibrada as funções do Estado sem inviabilizar a atividade econômica e o desenvolvimento do País.

 

 

Antonio Carlos Borges é economista e superintendente da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomércio-SP).

Fabio Pina é economista e consultor especialista em comércio e serviços.

]]>
A ordem é: Simplificação Tributária, Reforma Administrativa e só depois Reforma Tributária https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3332&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-ordem-e-simplificacao-tributaria-reforma-administrativa-e-so-depois-reforma-tributaria Fri, 25 Sep 2020 19:43:01 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3332 O sistema tributário brasileiro há muito tempo penaliza e onera o contribuinte além de comprometer o desenvolvimento econômico do país e, portanto, a sua modernização é necessária. Entretanto o contraponto ao atendimento dessa necessidade é procurar definir o tamanho do estado que é possível custar para construir o arcabouço tributário (as fontes) que dará sustentação a essa estrutura (usos). 

 

O atual sistema tributário esgotou o seu tempo de existência, pois mais de 98% das empresas do país estão sob regimes tributários especiais ou próprios como o Simples ou Lucro Presumido. Esses regimes foram sendo criados como remendos para atenuar uma carga de tributos que inviabilizaria a maioria das empresas do país. Insistir em mais improvisações ou não levar em conta este problema tentando uma reforma nos moldes do que se está estudando, só nos levará ao aumento da informalidade e do desemprego. Quando a quase totalidade das empresas do país se encontra em regime especial, é porque algo está errado e o diagnóstico do problema deveria ficar mais claro: o estado ficou grande demais e não cabe mais no PIB. Para ser séria, a solução deve começar por trazer o Estado a um tamanho ideal, aquele tamanho útil em função das necessidades sociais para cumprir suas funções sem asfixiar o setor privado. Uma reforma tributária que não leve isso em conta é uma improvisação para atender a uma situação circunstancial ampliando a desorganização do tecido econômico, aumentando o desperdício dos recursos públicos e privilegiando a ineficiência, como se vem fazendo há décadas.

 

Essa é a conclusão mais ampla que se pode tirar das PEC’s 45 e 110 e do PL 3887. Não nos devemos iludir com os poucos pontos positivos que apresentam pois são o “canto da sereia” que ilude e esconde a consequente elevação de carga tributária, pois é ingenuidade imaginar nesta altura, com contas públicas destroçadas, qualquer hipótese de manutenção da atual receita. 

 

Os projetos de reforma tributária que estão sendo discutidos sugerem períodos longos de transição, que acarretariam em maior complexidade ao sistema já burocrático. Para além disso, sua aplicação imediata é inviável e não solucionam os principais problemas, deixando de lado a avaliação de medidas que ensejariam uma simplificação imediata, através de ajustes infraconstitucionais que permitiriam: modernização, aumento de segurança jurídica e desburocratização das obrigações acessórias. As reformas propostas, no entanto, esbarram na impossibilidade política de aprovação além de inviabilizarem atividades econômicas exercidas por empresas de pequeno porte e do setor de serviços (70% da economia). Não é desejável, portanto, que sejam aprovadas as três propostas se comprovadamente impedem a recuperação das empresas, aumentam a burocracia, elevam a carga de impostos (pois não apresentam mecanismos que impeçam isso) e ainda impõem a convivência de dois regimes tributários simultâneos por longo tempo. 

 

No momento em que o país passa por uma crise sem precedentes, decorrente da pandemia que, além de refletir em implicações à saúde pública, se colocou como desafio de sobrevivência para as empresas, qualquer sinal de aumento de arrecadação deve ser imediatamente rechaçado. A taxa de desemprego do País pode ultrapassar os 20% no final de 2020 e ao mesmo tempo as empresas sofrem para se manterem operacionais. Dados do comércio varejista nacional mostram, por exemplo, que o ano pode encerrar com perdas de pelo menos R$ 115 bilhões nas vendas. No setor de Serviços a situação é ainda pior, com muitas empresas dos setores de turismo e outros serviços, totalmente fragilizadas por uma queda de demanda que beira a total paralisia das atividades. É inaceitável que em face das circunstâncias se esteja desperdiçando um precioso tempo que deveria ser utilizado para reconstruir a economia e ajudar as empresas a se recuperarem em lugar de concentrar o debate político em princípios não testados e sem o suficiente estudo de efeitos que essas medidas podem gerar. 

 

A volta do emprego e da renda só ocorrerá se as empresas se recuperarem e, por causa disso, todo o cuidado do governo deveria estar concentrado nesse tema.

 

Isso não quer dizer que não se deva fazer nada. Há boas propostas de simplificação tributária e com um potencial enorme de melhorar o sistema que aí está, sem criar incertezas ou aumento de impostos e, ao mesmo tempo, reduzir a burocracia e os custos de conformidade, aumentando a transparência e criando maior segurança jurídica ao contribuinte. Afinal, as reformas devem ser pensadas para servir ao Estado ou, para reversão dessa lógica, em prol da sociedade? O ideal, nesse momento, seria um trabalho em conjunto entre o Executivo e o Legislativo em torno de uma só proposta de simplificação tributária, que corrija as distorções do sistema, melhore o ambiente de negócios, gere empregos e promova o desenvolvimento econômico, enquanto se vai trabalhando numa reforma do Estado que reduza seu gigantismo, que é a causa original de todos os males. 

 

Nesse sentido, existem projetos disponíveis, como alguns elaborados por expoentes do meio jurídico e econômico, caso do jurista Ives Gandra Martins, presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomércio-SP, e Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal. A Entidade elaborou e entregou ao Poder Público, no último ano, 11 anteprojetos e uma Proposta de Emenda Constitucional, conforme segue:

 

  1. Compensação universal de tributos

 

No âmbito de cada ente federativo (União, Estados e municípios), será possível a compensação tributária, inclusive a contribuição patronal previdenciária. O anteprojeto altera a Lei n.º 5.172, que instituiu o Código Tributário Nacional (CTN), acrescentando o art. 156-A. A medida é objetiva e de justiça social, pois se o contribuinte deve ao Estado, tem a obrigação de pagar e vice-versa, mas tal pagamento merece ser de forma ágil, breve e eficaz.

 

  1. Equivalência entre os encargos aplicáveis às restituições e aos ressarcimentos

 

A proposta altera o CTN e busca estabelecer a igualdade tributária, prevendo a obrigatoriedade recíproca para a cobrança de tributos e o seu ressarcimento. Segundo a Fecomércio-SP, não há razão do tratamento diferenciado hoje adotado na cobrança de tributos vencidos por contribuintes e de precatórios devidos pelo Fisco. O contribuinte devedor deve arcar com multa, mora, juros e taxa Selic; e o Estado, ao efetuar pagamentos, além da demora na restituição ou ressarcimento, utiliza-se de critérios diferenciados para pagar sem aplicação dos mesmos encargos submetidos ao contribuinte. O anteprojeto não define o cálculo que deve ser utilizado, mas destaca que deve ser o mesmo usado para o Fisco e pelo contribuinte no momento do pagamento.

 

  1. Imputação de responsabilidade tributária

 

A proposta pretende criar regras sobre a imputação de responsabilidade, sem alterar as hipóteses de responsabilidade existentes no CTN. O anteprojeto acrescenta os §§ 3º e 4º ao Art. 144 do CTN para estabelecer que a imputação de responsabilidade se dê no ato do lançamento, exceto por fato desconhecido ou hipótese superveniente, e mediante notificação dé que esta imputação pode se dar posteriormente ao ato de lançamento. A medida quer assegurar os direitos do contribuinte ao contraditório, à ampla defesa e à lealdade processual.

 

  1. Critérios para retenção em malha

 

Pretende a obrigação de o Fisco informar previamente à declaração do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) os critérios para a retenção em malha. É proposto que seja acrescido ao art. 45-A do CTN a obrigatoriedade de a autoridade tributária disponibilizar as regras e instruções para a declaração de ajuste do IRPF, com os critérios que serão utilizados para o exame das declarações que poderão resultar na retenção em malha.

 

  1. Prazo máximo para solução de consultas

 

A legislação tributária confere ao contribuinte a possibilidade de formular consulta a fim de tirar dúvidas ou buscar esclarecimento sobre o pagamento dos impostos. A resposta a essa consulta deve ser em prazo razoável, pois a demora na solução da consulta do contribuinte pode ensejar o pagamento do tributo indevido ou incorreto. A proposta é no sentido de inserir na legislação tributária, no Decreto n.º 70.235/72 expressamente o prazo de 120 dias para a resposta à consulta.

 

  1. Justificação para a ineficácia de consultas e regulamentação do procedimento de consulta no caso de perda de prazo

 

Pretende inserir no arcabouço do Processo Administrativo Fiscal (PAF) (Decreto n.º 70.235/72) dispositivos que estabeleçam como proceder no caso de perda de prazo do Fisco quando da solução de consulta tributária. Inúmeras são as situações em que, em decorrência da demora da resposta a consulta, o contribuinte acabe pagando indevidamente (a maior ou a menor), com evidente prejuízo para a posterior regularização no Fisco.

 

  1. Justa causa e mandado específico nos procedimentos de fiscalização

 

Propõe o acréscimo do artigo 123-A do CTN para que o mandado de fiscalização (documento que instaura a fiscalização) tenha as seguintes informações: o objeto preciso da fiscalização, o período a que ela se refere, a indicação da autoridade tributária que determinou a fiscalização e o modo pelo qual a legitimidade do mandado poderá ser verificada. Ainda, para que o contribuinte tome conhecimento e se certifique da legítima ação fiscal que se inicia, é proposto no texto que a fiscalização tenha início após 48 horas da apresentação do mandado fiscal ao contribuinte, tudo visando à transparência da relação entre as partes.

 

  1. Limita a instituição de obrigações acessórias

 

Pretende assegurar a estabilidade normativa e a previsibilidade da ação estatal. Sendo assim, propõe que seja incluído no CTN que as obrigações acessórias somente sejam instituídas até 30 de junho do ano anterior. A medida permite ao contribuinte estabelecer um planejamento no que tange à sua atuação empresarial, além de ter tempo para se adaptar a novas obrigações acessórias.

