Relações econômicas com o exterior – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Tue, 21 Jun 2022 20:45:12 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 A entrada do Brasil na OCDE https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3635&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-entrada-do-brasil-na-ocde Tue, 21 Jun 2022 20:45:12 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3635 A entrada do Brasil na OCDE: oportunidades e desafios

 

Por Kelvia Frota de Albuquerque*

 

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE é um organismo internacional que atua na melhoria da governança global por meio da promoção do diálogo colaborativo. Trata-se de um think tank que atua nos mais variados campos de política pública definindo padrões de boas práticas por meio de discussões  realizadas em mais de 300 instâncias técnicas[1] e de um acervo de 257 instrumentos legais[2] – o chamado acquis da Organização.

A OCDE possui ampla credibilidade internacional e os seus atuais 38 países-membros[3], que  totalizam mais de 60% do PIB mundial, compartilham valores democráticos tendo como base o Estado de Direito, a adesão a políticas abertas, inclusivas e transparentes, fundadas nos princípios da economia de mercado e do crescimento econômico sustentável[4].

O modus operandi da Organização é baseado em soft power, no compromisso político e moral em torno do alinhamento aos instrumentos legais que compõem o acquis, a maior parte deles não vinculante,  abrangendo enunciados de caráter mais amplo que podem ser cumpridos com relativa flexibilidade, tendo em consideração o arcabouço institucional-legal do país em questão.

Após o processo de acessão e, de modo geral, no âmbito da OCDE o que se espera é um maior nível de conformidade aos seus instrumentos legais ao longo do tempo. Em vez de mecanismos rígidos de solução de controvérsias, a tônica é a “pressão dos pares” para garantir o alinhamento aos padrões definidos, e isso é feito, principalmente, por meio da realização de revisões interpares[5] periódicas.

Uma organização na qual se destacam a natureza técnica e a fluidez do soft power possui vantagens comparativas para encaminhar discussões complexas e que envolvem múltiplos interesses, mais difíceis de conciliar e de avançar em outros fóruns. Um bom exemplo disso foi o anúncio feito em 2021 pela OCDE, em parceria com o G-20, sobre a aprovação de um acordo de princípios para a adequação do sistema de tributa­ção internacional aos desafios da economia digital[6], com novas regras para alocação de direitos tributários entre jurisdições de origem da empresa e de consumo, no caso de grandes empre­sas multinacionais, e a definição de patamar mínimo de tributa­ção corporativa.

Há mais de 20 anos, mantemos relacionamento intenso e mutuamente benéfico com a OCDE. O Brasil é o país não-membro a participar do maior número de instâncias – mais de 40 – e a ter aderido ao maior número de instrumentos legais da Organização – 112 dos 257.

Em maio de 2017, como desdobramento de um relacionamento longevo e vislumbrando os benefícios de uma maior inserção  internacional[7], o Brasil formalizou solicitação para se tornar membro pleno da Organização.

A acessão à OCDE, além de ter sido referendada pelo atual governo, tornou-se uma prioridade e no dia 25 de janeiro passado a OCDE convidou o Brasil para iniciar a discussão sobre o processo de acessão[8], juntamente com Argentina, Peru, Croácia, Bulgária e Romênia.

São inúmeras as vantagens de integrar a OCDE: participar ativamente da definição de padrões internacionais e lastrear políticas públicas nas melhores práticas internacionais; aprender com a experiência dos países membros e participantes; acessar o acervo de dados sobre diferentes países e variados temas de interesse; ter maior inserção nas cadeias globais de valor e maior volume de recursos para investimentos no país; ter padrão mais elevado de qualidade regulatória e um melhor ambiente de negócios e aprimorar a governança pública, para mencionar algumas. Em suma, entrar na Organização significa maiores oportunidades de investimento, melhores políticas públicas e maior facilidade para a realização de negócios. Na prática, tudo isso pode ser traduzido em mais emprego e mais renda para os brasileiros.

Mas ingressar no “clube de boas práticas” é um processo trabalhoso e que envolve extensa preparação. Tanto o convite para iniciar o processo de acessão – que recebemos agora, quanto o convite para ingressar, de fato, na Organização, ao final do processo, precisam ser aprovados por consenso entre os 38 países-membros.

A partir de agora, nova etapa de muito mais trabalho e engajamento se inicia, sendo imprescindível o esforço coordenado dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, do setor privado e da sociedade civil. Além, claro, dos estados e dos municípios.

Acabamos de receber da OCDE o Roadmap[9]– roteiro para o processo de acessão, que foi aprovado na recente reunião do Conselho de Ministros, com a definição dos comitês que irão analisar tecnicamente a legislação, as políticas e as práticas do Brasil e que traz o detalhamento de como será realizado trabalho a partir de agora.

Como próximo passo, o Brasil deverá apresentar o Initial Memorandum, que conterá uma autoavaliação sobre o grau de alinhamento da legislação, das políticas e das práticas nacionais aos instrumentos legais da OCDE. Em seguida, haverá o exame detalhado perante os comitês definidos no Roadmap e de acordo com os critérios lá estabelecidos.

O processo após o convite formal para iniciar o processo e a efetivação de um novo membro pode levar em torno de 4 anos e depende, fundamentalmente, da velocidade que o país candidato imprime às intensas atividades envolvidas e às eventuais alterações legislativas necessárias para o alinhamento aos padrões da Organização.

A preparação da Administração Pública Federal já estava em andamento desde 2017 e segue a pleno vapor, sob coordenação das instâncias de governança estabelecidas pelo Decreto nº 9.920/2019. Foram instituídos um Conselho de Ministros e um Comitê Gestor para a preparação e o acompanhamento do processo de acessão, ambos integrados pela Casa Civil, que os coordena, Secretaria-Geral e Secretaria de Governo, da Presidência da República, e Ministérios da Economia e das Relações Exteriores.

Levando em conta o trabalho de alinhamento aos instrumentos legais da OCDE já realizado até agora, é possível prospectar que alguns dos maiores desafios no âmbito do caminho rumo à acessão serão os de natureza tributária e financeira, sobre meio ambiente e os relativos a alguns setores específicos.

Sobre temas tributários e financeiros, podemos citar o alinhamento necessário a respeito das regras sobre preços de transferência[10] e o novo acordo para a tributação internacional, por exemplo.

Em relação ao meio ambiente, o Brasil aguardava resposta da OCDE sobre a solicitação de adesão a 37 instrumentos legais.  Relatório da Organização sobre o alinhamento do País[11] aos principais instrumentos na área e avanços com relação a recomendações recebidas em 2015 foi publicado em 2021 e ajuda a traçar um panorama das principais questões nessa área.

O estudo aponta que o Brasil desenvolveu legislação sólida sobre informações ambientais, água, gestão de resíduos e biodiversidade e que o maior desafio é o da implementação: colocar em prática as disposições legais, garantir recursos financeiros e humanos suficientes e melhorar a coordenação entre os níveis de governo. Seria preciso também avançar no sentido de melhores avaliações de impacto ambiental e de mitigação de impactos mais eficazes.

Existem, ainda, questões pontuais relativas a setores específicos que precisam ser mais profundamente discutidas.

Desafios são naturais do processo de convergência aos padrões da OCDE, estão presentes em qualquer processo de acessão à Organização e servirão para impulsionar o debate sobre temas de grande relevância. Assim, vale observar que o processo de acessão, em si, já traz o benefício de propiciar esse tipo de discussão mais aprofundada sobre políticas públicas.

Em conclusão, o ingresso na OCDE é uma agenda de Estado que pode ancorar as transformações necessárias para que sejam aprimoradas as políticas públicas no País, traduzindo-se em progresso e avanço para o Brasil e para os brasileiros. Agora, já com o Roadmap do processo de acessão, é possível ter clareza sobre as próximas etapas e há muito trabalho pela frente. Sigamos adiante!

 

 

[1] A OCDE conta com 38 comitês, inúmeros grupos de trabalho, forças-tarefa, fóruns e instâncias técnicas afins. Para detalhes da estrutura organizacional, consultar: www.oecd.org/about/structure/.

[2] Íntegra dos instrumentos legais da OCDE disponível em: www.oecd.org/legal/legal-instruments.htm.

[3] Lista completa dos países membros da OCDE disponível em: www.oecd.org/about/document/ratification-oecd-convention.htm.

[4] A declaração de valores, visão e prioridades expressa no aniversário de 60 anos da OCDE menciona explicitamente: “We form a like-minded community, committed to the preservation of individual liberty, the values of democracy, the rule of law and the defence of human rights. We believe in open and transparent market economy principles. Guided by our Convention, we will pursue sustainable economic growth and employment, while protecting our planet. Our shared endeavour is to end poverty, to tackle inequalities and to leave no one behind. We want to improve the lives and prospects of everyone, inside and outside the OECD. As a global pathfinder, the OECD will therefore continue to develop evidence-based analysis that helps generate innovative policies and standards to build stronger, more sustainable and more inclusive economies, inspiring trust and confidence for resilient, responsive and healthy societies.” Vide: https://one.oecd.org/document/C/MIN(2021)16/FINAL/en/pdf.

[5] Revisão interpares (peer review) é o processo pelo qual a qualidade e a eficiência de políticas, práticas e instituições de um país são examinados vis-à-vis seus pares em um contexto colaborativo e de aprendizado mútuo.

[6] Para maiores detalhes, consultar:  https://www.oecd.org/tax/beps/statement-on-a-two-pillar-solution-to-address-the-tax-challenges-arising-from-the-digitalisation-of-the-economy-july-2021.htm.

[7] Para maiores detalhes sobre os benefícios de uma maior integração do Brasil à economia global, verificar OECD (2020), OECD Economic Surveys: Brazil 2020, OECD Publishing, Paris, disponível em  https://doi.org/10.1787/250240ad-en., especialmente itens 2.39 a 2.45.

[8] Íntegra da decisão disponível em: www.oecd.org/newsroom/Resolution-of-the-Council-on-the-Opening-of-Accession-Discussions-C-2017-92-final.pdf

 

[9] Íntegra do Roadmap disponível em: www.oecd.org/mcm/Roadmap-OECD-Accession-Process-Brazil-EN.pdf.

[10] Nas palavras da OCDE, as regras de preços de transferência visam garantir que os lucros decorrentes das transações comerciais e financeiras entre os membros de um grupo multinacional sejam alocados de forma que seja refletido o valor aportado por cada parte.  Tais regras devem garantir a segurança da base tributável adequada, que pode se esvair com a transferência de lucros para jurisdições com baixa ou nenhuma tributação. Por outro lado, essas regras impedem a dupla tributação, a distorção das decisões de investimento e a concorrência desleal entre empresas. Para maiores detalhes, vide: www.oecd.org/tax/transfer-pricing/transfer-pricing-in-brazil-towards-convergence-with-the-oecd-standard.pdf e Lima, Pedro Garrido da Costa; Santos, Paula Gonçalves Ferreira, Brasília: Câmara dos Deputados, Consultoria Legislativa, 2020. Os códigos de liberação e os preços de transferência da OCDE e impactos no Brasil, disponível em:  https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/40096.

[11] Disponível em: www.oecd.org/environment/country-reviews/Brazils-progress-in-implementing-Environmental-Performance-Review-recommendations-and-alignment-with-OECD-environment-acquis.pdf.

 

* Kelvia Frota de Albuquerque é formada em economia pela Universidade de Brasília, com pós-graduação em administração pública pela Fundação Getulio Vargas, servidora pública federal, atualmente é diretora na Secretaria Executiva do Ministério da Economia.

 

 

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O Papel das Organizações Internacionais na Integração da América Latina https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3510&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-papel-das-organizacoes-internacionais-na-integracao-da-america-latina Tue, 19 Oct 2021 05:06:12 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3510 O Papel das Organizações Internacionais na Integração da América Latina[1]

 Por Eiiti Sato*

Para se compreender adequadamente o papel das organizações internacionais no processo de integração da América Latina é importante retomar alguns conceitos centrais, uma vez que são frequentes os vícios no entendimento do próprio conceito de organização internacional, de seus propósitos e, principalmente, de suas limitações. Por exemplo, é muito comum entender-se que a ONU é uma instância fracassada já que, desde a sua criação, ocorreram muitos conflitos armados. Trata-se, obviamente, de um entendimento equivocado do que, de fato, seria a instituição. Com efeito, a ONU não foi criada para funcionar como um substitutivo para a guerra. Na realidade, a ONU foi criada com um propósito bem menos presunçoso e mais humano, que é o de promover a paz, isto é, foi criada para estender pontes de entendimento e oferecer mais uma instância de negociação aos canais diplomáticos tradicionais e, dessa forma, aumentar as chances de prevenir conflitos.

O fato é que, embora seja possível enumerar os conflitos armados que ocorreram desde a criação da ONU, em 1945, não é possível enumerar os conflitos que foram evitados pela interveniência da ONU que, geralmente, de modo discreto, por meio dos debates na Assembleia Geral e dos órgãos que compõem o Sistema ONU, promove reuniões diplomáticas, mantém canais permanentemente abertos para consultas e, em muitos casos, realiza ações diplomáticas e humanitárias que, com pouco ruído, ajuda a reduzir tensões e abre caminho para o entendimento.

De forma genérica, as organizações internacionais podem ser definidas como entidades formadas por Estados Nacionais que, por meio de seus governos, se associam formalmente com o propósito de manejar de forma cooperativa e articulada as questões que afetam esses Estados. A partir da Segunda Guerra Mundial as organizações internacionais tornaram-se mecanismos diplomáticos que ajudam na coordenação de esforços em torno de questões econômicas, sociais e políticas que caracterizam o modo de vida nas sociedades modernas. A história recente mostra que a expansão das organizações internacionais a partir da segunda metade do século XX foi um processo sistêmico, isto é, ao mesmo tempo que ajudou para que a dimensão internacional se tornasse parte do dia-a-dia de governos, empresas e instituições, o processo também ajudou para que se estabelecesse um crescente número de redes internacionais na economia, nas ciências e na vida cultural e social das nações.

Esse processo, no entanto, não foi homogêneo. Há áreas da atividade humana em que a integração internacional avançou mais, enquanto é possível observar que em outras atividades a integração internacional não avançou tanto. Do mesmo modo, é possível observar que em algumas partes do mundo a integração regional e internacional avançou com mais vigor do que em outras regiões. No caso da América Latina, objeto desta análise, verifica-se que a região não está entre aquelas nas quais os processos de integração mais avançaram. As razões são várias, mas é possível compreender essas razões agrupando-as em dois conjuntos: as razões que derivam dos desenvolvimentos estruturais na esfera internacional, e as razões que derivam do dinamismo dos países que compõem a região. Nesta análise, o foco ficará concentrado no dinamismo dos países, uma vez que esse fator depende diretamente das políticas e das iniciativas praticadas pelos governos.

Um referencial teórico para a integração internacional

Uma obra importante sobre o tema da integração internacional, hoje pouco lembrada, é a obra Swords Into Plowshares: The Problems and Progress of International Organization de autoria de Inis Claude.[2] A obra se concentra na formação da Organização das Nações Unidas – ONU e de seu papel nas relações internacionais, no entanto, vale considerar que, do ponto de vista da lógica de funcionamento, organizações como a ONU não diferem de organizações regionais. Na realidade as reflexões anteriores como a de Abbé de Saint-Pierre e de Simon Bolívar eram voltadas para a integração regional.[3] No capítulo inicial Inis Claude formula as condições para a existência de uma organização internacional: 1) a existência de Estados estáveis; 2) contato relativamente intenso e sistemático entre as sociedades que compõem esses Estados; 3) a existência de percepção de que há uma realidade distinta que surge a partir da coexistência entre os Estados; e 4) o reconhecimento de que muitos problemas só podem ser adequadamente abordados por meio de arranjos e mecanismos internacionais.

A primeira das condições se refere basicamente ao período em que o sistema de Estados Nacionais ainda estava em formação. Foi um longo período que se estendeu do século XVII até os fins do século XIX. Com efeito, os tratados internacionais que geram instituições visam à continuidade e à permanência das relações entre povos e, assim, não faz sentido pensar em tratados entre Estados signatários que, a qualquer momento, simplesmente podem deixar de existir, sendo incorporados a outros Estados, ou que podem ser fragmentados formando novos Estados. Vale lembrar que as fronteiras da Europa foram modificadas profundamente na esteira da Primeira Guerra Mundial e que, na primeira metade do século XX, houve uma segunda onda de descolonização fragmentando impérios e formando dezenas de novos países. Esses fatos explicam porque as iniciativas de formação de arranjos internacionais na Europa, como a de Abbé de Saint-Pierre, e nas Américas como a de Bolívar e da União Pan-Americana de James Blaine não prosperaram.

A segunda condição apontada por Inis Claude, refere-se ao fato de que a primeira motivação para que se constitua uma organização internacional, inclusive as organizações regionais, é a existência de uma forte interação entre as nações. Essa interação pode ir além dos interesses econômicos, muito embora na maioria das vezes as trocas comerciais e os fluxos financeiros estejam entre as principais formas de interação. Na história da Europa, por exemplo, por séculos, a religião foi um fator de notável importância, especialmente na conformação dos códigos de convivência social e das instituições políticas. Além disso, também por séculos, casamentos entre casas reais podiam levar a uniões políticas, assim como a guerras e conflitos em torno de disputas dinásticas. A Guerra dos Cem Anos (1337-1453) teve como início a reivindicação do trono da França pelo Rei Eduardo III da Inglaterra, que era neto de Felipe o Belo, um dos reis mais notáveis da história da França. Durante a guerra houve intenso intercâmbio de pessoas, casamentos entre nobres franceses e ingleses, além de intercâmbio cultural sob as mais variadas formas. Por outro lado, o nível e a intensidade da interação explicam em grande parte a formação de arranjos regionais, uma vez que, naturalmente, os países situados numa mesma região geográfica tendem a apresentar mais oportunidades de interação política, econômica, social e cultural.

A terceira e a quarta condições apontadas por Inis Claude, são os elementos que ajudam a explicar mais diretamente o surgimento de propostas de formação das modernas organizações internacionais. A interação sistemática efetivamente cria uma realidade distinta da ação externa de cada unidade. Ainda no século XIX, foram surgindo as organizações técnicas de pouco conteúdo político. Com efeito, o interesse em disseminar o emprego de unidades de medida comuns e de padrões técnicos que facilitassem o comércio e a fabricação de produtos fez emergir sem grandes dificuldades várias organizações voltadas para o estabelecimento de normas técnicas internacionais, de proteção de direitos de patentes e de esforço no sentido de organizar as comunicações internacionais (correios, telégrafos e viagens). Essas organizações, por seu baixo conteúdo político, não atraíam os intermináveis debates envolvendo arranjos internacionais. Na esteira das duas conferências de paz da Haia (1899 e 1907) foram propostas a formação de uma Corte Permanente de Arbitragem e de uma Corte Internacional de Justiça, que se consolidaram institucionalmente com a criação da Liga das Nações em 1919.

Assim, a existência de organizações internacionais como as conhecemos atualmente, tem pouco mais de um século de existência. O período em que realmente as organizações internacionais passaram a fazer parte da prática diplomática em termos regulares começa com a crise da década de 1930, que deixara claro que havia uma verdadeira “ordem econômica internacional”. As tentativas dos EUA de resolver unilateralmente os problemas da Grande Depressão fracassaram, revelando que, mesmo sendo a mais rica e poderosa entre as nações, sua economia fazia parte de um sistema econômico internacional e que, portanto, qualquer solução precisava incluir a cooperação internacional por meio de tratados, acordos e até mesmo de instituições permanentes. Na esfera política, um dos efeitos mais notáveis extraídos a experiência trágica da Segunda Guerra Mundial foi a percepção de que a política internacional, mesmo em ambiente de tensão, passava a demandar a formação de instituições de cooperação internacional em bases regulares. É nesse quadro que vão se consolidar a ONU, as instituições de Bretton Woods, o Gatt e o movimento pela integração europeia. Também foi na esteira da Segunda Guerra Mundial, o Movimento por uma Europa Unida assumiu dimensão formal resultando na formação da Europa das Comunidades: a Comunidade do Carvão e do Aço, a Comunidade Europeia de Energia Atômica, a Comunidade Econômica Europeia (CEE) e a Associação Europeia de Livre Comércio (AELC).

A integração regional e suas dificuldades

Como já mencionado, nas Américas do século XIX, ocorreram as primeiras iniciativas de integração. O movimento panamericanista iniciado por Bolívar com a realização do Congresso do Panamá, em 1826, serviu para chamar a atenção para o fato de que havia um Novo Mundo distinto da Europa, e que poderia desenvolver novos padrões para a convivência política regional e internacional. No final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX o movimento pelo Panamericanismo ganhou um novo colorido mais pragmático e mais orientado para a integração econômica sob a liderança dos Estados Unidos. No entanto, as grandes crises do século XX – as duas guerras mundiais e a depressão econômica da década de 1930 – mostraram de forma dramática que as Américas não poderiam seguir seu curso à margem da política e da economia que se tornaram efetivamente mundiais. Dessa forma, depois da Segunda Guerra Mundial, qualquer movimento no sentido da integração no Continente Latino- Americano teria que levar em conta o cenário internacional mais amplo, inclusive porque os EUA – a grande potência regional – haviam passado a se constituir também na potência central da ordem econômica e política mundial.

Nesse novo quadro, qualquer iniciativa regional no Continente Americano precisaria levar em conta as condições político-estratégicas mundiais que emergiram da Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, refletindo esse quadro, foram criadas instituições para dar sustentação aos regimes internacionais tanto na esfera política quanto econômica para os quais os Estados Unidos seriam o grande avalista. Assim, na esfera política, a Organização das Nações Unidas passava a ser o núcleo de um regime político em torno do qual as iniciativas regionais deveriam acomodar as instituições existentes ou que eventualmente viessem a ser criadas. A transformação da União Panamericana em Organização dos Estados Americanos em 1948 foi, tipicamente, um produto dessa acomodação. Na esfera da economia, a criação das instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial) e, mais tarde, a criação do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), que era uma das cinco comissões regionais do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas (Ecosoc). Esse conjunto de instituições refletiam a formação de regimes internacionais que deveriam servir de referenciais para quaisquer iniciativas econômicas regionais.[4]

Em virtude da notável supremacia americana, em que todas as nações da região tinham nos EUA o parceiro econômico mais relevante, os anos do pós-guerra foram marcados pela disseminação do interesse pela realização de negociações com os EUA com vistas à promoção da industrialização e do progresso econômico. O Brasil, por exemplo, já vinha ampliando suas relações com os Estados Unidos, seja para consolidar sua produção siderúrgica e modernizar sua agricultura, seja para abrir novas frentes por meio de cooperação com o governo e as instituições dos EUA. Por meio de um desses acordos foi possível instalar em São José dos Campos (SP) o Centro Tecnológico da Aeronáutica, que incluiu a criação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (1950). Os produtos desses acordos foram essenciais para que, no futuro, o Brasil viesse a desenvolver sua própria indústria de aviões. Outra iniciativa de cooperação com os EUA foi a instalação em 1951 da Comissão Mista Brasil-EUA para o Desenvolvimento Econômico no âmbito do Ministério da Fazenda. A iniciativa era resultante de negociações iniciadas em 1950 como parte do Programa Ponto IV anunciado pelo Presidente Truman tendo por base o entendimento de que os EUA poderiam – e deveriam – ajudar as nações em desenvolvimento da América Latina por meio da assistência técnica. Do ponto de vista do Brasil, como também das demais nações, havia a expectativa de que, de algum modo, essa cooperação com os EUA poderia repetir, ao menos em parte, o sucesso obtido pelo Plano Marshall na reconstrução europeia. Dessa forma, em grande medida, a diplomacia das nações latino-americanas se movia de modo semelhante à brasileira, procurando abrir canais de cooperação com os EUA, a grande potência regional e mundial.

No plano do comércio, o estabelecimento do GATT indicava que um regime internacional para o comércio seria estabelecido em torno de um acordo geral e não a partir de uma organização internacional. Esse acordo geral não criava deveres e obrigações comerciais específicas para as nações, estabelecia apenas normas gerais que deveriam orientar as trocas comerciais entre as nações. A maioria dos países, sobretudo a partir dos anos da grande crise da década de 1930, tinha assinado acordos comerciais com os EUA, ou participavam de arranjos sobre commodities que começaram a se formar depois da Primeira Guerra Mundial, e que se aceleraram a partir da crise da década de 1930. As principais motivações para esses acordos comerciais eram o interesse generalizado pela redução da volatilidade dos mercados de commodities e também a preocupação com a preservação dos mercados domésticos de trabalho.[5]

Pela cláusula XXIV, o Gatt abria a possibilidade de que arranjos regionais pudessem ser estruturados sem ferir o princípio geral da nação mais favorecida que as partes contratantes do Gatt deveriam respeitar. Ou seja, qualquer arranjo regional é motivado pelo entendimento de que seus integrantes podem oferecer mutuamente vantagens que não têm condições de oferecer às economias não integrantes do arranjo regional. Dessa forma, o artigo XXIV abria a possibilidade de que arranjos regionais se formassem sem caracterizar desrespeito ao princípio da nação mais favorecida. Todos os governos integrantes do GATT entendiam que o objetivo maior do GATT era o de promover a expansão do comércio, principalmente por meio da redução ou da eliminação de tarifas e de outras barreiras comerciais e que, um tal objetivo, na maioria das vezes, não poderia ser atingido de forma homogênea e simultaneamente, por todas as economias, integrantes ou não do GATT.

Na realidade, após o final da Segunda Guerra Mundial, o ambiente político na Europa era francamente marcado pela ideia de uma Europa unida. À época havia um atuante comitê de coordenação internacional dos movimentos para a unificação da Europa. Esse comitê organizou em Maio de 1948, um grande Congresso Europeu, que foi presidido por Winston Churchill, cuja liderança na luta contra o nazismo havia se destacado de forma notável. O congresso  contou com a participação de cerca de 800 delegados, que incluíam as mais notáveis lideranças europeias dos países vencedores e vencidos da Segunda Guerra Mundial. A partir de então a integração europeia efetivamente começara a ganhar forma institucional que resultaria em três organizações que serviriam da base para o que, mais tarde, viria a ser a União Europeia: a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1951), a Comunidade Europeia de Energia Atômica (1957), e a Comunidade Econômica Europeia (1957).

A “triangularidade” ma integração Latino Americana

Em virtude da centralidade da Europa no sistema internacional, esse movimento pela integração europeia revigorou o interesse pela integração regional, reforçando o entendimento de que a integração comercial constituía uma iniciativa necessária, inclusive para sustentar uma integração política. Assim, sob esse renovado interesse pela integração que se espalhou pelo mundo, na América Latina, em 18 de Fevereiro de 1960, foi assinado o Tratado de Montevideo que instituiu a Associação Latino-Americana de Livre-Comércio – Alalc – com o objetivo de promover a integração econômica na região. Foram signatários desse tratado Argentina, Brasil, Chile, México, Paraguai, Peru e Uruguai, aos quais se juntaram mais tarde Colômbia (1961), Equador (1962), Venezuela (1966}  e  Bolívia (1967). Em 1980, foi assinado um novo Tratado de Montevideo transformando a Alalc em Aladi (Associação Latino-Americana de em Integração). Essa transformação incorporava a experiência europeia que evidenciara o fato de que a integração regional era um processo que deveria evoluir gradativamente. Uma forma de dar curso a esse processo seria por meio da criação de arranjos sub-regionais na América Latina, permitindo assim maior flexibilidade aos movimentos de integração regional no Continente. Na realidade, essa transformação institucional atendia melhor a grande diversidade do Continente que, já em 1960, vira nascer o Mercado Comum Centro Americano e, em 1969, o Pacto Andino, como arranjos sub-regionais.