 

  1. Vedação da utilização de certidão negativa como sanção política

 

A proposta é acrescentar ao art. 208-A do CTN que a certidão negativa de débitos fiscais não impeça que o contribuinte participe de processo licitatório aberto pelo credor. Entre as restrições que causam uma certidão negativa, a pior é a impossibilidade de participação em processo licitatório, o que, para muitos contribuintes, significa a condenação do seu negócio, pois sendo inadimplente e não podendo atuar, não pode quitar suas dívidas com fornecedores, bem como com as Fazendas públicas.

 

  1. Unificação cadastral

 

A unificação cadastral da União, de Estados, do Distrito Federal e de municípios é antiga e justa reivindicação dos contribuintes. A medida significaria mais agilidade no desempenho das funções fiscalizatórias e, ao mesmo tempo, menos burocracia ao contribuinte. A proposta é inserir essa obrigatoriedade no CTN.

 

  1. Fixar sanções ao ente federado que não consolidar anualmente sua legislação tributária

 

Com a alteração do CTN, é importante que seja fixada sanção aos Poderes Executivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios caso não editem decreto até o dia 31 de janeiro de cada ano com a consolidação da legislação tributária de sua competência. O objetivo é fixar a sanção pelo descumprimento desta obrigação que já existe no ordenamento jurídico (Art. 212 do CTN), mas é ignorada pelos chefes dos Poderes Executivos. Esse anteprojeto estabelece que o descumprimento de tal obrigação seja tipificado como crime de improbidade administrativa, por omissão.

 

  1. Vedação ao uso de medidas provisórias em matéria tributária e instituição do princípio da anterioridade plena

 

Embora a Constituição preveja que alterações na legislação tributária devem constar na Lei de Diretrizes Orçamentárias, eventuais brechas ou imprecisões propiciam a criação de tributos. Quando estabelecido por medida provisória, o novo tributo ou a alteração de um existente passa a ter efeito imediato, dificultando as atividades empresariais. A proposta, única que requer alteração constitucional, ainda prevê que, em caso de qualquer alteração na legislação tributária, seja respeitado o princípio da anterioridade plena, de modo que se propicie tempo suficiente para que os empreendedores equacionem seus negócios para suportar a carga tributária futura.

 

A proposta tem a grande vantagem de ser de aprovação e aplicação consideravelmente mais fácil do que qualquer outra que tenha que atravessar discussões constitucionais. Esse não parece ser o momento político adequado para discussões de emendas constitucionais relevantes, e, ao mesmo tempo uma resposta do Estado pode ser dada no sentido de simplificar (de fato) a vida do contribuinte. Adicione-se a isso que a adoção dos 12 pontos acima não cria períodos de transição nos quais as empresas teriam que conviver com dois regimes de escrituração e duas lógicas tributárias (e todas incertezas derivadas disso) por um longo período, sequer efetivamente sabendo qual a carga tributária que está destinada ao seu negócio. 

 

 

Antonio Carlos Borges é economista e superintendente da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomércio-SP).

Fabio Pina é economista e consultor especialista em comércio e serviços.

]]>
O combate à lavagem de dinheiro no Brasil: muito já foi feito, muito ainda por fazer https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3317&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-combate-a-lavagem-de-dinheiro-no-brasil-muito-ja-foi-feito-muito-ainda-por-fazer Mon, 31 Aug 2020 17:34:51 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3317 O que é lavagem de dinheiro

 

A lavagem de dinheiro, como é popularmente conhecida a reciclagem de ativos, existe como forma de tentar distanciar o dinheiro obtido de maneira criminosa e assim garantir que o delinquente o utilize com risco reduzido de ser descoberto e punido. Para distanciar o dinheiro de sua origem ilícita, o lavador de dinheiro tentará dissimular a origem desses recursos e ocultar o seu real beneficiário. Faz isso realizando transações comerciais e/ou financeiras que altera a forma e as características do valor original. Quanto maior o número de transações que fizer com esta finalidade mais distante estará da origem, dificultando o trabalho de rastreamento por parte das autoridades de fiscalização e investigação, o chamado “follow the money/siga o caminho do dinheiro”.

 

A Lei que trata do tema é a nº 9.613/98 com algumas alterações desde então. Esta Lei define “lavagem de dinheiro” como o ato de ocultar ou dissimular, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores proveniente, direta ou indiretamente, de infração penal. Tendo em vista tal definição, considero mais apropriado a utilização do termo “reciclagem de ativos” em vez de “lavagem de dinheiro”. Prefiro a palavra reciclagem em vez de lavagem porque remete a um processo que muda as características do objeto, porém a origem continua a mesma. O objeto não é lavado, mas sim reciclado. Adicionalmente, prefiro a palavra ativo em vez de dinheiro porque refere-se a qualquer ativo e não apenas ao dinheiro efetivo (cash). Durante a reciclagem o ativo pode assumir a forma de dinheiro vivo, imóvel, aplicação financeira, obra de arte, serviços, bens de luxo, jóias etc.

 

Vale destacar que o lavador de dinheiro pode ser o próprio delinquente que cometeu o crime gerador dos recursos ilícitos, por exemplo, um traficante de drogas, mas também pode ser alguém especializado em realizar operações de reciclagem dos ativos, como por exemplo uma instituição financeira que orienta e facilita as transações de distanciamento do dinheiro oriundo do tráfico de drogas.

 

A lógica do sistema de prevenção e combate

 

Embora a reciclagem de ativos possa ser feita em qualquer setor econômico, há alguns que são mais visados por serem vistos como mais adequados para atingir os fins propostos pelos criminosos. Por isso, a Lei estabelece setores e profissionais obrigados às exigências da referida Lei. Resumidamente, estas obrigações seriam adotar políticas de detectar transações atípicas que pudessem servir para ocultar ou dissimular recursos obtidos por atividade criminosa e, em consequência desta avaliação de atipicidade, efetuar a comunicação do fato à Unidade de Inteligência Financeira, no caso do Brasil é o COAF – Conselho de Controle da Atividade Financeira.

 

Embora qualquer setor de atividade possa ser utilizado para ocultação e dissimulação de recursos de origem criminosa, os lavadores de dinheiro preferem aqueles com falhas na tríade regulação, monitoramento/vigilância e punição, como:

a) algum grau de informalidade;

b) preços que podem flutuar significativamente;

c) regulamentos inexistentes ou fracos;

d) vigilância inexistente ou fraca;

e) dificuldade p/ avaliar preço e/ou qualidade dos bens comercializados;

f) punições raras

g) dificuldade de rastreamento

 

De posse de centenas de milhares de comunicações de transações atípicas o COAF irá agrupá-las, analisá-las e quando for o caso elaborar um RIF – Relatório de Inteligência Financeira. Este relatório será destinado a órgãos competentes destinados à investigação criminal, por exemplo, Ministério Público e Departamento de Polícia Federal, entre outros. Após investigação poderá haver pedido de indiciamento à Justiça ou não.

 

A evolução das políticas de prevenção

 

O combate à lavagem de dinheiro de maneira mais organizada iniciou-se em 1989 com a criação do Grupo de Ação Financeira (GAFI, ou FATF, sigla em inglês para Financial Action Task Force). A iniciativa partiu do G-7, grupo dos 7 países mais ricos do mundo, tendo em vista a percepção de que somente seria possível enfrentar este tipo de crime se houvesse um esforço global coordenado. O GAFI é um organismo internacional que conta com a colaboração de diversos países-membros e tem como função estudar o problema da lavagem de dinheiro e do financiamento do terrorismo no mundo para assim definir recomendações do que se entende como as melhores práticas para o combate.

 

Atualmente são 40 recomendações as quais os países signatários se comprometem a implementar em suas respectivas jurisdições. Os países ao assumirem tal compromisso ficam sujeitos à avaliação periódica por parte de equipe de técnicos do GAFI que atribuirão o nível de aderência da jurisdição às suas recomendações. A cada recomendação é atribuída um conceito que pode ser totalmente aderente, muito aderente, parcialmente aderente e não aderente. Caso a jurisdição avaliada obtenha muitos conceitos insatisfatórios poderá passar a compor uma lista de países com graves deficiências em suas políticas de prevenção à lavagem de dinheiro e ao combate do financiamento do terrorismo. Ser incluído nesta lista pode ser muito prejudicial para o país, porque acarretará dificuldades para realizar negócios com o resto do mundo e isso provavelmente trará impactos para a economia local.

 

Considera-se essencial que haja cooperação internacional para o efetivo combate à lavagem de dinheiro, por isso diversos organismos internacionais incluíram em suas recomendações o alinhamento com as políticas do GAFI. Também é muito importante que todas as jurisdições estejam niveladas do ponto de vista de aderência e efetividade de implementação. E, por fim, mas não menos importante, é que tanto as autoridades nacionais quanto o setor privado de cada jurisdição também estejam empenhados na luta contra o crime. Portanto, cooperação é a palavra-chave em todo esse processo.

 

Nota-se que há uma crescente aproximação textual das normas internacionais no campo repressivo. Além disto, a Lei Anti Lavagem de Dinheiro, no âmbito interno, continua a sua trajetória produtora de reflexos paralelos, que se somam à lenta, silenciosa e abrangente difusão de sua vertente normativa multidisciplinar. Embora o problema da lavagem de dinheiro seja global, não necessariamente haverá transferência de valores interfronteiras, podendo o processo de reciclagem de ativos acontecer sem mesmo extrapolar os limites territoriais do município. 

 

Sobretudo no campo das medidas preventivas, notadamente em áreas vinculadas ao domínio do poder econômico, incorpora-se, a cada ano, um novo conjunto de normas baixadas por meio de portarias, circulares, instruções etc, expedidas por órgãos reguladores incumbidos de fiscalizar a legalidade e o regular funcionamento das operações realizadas pelos entes que compõem os sistemas econômico e financeiro em atividade no País. 

 

Avaliação de uma jurisdição

 

Atualmente o GAFI está realizando a quarta rodada global de avaliações. Vários países já foram avaliados nesta rodada, porém o Brasil somente será avaliado em 2021. A última avaliação a que o Brasil foi submetido foi em 2010. Naquela oportunidade fomos relativamente bem avaliados, embora tivessem havido muitos apontamentos para melhorias em nossas políticas. Desde então, o Brasil implementou várias melhorias com vistas a suprir as falhas apontadas. Por outro lado, em 2012 houve alterações nas 40 recomendações que comporão a avaliação da quarta rodada e teremos que estar em conformidade com as novas proposições. 