O fato é que a expansão da rede de organizações internacionais depois da Segunda Guerra Mundial, em princípio, podia ajudar o processo de integração regional no Continente ao facilitar a adoção de padrões universais que facilitavam a integração econômica, social e política. No entanto, ao mesmo tempo, essa expansão de organizações internacionais servia também para chamar a atenção de governantes sobre o fato de que havia sempre um mundo para além dos blocos regionais na América Latina que merecia alguma atenção. Em um sentido mais geral, a integração internacional em escala mundial foi um processo que avançou de forma substancial depois de 1945, em especial a partir da década de 1980 quando esse processo de integração internacional passou a ser chamado de “globalização”.

Em termos teóricos vale chamar a atenção para uma formulação de Rubens Ricupero que, ao analisar a política externa brasileira entre 1930 e 1990, argumentava que, tal como ocorria com outras nações latino-americanas, qualquer relação bilateral do Brasil na realidade precisava ser vista como uma “relação triangular”, na qual os EUA sempre ocupavam um dos vértices.[6] E esse fato ocorria não porque os EUA praticassem uma política intervencionista ou controladora dos destinos de seus vizinhos, mas simplesmente pela sua condição de grande potência e de maior economia do mundo. Essa condição significava que, para a maioria das nações da região, os EUA eram o mercado mais importante para suas exportações e também a principal fonte de oportunidades e de recursos financeiros.

Quando consideramos o que vem ocorrendo em relação à China nos últimos anos, essa hipótese se afigura bastante plausível, já que nos anos recentes, apesar da distância, a China tornou-se o maior mercado para as exportações brasileiras e vem crescendo de importância para muitas outras nações Latino-americanas. Conforme dados recentes, apenas 6,5% das importações brasileiras em 2020 vieram dos países do Mercosul enquanto, do lado das exportações, somente 6% dos produtos exportados pelo Brasil tiveram por destino os países do Mercosul. Por outro lado, esses dados se tornam ainda mais dramáticos se forem comparados com o comércio com a China que, em 2020, recebeu nada menos do que 32,4% do total exportado pelo Brasil enquanto, por outro lado, a China foi responsável por 21,7 % das importações brasileiras. Os dados mostram que outros países da região também seguem curso semelhante ao do Brasil. Por exemplo, em abril deste ano, a Argentina exportou US$ 509 milhões para a China enquanto para o mercado brasileiro, as exportações argentinas somaram apenas US$ 387 milhões. Ou seja, há muitas razões para entender que o “padrão triangular” continua vigente, mesmo com a mudança dos atores, isto é, o fenômeno do “padrão triangular” apontada por Ricupero tem mais a ver com a condição de grande potência do que com as políticas praticadas de forma deliberada para influenciar as economias da região.

A integração Latino Americana é, sem qualquer dúvida, um processo complexo, cujo sucesso ou fracasso depende de vários fatores. Entre os possíveis fatores, talvez o mais geral e mais decisivo seja o fato de que não tenha emergido na região uma ou mais potências em condições de exercer uma liderança efetiva no processo de integração. Neste caso, o termo liderança não se refere à disposição de governantes da região colocarem em prática políticas que considerem o exercício da liderança regional um objetivo supostamente desejável ou necessário para si e para a região. Refere-se, essencialmente, à existência de capacidade em termos de condições econômicas e políticas para exercer de forma natural o papel de liderança na região. Ou seja, refere-se ao tipo de liderança que não é conquistada pela retórica, ou pelo simples desejo de exercê-la por meio de uma diplomacia regional, mas sim pela posse da capacidade real em termos de recursos de poder, sobretudo econômicos, que permitam ao país representar oportunidades e meios para o progresso das nações vizinhas. Uma possibilidade mais atraente seria a ocorrência de mais de uma potência capaz de exercer essa liderança na região, como ocorreu na Europa depois da Segunda Guerra Mundial quando, além da liderança exercida ao menos por três potências (Grã-Bretanha, Alemanha e França), por diversas razões derivadas das circunstâncias, a integração europeia no pós-guerra contou também com a liderança exercida pelos EUA, que via na recuperação e desenvolvimento da Europa um elemento central para seu próprio progresso econômico e sua segurança estratégica.

Infelizmente, no caso da integração latino-americana não houve qualquer caso de liderança regional expressiva que pudesse desempenhar esse tipo de liderança. Tendo em vista o peso relativo da Argentina e do Brasil no Continente Sul-Americano, uma associação dessas duas nações, por exemplo, poderia formar efetivamente um eixo capaz de influenciar de maneira decisiva e muito positiva um processo de integração na região. No entanto, na ordem internacional do pós-guerra o quadro político e econômico nessas duas nações jamais se apresentou propício a um desenvolvimento nessa direção. Um raro e breve momento em que essa possibilidade se afigurou favorável resultou na formação do Mercosul que, ao longo dos anos 1990, parecia ter energia para impulsionar a integração regional.

Essa possibilidade, no entanto, revelou-se incapaz de sobreviver diante da evolução tanto do quadro econômico e político doméstico quanto da ordem internacional. Na ordem interna, tanto no Brasil quanto na Argentina, desde os fins da década de 1990, os vícios da velha política trouxeram de volta os baixos investimentos e as descontinuidades nas políticas de Estado. Por outro lado, no plano internacional, na esteira de uma nova onda de avanços tecnológicos, a globalização avançou alterando de forma bastante radical os padrões de investimento e de comércio em escala global. O baixo dinamismo das instituições econômicas e políticas tanto da Argentina quanto do Brasil, virtualmente, tornava inviável qualquer possibilidade desses países absorverem e participarem ativamente nas transformações mundiais em curso. A consequência óbvia é que os avanços na indústria e no comércio passaram a se concentrar nos polos mais dinâmicos da economia mundial, ou seja, nos EUA, na Europa e na Ásia. O fato é que a condição periférica da América Latina em termos econômicos e políticos tornou-se não apenas mais acentuada, mas também mais estruturalmente definida. Alguns dados referentes ao Brasil são ilustrativos desse fato.

Em termos gerais, a economia brasileira nos últimos anos tem crescido a taxas mais baixas do que a média mundial. De acordo com dados do Banco Mundial, entre 2005 e 2019, a taxa média de crescimento da economia mundial foi de 2,81% ao ano, enquanto a economia brasileira no período cresceu a uma taxa média de apenas 2,18% ao ano. Na realidade, foi uma taxa de crescimento mais baixo inclusive do que a da América Latina & Caribe que foi de 2,35% ao ano. Ou seja, um desempenho econômico bem pouco invejável e totalmente incapaz de motivar e de inspirar qualquer nação da região. Nesse sentido, a crescente influência da China na região, em grande parte pode ser explicada pelo seu desempenho econômico que, entre 2005 e 2019, cresceu a uma taxa de 8,94% ao ano, significando que a economia chinesa reunia com sobras as condições para se tornar uma alternativa atraente por oferecer crescentes oportunidades de investimentos e de modernização tecnológica.

Em termos econômicos, as taxas de crescimento dependem bastante das taxas de investimento total das nações e, nesse quesito, as perspectivas brasileiras não têm sido nada animadoras. Com efeito, as taxas de investimento total das nações são definidas como proporção do PIB e incluem tanto os investimentos públicos quanto os privados.[7] Um país como a China cujas taxas de crescimento têm ficado em torno de 9% ao ano, em 2018 seu investimento total foi de 44,27% do PIB, enquanto a média mundial oscilou entre 21% e 23% nos últimos anos. O Brasil, por sua vez, infelizmente tem mantido as menores taxas de investimento total entre as grandes economias. Há mais de duas décadas, os investimentos totais no Brasil tem permanecido próximo dos 6% abaixo da média mundial. Nos anos de 2016, 2017 e 2018 os investimentos totais da economia brasileira somaram apenas 14,97%, 15,01% 15,40% do PIB, respectivamente.[8] Essas cifras servem como boa parte da explicação para os baixos índices de crescimento da economia brasileira, especialmente quando se considera o fato de que os investimentos (ou a falta deles) são cumulativos. Em outras palavras, o baixo desempenho da economia brasileira não favorece a movimentação das forças econômicas voltadas para o regionalismo mas, ao contrário, a própria economia brasileira tem hoje como seus mercados principais a China, a União Europeia e os EUA. Os níveis notavelmente baixos dos investimentos ajudam a explicar também a crescente concentração na exportação de produtos de baixo valor agregado.[9] Apenas por um breve momento, no final da década de 1990, o Mercosul chegou a absorver quase 15% das exportações brasileiras e, mais recentemente, o mercado chinês também superou o mercado brasileiro para as exportações argentinas. Além disso, a própria teoria tradicional da integração já argumentava nas décadas de 1960 e 1970 que a concentração das exportações em bens de baixo valor agregado (bens primários) não ajudava o avanço da integração, uma vez que esses bens geralmente não abrem espaço para a complementaridade entre as economias da região.[10]

Enfim, o que se pode deduzir é que, apesar das transformações na economia mundial e na própria região, é preciso reconhecer a força e a persistência do argumento teórico da “triangularidade” que tem atuado contra as forças de integração, uma vez que em nenhum momento houve alguma potência na região que reunisse as condições para exercer efetivamente liderança econômica e política na região. Em suma, mesmo que se admita a existência de outros fatores, o pouco avanço das iniciativas de integração no Continente Latino-Americano, em larga medida, se deveu basicamente ao desempenho medíocre das grandes economias da região como a brasileira e a argentina na América do Sul e a mexicana na América Central e no Caribe.

Considerações finais

A título de reflexão final sobre o tema, parece oportuno comparar alguns aspectos da experiência de regionalismo na América Latina e Caribe com o processo de integração na Europa. De início, cabe apontar que a integração europeia tem por base uma longa história de integração. Na realidade, desde a Idade Média, a integração europeia sempre foi parte da vida econômica, política e social da Europa. Não apenas iniciativas como a Liga Hanseática caracterizaram essa integração histórica, mas os casamentos entre famílias reais, as instituições e práticas das corporações de ofício, a religião, a língua e até mesmo os muitos conflitos ao longo da turbulenta história europeia não deixavam de se constituir em facetas da intensa convivência entre as nações do continente. Do ponto de vista econômico, muito antes do estabelecimento da CEE o comércio intrarregional já era relevante para todas as nações europeias. Foi apenas a partir da era dos descobrimentos (século XVI) que a vida econômica europeia começou a se expandir para regiões e nações não europeias. Mesmo com o avanço da globalização nos fins do século XX, o comércio intrarregional para a maioria dos países que haviam passado a integrar a União Europeia sempre se manteve em níveis acima de 50%. No caso de outros arranjos regionais, como o Mercosul, por exemplo, o comércio intrabloco nunca teve uma importância comparável à dos países europeus. Dessa forma, não se pode argumentar que iniciativas de integração como as da América Latina devam ser consideradas fracassadas, mas apenas questionar se não poderiam ter ido um pouco mais além.

 Evolução das exportações brasileiras segundo o destino (%): 1990-2004.
Destino                                               1990                      1994                      1998                      2002                      2004
Países do Mercosul                      4,20                       13,59                     17,37                     5,48                       9,24
Outros membros ALADI               3,15                       4,70                       3,96                       6,30                       6,73
União Europeia                                32,36                     28,01                     28,84                     25,01                     24,25
Estados Unidos                                24,17                     20,24                     19,06                     25,44                     20,77
Outros Países                                     36,12                     33,45                     30,78                     37,77                     39,01
Fonte: CEPAL (2005)
Nota: Depois de 2008, o Mercosul tem oscilado em torno de 6,5% como destino das exportações brasileiras.
Evolução das exportações argentinas segundo o destino (%): 1990-2004.
Destino                                               1990                      1994                      1998                      2002                      2004
Países do Mercosul                      14,84                     30,33                     35,64                     22,31                     19,59
Outros membros ALADI               6,34                       8,03                       8,01                       14,14                     14,10
União Européia                                30,85                     24,82                     17,50                     19,94                     17,17
Estados Unidos                                13,48                     10,88                     8,29                       11,27                     10,80
Outros Países                                     34,49                     25,94                     30,55                     32,33                     38,32
Fonte: CEPAL (2005)

Como reflexão adicional, que pode ilustrar o baixo interesse no regionalismo no Brasil, vale mencionar o caso da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica), que resultou de uma iniciativa nascida na própria região e, mais especificamente, de uma iniciativa da diplomacia brasileira. Com efeito, a OTCA é uma organização intergovernamental, formalmente constituída por 8 Países Membros: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. Surgiu em decorrência do Tratado de Cooperação Amazônica, que foi assinado em 3 de julho de 1978, tendo como objetivos básicos a preservação do meio ambiente e o uso racional dos recursos naturais da Amazônia. Em dezembro de 1995, o tratado foi transformado em organização internacional e, em 2003, foi estabelecida a Secretaria Permanente da OTCA com sede em Brasília. É desnecessário insistir na atualidade, nos benefícios e no papel de destaque que a cooperação regional poderia desempenhar para o Brasil e para toda a região, caso uma organização como a OTCA de fato ganhasse corpo e relevância. Desde que a OTCA foi concebida, as questões referentes ao desenvolvimento da região amazônica, infelizmente só tem ganhado destaque no que genericamente poderia ser chamado de “agenda internacional negativa” quando, na realidade, o potencial de possibilidades positivas sempre foi reconhecido por governos e analistas sob os mais variados ângulos. Trata-se de um caso absolutamente inequívoco de que cabia ao Brasil liderar essa iniciativa, a começar pelo fato simples e objetivo de que a maior parte da Amazônia se situa em território brasileiro. Apesar de tudo, os sucessivos governos brasileiros, ao longo do tempo, preferiram deixar a OTCA à míngua, preferindo ocupar-se com o recebimento de doações de fundações ambientalistas estrangeiras enquanto destinavam praticamente a totalidade dos recursos fiscais nacionais disponíveis a outros propósitos. O fato é que não é possível por em prática qualquer política externa de relevância sem o emprego de recursos e, no caso de organizações internacionais como instrumento da diplomacia dos países, os recursos necessários para seu funcionamento só podem advir de seus países associados, que destinam valores a essas organizações proporcionalmente ao nível de seus interesses e de seu comprometimento moral e político.

Nesse aspecto, verifica-se que no quadro orçamentário brasileiro jamais projetos e iniciativas como as que poderiam derivar de uma entidade como a OTCA teve qualquer relevância. Nos últimos anos, nada menos do que 94% de toda a arrecadação fiscal (Federal, Estadual e Municipal) foram gastos com o pagamento de salários e de uma ampla gama de benefícios para servidores públicos ativos ou aposentados e pensionistas dos três poderes, ou ainda na manutenção de direitos e de privilégios de corporações, adquiridos por meio de decisões legislativas ou de instâncias judiciárias. Nesse quadro, apenas 6% da arrecadação fiscal total são destinados para o custeio de atividades fins de todos os ministérios e agências oficiais no nível federal, estadual e municipal. A título de comparação, no caso do Governo Americano a parte discricionária do orçamento público corresponde a mais de 30% da arrecadação pública e, para ilustrar outra diferença na destinação de recursos públicos no Brasil em relação a outras nações, vale notar, por exemplo, que o orçamento do Poder Legislativo brasileiro (Câmara dos Deputados e Senado Federal) custa três vezes o Legislativo do Japão e duas vezes o Legislativo da Alemanha.

Outro retrato da baixa capacidade da nação brasileira de exercer algum papel de liderança na ordem internacional é refletido nos movimentos migratórios internacionais. Poucas decisões são tão cruciais na vida de uma pessoa, ou de uma família, quanto a decisão de emigrar. Decide-se deixar o país em virtude de conflitos, de colapso da ordem política e da falta de perspectivas enquanto, por outro lado, escolhe-se um país de destino na tentativa de aí encontrar novas esperanças e novas oportunidades. Nesse quesito, há cerca de duas décadas, o Brasil tem sido um país cujo saldo tem sido negativo entre os que deixam o país e os que, vindos de outros países, buscam encontrar oportunidades no Brasil.[11] Para os emigrantes das nações vizinhas, inclusive da depauperada Venezuela, o Brasil tem sido uma opção cada vez menos atraente, apesar da relativa facilidade para ingressar e para regularizar sua condição no país.

Em resumo, há muitos fatos que mostram que as maiores dificuldades para o avanço da integração nos países latino-americanos têm sua origem no fracasso das nações da região em encontrar o caminho para o progresso. Com efeito, verifica-se na história recente que, na ordem internacional, expressa nos regimes políticos e econômicos construídos após a Segunda Guerra Mundial, a estagnação da América Latina contrastou bastante com o que ocorreu em outras regiões do mundo. Foi sob os regimes do pós-guerra que se verificou a reconstrução da Europa e do Japão. Foi também sob esses regimes internacionais que emergiram os “Tigres Asiáticos” e, mais tarde, o mundo testemunhou a impressionante ascensão da China que, apesar de comandada pelo Partido Comunista, beneficiou-se dos fluxos de capitais e do comércio com o Ocidente capitalista e, em três décadas, saiu da obscuridade para ocupar a posição que ocupa atualmente na ordem internacional.

Em resumo, ao invés de procurar na ordem internacional explicações para as dificuldades de promover o progresso nacional e fazer avançar a integração econômica e política da região, parece mais razoável concluir que as forças que poderiam efetivamente impulsionar a integração na região ainda permanecem dormentes nos países da América Latina sob o peso de debates sobre questões abstratas e, na maior parte do tempo, desconectadas tanto das oportunidades de modernização e de crescimento quanto dos verdadeiros dilemas da ordem internacional.

Um reflexo dessa desconexão pode ser observado nos debates sobre o que ficou conhecido como Consenso de Washington e que ocupou boa parte da intelectualidade da América Latina desde os anos 1990. Objetivamente, o Consenso de Washington foi, em larga medida, inspirado pelos desenvolvimentos em curso nos países da Ásia (Tigres Asiáticos) que obtinham grande sucesso em suas estratégias de modernização e desenvolvimento. O documento não foi além de uma mera recomendação informal e não foi oficializado por qualquer instituição nacional ou internacional, tendo sido apenas a conclusão de observadores e analistas que atuavam em instituições como o Banco Mundial e o FMI, cujas sedes estão situadas na capital dos EUA e que, por dever de ofício, deveriam observar e analisar continuamente o desempenho da economia mundial. Para os analistas brasileiros e latino-americanos, que gastaram boa parte de seus esforços em criticar esse “consenso”, talvez a questão que mais deveria incomodá-los deveria ser o fato de que desde a década de 1980, o desempenho da economia brasileira e latino americana tem permanecido consistentemente abaixo da média de crescimento da economia mundial. Os regimes de comércio, das transações financeiras e do sistema monetário que serviam à Coreia do Sul, à Singapura, à China e a vários outros países asiáticos que virtualmente “decolaram” a partir da década de 1980, eram os mesmos que serviam ao Brasil e aos demais países latino-americanos. Por que não emergiu na região um grupo de “tigres latino-americanos”?

 

 

[1] O presente ensaio é produto de trabalho de reflexão proporcionado por debate realizado no dia 24/Setembro/2021 no âmbito das atividades do Grupo de Estudos e Pesquisa em Organizações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (GEO-UNESP).

[2] Inis L. Claude, Jr. Swords into Plowshares: The Problems and Progress of International Organization. (Random House, 1956).  A edição mais amplamente conhecida dessa obra é a de 1964.

[3] Abbé de Sait-Pierre foi Ministro de Louis XIV e elaborou uma “Proposta de Paz Perpétua para a Europa”, que foi publicada em 1713. Por iniciativa de Bolivar em 1826 foi realizado o Congresso do Panamá, com o propósito de se promover uma união política das nações americanas. Em 1890 foi realizada em Washington, D.C. a Primeira Conferência Panamericana conduzida por James Blaine, que pretendia promover a integração econômica das nações americanas.

[4] O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial foram criados na Conferência de Bretton Woods, em 1944. A CEPAL foi criada em 1948, estabelecendo Santiago (Chile) como sede. O GATT foi criado na Rodada de Negociações Comerciais de Genebra, em 1947, e tornada uma instituição permanente na Rodada Torquay (U.K.) em 1951.

[5] O ensaio escrito por John Ruggie intitulado  International Regimes, Transactions, and Change: Embedded Liberalism in the Postwar Economic Order (in S. D. Krasner, International Regimes, Cornell University Press, 1982) interpreta com muita propriedade o regime de “alma liberal”, mas cheio de ambiguidades que caracterizou o regime de comércio do pós-guerra.

[6] R. Ricúpero, O Brasil, a América Latina e os EUA desde 1930: 60 Anos de uma Relação Triangular. In J. A. G. Albuquerque (org.), 60 Anos de Política Externa Brasileira. Vol. 1 pp. 37-60. NUPRI-USP.  1996.

[7] Os investimentos públicos incluem, entre outros itens, a construção e manutenção de estradas, de pontes, de usinas de geração de energia, de escolas e hospitais públicos, etc. Os investimentos privados referem-se, obviamente, à construção e manutenção de fábricas e de outras instalações produtivas, incluindo-se a reposição de máquinas e equipamentos. Vale notar que nas economias mais avançadas 2/3 dos investimentos em ciência e tecnologia são realizados com recursos privados.

[8] Dados sobre investimentos disponibilizados pelo Banco Mundial.

[9] Dados do Ministério da Fazenda mostram que em 2020, entre os 10 produtos mais exportados pelo Brasil, apenas a celulose pode ser considerada um produto industrializado. O restante são bens exportados “in natura” ou apenas beneficiados.

[10] O mais notável teórico da integração foi o estudioso húngaro Bela Balassa (1927-1991).

[11] Dados divulgados pelo Ministério das Relações Exteriores, pelo Ministério da Justiça e por outras agências oficiais, revelam que em 2020 havia mais e 4 milhões de brasileiros vivendo em outros países enquanto no sentido inverso, havia menos de 1 milhão de estrangeiros vivendo no Brasil.

 

* Eiiti Sato é professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

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Economia do crime https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3453&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=economia-do-crime Mon, 07 Jun 2021 14:09:25 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3453 Economia do crime: o caso do contrabando de cigarro

Por Pery Francisco Assis Shikida*

A economia do crime é uma das abordagens no campo das ciências sociais aplicadas que procura entender as motivações para o crime a partir da análise econômica. Um dos maiores expoentes dessa área é Gary Stanley Becker, saudoso professor da Universidade de Chicago e autor do artigo “Crime and punishment: an economic approach” (1968). Utilizando-se de modelagem matemática, Becker ressaltou que uma pessoa propensa ao crime pondera, racionalmente, os custos e benefícios esperados de sua prática ilícita, para a partir daí escolher atuar (ou não) no mercado econômico ilegal. Mas, conceitualmente o que é um mercado econômico ilegal? É o ambiente no qual ocorrem os crimes considerados de natureza lucrativa, ou seja, delitos que visam, per se, benefícios financeiros como roubo, furto, tráfico de drogas, receptação, estelionato, contrabando etc. Crimes como estupro, tortura, homicídios passionais etc. não têm como escopo final o lucro.

Complementando, para Fragoso (1982, p. 1) crime de natureza lucrativa é todo aquele “[…] cuja objetividade jurídica reside na ordem econômica, ou seja, em bem-interesse supra-individual, que se expressa no funcionamento regular do processo econômico de produção, circulação e consumo de riqueza”. Vale destacar que crime é todo “ato de transgressão de uma lei vigente na sociedade” (BRENNER, 2001, p. 32).

Para Becker (1968), postulando que os indivíduos são racionais, o tratamento matemático de uma atividade econômica ilícita pode ser sumarizado pela utilidade esperada (Ui), de um lado da equação, que é igual à realização de uma atividade ilícita (Ri) vezes a probabilidade de não ser preso [1 – p(r)], menos o custo de planejamento e execução do crime (Ci), o custo de oportunidade (Oi), o valor esperado da punição caso esse indivíduo seja preso [p(r) . Ji], subtraindo também a perda moral originária da execução do crime (Wi), tudo isto do outro lado dessa equação. De tal forma, tem-se:

Ui = [1 – p(r)] . RiCiOi – [p(r) . Ji] – Wi      (1)

Nesse sentido, se o benefício líquido dessa utilidade esperada Ui for positivo, o crime tende a ser efetuado, pois os benefícios são maiores vis-à-vis os custos. Convém ressaltar que nessa teorização Becker (1968) remontou à ideia do cálculo utilitarista e dissuasivo de Beccaria (1764) e Bentham (1843). Mutatis mutandis, no mercado ilegal, da mesma forma que em outro mercado econômico qualquer, o indivíduo age de maneira racional, sendo motivado por medidas dissuasórias ou incentivos, agindo de acordo com a lógica de obter o maior proveito possível de sua função utilidade.

Em sendo o foco da economia do crime explicar os comportamentos de pessoas que quebraram regras, com base na suposição de uma racional análise custo e benefício implícita nessa atividade ilícita, esta abordagem pode ser útil para elucidar o contrabando, mais especificamente, do cigarro. Sendo este o objetivo do presente artigo, metodologicamente usar-se-ão algumas referências como Schlemper (2018), Nickel (2019), Amaral (2019), Nicola et al. (2020) e Shikida (2018, 2020) nesta análise de cunho explicativo.

Dois pontos, imbricados entre si, precisam ser ressaltados preliminarmente. Primeiro, o cigarro figura como um produto que traz prejuízos à saúde do consumidor, devido ao vício que provoca. Portanto, algumas formas de desestimular seu consumo são via propaganda, políticas restritivas ao local de fumantes e/ou uso de alta tributação que elevem os preços. Como o cigarro apresenta demanda pouco flexível em relação ao aumento do preço, o aumento de tributos para desestimular seu consumo pode, por outro lado, incentivar o uso de produtos substitutos, leia-se contrabandeados (NICOLA et al., 2020). Em paralelo se discute o segundo ponto, qual seja, o contrabando de cigarros é um ato ilegal, consequentemente, seu combate é atributo da polícia e sua punição função do judiciário.

Sobre estes dois pontos apresentados cabe menção. A ideia de se preocupar com a saúde do consumidor é correta. Não obstante, a tributação atualmente empregada com o objetivo de elevar os preços finais do cigarro, visando desestimular seu consumo, no caso da existência de produtos substitutos para o cigarro legal, acaba favorecendo o cigarro contrabandeado. Outrossim, sabidamente a repressão nas fronteiras é importante e indispensável, mas não é suficiente, pois o mercado do cigarro contrabandeado vem crescendo assustadoramente (FSBCOMUNICAÇÃO, 2020). Ademais, em Nickel (2019) se verifica que grande parte do tempo do judiciário fronteiriço em Foz do Iguaçu (Paraná) se destina aos esforços de apuração, julgamento e punição dos casos de contrabando. É muito tempo despendido com um problema que já é crônico e que precisa ser eficazmente resolvido.

A carga tributária sobre cigarros lícitos, com tributos pagos, subiu 52% acima da inflação desde o aumento da alíquota de Imposto sobre os Produtos Industrializados sobre cigarros ocorrida em 2011. O preço médio dos cigarros lícitos aumentou 40% em termos reais no período 2009-2014. As estimativas apontam para o preço médio dos cigarros lícitos em torno de R$7,51/maço, já dos cigarros ilícitos é de R$3,44/maço. Como concorrer com cigarros contrabandeados diante desse cenário? A arrecadação tributária caiu, apesar da elevação das alíquotas, devido à queda das vendas de cigarros lícitos. Como corolário, o market-share atual do mercado ilícito é de 57%, com tendências para se elevar. O prejuízo na arrecadação devido ao poder do mercado ilegal (evasão causada pelo mercado ilegal de cigarros), em 2019, foi de R$12,2 bilhões (FSBCOMUNICAÇÃO, 2020).