 

Esta nova rodada de avaliação das jurisdições entre outras novidades traz o conceito e o método da Abordagem Baseada em Risco (ABR) que envolve uma avaliação nacional de risco elaborada pelas autoridades de cada país e também uma avaliação de risco de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo individual elaborada por cada entidade obrigada pela Lei 9.613/98. Na avaliação nacional de risco serão consideradas, em forma de matriz, o grau de risco multiplicado pelo seu impacto. Ou seja, cada jurisdição e agentes do setor privado obrigados irão avaliar sua exposição aos mais diversos crimes econômicos, estimar suas magnitudes e eventual dano em caso de ocorrência. No caso das pessoas obrigadas, tomemos como exemplo um banco (tendo em mente que as exigências são similares a todos os setores, ponderando seus respectivos volumes e complexidade das operações), esses terão que classificar o risco de cada cliente pessoa física e jurídica, produtos e serviços que operam com o banco, setor de atividade, volume transacionado etc. Além disso, o referido banco terá que avaliar seu risco como um todo, considerando o mercado que está inserido, o perfil geral de seus clientes, volumes transacionados e produtos ofertados. O conjunto da interação entre riscos diversos direcionará o nível de diligência e medidas de mitigação observado através de cada matriz de risco.

 

Avaliando a efetividade das políticas de prevenção

 

No momento, quando fala-se em lavagem de dinheiro, tem-se que levar em conta a efetividade das políticas de prevenção e combate, ou seja, o quanto a aderência às recomendações das melhores práticas realmente resulta em dissuasão, detecção e punição. Isso porque escândalos recentes em jurisdições avaliadas com alto grau de aderência evidenciaram não bastar ter ferramentas sofisticadas, leis, normas e treinamento dos recursos humanos se os controles internos e cooperação não forem capazes de impedir que criminosos consigam fazer uso dos recursos obtidos ilicitamente. 

 

Na próxima avaliação será considerado como o Brasil evoluiu em relação à aderência às recomendações do GAFI. Desde a última avaliação em 2010, na qual já haviam sido apontadas deficiências, houve, em 2012, atualização das recomendações. Isso implica nosso compromisso em atender às falhas apontadas e adicionalmente aplicar a nova versão. A grande novidade desta rodada de avaliações está sendo verificar a efetividade em aderir às políticas de luta contra a lavagem de dinheiro. 

 

Essa nova metodologia tem sido útil para evidenciar que não basta apenas atender ao regulamento. Mostra que a prevenção e o combate à lavagem de dinheiro envolve inteligência na busca da informação negada, processando e cruzando dados para levantar indícios e, através da troca de informações e cooperação, dar robustez às suspeitas até tornarem-se evidências. Em posse de evidências, dar prosseguimento ao devido processo e aplicação de punição dissuasiva.

 

Dificuldades para a prevenção à lavagem de dinheiro no Brasil

 

A lavagem de dinheiro ocorre porque há crimes econômicos e vivemos um momento de aumento deste tipo de crime. Associado a isso, a estrutura institucional brasileira produziu um ambiente favorável ao cometimento de delitos. Institucionalizamos a tolerância ao crime, que resulta em combate fraco, leis com pouca força e punição branda. Em suma, muitas oportunidades para atos delituosos com retorno financeiro satisfatório, probabilidade baixa de que o criminoso seja descoberto e, quando ocorre, a punição é relativamente branda em relação ao dano causado, levando a um ambiente no qual o crime compensa.

 

É frequente a reclamação do setor privado com receio de sofrer punições duras e injustas por parte dos órgãos fiscalizadores. Entretanto, tal receio não encontra lastro na realidade. O que observa-se de fato são poucas e brandas punições. Arrisco-me dizer que se há alguma injustiça esta seria por falta de punição e não o contrário. Em mais de 20 anos de vigor da Lei 9.613/98 não houve registro de sua aplicação inadequada no quadrante do exagero. E, obviamente, não estou incluindo neste cálculo a parcela de dinheiro sujo provavelmente não descoberta, ainda oculta.

 

Uma característica tipicamente brasileira é a defesa incondicional de criminosos em detrimento das perdas das vítimas. É um traço cultural da maioria dos operadores do direito (advogados, juízes e professores das faculdades de direito no país). Não estou defendendo que acusados sejam sumariamente condenados e punidos, longe disso. Porém, não só as leis, mas também todos os trâmites administrativos e legais favorecem o criminoso. A cultura “garantista”, no intuito de resguardar direitos dos acusados, o faz sobre os direitos das vítimas. A confusão é tão grande que muitas vezes o criminoso é tratado como se vítima fosse, reforçando o ambiente confortável aos delinquentes. Esta situação é ainda mais evidente quando refere-se de crime de colarinho branco muito frequente quando tratamos de lavagem de dinheiro. Há uma espécie de “peninha” do criminoso quando sua figura é de alguém “limpinho” e que frequenta os ambientes mais sofisticados da sociedade. Porém, do ponto de vista da teoria econômica do crime, a elegância do crime não o torna menos danoso, em muitos casos deveria até ser um agravante.

 

Outro aspecto a destacar é que muitas autoridades públicas e grande parte do setor privado enxerga a tarefa de prevenção à lavagem de dinheiro desimportante. Este sentimento pode derivar da negação em tratar um problema sem o devido preparo técnico e/ou falta de conhecimento sobre como a lavagem de dinheiro e o crime podem estar mais próximos de suas vidas do que se imagina. Há também a dificuldade de percepção do dano que pode causar, tendo em vista que o dano causado é difuso, ou seja recai sobre a sociedade e não diretamente em uma vítima específica.

 

Diretamente relacionado com o aspecto anterior há a pouca disposição em incorporar novos custos à operação da atividade principal dos negócios. Seus gestores julgam os custos de prevenção desnecessários e uma imposição burocrática. Todavia, os programas de prevenção à lavagem de dinheiro têm a função primordial de dissuadir eventuais criminosos de utilizarem estruturais legais com o intuito de dissimular a origem ilícita de seus recursos.

 

Cooperação e comprometimento de todos com a luta

 

Quando os setores obrigados não estão comprometidos com o melhor funcionamento do próprio mercado em que atuam de forma a evitar ao máximo que delinquentes mesclem suas transações fraudulentas com negócios lícitos, o conjunto da sociedade perde. Não possuir procedimentos e ferramentas adequadas para detecção de transações atípicas, devido à pouca importância que atribui à probabilidade de ver seu negócio envolvido com este tipo de crime, terá como consequência a falta de comunicações ao Conselho de Controle da Atividade Financeira – COAF ou comunicações falhas que pouco ou nada ajudarão a alcançar os agentes criminosos. Destacando que são as comunicações bem feitas que aumentam a probabilidade de que os criminosos sejam descobertos e punidos.

 

O pouco comprometimento com a qualidade das comunicações ao COAF enfraquece a principal arma de detecção do crime de lavagem de dinheiro que é a cooperação, tanto entre as nações como entre os agentes públicos nacionais e setor privado. Sem a cooperação haverá “arbitragem jurisdicional”. Além disso, empresas que não tomam as devidas diligências na mitigação do risco de que criminosos registrem transações com o intuito de ocultar a origem ilícita dos recursos, podem obter vantagens concorrenciais, prejudicando o mercado no qual atua.

 

Reputação e dissuasão

 

Todo o combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo parte do pressuposto que os setores obrigados por Lei a constituírem controles internos e comunicarem transações atípicas à Unidade de Inteligência Financeira atuarão sempre com o intuito de cooperar na mitigação do risco da ocorrência do crime de reciclagem de ativos e, por consequência, na inibição dos crimes que originaram os recursos ilicitamente. Baseado nessa premissa, creem as autoridades que somente poderia ocorrer lavagem de dinheiro se houver falhas na aplicação das recomendações de melhores práticas. Todavia, o que muito frequentemente se observa é que os motivos que levam às falhas nos controles internos não derivam de imprudência, imperícia ou negligência, mas sim de conluio. Este tipo de comportamento ficou conhecido como “cegueira deliberada”, quando o agente, de modo deliberado, se coloca em situação de ignorância, criando obstáculos, de forma consciente e voluntária, para alcançar um maior grau de certeza acerca da potencial ilicitude de sua conduta.

 

A teoria da cegueira deliberada pode explicar muito da falta de efetividade no combate à reciclagem de ativos. Muitas autoridades, acreditando que os setores obrigados seriam cooperantes, atribuem ao risco de reputação um elevado e teórico poder dissuasivo que na prática não se observa. A pergunta que cabe então seria: “quão dissuasivo seria o risco reputacional?”. Quanto vale a reputação de uma empresa obrigada vis-à-vis as potenciais receitas pagas por organizações criminosas para utilizá-la a fim de ocultação e dissimulação? Aparentemente, mesmo que haja alguma perda reputacional, prestar serviços de reciclagem de ativos para criminosos compensa. Os custos operacionais e eventuais multas e demais punições poderiam estar sendo cobertas pelas receitas da atividade delituosa e ainda apresentar retorno líquido positivo. Esta equação é mais facilmente calculada (ou intuída) pelos criminosos e seus comparsas do que pelas autoridades de regulação e fiscalização, dada a assimetria de informação a favor dos delinquentes.

 

O que esperar do futuro

 

Desde a Lei 9.613/98 o combate à reciclagem de ativos passou por algumas fases. A primeira delas foi a fase da sensibilização dos setores e profissionais obrigados quanto à relevância do problema. Na época havia muito mais resistência do que há hoje. A fase seguinte constituiu-se em elaborar controles internos e aderir às exigências legais, que também enfrentou muito resistência. A terceira fase veio com o advento da Operação Lava Jato, que evidenciou os riscos, impulsionou a sensibilização e a necessidade de controles internos. Depois da Lava Jato as menções à lavagem de dinheiro são diárias nas mídias tradicionais e redes sociais. No atual momento passamos pela fase dos controles efetivos e de fazer valer a lei, custe o que custar. Infelizmente ainda nos deparamos com resistências, por isso espero que o relatório final da avaliação do GAFI nos ajude a reduzir a oposição a práticas mais efetivas de combate aos crimes econômicos e às organizações criminosas. Talvez as pressões externas ajudem-nos a implementar políticas que tornem a economia brasileira um ambiente inóspito aos criminosos.

 

 

Mauro Salvo é doutor em Economia, pesquisador na área de economia do crime, lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. Analista do Banco Central do Brasil.

 

 

As contribuições deste artigo expressam tão somente as posições do autor, e não representam posicionamento da instituição onde trabalha ou de seus membros.

]]>
Para Implementar a Análise de Impacto Regulatório (AIR) https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3276&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=para-implementar-a-analise-de-impacto-regulatorio-air Wed, 22 Jul 2020 17:03:35 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3276 Foi publicado no dia 30 de junho de 2020 o Decreto 10.411, que regulamenta a Análise de Impacto Regulatório (AIR) prevista na Lei das Agências Reguladoras e na Lei de Liberdade Econômica.

O normativo disciplina a obrigatoriedade de elaboração de AIR previamente à edição de atos normativos de interesse geral, inferiores a decreto, por órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

A edição do decreto alça o Brasil ao patamar dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, tendo em vista que AIR é boa prática internacional recomendada pela Organização e também por outros organismos internacionais.

O assunto em si não é novo por aqui. As agências reguladoras e o Inmetro já utilizam AIR há alguns anos e em 2018 sua utilização, no governo federal, foi objeto de recomendação não vinculante do Comitê Interministerial de Governança (CIG), de que trata o Decreto 9.203, de 2017. O CIG aprovou também a realização de projetos-piloto de AIR por órgãos da administração federal como um todo.

Assim, o escopo inicial das diretrizes e orientações, que era as agências reguladoras, foi ampliado para toda a administração, em linha com o “whole of government approach” das recomendações de Política e Governança Regulatória da OCDE.

Mesmo assim, para os demais órgãos e entidades da administração federal, o tema ainda é, regra geral, grande novidade.

A AIR é um método sistemático, baseado em evidências, para analisar um problema regulatório identificado e informar os tomadores de decisão sobre alternativas de ação a serem consideradas e seus respectivos impactos, a partir dos objetivos desejados.

Qualifica, mas não substitui o processo decisório e deve ser utilizada como o fio condutor do processo regulatório, desde o seu início, e não como uma etapa burocrática apenas para justificar, ao final, uma decisão prévia já tomada. Nesse caso, torna-se mero custo administrativo adicional e implica ineficiência ao sistema de elaboração regulatória. É isso que faz toda a diferença. A AIR permite que diferentes opções sejam exploradas em vez de apenas tratar de justificar uma decisão prévia.

Trata-se, portanto, de ferramenta de apoio e instrumento formal de explicitação dos problemas regulatórios, das opções disponíveis para resolvê-los, da análise das vantagens e desvantagens e da comparação dessas opções, considerando sempre a possibilidade de não adotar nenhuma ação e de levar em conta alternativas tanto normativas quanto não-normativas.

Por aí se percebe que não é nada trivial o desafio de institucionalizar a utilização da AIR, que ainda não faz parte da cultura organizacional do setor público e altera substancialmente a lógica da elaboração de normas. Por isso, o decreto prevê tempo suficiente para a preparação dos órgãos e das entidades antes de produzir efeitos.

Tendo em vista o tamanho e a complexidade do desafio institucional que se avizinha, torna-se imperioso começar a endereçar já a preparação da administração e o presente artigo busca trazer alguma luz inicial sobre o tema para que cada órgão e entidade possa se organizar para começar a elaborar AIRs, sistematicamente, a partir de 2021, independentemente e para além das providências de implementação que serão adotadas pelos órgãos competentes, dentre os quais o Ministério da Economia.

Alguns órgãos e entidades já elaboraram pilotos de AIR e desenvolveram análises, mas situação diferente e muito mais desafiadora é institucionalizar sua implementação sistemática a partir de outubro de 2021, quando o decreto passará a valer para todos os reguladores.

Antes disso, em abril de 2021, o normativo passará a valer apenas para o Ministério da Economia, que optou por estar na sua primeira onda de produção de efeitos, e para as agências reguladoras e Inmetro, que já possuíam experiência na matéria e participaram do grupo técnico que elaborou as Diretrizes Gerais e o Guia Orientativo para Elaboração de AIR.

Na verdade, a preparação da administração federal vem sendo realizada já há algum tempo, uma vez que a AIR vem sendo gradativamente incorporada. Primeiro foram as agências reguladoras e o Inmetro. Em seguida, em 2018, a prática foi objeto de recomendação não vinculante.

A partir de 2018, um conjunto de ações já voltadas a institucionalizar a utilização da AIR em toda a administração federal foi adotado, como o oferecimento de cursos de capacitação visando disseminar as Diretrizes Gerais e o Guia AIR, realizados, em sua maioria, na Escola Nacional de Administração Pública – ENAP. Adicionalmente, dezenas de eventos de sensibilização e de apresentação de conteúdo foram realizados nos mais diferentes órgãos e entidades e também para o setor privado.

Após rápida contextualização do tema, passaremos agora a oferecer algumas sugestões iniciais e práticas para os órgãos e entidades iniciarem sua preparação. Tais sugestões são baseadas em ampla experiência no tema, na coordenação do grupo técnico que elaborou as Diretrizes Gerais e o Guia AIR, no acompanhamento sistemático dos pilotos de AIR aprovados pelo CIG em 2018 e também na preparação da proposta de decreto.

 

ORIENTAÇÕES INICIAIS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DE AIR

1. PREPARE-SE COM ANTECEDÊNCIA: COMECE AGORA E PERSISTA.

  • O decreto prevê a adoção de AIR previamente à edição de atos normativos inferiores a decreto e de interesse geral, o que altera significativamente o processo de elaboração normativa ex ante. Institui agenda de Avaliação de Resultado Regulatório ex post e estabelece a necessidade de implementação de estratégia de coleta e de tratamento de dados.
  • É necessário estruturar a governança, preparar e capacitar equipes, alterar e ajustar processos de trabalho e disseminar o tema de modo transversal nos órgãos e entidades.
  • O normativo produzirá efeitos para o Ministério da Economia, Agências Reguladoras e Inmetro a partir de 15/04/2021.
  • Para os demais órgãos e entidades da administração federal direta, autárquica e fundacional, os efeitos se darão a partir de 14/10/2021.

2. INFORME-SE: LEIA O DECRETO, O GUIA AIR E BUSQUE MATERIAL DE APOIO.

  • Leia já o Decreto 10.411, de 2020, para entender o que é AIR, quando é necessário realizar a análise, quais são as hipóteses de não aplicabilidade, de dispensa justificada e quais são os elementos mínimos do Relatório de AIR e demais regramentos básicos.
  • O Guia de AIR é o documento de apoio para a elaboração, em si, da análise, trazendo orientações detalhadas para cada fase da AIR, sem, entretanto, engessá-la.
  • Atenção! O Guia é de 2018 e precisará ser atualizado para os termos exatos em que o decreto foi editado, mas é possível continuar a utilizar suas orientações, atentando para o texto do decreto.
  • Busque material de apoio. Atualmente, é possível encontrar, por exemplo, alguns casos de AIR realizados no site da Casa Civil da Presidência da República. O Guia apresenta ao final de cada capítulo, uma sugestão de bibliografia.

3. ESTRUTURE A GOVERNANÇA ADEQUADA E SE POSSÍVEL, FAÇA UM PILOTO.

  • O maior desafio relativo à implementação efetiva e sistemática da AIR no governo federal é a estruturação dos órgãos e entidades.
  • Não é necessário criar áreas novas, mas é fundamental pensar na alocação adequada dos recursos humanos já existentes. Há diferentes possibilidades de estrutura de governança que podem ser utilizadas para iniciar os trabalhos de implementação.
  • Sugerimos que, pelo menos no período inicial, seja formada uma força tarefa que responda diretamente ao nível estratégico dos órgãos e entidades e possa cuidar do planejamento e da implementação, inclusive da sensibilização sobre o tema.
  • Na estrutura da administração direta, essa equipe poderia estar ligada às Secretarias Executivas ou Secretarias Gerais e, na estrutura da administração indireta, em localização institucional próxima aos Gabinetes dos dirigentes máximos.
  • Essa força tarefa teria a responsabilidade de conduzir o piloto, caso se opte por essa estratégia, e de estruturar a disseminação e a institucionalização da AIR nos respectivos órgãos e entidades, podendo servir de ponto estratégico de apoio das unidades organizacionais quando o decreto, de fato, começar a produzir efeitos.
  • Importante contar com um líder de projeto que tenha competência gerencial e uma equipe com um mix de competências complementares, dentre elas, a de elaboração de AIR propriamente dita.
  • Se possível, escolha para o piloto um tema no radar para regulamentação, mas que não tenha ainda minuta de normativo elaborada, para evitar o viés de pré-posicionamento sobre o tema.
  • Lembre-se: o resultado de uma AIR não é, necessariamente, no sentido da edição de mais um ato normativo. É possível chegar à conclusão que a melhor opção é não regular ou, ainda, que alternativas não normativas são mais adequadas.
  • Para começar, escolha, preferencialmente, um tema simples.
  • Considerando que as Diretrizes Gerais e o Guia AIR foram objeto de recomendação do CIG, uma possibilidade é a de que os comitês internos de governança de que trata o Decreto 9.203, de 2017, também se envolvam diretamente na estruturação dos órgãos e entidades para a implementação da AIR.

4. CAPACITE PESSOAS CHAVE EM SEU ÓRGÃO OU ENTIDADE.

  • A ENAP oferece cursos sobre AIR e, recentemente, incorporou um em EAD. Fique de olho na programação de cursos da escola e em outros cursos e participe de eventos sobre o tema.
  • No canal da Escola no Youtube também é possível encontrar vídeos didáticos sobre a importância da AIR e sobre cada uma de suas fases, explicadas pelos técnicos e autoridades dos órgãos envolvidos na elaboração das diretrizes e do GUIA de AIR, lembrando que é preciso sempre se ater ao conteúdo exato do decreto, que alterou, em parte, o conteúdo anterior.