A partir da compilação de alguns resultados de Schlemper (2018), Nickel (2019), Amaral (2019) e Shikida (2018, 2020), lamentavelmente observa-se que o crime de natureza financeira está, de modo geral, compensando no País. Isto porque os benefícios estão maiores do que os custos dessa atividade ilegal. Destarte, o ganho médio do contrabando de cigarros equivale a 49,3% do ganho médio do tráfico, enquanto o custo e o saldo médio desse contrabando equivalem, respectivamente, 36,1% e 59,4% do custo e saldo médio do tráfico.[1] A lógica implícita no contrabando de cigarro é ganhar menos relativamente ao tráfico, porém, o risco de morte e de punição mais severa (o tráfico é considerado crime hediondo) é diametralmente oposta.

De modo inovador, e com base na equação de Becker (1968), Nickel (2019) perguntou qual o maior receio diante da efetividade de uma prática econômica criminosa (Ri) para amostra considerável de apenados de determinada Vara Federal de Foz do Iguaçu, sendo a maioria dos entrevistados condenados por contrabando. Dito de outra forma, qual o maior receio de um delinquente quando realiza seu crime econômico?

Inusitadamente, a perda da moral foi o maior temor diante de um ato ilegal praticado (41,4% dos pesquisados apontaram a variável Wi como maior receio). Em segundo lugar apareceu a probabilidade de ser preso [p(r)], conquanto 28,8% dos pesquisados apontaram a chance de serem presos como o segundo maior temor na prática de sua ilicitude. Nessa sequência, tem-se ainda o custo de execução e planejamento do crime (Ci), 12,6%; intensidade da pena [p(r) . Ji], 9,9%; e custo de oportunidade (Oi), 6,3%.

Ora, era de se esperar que os dois maiores receios diante de uma prática criminosa econômica fossem, não necessariamente nesta ordem, a probabilidade de ser preso [p(r)] e a intensidade da pena [p(r) . Ji]. Além disso, realça-se que a distância entre a perda da moral (41,4%) para a segunda posição, probabilidade de ser preso (28,8%), foi consideravelmente elevada (12,6 pontos percentuais). Por que isto vem ocorrendo? No caso específico do contrabando, segundo os entrevistados (frisa-se, a maioria por contrabando), em função de a principal motivação para seus crimes estar “relacionada com a ideia de ganho fácil/indução de amigos/cobiça, ambição, ganância/inveja/manter o status […]”, bem como porque “em relação ao custo/benefício da atividade criminosa, 73% dos entrevistados disseram que o benefício foi maior que o custo, contribuindo para que essas pessoas migrem para o ilícito” (NICKEL, 2019, p. 6). Outro fato curioso é ver o custo de execução e planejamento do crime que, em caso de malogro, significa a perda da carga contrabandeada, estar à frente da intensidade da pena, um contrassenso!

Tais apontamentos obtidos de dados primários, ou seja, perguntou-se diretamente aos delinquentes, adicionado à impunidade e/ou baixa punição, como aplicação de penas substitutivas de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas e de prestação pecuniária, favorecem tão somente a ilegalidade. Vale dizer que a chance de sucesso de um criminoso de natureza financeira é estimada em 95% (SHIKIDA, 2018). Não é por achismo que se diz que o poder de polícia, por mais efetivo e competente que seja, não conseguirá, sozinho, diminuir a criminalidade. Este poder é imprescindível, mas precisa de auxílio contundente.

O que precisa ser feito então? Ora, se o preço médio dos cigarros lícitos é de R$7,51/maço, enquanto dos cigarros ilícitos é de R$3,44/maço (FSBCOMUNICAÇÃO, 2020), o debate sobre a incidência tributária no cigarro nacional precisa ser revisto; e sem gerar externalidades negativas, como estimulando o tabagismo. De que forma? Com base na análise econômica do crime, lançando um cigarro no mercado com precificação especial, apropriado para competir e substituir o cigarro contrabandeado. Para tanto, urge derrubar a política de preço mínimo dos cigarros (hoje de R$5,00, portanto, acima do preço médio do cigarro ilícito) para esta categoria. Nessa lógica, assume-se como válida a hipótese de que os hábitos dos fumantes no Brasil não se alterarão significativamente em termos de aumento de consumo – há estudo que corrobora isto, vide: Nicola et al. (2020). Ao revés, ocorrerá, sim, uma substituição do hábito de consumir o cigarro contrabandeado (atualmente com assaz vantagem no mercado, mas de duvidosa qualidade fitossanitária de produção), para este cigarro de categoria especial que opera dentro das regras estabelecidas pelas instituições constituídas no Brasil. Vale dizer que o cigarro contrabandeado, pela ótica da demanda, devido ao seu baixo preço, atinge mormente as classes menos abastadas, sendo praticamente inexistente nas classes mais abastadas. Os cigarros mais caros continuarão com a tributação existente.

Diante dessas evidências, a eficiência dessa estratégia de criar uma categoria com tributação específica, dando competitividade para este cigarro nacional, conseguirá, junto com o poder de polícia, dar um duro golpe no contrabando de cigarros. Com isto, reduziremos uma externalidade negativa que é muito pouco citada, mas com fortes indícios de que seja uma prática constante, qual seja, as organizações criminosas no Brasil já estão operando também nesse mercado.

Desse modo, quebrando o contrabando de cigarros, atinge-se igualmente o crime organizado. Conforme vivências de um pesquisador no cárcere que entrevistou centenas de bandidos, algumas retratadas em Shikida (2018) e outras em dezenas de palestras proferidas por esse pesquisador, atesta-se que o cigarro ilícito deixou de ser atributo de um “simples atravessador”. Esse mercado está cada vez mais profissionalizado e umbilicalmente vinculado com organizações criminosas, contribuindo para o aumento da violência e criminalidade.

Com efeito, a economia do crime procura entender as motivações para a prática delituosa financeira. Porém, similarmente sinaliza para ideias que podem fazer com que o benefício líquido da utilidade esperada criminosa (Ui) possa ser menor do que os custos. Assim, no presente estudo é preciso ser estratégico não abdicando, primeiramente, do fortalecimento do poder de polícia e da respeitabilidade pelas instituições jurídicas, que devem atuar de forma crível e justa, contribuindo para a dissuasão ao crime pela ótica da oferta. Segundo, enfrentar este problema também pela ótica da demanda (via consumidor), pois a criação de uma categoria de cigarros especial, que possibilite à indústria nacional competir com o congênere contrabandeado, é uma ação estratégica viável e plenamente exequível, não engendrando externalidades negativas.

Finalizando, como estudioso da mente criminosa há 22 anos, buscando aprender sempre mais, percebi, dialogando com centenas de presos pelo Brasil afora, que “anjos” e demônios” são frutos de nossas mentes, originários da confluência de bases familiares, religiosas e educacionais de cada cidadão. Todavia, estes “anjos” e demônios” podem ser potencializados pelos incentivos e dissuasões que as nossas instituições reproduzem. Qual o seu papel ou da sua instituição no combate ao crime, reflita?

 

Referências

AMARAL, J. A. da S. Determinantes da entrada das mulheres no tráfico de drogas: um estudo para o Acre (Brasil). Doutorado em Desenvolvimento Regional e Agronegócio. Unioeste, Toledo/PR. 2019.

BECCARIA, C. Dei delitti e delle pene (1764). English edition: Bellamy R (ed.). On Crimes and Punishments and Other Writings (trans: Richard Davies et al.). Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

BECKER, G. S. Crime and punishment: an economic approach. Journal of Political Economy, Chicago, v. 76, n. 2, p. 169-217, 1968.

BENTHAM, J. Principles of Penal Law. Works of Jeremy Bentham, ed. J. Bowring. 1843, vol. 1.

BRENNER, G. A racionalidade econômica do comportamento criminoso perante a ação de incentivos. Tese de Doutorado em Economia. UFRGS, Porto Alegre/RS. 2001.

FRAGOSO, H. C. Direito penal econômico e direito penal dos negócios. Revista de Direito Penal e Criminologia, n. 39, p. 122-129, 2018.

FSBCOMUNICAÇÃO. Media Briefing. Setembro 2020. 6 p.

NICKEL, H. Análise da execução penal envolvendo crimes econômicos no Paraná cuja pena privativa de liberdade foi substituída por prestação de serviços e/ou pecuniária. Mestrado em Desenvolvimento Regional e Agronegócio. Unioeste, Toledo/PR. 2019.

NICOLA, M. L.; SHIKIDA, P. F. A.; MARGARIDO, M. A. Análise da estratégia de redução do consumo de tabaco por meio da elevação dos preços no Brasil sob a ótica da teoria econômica: estimativa e implicações. Revista Planejamento e Políticas Públicas (no prelo).

SCHLEMPER, A. L. Economia do crime: uma análise para jovens criminosos no Paraná e Rio Grande do Sul. Doutorado em Desenvolvimento Regional e Agronegócio. Unioeste, Toledo/PR. 2018.

SHIKIDA, P. F. A. Memórias de um pesquisador no cárcere. Foz do Iguaçu: Editora IDESF, 2018.

SHIKIDA, P. F. A. Uma análise da economia do crime em estabelecimentos penais paranaenses e gaúchos: o crime compensa? Revista Brasileira de Execução Penal, v.1, p. 257-278, 2020.

 

* Pery Francisco Assis Shikida é doutor em Economia Aplicada pela ESALQ/USP. Professor Associado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. E-mail: peryshikida@hotmail.com.

[1] Conforme estudos supracitados, em relação à avaliação do custo/benefício na prática do crime econômico, foi perguntado para os(as) apenados(as), em uma escala de 0 a 9, a partir de sua própria percepção, os custos e benefícios da prática criminosa de natureza econômica. A ideia é de captar uma relação numérica que dê a possibilidade de cálculo final do resultado líquido da atividade ilícita. O saldo médio se refere à diferença entre o benefício e o custo de todos(as) apenados(as) avaliados(as); assim é possível comparar, por exemplo, quanto o contrabando varia em relação ao tráfico e vice-versa.

 

 

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As Constituições e seu papel nas Relações Internacionais https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3395&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=as-constituicoes-e-seu-papel-nas-relacoes-internacionais Wed, 20 Jan 2021 19:39:45 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3395 Por Eiiti Sato

Neste artigo, procurar-se-á discutir o papel das constituições diante da realidade internacional desde que se tornaram elementos centrais no Direito moderno, uma vez que definem os limites das ações e as características do Estado Nação. Com efeito, no estudo das relações internacionais as constituições tornaram-se a peça que define não apenas os padrões da convivência política doméstica, mas também os princípios que devem orientar as ações e o caráter de um Estado nas relações com outros Estados. Para esse propósito parece útil, e até mesmo necessário, iniciar com algumas considerações de base histórica para, em seguida, discutir o papel desempenhado por esse tipo de documento nas relações internacionais contemporâneas.

A trajetória percorrida pelas sociedades desde a formação do Estado moderno marcado pelo “contrato social” em substituição ao Estado patrimonialista baseado em costumes ancestrais e em leis não escritas, foi uma trajetória tão complexa e variada como o da própria convivência humana. Assim, este texto está longe de presumir que, em poucas páginas, seria capaz de resumir toda essa longa e rica trajetória e procura apenas apontar para algumas questões que, no entendimento do autor, refletem um mundo que, em poucos séculos, passou por transformações na esfera social e política, muito mais amplas e profundas do que nos muitos milênios que antecederam a era que chamamos genericamente de “modernidade”. Além disso, a centralidade da experiência europeia se explica pelo fato de que muito embora o Estado em seu sentido genérico tenha sido uma instituição presente em toda a humanidade, o Estado Nacional que conceitualmente organiza a relações entre povos em nossos dias deriva da experiência europeia.

A constituição escrita como contrato social

Na Antiguidade foram relativamente poucas as leis escritas e registradas como o Código de Hamurabi ou as leis de Moisés. Da Grécia Antiga, chegaram até nossos dias alguns documentos como as leis que formaram o que chamamos de democracia ateniense. Na Idade Média, as sociedades europeias ainda se organizavam muito mais em torno de costumes, de normas e de instituições sociais não escritas. A Magna Carta assinada por João Sem Terra e seus barões (1215, d.C.) foi um dos poucos acordos de alcance mais amplo registrados na forma de documento escrito. De qualquer forma, no mundo ocidental, a prática de produzir compromissos sustentados em documentos organizados e escritos na forma de códigos estruturados começou a se disseminar ainda na Baixa Idade Média.