5. TRATE A IMPLEMENTAÇÃO DA AIR COMO UM PROJETO ESTRATÉGICO.

  • Adote alguma metodologia de gestão de projetos definindo etapas, responsáveis e prazos para a implementação da AIR no seu órgão ou entidade, inclusive com pontos de controle periódicos.
]]>
Leis que dão desconto em escola ou congelam preço de remédio criarão caos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3270&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=leis-que-dao-desconto-em-escola-ou-congelam-preco-de-remedio-criarao-caos Thu, 18 Jun 2020 17:38:37 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3270 Tenho acompanhado com muita preocupação os Projetos de Lei em tramitação nas várias casas legislativas pelo país afora. Infelizmente muitas das leis que têm sido aprovadas sob o pretexto de proteger a sociedade só gerarão um caos em vários setores da economia. Já tinha escrito um pouco sobre isso no início de abril “A epidemia de medidas descoordenadas pode agravar a pandemia do coronavírus”, mas parece que de lá para cá a situação apenas se agravou.

Para mim, ainda não está claro se isto tem ocorrido por uma absoluta incapacidade dos nossos políticos de avaliar os efeitos econômicos do quanto tem sido proposto ou se é apenas um comportamento oportunista e populista, que contam com a possibilidade de veto por parte do executivo. Na realidade, o conjunto de propostas legislativas que têm sido aprovado nada mais é do que um caso clássico de expropriação de receita privada cujo resultado para a sociedade será o pior possível.

O exemplo mais gritante é a obrigação imposta às escolas particulares para reduzir entre 30% a 40% o valor das mensalidades (Maranhão, Espírito Santos e Rio de Janeiro são só alguns dos exemplos). Já não bastasse o Estado não fornecer um ensino público com o mínimo de qualidade, alguns políticos resolveram simplesmente inviabilizar o ensino privado. Me pergunto se eles sabem qual a margem de lucro deste setor.

Há outras propostas envolvendo o setor da saúde que nada mais são do que o “canto eleitoral da sereia”. Por exemplo, proibir a suspensão dos planos de saúde durante a pandemia (caso do Maranhão) é mais um caso clássico de querer obrigar a que o privado cumpra o papel do Estado, sem permitir a que se receba qualquer remuneração por isso. Me pergunto ainda quem cobrirá o rombo operacional dessas empresas, tomando ainda por base todo o dinheiro público aparentemente desviado nesta pandemia.

Ainda no campo da saúde, o Senado aprovou nesta semana o Projeto de Lei n° 881/2020, congelando os preços dos medicamentos. Além de simplesmente atropelarem a Lei de Liberdade Econômica que aprovaram no ano passado, o efeito mais direto desta determinação será o desaparecimento de alguns medicamentos das prateleiras das farmácias, principalmente os de uso contínuos.

Na Câmara dos Deputados, há projetos de todo tipo determinando a suspensão de corte de serviços com luz, telefone, água e gás por inadimplência (um exemplo é a do Deputado Marcão Gomes do Partido Liberal). Neste caso, gostaria que o nobre deputado esclaressece de onde essas empresas retirarão o dinheiro para garantir a continuidade desses serviços, pagar seus funcionários ou para fazer os investimentos tão necessários na manutenção de suas respectivas redes. No setor de telecomunicações, em particular, a pérola da vez veio do plenário da Alerj que, atropelando competência federal, derrubaram o veto do governador Wilson Witzel ao Projeto de Lei no 2.012/2020. Com isso as operadoras de celular ficam obrigadas a disponibilizar gratuitamente acesso ilimitado a sites de comunicação, redes sociais e serviços de streaming (que mais sobrecarregam as redes) sem descontar do pacote de franquia de dados contratado pelo cliente.

No setor financeiro retorna a velha história de congelamento de taxa de juros, com o Projeto de Lei no 1166/2020, de autoria do Senador Álvaro Dias do PODEMOS. A ideia é estabelecer um teto de 20% ao ano para todas as modalidades de crédito ofertadas por meio de cartões de crédito e cheque especial para as dívidas contraídas entre os meses de março de 2020 e julho de 2021. Já escrevi nesta coluna deixando claro minha posição de que os juros no Brasil são realmente muito elevados, mas não se cura uma febre colocando gelo no termômetro; e os juros são apenas o ponteiro do termômetro. Ao invés de se dar o remédio correto que amplie a concorrência e que reduza os preços neste mercado (tarifas bancárias e juros), a proposta do Senador só criará mais distorções no setor. Ao não levar em consideração l o custo de captação de recursos no país, podemos restringir ainda mais o pouco crédito hoje disponível no mercado. Aliás, é natural que em momentos de maiores riscos e incertezas, o custo do dinheiro fique mais caro e menos disponível. Não por outra razão, o governo está finalmente estudando como dar garantias para elevar a liquidez no mercado financeiro em um momento como este.

Mas o pior efeito desta decisão pode ser a redução futura da concorrência. Como os grandes conglomerados financeiros verticalizados atuam em vários segmentos de mercado, eles certamente terão como compensar a queda forçada dos juros nos preços de outros serviços (como tarifas bancárias, seguros, etc). Já aquelas instituições menores, que atuam em nichos específicos de mercado, terão mais dificuldade de se ajustar, reduzindo sua capacidade de crescer e concorrer no mercado. Note-se que a potencial cobrança ou elevação do valor das tarifas bancárias poderá ainda reduzir o nível de “inclusão financeira digital” no país, que vinha crescendo ao longo do tempo.

Finalmente vale citar os Projetos de Lei que impõem a proibição de descontos salarias de servidores para pagamento de consignado (casos de Maranhão e Rondônia). A impossibilidade de desconto para quem não perdeu emprego e renda já é por si só um tanto quanto inusitado, mas o que os políticos fizeram foi, no mínimo, criar duas categorias de consumidores demandantes de crédito. O problema é que certamente os bancos procurarão compensar essa perda momentânea de fluxo de caixa com os novos demandantes de crédito, que são principalmente do setor privado. Ademais, contrariando toda a lógica do objetivo do consignado, a instituições financeiras entenderão no futuro que o risco para empresar para funcionário público se elevou, o que possivelmente impactará as taxas de juros cobradas com este tipo de empréstimo.

Acredito que muitos dos projetos aqui destacados sofrerão veto por parte do Executivo ou serão derrubados no judiciário, dada a nítida inconstitucionalidade da maioria deles. De toda forma, o estrago já está sendo feito. Seja pelo custo financeiro momentâneo e o de transação no processo de contestação nas várias esferas judiciárias, seja por darem um péssimo sinal para os investidores sobre a perspectiva de rentabilidade no país de cada um desses setores. No fundo, o recado dos políticos está sendo que contratos por aqui pouco valem e que os riscos de investimento no país são muito maiores do que na maioria dos demais países do mundo.

 

*Texto de autoria de Cleveland Prates e originalmente publicado no Portal UOL. Aqui reproduzido com consentimento do autor.

 

]]>
Setor elétrico: caso britânico mostra baixa adesão de cliente residencial ao mercado livre https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3237&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=setor-eletrico-caso-britanico-mostra-baixa-adesao-de-cliente-residencial-ao-mercado-livre Tue, 24 Mar 2020 14:47:24 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3237  

Por Victor Ribeiro*

(*) Victor Ribeiro é fundador da consultoria Spoudaios, especializada no setor elétrico, e mestrando em Engenharia Elétrica pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Acumula passagens na área regulatória em energia de empresas como Vale, Queiroz Galvão e Brookfield Energia Renovável. Contato: victor.ribeiro@spoudaios-br.com.

 

O Projeto de Lei nº 232/16 (PLS 232), que trata da modernização do marco regulatório do setor elétrico, passou pela Comissão de Infraestrutura do Senado e segue agora para a Câmara dos Deputados, onde deve ser apensado ao PL 1917 e analisado em Comissão Especial. A redação proposta contém avanços importantes que colocam o setor elétrico brasileiro em consonância com o século 21.

Para esclarecer algumas das principais mudanças previstas no PLS, publicaremos neste espaço uma série de artigos comentando a reforma do setor vis à vis a experiência internacional. Neste artigo, discutiremos alguns aspectos da abertura do mercado de energia elétrica na Grã-Bretanha.

O texto aprovado no Senado prevê o estabelecimento de um cronograma para abertura total do mercado até 2024, por meio da redução gradual dos requisitos mínimos de carga para a migração ao mercado livre dos consumidores atendidos em baixa tensão (ex.: pequenos comércios e residências).

O plano de abertura do mercado prevê: 1) a realização de campanhas de comunicação para conscientização dos consumidores visando a sua atuação em um mercado liberalizado; 2) o aprimoramento da infraestrutura de medição, faturamento e modernização das redes elétricas, com foco na redução de barreiras técnicas e dos custos dos equipamentos, além da possibilidade de aplicação de tarifas variáveis; e 3) a regulamentação para o chamado “suprimento de última instância”, inclusive no que se refere às condições econômico-financeiras para a viabilidade e sustentabilidade dessa atividade.

A experiência internacional sinaliza que esses tópicos – campanhas de comunicação, tarifas, serviços de medição e de informação e o supridor de última instância – são fundamentais para o êxito da abertura de mercado, o qual se mede por meio de três parâmetros: (i) nível de engajamento do consumidor ao livre mercado; (ii) alternativas de escolha do fornecedor de energia elétrica; e (iii) redução de custos para o consumidor.

Na Grã-Bretanha, os consumidores têm a opção de escolher seu fornecedor de eletricidade desde 1999.

Apesar da cultura britânica pró-mercado e liberdade econômica, somente 20% dos consumidores haviam trocado de fornecedor para reduzir seus custos com energia elétrica pouco mais de 10 anos depois da abertura do mercado, em 2011, segundo pesquisa conduzida pelo OFGEM (regulador britânico). Esses 20% que migraram foram subdivididos em “proativos” (10%) e “reativos” (10%). Consumidores proativos são aqueles que conscientemente analisaram e trocaram de fornecedor de eletricidade no ano anterior. Os reativos são aqueles que trocaram de fornecedor somente por meio da ação de agentes comerciais.

Os demais 80% que permaneceram no mercado cativo foram classificados na pesquisa como “totalmente desengajados” (30%), “desengajados” (30) e “passivos” (20%). Os consumidores totalmente desengajados são aqueles nunca mudaram de fornecedor e que provavelmente não mudariam no futuro. Consumidores desengajados são aqueles que nunca trocaram de fornecedor, mas não descartariam a troca no futuro. Consumidores passivos são aqueles já trocaram de fornecedor em algum momento no passado, mas não no ano anterior.

O OFGEM realiza essa pesquisa anualmente, e os resultados publicados em 2017 mostram uma pequena evolução. No ano em questão, os números obtidos foram os seguintes: 25% dos consumidores alteraram de fornecedor nos últimos doze meses, e 15% compararam tarifas, mas não trocaram. E 59% eram consumidores desengajados, ou seja, nunca migraram. Na pesquisa de 2019, foi identificada uma mudança mais acentuada no mercado: 33% dos consumidores alteraram de fornecedor nos últimos doze meses; 16% compararam tarifas, mas não trocaram. E 51% eram consumidores desengajados.

O aumento do engajamento dos consumidores, cuja migração passou de 20%, em 2011, para 33%, em 2019, foi alcançado a partir de 2017, após o início da execução de campanhas de comunicação chamadas “nudge”(empurrãozinho): breves mensagens por celular ou e-mail, perguntando se o consumidor havia feito comparações de fornecedores ou se informando sobre o quanto de economia poderia ter tido no ano anterior se tivesse migrado.

A estratégia da campanha de nudge foi estruturada após o OFGEM ter conduzido um estudo com os consumidores em 2012 sob a ótica do Behavioral Economics: Quais vieses cognitivos estariam limitando a participação dos consumidores residenciais no mercado livre de energia?

Na pesquisa, foram identificados e analisados quatro vieses cognitivos. A tabela a seguir explica como cada um deles afetava a decisão dos consumidores residenciais britânicos:

 

A conclusão do estudo foi que as empresas se comunicavam de forma muito complexa com os consumidores. Além disso, a maioria dos usuários não tinha tempo para avaliar as alternativas favoráveis, e os poucos que avaliavam escolhiam a primeira opção (não se dedicavam a explorar outras opções que poderiam lhe ser mais favoráveis).

Apesar do diagnóstico e do esforço em melhorar a comunicação com os clientes, percebe-se que, mesmo após duas décadas de liberação do mercado de energia elétrica, em torno de 51% dos consumidores britânicos continuavam desengajados, não fazendo comparações entre os preços dos fornecedores de energia elétrica e não trocado de supridor.

Na realidade britânica, a percepção é que o grupo de consumidores desengajados é composto por dois perfis distintos de clientes, que ocupam extremos do espectro social: os de alta renda, cuja migração não proporcionaria uma economia relevante na conta de luz e, por isso, não buscam a troca de fornecedor, e os classificados como vulneráveis. Este é um tema importante para o caso brasileiro, tendo em vista que os clientes de baixa renda representam uma parcela importante da base de consumidores das concessionárias daqui.

Os consumidores vulneráveis foram definidos no ato legal de abertura do mercado (Section 3A (3) of the Electricity Act 1989) como sendo aqueles com doenças crônicas, pensionistas, baixa renda e moradores de áreas rurais, e são denominados pelo OFGEM como os que necessitam de serviços prioritários – Priority Service Registers (PSR). A participação de consumidores PSR na Grã-Bretanha vem aumentando gradativamente ao longo dos anos. Em 2006, eram menos de 5% do número total de consumidores. Atualmente, entre 20% e 25%, dependendo do país.

 

Os consumidores PSR representam um grande desafio regulatório tanto para as distribuidoras como para os comercializadores varejistas. Por um lado, as distribuidoras, que são as fornecedoras de última instância, devem aplicar tarifas subsidiadas. Para efeito de comparação, essa política social custou cerca de 2,5 bilhões de libras em 2018 pagos pelos contribuintes britânicos. Além disso, devem cumprir uma série de medidas setoriais e sociais, tais como, por exemplo, cadastrar todos os consumidores classificados como PSR, conduzir campanhas de eficiência energética e executar políticas de faturamento diferenciadas (medidores pré-pagos, leituras trimestrais, etc), contexto que se assemelha significativamente à realidade das distribuidoras brasileiras.

Por outro lado, os consumidores varejistas não podem rejeitar o acesso ao mercado livre pelos consumidores PSR. Inclusive, o OFGEM enxerga a migração como sendo uma ferramenta para a redução no custo com energia elétrica destes clientes sem mais depender de subsídios. Dois dentre os diversos programas existentes de inclusão dos consumidores PSR ao mercado livre são o Big Energy Savings Network (BESN) e Energy Best Deal Extra run by Citizens Advice (EACA), os quais auxiliaram mais de um milhão de consumidores PSR no ano de 2013.

A experiência britânica mostra que os desafios de engajamento dos consumidores de baixa tensão ao mercado livre no Brasil serão enormes, especialmente se for levado em conta que, hoje, os consumidores já têm dificuldade em compreender o que paga na conta de luz pela grande complexidade do setor elétrico brasileiro. Contudo, o Brasil tem a favor um grande histórico de experiências e aprendizados em outros mercados que poderão auxiliar no êxito da abertura de mercado livre brasileiro para garantir que a liberdade de escolha se traduza, de fato, em um benefício para toda a sociedade brasileira.

Arttigo publicado originalmente pelo Broadcast da Agência Estado em 18/03/2020.

]]>
O supremo e a inconstitucionalidade das interpretações criativas sobre o limite de despesas com pessoal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3233&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-supremo-e-a-inconstitucionalidade-das-interpretacoes-criativas-sobre-o-limite-de-despesas-com-pessoal Wed, 04 Mar 2020 20:16:18 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3233 *Débora Costa Ferreira é Mestre em Direito Constitucional (IDP, 2017) e Doutoranda em Economia (UnB).

**Eduardo Ubalbo Barbosa é advogado e Mestre em Direito (UnB, 2017).

***C. Alexandre A. Rocha é Consultor Legislativo no Senado Federal e Mestre em Economia (UnB, 1997).

 

Nos últimos anos, as críticas às decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) em matéria fiscal têm assumido foros de unanimidade entre especialistas e acadêmicos preocupados com a explosão dos gastos públicos no Brasil. E não sem boa dose de razão: inúmeros são os pronunciamentos que, nada obstante as boas intenções que lhes acompanham, acabam por estimular a renitente (e aparentemente irrefreável) irresponsabilidade fiscal de gestores públicos espalhados por todo o País – em particular no âmbito de conflitos federativos contrapondo a União, de um lado, e os demais entes da Federação, de outro.

Pesquisa recente, por exemplo, englobando mais de 2,7 mil Ações Cíveis Originárias (ACOs)[1], identificou quais dessas ações tiveram a situação de conflito federativo reconhecida pelo STF, bem como envolviam questões fiscais. Constatou-se que 251 ações com essas características foram julgadas, em definitivo ou liminarmente, no período de 1988 a 2017. Desse total, 250 foram movidas pelos estados, os quais saíram vitoriosos em 218 delas (87,2% do total). À luz desses dados, Andrea Dantas Echeverría, autora do estudo, concluiu que:[2]

… o STF está transformando o Orçamento brasileiro na “tragédia dos comuns”, com todos disputando pelos seus interesses particulares em detrimento da sustentabilidade das finanças para todos.

No entanto, a contrario sensu, convém destacar recente julgamento que, especialmente ante o impacto midiático de outros casos levados à apreciação da Corte, acabou passando despercebido do grande público, a despeito de sua importância. Referimo-nos à análise, na Sessão Plenária de 11 de setembro de 2019, de medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.129, da relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello.[3]

A ação mencionada, formalizada pela Procuradoria-Geral da República, questionava pontos de duas alterações na Constituição do Estado de Goiás, quais sejam: as Emendas nos 54 e 55/2017. Formalmente, as duas emendas limitaram “os gastos correntes dos Poderes do Estado e dos órgãos governamentais autônomos, até 31 de dezembro de 2026”.

Com efeito, em face da escalada das despesas públicas locais, introduziu-se na constituição goiana regime similar ao Novo Regime Fiscal federal, constante da Emenda Constitucional nº 95/2016. A medida se fazia necessária, conforme afirmado pelo então governador, Marconi Perillo, ante o insustentável crescimento das “despesas com pessoal”, cuja alta não teria sido acompanhada pelo correspondente aumento das receitas.

Não obstante o peso dessas despesas no quadro de desequilíbrio das finanças públicas do Estado, a nova redação do § 8º do art. 113 da constituição estadual, inserida por emenda de origem parlamentar, resultou na adoção de providência contrária à lógica das propostas enviadas à assembleia legislativa pelo governador. Excluíram-se do conceito de despesas com pessoal, para aferição da observância ou não do teto fixado na Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar nº 101/2000), os valores alusivos ao pagamento de pensionistas e os referentes ao imposto de renda retido na fonte (IRRF) incidente sobre a remuneração paga aos agentes públicos estaduais.

No caso em tela, o Supremo, a uma só voz, fixou tese pela inconstitucionalidade de norma excluindo do conceito de despesas com pessoal os valores mencionados anteriormente (ainda que produto da atuação do constituinte estadual derivado).[4]

De fato, fundamentos jurídicos não faltam para a configuração da inconstitucionalidade decretada, em sede de cautelar, pelo STF.

De imediato, salta aos olhos a usurpação, pelo ente estadual, da competência atribuída à União para dispor sobre normas gerais de direito financeiro e para fixar os limites de despesa com pessoal a partir da leitura conjunta do art. 24, inciso I, e do art. 169 da Constituição Federal (CF). Além de a matéria financeira se enquadrar entre as competências concorrentes, cujas normas gerais cabem à União, o art. 169 atribui à lei complementar federal o dever de estabelecer, por norma de âmbito nacional, limites para os gastos com pessoal. Prever limites distintos daqueles fixados pela LRF não constitui somente um vício formal, mas também uma violação material do modelo federativo. Assim, em caso de concorrência entre a constituição estadual e uma lei nacional, prevalece esta sobre aquela.