Na realidade, quando a Idade Média chegava ao fim, as sociedades na Europa tornavam-se mais populosas e complexas demandando tratados e acordos definindo formalmente direitos sobre propriedades, sobre territórios bem como sobre questões como direitos hereditários e práticas religiosas. Esses documentos podiam ter por base costumes e direitos ancestrais mas, de forma crescente, precisavam ser também expressos e registrados em documentos escritos, coerentes com a força da razão e do direito praticado de forma consolidada por gerações. Uma característica marcante dessa época aparece como fato histórico fundante da história da nação brasileira. Aprende-se nas escolas a importância da Bula Papal Intercœtera (1493) e do Tratado de Tordesilhas (1494) promulgados pelo Papa Alexandre VI. Do ponto de vista do presente ensaio, esses episódios são bastante ilustrativos do caráter universal da autoridade da Igreja Católica que, nesses documentos, revelava possuir a notável prerrogativa de arbitrar e até de dividir o mundo que se estendia para além do Mediterrâneo e do Mar do Norte, entre os reinos de Portugal e de Espanha.[1]

A partir do século XVI, com a progressiva substituição das instituições feudais pelo Estado Nacional moderno, caracterizado pela racionalidade, pela laicidade e pela impessoalidade, a organização e o funcionamento do Estado na Europa passaram a ser expressos e registrados em documentos escritos. A emergência do contrato social como elemento definidor de um Estado Nação, figurativamente representado por Hobbes em seu Leviathan (1651), foi marcada por esse declínio do ancien régime que identificava as unidades políticas com as posses de nobres senhores, que podiam ser reis, duques, condes, ou portadores de outros títulos que correspondiam a seus feudos. O Estado Nacional moderno, por sua vez, marcado pela territorialidade estável, pela impessoalidade e por direitos e obrigações racionalmente concebidos e estruturados, passou a depender também de documentos escritos que refletissem os compromissos assumidos por governantes e governados em torno de princípios e de motivos pelos quais esses compromissos eram formalmente assumidos. A expressão latina verba volant, scripta manent tornava-se cada vez mais essencial para registrar e assegurar direitos e compromissos entre famílias que se ampliavam, entre povos que se misturavam e entre gerações que se sucediam.[2]

Alguns escritos deixados por pensadores da época refletem essa passagem da ordem feudal católica para a modernidade onde, de forma crescente, no ambiente político e cultural europeu, as populações passavam a se misturar e a conviver com outras religiões e com outras culturas e etnias. Um jurista e teólogo como Francisco de Vitória, situado nesse ponto de inflexão da história europeia, apesar de formado na educação escolástica católica medieval, passou a divergir e a questionar o entendimento corrente de que os europeus tinham o direito de fazer a guerra contra os nativos das Américas apenas porque seus reis não eram cristãos.[3] A esse respeito, uma das obras mais notáveis e abrangentes dessa época em que se redefinia a ordem social e política foi deixada por Jean Bodin. Seu “Six livres de la République” (1576) foi escrito na forma de um compêndio sobre o entendimento do Estado e a forma de governá-lo. Nesse esforço de definição do Estado, seu ponto de partida foi enunciar a compreensão da soberania, um atributo que existia desde tempos imemoriais associado às prerrogativas dos governantes mas que, no Estado moderno emergente, ganhava um sentido diferente, tornando-se um atributo primordial do próprio Estado e não mais de seu governante que, na ordem antiga, era confundido com o sentido de “proprietário”. Assim, nesse esforço para definir e compreender o Estado e suas instituições, Bodin precisava, antes de tudo, começar por explicar onde começava e onde terminava a autoridade desse Estado.[4]

Com efeito, no direito medieval não havia o conceito de país e nem de cidadão, mas apenas de senhores, de vassalos, de reinos e de feudos distribuídos de forma pouco distinta pela cristandade. Ademais, nesse processo de surgimento do Estado moderno, foi preciso também que o conceito de cidadão substituísse o de vassalo na ordem social, juntamente com o de país como unidade central da ordem política. O conceito de cidadão é importante porque, em essência, somente um cidadão poderia “subscrever” um “contrato social”. Como argumentava Hobbes, os cidadãos é que integram a sociedade civil e, mesmo que não fossem portadores de títulos e de virtudes morais desejáveis, o fato de desfrutarem uma condição de igualdade natural entre si tornava importante sua adesão ao contrato social. Para Hobbes, objetivamente, os homens não seriam iguais por uma abstrata dignidade inerente a todos os seres humanos, mas eram iguais pelo mal ou pelo bem que potencialmente podiam trazer à convivência humana. Hobbes, uma mente arguta e sempre atenta aos acontecimentos e à História, observava as turbulências políticas de seu tempo. Na sua Inglaterra, o rei Charles I era abertamente confrontado em sua fé e em sua autoridade por barões e também pelo povo até ser decapitado (1649), além disso, em 1610, ainda jovem, Hobbes certamente havia observado o homem mais poderoso da França – Henrique IV, denominado “O Grande” – ser assassinado por um simples mestre-escola.[5] Em outras palavras, embora um rei pudesse ser rico, poderoso e alvo de muitas honrarias, e até mesmo dispor de uma guarda pessoal, a igualdade natural continuava a existir, uma vez que ainda podia assassinar ou ser assassinado por um homem comum.

Na concepção de Hobbes, o meio internacional seria formado por vários Leviatãs, cada qual resultante de cidadãos que, hipoteticamente, se reuniam em torno de um “contrato social” para definir sua organização política e defender suas crenças, seus interesses e, de uma forma geral, suas principais motivações de vida. Na literatura corrente sobre relações internacionais, reconhece-se o fato de que o termo “internacional” foi utilizado pela primeira vez apenas no século XVIII, por Jeremy Bentham na sua obra An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, publicada em 1789. Antes de Bentham os termos utilizados para Direito Internacional eram Direito das Nações ou Direito das Gentes.[6] Também foi apenas nos fins do século XVIII que, formalmente, aparece o primeiro “contrato social” – a primeira constituição – estabelecendo um Estado Nacional na acepção moderna: os Estados Unidos da América.

A constituição define o país

Como já mencionado, a constituição é o “contrato social” que define os limites e as características essenciais da organização social e política do Estado Nação, que passou a receber a denominação genérica de país. Como já mencionado, na filosofia política a constituição seria a expressão prática e escrita do contrato social preconizado por Thomas Hobbes na figura de seu Leviathan.[7] Na realidade, conceitualmente, a expressão contrato social é mais genérica uma vez que, filosoficamente, o termo designa o momento em que o ser humano deixa de viver no estado de natureza e passa a viver como um ser que, exatamente, se destaca da natureza estabelecendo leis morais, sociais e políticas para organizar a convivência em sociedade. Nesse sentido, não se pode dizer que no mundo feudal europeu os povos não viviam segundo um contrato social, no entanto, tratava-se de um contrato social baseado essencialmente em costumes e direitos ancestrais e na fé cristã. Da leitura das obras de contratualistas como Locke, Rousseau e do próprio Hobbes, pode-se deduzir que o sentido contido no termo passava a ter um conteúdo essencialmente racional no sentido moderno do termo, associado à noção de que, ao invés de vassalo, o indivíduo tornava-se cidadão, capaz de pensar e de julgar por si próprio seus interesses e seu lugar na sociedade.

Objetivamente, a reinterpretação da expressão contrato social era um reflexo bastante visível de um mundo em que as populações se expandiam e se integravam por meio de relações cada vez mais complexas. Ao mesmo tempo em que algumas relações tornavam-se cada vez mais estáveis e até permanentes, outras podiam ter duração mais curta, como no comércio, mas que, apesar disso, demandavam garantias impessoais e atemporais. De qualquer modo, valorizava-se cada vez mais a razão e o entendimento de que cada povo podia ter seus próprios costumes ancestrais e suas próprias tradições religiosas sem que, no entanto, fossem razões para torná-los inimigos uns dos outros, os quais deveriam ser combatidos, convertidos, ou mesmo eliminados. Com os reformadores dos séculos XVI e XVII, a religião passava a ser vista cada vez mais como algo a ser vivido essencialmente na consciência do indivíduo misturando-se, cada vez menos, com as normas e padrões de convivência na ordem política e social.[8] Dessa forma, a disseminação do conceito de Estado Nação a partir do século XVII foi, em grande parte, um desdobramento desse processo, primeiramente como forma de acomodar diferenças dentro do próprio cristianismo e, depois, como forma de estender esse entendimento a outras culturas e a outras tradições religiosas e étnicas.

Nesse quadro, é possível entender que, na modernidade, a produção de uma constituição passou a ter o papel simbólico de definidora de um Estado Nação em um sentido bastante semelhante ao da coroação nos tempos das monarquias feudais. Com efeito, pode-se lembrar como exemplo a figura de Joana D’Arc que, no início do século XV, emergiu em meio a um tempo sombrio quando a existência do reino de França, na forma como havia sido herdado dos tempos de Carlos Magno, estava ameaçada.[9] Após 100 anos de guerra em que membros da casa real da Inglaterra reivindicavam a coroa da França, Joana D’Arc, apesar de ser apenas uma jovem camponesa iletrada, por intuição ou por revelação divina, se apresenta diante dos franceses anunciando que sua divina missão era derrotar os exércitos ingleses e fazer coroar o Delfin Carlos, ungindo-o com os óleos sagrados em Reims, tornando-o assim Carlos VII da França.[10] Em outras palavras, coroar o rei na forma estabelecida pelos costumes, era fundamental porque, ao fazê-lo, tornava inequívoca a existência de um reino no qual os barões, que comandavam feudos como Champagne, Normandie, Anjou, Poitiers, Acquitaine ou Toulouse, reconheciam o direito de Carlos VII de exercer os direitos de suserania sobre esses feudos com seus barões, suas autoridades locais e suas populações, com todos os seus bens e propriedades. Ou seja, na ordem medieval, pela força dos costumes ancestrais, ao definir a relação de vassalagem das populações e de seus barões, a coroação definia também os limites da jurisdição do reino.

Com as constituições acontece algo semelhante no sentido de que elas definem o alcance da jurisdição sobre a qual uma certa autoridade é exercida por direito a partir de instituições formalmente estabelecidas. Do mesmo modo que nas monarquias, os reis emitiam ordenações e as tornavam públicas significando que seus súditos e vassalos deveriam obedecer e se comportar de acordo com essas ordenações, nas democracias modernas, os cidadãos, por meio de seus representantes, estabelecem suas constituições e se comprometem a se submeterem a leis e a normas que são produzidas por um Congresso ou Parlamento, constituído de forma permanente, e sancionadas e tornadas públicas pelos governantes constitucionalmente estabelecidos.

O fato é que na história do mundo, a produção de constituições nacionais escritas é uma prática relativamente recente datando apenas dos fins do século XVIII, quando avança o processo de separação entre Estado, direitos de família e religião, e que os costumes, embora importantes, já não se revelavam mais suficientes para orientar com clareza os direitos e o comportamento de governantes e das pessoas e dos grupos organizados. Os historiadores costumam chamar de era da razão. É nesse ambiente que a convivência social e política passou a demandar uma revisão do contrato social sob novos princípios e sob nova forma de expressão, o que ajuda a entender porque o grupo de colônias americanas, após sua separação da Grã-Bretanha, se viu diante da necessidade de elaborar uma constituição.

Com efeito, comprovando o argumento de que a constituição define o contrato social que está por trás do Estado Nação, o processo de aprovação pelas 13 ex-colônias foi longo e difícil, mas percebido como essencial para o estabelecimento dos Estados Unidos da América como Estado Nação. A revolta contra a Coroa inglesa iniciada em princípios da década de 1770 com eventos como o Boston Tea Party e que ganhou forma definida de uma revolução com a Declaração da Independência de 1776, não formava ainda um Estado Nação, mas um movimento político de colônias britânicas na América que haviam se rebelado contra a Metrópole e que, a partir do Congresso Continental (1774-1775), estavam organizadas na forma de um acordo comum com o objetivo de arregimentar um exército entre os habitantes das 13 colônias para enfrentar as forças do exército britânico. Cada colônia tinha seus próprios líderes, suas próprias autoridades e até mesmo suas próprias leis locais. A guerra contra as forças inglesas havia demonstrado o valor e a importância da união, mas restava saber se as 13 ex-colônias estavam dispostas a se unir em tempos de paz, formando uma unidade política estável a que hoje chamamos de país. Assim, a produção de uma constituição tornou-se um passo fundamental para o estabelecimento dos Estados Unidos da América, como nova unidade política independente e permanente, com o mesmo status da própria Inglaterra, de quem as 13 colônias haviam se separado formalmente em conjunto pelo Tratado de Paris de 1783.

Os fatos mostram que a ideia de formação de um Estado Nação a partir da união das 13 ex-colônias estava longe de ser uma ideia clara, e muito menos facilmente aceita pelas lideranças políticas e pela própria população das 13 ex-colônias. Apenas alguns líderes como George Washington e Alexander Hamilton viam com clareza a necessidade de reunir as 13 colônias em uma união mais completa e permanente. O Congresso convocado para Filadélfia em 1786 teve por finalidade inicial a revisão dos Artigos da Confederação, que assegurara a união das colônias para lutarem juntas contra a Inglaterra, mas tal como a própria denominação dizia, formavam apenas uma confederação, isto é, uma reunião de unidades políticas independentes. O fato é que, após o término do Congresso da Filadélfia, houve um intenso debate até que as ex-colônias ratificassem o texto de uma Constituição formando, um novo Estado Nação – um novo país – resultante da união das 13 ex-colônias. O longo debate para saber se as 13 ex-colônias deveriam formar um agregado de unidades políticas ou se passariam a ser uma união, uma só nação, se estendeu por mais de um ano e os principais argumentos em favor da formação de uma união permanente estão registrados na coleção de textos que ficou conhecida como The Federalist Papers.[11]

Em alguma medida, a experiência vivida pelos EUA nos fins do século XVIII, isto é, a definição de um Estado Nação distinto por meio de uma Constituição, foi vivida por todas as nações modernas. Com efeito, as experiências individuais das nações variaram bastante. Em alguns casos como o de Portugal, cuja existência a história registra como tendo sido definida desde o ano de 1130, a primeira constituição definindo Portugal como um Estado moderno surgiu apenas em 1822, como um pacto da sociedade que se movia do antigo regime para uma monarquia constitucional. Também é notável o caso da Inglaterra, que se considera como tendo sido estabelecida no ano de 927, quando o rei Æthelstan, com a conquista de York, deixou de ser Rei dos Anglo-Saxões para tornar-se Rei da Inglaterra e, a partir de então, acordos, tratados e leis – como a Magna Carta de 1215 ou como o Bill of Rights de 1689 – foram sendo assinados e, juntamente com costumes ancestrais não escritos, passaram a compor o que tem sido chamado de uma “constituição não escrita”. O fato desse conjunto de normas e de leis não ter sido jamais reunido e sistematizado em uma carta constitucional orgânica, não quer dizer que não exista uma ordem constitucional que estabelece os limites do Estado britânico e que orienta o comportamento e as ações de governantes, de representantes de condados e da própria população britânica nos planos doméstico e internacional.[12]

As constituições e a ordem internacional na atualidade

A ONU registra hoje a existência de 193 países membros, cada qual com sua respectiva carta constitucional definindo os limites de suas jurisdições e demarcando padrões e princípios em torno dos quais, povo e governo organizam sua convivência doméstica e também as relações com outros países. Como já mencionado, a experiência constitucional dessas quase duas centenas de países foi muito variada e, em sua grande maioria, datam do século XX, um século no qual a adoção do conceito de Estado Nacional, territorial e soberano, tornou-se efetivamente global. Com efeito, foi no século XX que o conceito de Estado Nacional praticamente completou a substituição de outras formas tradicionais de organização política. Em alguns lugares tribos e clãs reuniram-se formando Estados e, na velha Europa, eliminou-se os sistemas coloniais que resultavam da incorporação de povos e de territórios por meio da superioridade tecnológica, econômica e militar. Foi também no século XX que os sistemas imperiais na Europa sofreram grandes abalos, ou finalmente se fragmentaram como ocorreu com o Império Habsburg na esteira da Primeira Guerra Mundial.