Com relação aos gastos com pensionistas, cabe o jargão de que a lei (e a Constituição) não contém palavras inúteis. A inclusão das despesas com pensionistas dentro do limite resta explicitada de forma inequívoca nos arts. 18 e 24 da LRF[5], além de possuir a mesma natureza previdenciária dos gastos com inativos. Sem contar que essas despesas são especificadas como integrantes do cômputo dos limites também nos arts. 55, alínea a, e 59, §1º, inciso IV, da LRF[6]. Se há tantos comandos explícitos nesse sentido é porque o ordenamento jurídico não permite que essas rubricas sejam excluídas. Tanto é assim que o Tribunal de Contas da União (TCU), no Acórdão 2.884/2015-Plenário, pacificou o entendimento de que “a definição da despesa de pessoal positivada pela LRF é ampla e abrange quaisquer espécies remuneratórias com ativos, inativos e pensionistas”.

Conforme apontado pelo Ministro Marco Aurélio Mello, “excluir os pensionistas do cálculo de despesas com pessoal não os retira da folha de pagamento”. Em suas palavras, “a despesa não deixa de existir”, que também observou o seguinte:

Se o limite for todo consumido com o pagamento de vencimentos e proventos de aposentadoria, o que fazer com as pensões? Irão os pensionistas concorrer com os remédios dos hospitais e o combustível das viaturas policiais? A ser assim, o passo rumo ao abismo fiscal revelar-se-á curto, rápido e desastroso.

Trata-se de posicionamento especialmente relevante, pois esse mesmo Ministro, juntamente com o Ministro Ayres Britto, firmou juízos bastante críticos sobre as competências da União vis-à-vis as dos estados, conforme pesquisa conduzida por Pedro Fernando Nery.[7] Como destacado pelo autor (p. 67):

(…) Aurélio e Britto (…) votavam nas divergências pela procedência de ações contra leis federais em que interesses econômicos do governo federal estavam inseridos, potencialmente impedindo que as políticas tratadas nessas formas fossem de fato implementadas, e pela improcedência de ações contra leis estaduais em que a questão da autonomia estava inserida, potencialmente dando mais autonomia aos Estados.

Restringindo a sua análise às Ações Diretas de Inconstitucionalidade,[8] o estudo constatou que o relator se aproximou da posição adotada pela maioria dos ministros, a qual é “pouco inclinada a derrubar normas federais com impacto na economia e muito inclinada a conceder menos poder para os Estados em relação à União” (p. 84).

Quanto à exclusão dos valores referentes ao IRRF no cálculo da receita corrente líquida e da despesa total com pessoal, a questão é que essa hipótese deveria estar, para que fosse legal, expressamente prevista na LRF. Basta notar que as exceções para esse cálculo estão listadas exaustivamente na própria lei. Diante do princípio da simetria e por constituir norma geral de direito financeiro, somente a União poderia alterar o rol de exclusões, justamente para conferir maior uniformidade a esse cálculo e permitir comparações entre diferentes entes federativos.

Mais: sob o aspecto contábil, não há qualquer fator que justifique o tratamento diferenciado dessa rubrica, uma vez que ela produz variação patrimonial nas contas do ente. Cuida-se, conforme explicado pelos integrantes da Corte, de parte da remuneração bruta devida aos servidores, a ser incorporada ao patrimônio destes, embora, via de regra, posteriormente repassada à Administração à qual se vinculam. Tanto é que, na esteira da lição de Carlos Maurício Figueiredo e Marcos Nóbrega, “quando da declaração anual de ajuste do IRPF, é possível que o servidor, cotejando os valores pagos antecipadamente (retidos) e os gastos dedutíveis, tenha direito a receber restituição do valor pago a maior”.[9]

Em síntese, estamos diante de importante precedente, uma vez que se traduz em robusta sinalização acerca da forma que a presente composição da Corte se posicionará frente às questões fiscais que estão por vir. Isso porque, ao adotar essa postura, o Supremo relembra a sua função de Corte da Federação, destinada a coordenar divergências entre entes na busca de maior harmonia e melhor funcionamento do federalismo, mitigando as graves e indesejadas consequências que surgem dessa – muitas vezes conflituosa – relação.

E, nesse caso, consequências negativas é o que não faltam.

Por meio da exclusão de diversos itens para o cômputo da despesa com pessoal, alguns estados e municípios têm conseguido escapar das punições constitucionais e legais, aproveitando-se de “uma situação ilusória de atendimento dos limites impostos no artigo 20 da Lei de Responsabilidade Fiscal”, conforme pontuado na inicial apresentada pela então Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge.[10]

Retomando as palavras do relator, ratificada pelos demais integrantes do Tribunal, “interpretações extravagantes – ordinariamente placitadas pelos órgãos de contas locais – acabam por permitir que a despesa declarada surja numericamente inferior àquela efetivamente concretizada”.

Para os governantes essa maquiagem vem a calhar: além de se desviarem das sanções, conseguem aumentar sua popularidade junto a grupos de interesse do funcionalismo público, trunfo especialmente valioso em finais de mandato, conforme prevê a teoria econômica dos “ciclos políticos oportunistas”[11] e do “uso estratégico do orçamento”[12]. De modo similar, os Poderes Judiciário e Legislativo subnacionais, bem como os órgãos autônomos correspondentes (quais sejam, o Ministério Público e a Defensoria Pública Estaduais e os próprios Tribunais de Contas dos Estados) têm atuado, inclusive à revelia do Poder Executivo, para ampliar os respectivos limites para as despesas com pessoal.

Dados da Secretaria do Tesouro Nacional, consolidados no Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais de 2018, [13] mostram que essa estratégia têm sido usual. Em 2017, 14 entre os 27 estados excederam o limite de 60% da sua receita corrente líquida, chegando alguns a comprometer quase 80% dessa receita. No caso específico de Goiás, a atual Secretária de Fazenda, Cristiane Alkmin, sustenta que, sem maquiagens, essas despesas consumiram efetivamente 64% da citada receita em 2017[14].

A consequência nas contas públicas é inexorável: só em 2017, acumulou-se um déficit primário de R$ 13,9 bilhões e obteve-se resultado orçamentário negativo em escandalosos R$ 20,3 bilhões. Essa deterioração fiscal vem se intensificando diante do crescimento real (ou seja, descontada a inflação), na média dos estados, de 31,5% das despesas com pessoal nos últimos sete anos. Não é por coincidência que os estados com maiores proporções de gastos com pessoal encontram-se em situação de calamidade fiscal, comprometendo sua capacidade de investir e prover serviços e bens públicos de qualidade.

Mas a situação só chegou a esse ponto porque essa maquiagem fiscal tem sido respaldada e ratificada pelos tribunais de contas e legislativos subnacionais. Essa função fiscalizatória de acompanhamento desse limite a nível local é afetada pelo funcionamento de dinâmicas políticas específicas, como log rolling[15] (aprovação recíproca de projetos para beneficiamento mútuo), outros mecanismos específicos de predominância do Executivo[16] e ações de grupos de interesse encastelados na máquina pública.

Essa fragilidade institucional termina por inutilizar a função de sinalização dos órgãos fiscalizadores subnacionais: as contas dos governantes desses entes são aprovadas sem quaisquer efeitos dissuasórios no que tange aos artifícios contábeis apontados e sem comunicar à sociedade o grau de comprometimento dos gestores públicos com a responsabilidade fiscal. O resultado é uma população que não consegue diferenciar bons e maus governantes[17], o que perpetua o desequilíbrio orçamentário desses entes e joga para o governo federal o ônus de salvar (e perdoar) os estados e municípios por suas condutas pródigas, a duras penas para a sociedade como um todo.

É unânime na literatura e entre os especialistas no assunto que esse problema é uma bomba relógio prestes a estourar. E não foi por falta de tentativas do governo federal que isso ainda não foi resolvido. No entanto, os aspectos federativos que lhe dão contorno são tão complexos que exigem a atuação harmônica e coordenada dos Poderes em prol de uma maior responsabilidade fiscal por todos os entes federados.

Desde 2000 tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 3.744/2000, que cria o Conselho de Gestão Fiscal (CGF), instância competente, segundo a LRF, para dirimir divergências fiscais e de contabilidade, cujas decisões serão cogentes para todos os entes. Se aprovado, o conselho terá a função de harmonizar e uniformizar diferentes interpretações sobre questões fiscais, inclusive sobre a fórmula de cômputo das despesas com pessoal. Em junho, o projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados e agora será apreciado pelo Senado Federal.

No entanto, convém frisar que, embora as normas sejam comuns, conforme competência derivada da LRF, a sua aplicação se dá de maneira autônoma pelos tribunais de contas dos três níveis de governo, amparados no art. 71, combinado com o art. 75, da Constituição Federal, que reserva a esses órgãos o julgamento “das contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta”. Sinteticamente, o exercício da interpretação é inerente ao ato de julgar. Isso pode explicar, por exemplo, as dificuldades da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) para, em substituição ao CGF, harmonizar, por exemplo, o conceito de despesa total com pessoal.[18] Como observado por C. Alexandre A. Rocha:[19]

Chega a ser surpreendente que uma Federação tão fortemente interdependente, ancorada em transferências e garantias intergovernamentais, não tenha, desde a sua concepção, priorizado um marco legal indutor de práticas contábeis uniformes – essenciais para a obtenção de medidas incontroversas de capacidade fiscal.

No intuito de contornar esse obstáculo em definitivo, a Proposta de Emenda à Constituição nº 188, de 2019, atribui duas novas competências ao TCU, quais sejam:

  1. consolidar a interpretação das leis complementares sobre finanças públicas por meio de orientações normativas;
  2. anular decisão dos tribunais de contas subnacionais que contrariem as suas orientações normativas, fixar prazo para nova deliberação e avocar a decisão em caso de descumprimento continuado.

Por ora, de modo paliativo, fóruns de tribunais de contas têm tentado uniformizar entendimentos acerca da questão, sem, contudo, ter poder de cogência. O IV Fórum do Programa de Modernização do Sistema de Controle Externo dos Estados, Distrito Federal e Municípios Brasileiros (Promoex)[20], em 2007, concluiu, pela unanimidade dos presentes, que as despesas com inativos e pensionistas integram a base de cálculo do cômputo das despesas com pessoal uma vez que não integram o rol de exclusões contidas na lei. Ademais, com o apoio de 95% dos técnicos, acordou-se que todas as receitas devem ser registradas pelo seu valor bruto para fins do cálculo da receita corrente líquida, de modo que a exclusão do IRRF não teria sustentação jurídica ou contábil.

Mais recentemente, o Ministério da Fazenda, agora Economia, vem tentando resolver o problema mediante a apresentação de propostas de alteração da LRF, para padronizar e tornar mais claras as regras de cálculo dos gastos com pessoal, esclarecendo pontos que foram objeto de discussão no âmbito dos fóruns mencionados anteriormente.

O Projeto de Lei Complementar nº 257/2016, por exemplo, continha extensa lista de medidas voltadas para a recuperação do equilíbrio fiscal por parte dos entes subnacionais, envolvendo, inclusive, a harmonização de conceitos contábeis. O art. 14 da proposição, a título ilustrativo, modificava o art. 18 da LRF para melhor precisar as despesas totais com pessoal.[21] Como clara demonstração das dificuldades enfrentadas, poucas dessas medidas acabaram incorporadas na norma resultante (Lei Complementar nº 156/2016), a começar pela definição das despesas com pessoal.

Mais recentemente, o Projeto de Lei Complementar nº 149/2019, que tramita na Câmara dos Deputados desde junho de 2019, contém propostas similares no bojo do novo Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal, e do novo Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal.

Atenta a esse contexto dialógico com os demais Poderes, o STF tomou a decisão constitucional mais adequada às peculiaridades do federalismo brasileiro e coibiu comportamentos estratégicos com efeitos perniciosos para toda a sociedade, contribuindo ainda, por meio da uniformização de entendimentos constitucionais, para a estruturação de um modelo institucional sustentável, conforme a literatura especializada[22].

Ao tratar dos “efeitos sistêmicos do decidido”, não foi outra a conclusão alcançada pelo Ministro Marco Aurélio ao destacar “a particular importância de pronunciamento do Supremo sinalizando aos entes federados e respectivos órgãos de controle a necessidade de adotarem-se critérios claros e unívocos para a depuração dos valores efetivamente comprometidos com o pagamento de despesas com pessoal”.

Espera-se que o STF volte a se pronunciar sobre esse tema brevemente, uma vez que o Partido Novo acabou de ajuizar a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 69, com pedido de medida liminar, no intuito de confirmar a constitucionalidade dos dispositivos da LRF que tratam do limite das despesas com pessoal, especialmente a inclusão no citado limite dos gastos com inativos e pensionistas.[23] A legenda sustenta, com razão, que alguns tribunais de contas estaduais têm manipulado o conceito de despesas com pessoal para que os governos locais, assim como os respectivos Poderes e órgãos autônomos, possam ampliar as suas despesas. O partido pede a concessão de medida cautelar suspendendo as decisões administrativas que tratam da aplicação dos arts. 18 e 19, §§ 1º e 2º, da LRF.

Ainda que as disputas concretas entre a União e os entes subnacionais tendam a continuar favorecendo estes últimos (amplamente tidos como hipossuficientes, até por força da centralização de competências legislativas na esfera federal), quando se chega ao ponto de o desvirtuamento ser positivado na própria constituição estadual ou outros instrumentos legais, o STF não pode deixar de atuar, ao menos no âmbito abstrato, para coibir esse comportamento e proporcionar maior segurança jurídica no sentido da máxima efetividade da LRF.  É o mínimo que se espera de uma corte federativa.

[1] Classe processual sobre os conflitos entre, por exemplo, a União e os estados.

[2] TOMAZELLI, I; MOURA, R. M. “Estados ganham em 87% das vezes em que entram no STF contra a União, mostra estudo”. Terra, 21/08/2019. Disponível em: https://www.terra.com.br/economia/estados-ganham-em-87-das-vezes-em-que-entram-no-stf-contra-a-uniao-mostra-estudo,cd8588b7f76235961d39abab43c6cd6bnrlaorci.html. Acesso em 21/02/2020.

[3] Vide: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=423331. Processo disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5691704. Acesso em 21/02/2020.

[4] A Corte também se manifestou contrariamente à correção dos gastos com educação e saúde pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo do exercício anterior, a exemplo do admitido no programa federal de ajuste fiscal.

[5] Art. 18. Para os efeitos desta Lei Complementar, entende-se como despesa total com pessoal: o somatório dos gastos do ente da Federação com os ativos, os inativos e os pensionistas, relativos a mandatos eletivos, cargos, funções ou empregos, civis, militares e de membros de Poder, com quaisquer espécies remuneratórias, tais como vencimentos e vantagens, fixas e variáveis, subsídios, proventos da aposentadoria, reformas e pensões, inclusive adicionais, gratificações, horas extras e vantagens pessoais de qualquer natureza, bem como encargos sociais e contribuições recolhidas pelo ente às entidades de previdência.

Art. 24. Nenhum benefício ou serviço relativo à seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a indicação da fonte de custeio total, nos termos do § 5º do art. 195 da Constituição, atendidas ainda as exigências do art. 17.

§2º O disposto neste artigo aplica-se a benefício ou serviço de saúde, previdência e assistência social, inclusive os destinados aos servidores públicos e militares, ativos e inativos, e aos pensionistas. [Grifos nossos.]

[6] Art. 55. O relatório conterá:

  1. a) despesa total com pessoal, distinguindo a com inativos e pensionistas;

Art. 59. O Poder Legislativo, diretamente ou com o auxílio dos Tribunais de Contas, e o sistema de controle interno de cada Poder e do Ministério Público, fiscalizarão o cumprimento das normas desta Lei Complementar, com ênfase no que se refere a:

§1º Os Tribunais de Contas alertarão os Poderes ou órgãos referidos no art. 20 quando constatarem:

IV – que os gastos com inativos e pensionistas se encontram acima do limite definido em lei;

[7] NERY, P. F. Como decidem os Ministros do STF: pontos ideais e dimensões de preferências. Dissertação de mestrado, Departamento de Economia / Universidade de Brasília, Brasília, 2013, p. 145. Disponível em:  https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/13565/1/2013_PedroFernandoAlmeidaNeryFerreira.pdf. Acesso em 21/02/2020.

[8] Ação que tem por objetivo a declaração de inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo federal ou estadual. Nesse tipo de ação, é feita a análise em abstrato da norma impugnada, sem avaliar sua aplicação a um caso concreto.

[9] FIGUEIREDO, C. M.; NÓBREGA, M. Responsabilidade fiscal: aspectos polêmicos. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 216.

[10] Videhttp://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749782919&prcID=5691704#page=12. Acesso em 21/02/2020.

[11] NORDHAUS, W. The political business cycle. Review of Economic Studies, v. 42, 1975, pp. 169-190.

[12] TABELLINI, G.; ALESINA, A. Voting on the budget deficit. American Economic Review, v. 80, n. 1, 1990, pp. 37-49.

[13] Disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/-/boletim-de-financas-dos-entes-subnacionais-2018. Acesso em 21/02/2020.

[14] PUPO, F. “Gasto com pessoal deve ter regra única na LRF”. Valor Econômico, 07/05/2019. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/05/07/gasto-com-pessoal-deve-ter-regra-unica-na-lrf.ghtml. Acesso em 28/02/2020.

[15] BELLON, G. L. A. Constituições estaduais pós-1989: o processo de emendamento e seus determinantes. Dissertação de mestrado, Departamento de Ciência Política / Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 153. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-14032016-101816/pt-br.php. Acesso em 02/03/2020.

[16] ABRUCIO, F. L.; COSTA, V. M. F. Reforma do estado e o contexto federativo brasileiro. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 1999.

[17] ECHEVERRIA, A. Q. D; RIBEIRO, G. F. O Supremo Tribunal Federal como árbitro ou jogador? As crises fiscais dos estados brasileiros e o jogo do resgate. Revista Estudos Institucionais, v. 4, n. 2, pp. 642-671, 2018. Disponível em: https://www.estudosinstitucionais.com/REI/article/view/249. Acesso em 02/03/2020.

FERREIRA, D. C.; MENEGUIN, F. B.; BUGARIN, M. S. Responsabilidade fiscal, a atuação do Poder Judiciário e o comportamento estratégico dos governantes. Texto para Discussão do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal n. 241, 2017. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/532798. Acesso em 02/03/2020.

[18] ROCHA, C. A. A. A despesa total com pessoal na ótica da STN e dos tribunais de contas estaduais e municipais. Boletim Legislativo da Consultoria Legislativa do Senado Federal nº 71, 2018. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/boletins-legislativos/bol71. Acesso em 21/02/2020.

[19] ROCHA, C. A. A. O Conselho de Gestão Fiscal e o Stabilitätsrat: contrastes e lições. Boletim Legislativo da Consultoria Legislativa do Senado Federal nº 78, 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/boletins-legislativos/bol78. Acesso em 21/02/2020.

[20] Disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr5/publicacoes/publicacoes-diversas/relatrio_promoex.pdf. Acesso em 02/03/2020.

[21] Os novos §§ 3º e 4º tratariam justamente dessas despesas. O primeiro estabelecia que seria considerada despesa com pessoal, segregada por cada poder e órgão, o total da despesa com inativos e pensionistas dos Poderes ou dos órgãos, mesmo que seja financiada com recursos do Tesouro, inclusive as despesas com inativos e pensionistas que compõem o déficit do Regime Próprio de Previdência Social. Já o segundo previa que, para a apuração da despesa total com pessoal, deveria ser observada a remuneração bruta do servidor, nela incluídos os valores retidos para pagamento de tributos.

[22] TUSHNET, M. Weak courts, strong rights: judicial review and social welfare rights in comparative constitutional law. Princeton: Princeton University Press, 2008.

ROSENBERG, G. The hollow hope: can courts bring social change? Chicago University Press, 2008.

COOTER, R. D. Strategic constitution. Princeton: Princeton University Press, 2002, p. 14.

[23] Vide: http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=438089. Acesso em 02/03/2020.

]]>