Sob uma ótica institucional de longo prazo, é possível dizer que as duas grandes guerras, que marcaram a primeira metade do século XX, refletiram o ocaso desses sistemas de organização política que, na essência, se tornaram incompatíveis com a evolução dos padrões de convivência política internacional. O Estado Nação revelou-se um modelo de organização institucional que melhor se adequava à realidade internacional marcada pela variedade étnica e cultural e também pelas muitas tradições e valores dos povos no que se refere ao ordenamento social e político. Na realidade, mais da metade dos países membros da ONU foram formados ou tornaram-se independentes depois da Segunda Guerra Mundial, refletindo o avanço do processo de consolidação de um sistema internacional verdadeiramente global.

Ainda no século XIX algumas organizações internacionais foram formadas como a União Telegráfica Internacional (1865), a União Postal Universal (1874) e a Convenção da União de Paris para a Propriedade Industrial (1883). Eram organizações de natureza eminentemente técnica que revelavam dois aspectos presentes na natureza da crescente integração internacional. De um lado, a base tecnológica do processo, que proporcionava os meios materiais para uma aproximação sem precedentes entre os povos e, de outro, a crescente centralidade da vida civil em torno de Estados Nacionais constitucionalmente estabelecidos, conformando uma ordem social e política distinta no plano doméstico, mas cada vez mais coerentes entre si na esfera internacional.

Com efeito, a partir dos fins do século XIX, além do comércio e das comunicações sistemáticas por meio postal e por meio da expansão da rede telegráfica, as viagens internacionais de civis começavam a contar com linhas marítimas intercontinentais regulares, além das atividades comerciais e industriais que passavam a ter na esfera internacional uma importante dimensão. Assim, já havia uma percepção crescente acerca das vantagens e até mesmo da necessidade de se estabelecer padrões comerciais e industriais comuns às nações. A intensificação do comércio e dos investimentos internacionais tornava a padronização técnica um desdobramento inevitável. Com efeito, em 1914, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, os investimentos internacionais já somavam quase US$ 20 bilhões e um país como a Inglaterra exportava quase 70% de sua produção industrial e importava mais de 80% dos bens primários de que necessitava.[13] Nesse quadro, embora menos visível, padrões industriais comuns passavam a ser adotados pelas indústrias das principais economias.

O fato é que, apesar de alguns conflitos até mesmo de grandes proporções, desde meados do século XIX as atividades e os interesses da vida civil, ganharam espaço de forma contínua e crescente na ordem social, política e, principalmente, na esfera econômica. Na realidade, não seria exagero entender o surgimento dessas organizações internacionais, embora voltados para assuntos técnicos, como verdadeiros precursores do multilateralismo que iria marcar as relações internacionais da segunda metade do século XX. Muito embora a Liga das Nações tenha sido criada em 1919, foi apenas na esteira da Segunda Guerra Mundial que, realmente, os conceitos de segurança coletiva e de multilateralismo tornaram-se elementos marcantes do sistema internacional. Na economia foram criadas as instituições como as de Bretton Woods (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional), o GATT, além de muitas organizações regionais na Europa e em outros continentes, voltadas para o comércio e o desenvolvimento. Na política, além do sistema ONU, também foram criadas várias organizações regionais com propósitos semelhantes, isto é, como foros de debate e de promoção da cooperação internacional em matéria de segurança e de relações políticas.

A ideologia nas constituições e seus efeitos na esfera internacional

Ao longo da história, o fator ideológico sempre foi um elemento de notável relevância nas relações entre povos e até mesmo nas relações entre segmentos de um mesmo grupo social ou nação. Um fato notável envolvendo ideologias é que não precisam estar presentes em constituições ou em outros documentos oficiais. Os recentes acontecimentos associados às eleições nos EUA, uma das grandes democracias do mundo, revelam o caráter conflituoso que as ideologias podem assumir mesmo em uma sociedade formada em torno de valores e de ideologias de tolerância às diferenças religiosas e a outras formas de diferenças que marcam a humanidade. A própria formação do Estado Nacional ocorreu em um ambiente de confrontação ideológica de base religiosa.

No século XVI todas as nações europeias eram cristãs. As diferenças entre católicos e reformistas, portanto, não diziam respeito à substância já que eram todos cristãos, mas baseavam-se em diferenças na prática religiosa e em sua projeção nas instâncias do poder temporal. Em outras palavras, aqueles que não praticavam a religião da maneira que consideravam como sendo “a forma correta” eram considerados hereges e podiam ser discriminados e até condenados ao suplício. Algo semelhante pode ser dito a respeito da milenar diferença e oposição entre as correntes do islamismo que, até hoje, servem de base para sustentar radicalismos e hostilidades mútuas.

No século XX, a existência da URSS por sete décadas representou um caso particular de ideologia, refletida no quadro constitucional da nação e que, na ordem internacional, desempenhou papel de grande relevância. A constituição promulgada em 1918 estabelecia a República Socialista Federativa Soviética Russa anunciando que rompia radicalmente com as tradições da ordem social e política das potências tradicionais, criando uma sociedade comunista, com base nas formulações de Karl Marx e de Friedrich Engels.[14] Em seu Artigo 3º. essa constituição estabelecia o caráter e os princípios da ordem social e política de uma república cuja base ideológica socialista contrastava notavelmente com a ideologia que moldava a ordem social e política de outras potências no cenário internacional. Vale reproduzir parte desse artigo que ajuda a compreender essas peculiaridades do ordenamento social e político e suas implicações para as relações internacionais:

Artigo 3º. “… sendo sua tarefa fundamental (do Estado) a abolição de toda a exploração do homem pelo homem, a completa eliminação da divisão da sociedade em classes, a impiedosa repressão da resistência dos exploradores, o estabelecimento de uma organização socialista e o atingimento da vitória do socialismo em todos os países, o III Congresso de Deputados Trabalhadores, Soldados e Camponeses de Toda a Rússia resolve:

a) Visando à concretização da socialização da terra, fica abolida a propriedade privada da terra. Todos os imóveis agrícolas são declarados propriedade de todo o povo trabalhador e entregues, sem qualquer indenização, aos trabalhadores, com base no princípio da utilização igualitária da terra.

b) Todas as florestas, todos os recursos naturais e todas as águas de significado estatal-geral, assim como todos os bens vivos ou mortos, fazendas de espécies e empresas agrícolas são declarados propriedade nacional.

c) Como primeiro passo para a completa passagem das fábricas, empresas, minas, estradas de ferro e demais meios de produção e de transporte à propriedade da República dos Conselhos (Sovietes) dos Trabalhadores e Camponeses, ratificam-se as Leis Soviéticas sobre o Controle Operário e o Conselho Supremo da Economia, visando a assegurar o poder dos trabalhadores sobre os exploradores. Como um primeiro golpe a ser desferido contra o sistema bancário internacional, o capital financeiro, o III Congresso dos Conselhos (Sovietes) está deliberando uma Lei sobre a Anulação (Aniquilação) dos Empréstimos, contraídos pelo Governo Czarista, pelos Proprietários Fundiários e pela Burguesia, ao mesmo tempo em que expressa a sua confiança em que o Poder dos Conselhos (Sovietes) prosseguirá, com firmeza, nessa direção, até à mais plena vitória da insurreição internacional dos trabalhadores contra o jugo do capitalismo.”

Em 1936 foi promulgada uma nova constituição – a Constituição Stalinista – introduzindo cláusulas de liberdade religiosa e de direitos políticos e sociais. Apesar de tudo, a rejeição à URSS por parte das principais potências não se reduziu, tanto pelo fato de que na nova constituição as características básicas de uma sociedade comunista, descritas em sua primeira constituição, foram mantidas, quanto em virtude de a URSS continuar sendo uma sociedade fechada da qual notícias eram “vazadas” para o meio internacional relatando a realização de julgamentos sumários de vozes discordantes do regime, que significavam perseguições, prisões nos temíveis campos gelados da Sibéria, e até mesmo execuções de pessoas consideradas inimigas do regime.[15] Com efeito, os princípios de organização social e política enunciados na constituição, como o confisco e o não reconhecimento da propriedade privada, contrastavam radicalmente com as tradições sociais, políticas e até culturais das potências tradicionais mas, provavelmente mais crítico e mais problemático de imediato, era o fato de que a família do czar e muitas outras famílias importantes da velha Rússia faziam parte de famílias tradicionais da Europa e, tal como o próprio Czar, haviam sido perseguidos, assassinados e seus bens confiscados na forma descrita pelo Artigo 3º. acima transcrito.

Após sete décadas de tensão, o colapso da URSS em 1991 provocou não apenas a redução das tensões com as potências ocidentais tradicionais, mas provocou também um movimento nas relações internacionais no sentido de motivar a produção de novas constituições nos países do Leste Europeu que, desde o final da Segunda Guerra Mundial, haviam vivido sob a esfera de influência direta da URSS. Essas nações, rapidamente, produziram novas constituições procurando reorientar suas instituições políticas, sociais e econômicas de acordo com os padrões do Ocidente liberal-capitalista. Além disso, um dos casos mais notáveis decorrente desse processo foi a absorção, pela República Federal da Alemanha (RFA) do território que havia sido a Alemanha Oriental, que passara a existir desde 1949, quando fora promulgada a constituição da República Democrática Alemã (RDA). Ao voltar a ser unificada, a Alemanha dava também um novo perfil à distribuição internacional de poder, especialmente no âmbito europeu, ao incorporar uma população de 16 milhões de pessoas, unificar a cidade de Berlin, que voltou a ser capital da nação, e incorporar centros urbano-industriais importantes da RDA e aumentar em quase 1/3 o território da República Federal da Alemanha.

Do ponto de vista das consequências internacionais do colapso da URSS vale destacar também a verdadeira corrida das nações que deixavam a esfera de poder soviética no sentido de agregar-se o mais rapidamente possível à União Europeia. Na realidade, a União Europeia, apesar de, formalmente, ter nascido de um arranjo internacional voltado para a integração econômica, sua natureza política baseada nas tradições do pensamento liberal sempre esteve presente. Além disso, a trajetória de sucesso da integração europeia servia de inspiração não apenas para as nações europeias, mas para todo o mundo, mesmo para as nações de tradições políticas e culturais que antecediam a própria Europa. O fato é que, rapidamente, mais de uma dezena de nações que viviam sob o regime soviético passaram a integrar a União Europeia e todas elas, ao mesmo tempo em que se associavam ao sistema europeu, recuperavam sua identidade histórica e cultural ancestral. Até mesmo a ex-URSS (a Federação Russa) que, apesar de não ter se integrado à União Europeia, foi em busca de seus símbolos ancestrais, além de produzir uma nova constituição alinhada aos padrões do Ocidente. Na bandeira a Federação Russa abandonou a foice e o martelo e recuperou as cores branca, azul e vermelha com toda a sua simbologia da velha ordem. Na antiga Rússia a cor vermelha simbolizava a coragem; o azul, a lealdade e a pureza moral; e a cor branca, a magnanimidade. A bandeira tricolor (branca, azul e ver­melha) teria sido usada pela primeira vez nos barcos de guerra da Marinha Russa que, sob o comando do czar Pedro, o Grande, nos fins do século XVII, tomaram a Fortaleza de Azov dos turcos. Além disso, igualmente notável, ocorreu com o brasão da Federação Russa, que recuperou a águia de duas cabeças coroadas e a figura de São Jorge cujas origens remontam ao império bizantino.

Na Ásia, a reconstrução do Japão após a Segunda Guerra Mundial deu-se dentro do espírito de harmonização com a ordem internacional sob o comando do Ocidente. Apesar de manter a família imperial e suas antigas tradições, a constituição japonesa foi elaborada sob as forças de ocupação americana e todo o processo de reconstrução, modernização e desenvolvimento da economia japonesa baseou-se essencialmente na cooperação e na integração às instituições e à vida econômica internacional. Historicamente, as diferenças religiosas e culturais foram problemáticas, mas nunca se constituíram em grandes obstáculos na mesma medida em que haviam se manifestado em outras regiões. O isolamento de dois séculos e meio desde a implantação do xogunato de Tokugawa (início do século XVII) se deveu essencialmente a razões políticas. Dessa forma, apesar das diferenças étnicas e culturais, ao longo da guerra fria o Japão não se constituiu em obstáculo à construção da ordem internacional. Na realidade, além de não alimentar nem mesmo quaisquer ressentimentos decorrentes da Segunda Guerra Mundial, o Japão atuou como importante aliado na construção da ordem internacional do pós-guerra.

Por outro lado, em alguns países como a China, a Coreia e o Vietnã, formaram-se governos e movimentos de oposição ao Ocidente liberal-capitalista e, em alguns casos, constituíram-se em focos de conflitos armados ou geradores de tensões internacionais contínuas ao longo da guerra fria. A Guerra da Coreia (1950-1953) foi um caso bastante ilustrativo da dramaticidade dessas tensões. Com efeito, o conflito foi, em larga medida, um reflexo da guerra fria, que ganhava momentum nos fins da década de 1940, e que terminou com a divisão da nação. Uma divisão que permanece até hoje mesmo tendo já passado duas décadas desde o fim da guerra fria. Também no caso do Vietnã as tensões seriam marcantes e somente deixariam de existir após um conflito armado que se estendeu por duas décadas e que terminou com a derrota do Vietnã do Sul, apoiada pelos EUA. Embora a denominação oficial da nação seja República Socialista do Vietnã, no que tange às relações com a comunidade internacional, sua trajetória em muitos aspectos se assemelha ao da China, no sentido de progressiva integração à economia globalizada.

A China, por suas dimensões, é um caso que demanda uma reflexão adicional. A política na China está assentada sobre antigas tradições e experiências históricas na política substantivamente diferentes daquelas vividas pelo Ocidente. Ao longo do século que antecedeu a ascensão de Mao Tsé-Tung (1949) a experiência política vivida pela China foi a de uma sucessão de governos notavelmente fracos em todos os sentidos. Desde o século XIX não apenas as potências coloniais mantinham formas variadas de dominação sobre a sociedade chinesa. Mesmo no plano doméstico, sob a dinastia Qing, a China enfrentava sérios problemas de governabilidade. A revolta dos Boxers (1899-1901) foi uma típica manifestação desses intermináveis problemas de governabilidade. John Delury, estudioso da cultura e da política da China, usa de uma metáfora para fazer um relato dramático da situação da China que antecedeu à tomada de poder por Mao Tsé-Tung e pelo Partido Comunista em 1949: “Nos fins do século XIX a Dinastia Qing era como um touro feroz na arena que sangrava por todos os membros por ter sido lancetado, perfurado e cortado desde os anos 1830 – quando os problemas realmente se tornaram óbvios – e, no início do século XX, estava apenas à espera de que o matador desferisse o golpe de misericórdia”. Nesse sentido, a maioria dos historiadores entende que o principal legado político do período da China revolucionária de Mao Tsé-Tung foi um Estado renovado, fortalecido e bem disciplinado, em condições de manter unidas as províncias e as lideranças locais. Sob o comando absolutista de Mao Tsé-Tung e do Partido Comunista as instituições do Estado e seus governantes recobraram a autoridade e o controle, ou seja, reconstruíram a ordem sem a qual é impossível prosperar, seja qual for a forma de organização da sociedade. Mesmo nos países ocidentais, em termos de prosperidade, um diferencial importante entre as várias sociedades qualificadas como democráticas é o nível de ordem vigente. Países onde indicadores como elevados índices de criminalidade, práticas generalizadas de ilícitos e transgressões, baixa eficiência dos serviços públicos ou corrupção generalizada, que indicam baixos teores de ordem social e política – isto é, de governabilidade – são os países que apresentam problemas crônicos de estagnação econômica.

O fato é que a ascensão da China trouxe ao mundo não mais uma ameaça baseada em ideologias hostis, mas uma ameaça à liderança das potências tradicionais. O fator ideológico tornou-se um elemento secundário e, na realidade, o que é notável no caso chinês é que, de um lado, a organização e a liderança da sociedade exercida pelo Partido Comunista Chinês não constituiu problema para que a ascensão da China ocorresse por meio de uma política de longo prazo de cooperação com as potências econômicas do Ocidente. De outro lado, há o fato de que, apesar de o Partido Comunista Chinês continuar controlando com mão forte o poder, na prática, esse poder e esse controle da economia e da sociedade não têm sido exercidos por meio de instituições e práticas de inspiração marxista, como era o caso da URSS. Regimes duros e autoritários nunca foram privilégios exclusivos de governos de inspiração marxista. Entre as notáveis diferenças entre o regime da China e o que seria um regime tipicamente marxista pode ser apontada a existência de propriedade privada e de mercados livres e dinâmicos, inclusive para ativos financeiros. Outra diferença notável é que, na educação, nas escolas controladas pelo Estado, valoriza-se a prática de tradições e até mesmo de ritos e celebrações tradicionais e o respeito a valores como a senioridade, os ritos sociais e outros costumes antigos.[16] Práticas essas condenadas pela doutrina marxista.

Com efeito, mesmo na primeira constituição produzida sob o comando do Partido Comunista da China (1954) a propriedade privada não fora abolida, sendo admitida até mesmo a existência de “capitalistas”. No Artigo 5º, a constituição declara: “Na República Popular da China existem atualmente as seguintes formas fundamentais de propriedade dos meios de produção: a propriedade do Estado — isto é: a propriedade de todo o povo —; a propriedade cooperativa — isto é: a propriedade coletiva dos trabalhadores —; a propriedade dos trabalhadores individuais; e a propriedade dos capitalistas.” Vale reproduzir também trechos do Artigo 10º. da constituição chinesa onde se explica como a constituição entende a propriedade do capital e seu uso: “… Mediante a direção exercida pelos órgãos administrativos do Estado, a direção exercida pelo setor estatal e o controle por parte das massas trabalhadoras, o Estado aproveita o papel positivo da indústria e do comércio capitalistas, que é útil ao bem-estar nacional e à prosperidade do povo; limita seu papel negativo, que prejudica o bem-estar nacional e a prosperidade do povo; estimula e orienta sua transformação em setor do capitalismo de Estado, sob diferentes formas, e substitui gradualmente a propriedade dos capitalistas pela propriedade de todo o povo”.

Observa-se que, diferentemente da URSS, mesmo a constituição produzida por Mao Tsé-Tung, nos primeiros anos da revolução comunista, a propriedade privada não deixava de existir significando, assim, que mesmo sem as reformas introduzidas por Deng Xiaoping (1978-1992) a ordem constitucional não proibia nem o lucro e nem a existência de propriedade privada. Em larga medida, as reformas introduzidas por Deng Xiaoping relacionavam-se muito mais com a forma de entender e de exercer o poder especialmente nas relações com o meio internacional, em particular no que tange ao trato com o capital estrangeiro. Popularizou-se a frase atribuída a Deng Xiaoping “não importa se o gato é preto ou branco, desde que cace os ratos”, que reflete o fato de que as mudanças institucionais não foram, nem de longe, tão importantes quanto as mudanças na atitude e na forma de conduzir o Estado Chinês, em especial nas relações com outros países. Na realidade, a história tem mostrado que as atitudes dos governantes e as políticas praticadas geralmente são bem mais importantes na formação de focos de tensão do que ideologias expressas em documentos oficiais. Com efeito, durante a maior parte da Idade Média, os reinos europeus eram todos católicos, mas esse fato não impedia que governos e governantes variassem em um amplo espectro de possibilidades: governantes podiam ser sensatos, benevolentes e sábios ou podiam ser tiranos e ambiciosos, ou ainda podiam ser egoístas e presunçosos, mas também inseguros em suas decisões. Ou seja, reinos e baronatos guerreavam entre si por direitos de sucessão, por ofensas e injúrias, por ambição de governantes ou por quaisquer outras motivações que movem povos e governantes até os dias de hoje. Pode-se dizer que o autoritarismo do regime na China hoje apresenta muito mais semelhanças com o absolutismo dos regimes praticados na Europa nos séculos XVII e XVIII do que com aquele praticado pelo próprio Mao Tsé-Tung da revolução comunista. Em outras palavras, mesmo dentro de uma mesma ideologia laica ou religiosa, Estados e nações podem ter desempenhos muito diferentes, dependendo de muitos fatores, em especial do conjunto de virtudes, qualidades e percepções de seus governantes. A política da détente foi praticada tanto pelas nações líderes do Ocidente quanto pela URSS e pela China nas décadas de 1970 e 1980. Nesse quadro apenas a URSS mudou seu regime, uma mudança motivada muito mais pela evolução do quadro político e econômico da própria URSS do que em eventuais transformações ocorridas nas visões ideológicas de seus governantes. Os principais intérpretes da mudança de regime na URSS concordam que a perda da força da ideologia comunista acompanhou a deterioração das condições econômicas do país.

Nesse quadro pode-se extrair duas observações ou hipóteses a respeito da experiência vivida pela China nos últimos 40 anos. A primeira é que, internamente, as mudanças introduzidas na constituição nas últimas décadas refletiram uma verdadeira redescoberta das tradições ancestrais da China. A famosa frase de Deng Xiaoping sobre a cor dos gatos bem poderia ser adicionada aos Analectos legados por Confúcio.[17] A segunda é que, durante o período de Mao Tsé-Tung, os excessos da Revolução Cultural foram objeto de preocupação, sobretudo moral, das grandes potências, mas a ascensão da China à condição de potência mundial de primeira grandeza transforma substancialmente a forma de ver e as preocupações da comunidade internacional em relação à China. Claramente o que se destaca é a disputa por liderança internacional e não uma suposta guerra ideológica. Objetivamente, para as nações mais pobres e com recursos de poder mais limitados, a China torna-se uma alternativa entre as opções disponíveis no mundo, enquanto para as grandes potências a China torna-se um rival formidável nas suas equações e hipóteses sobre o futuro das relações internacionais, independente de sua ordem política e jurídica doméstica.

A grande preocupação da comunidade internacional com o fator ideológico não mais reside no que pode estar presente na constituição, mas com as práticas ideológicas que não estão definidas nas constituição, como é o caso do terrorismo islâmico, que é negado por todos os Estados organizados constitucionalmente sob a orientação da fé islâmica. Em termos substantivos, o caso dos países islâmicos são os mais notáveis da presença da religião na constituição como elemento de orientação ideológica para as nações em nossos dias. Em alguma medida, a trajetória constitucional dos países árabes se desenvolveu entre a experiência do Irã, onde a religião e as tradições dominam completamente a estrutura do comando político, e o caso do Egito, onde embora o islamismo seja oficialmente a religião do Estado e da nação, é bastante relevante a influência do pensamento ocidental na ordem econômica e política. Entre as lideranças do Ocidente não há grande preocupação com os termos em que as constituições desses países estão expressas. O mais importante é que o fato desses países declararem seguir a fé islâmica nenhum deles declara adotar o terrorismo como forma de ação. Na realidade, o terrorismo islâmico que, em nosso tempo, tem estado na base de tensões internacionais importantes, tem sido conduzido essencialmente por organizações clandestinas isto é, sem qualquer suporte formal até mesmo a respeito de suas existências. De fato, muito embora os serviços de inteligência das potências do Ocidente busquem com insistência indícios de apoio de governos de países islâmicos a essas organizações, essa ligação jamais foi cabalmente comprovada.

As constituições e as relações internacionais de seu tempo

Pode-se dizer que a constituição dos EUA guarda uma notável peculiaridade em relação às demais constituições. Ao longo de mais de duzentos anos de existência, a constituição americana apenas adicionou emendas que introduziram cláusulas a respeito de mudanças importantes ocorridas na sociedade e que a constituição não contemplava ou que não deixava explícitas, como foram os casos da abolição da escravidão e da limitação dos mandatos presidenciais. Com efeito, durante os debates ocorridos antes da eclosão da guerra civil em 1861, uma das preocupações centrais de Abraham Lincoln era a de mostrar que a constituição, embora não expressasse explicitamente, a postura anti-escravidão estava de acordo com as crenças e o modo de pensar dos Pais Fundadores que a haviam concebido.[18] Outra emenda notável à Constituição Americana foi a limitação para dois, os mandatos presidenciais após as quatro eleições sucessivas de F. D. Roosevelt.[19] Neste caso, vale lembrar que em seu discurso de despedida da vida pública, George Washington começa por explicar porque não deveria aceitar um terceiro mandato apesar da insistência das principais lideranças e de seus amigos, argumentando que um terceiro mandato não faria bem nem para ele e nem para o país.[20]

Também chama a atenção o fato de a constituição americana ser muito mais concisa do que outras constituições.[21] Em larga medida, pode-se dizer que a experiência constitucional dos EUA foi fortemente influenciada pela tradição jurídica anglo-saxônica, que valoriza costumes e tradições não escritas, ou seja, procura antes expressar princípios e normas de comportamento presentes nos códigos e nas decisões das cortes do que enunciar providências, medidas e recursos específicos. O filósofo poderia argumentar que reflete mais um desses curiosos paradoxos da natureza humana, ou seja, pelo fato de não serem escritos, costumes e tradições tendem a apresentar níveis de resiliência mais elevados do que documentos escritos que, exatamente por serem escritos, podem ser reescritos, dependendo da vontade de governantes e da opinião pública, sempre cambiantes e sujeitas às tentações das circunstâncias e das oportunidades, aparentemente sempre ao alcance das mãos. Apesar de tudo, talvez a explicação mais objetiva para que uma constituição permaneça vigente por longo tempo, inclusive para servir de base para que as sociedades se adaptem às mudanças trazidas pelo tempo, seja oferecida pelo historiador Octaciano Nogueira que, ao analisar a constituição brasileira de 1824, aponta para o Artigo 178 da Carta Imperial:

“Só é constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos; tudo o que não é constitucional pode ser alterado, sem as formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias”.[22]

O fato é que a tentação no sentido de mudar ou de reescrever as constituições é sempre muito forte. Ditadores e usurpadores sempre justificam suas causas a partir do argumento de que uma intervenção é necessária para “salvar a nação” e que, para tanto, é necessário produzir uma nova constituição para que torne o país governável e para que novos princípios sejam introduzidos na ordem política e social e da nação.

O fato é que as constituições da grande maioria dos 193 Estados, hoje Membros das Nações Unidas, como peças jurídicas refletindo sociedades vivas e dinâmicas, não se apresentam mais na forma como foram concebidas originalmente. Na Venezuela a constituição vigente é a 27ª. de uma série que se iniciou em 1811 e tudo indica que o fim do chavismo será marcado pela produção de mais uma nova constituição. Na Argentina, considera-se que a primeira constituição produzida em 1853 foi reformada em 7 ocasiões, sendo a última em 1994, após o fim dos governos militares. Mesmo a França tem em sua história mais de uma dezena de constituições que refletiram primeiro as fases revolucionárias e, depois, a fase napoleônica, a restauração da monarquia Bourbon, seguidas pelas constituições republicanas. A constituição vigente na França corresponde à V República e data de 1958. No Brasil, a constituição vigente é a sexta, não incluindo a reforma de 1967, que muitos constitucionalistas alegam ter introduzido modificações tão profundas que pode ser considerada como uma nova constituição. O fato é que revoluções e mudanças políticas com alguma profundidade resultam em reformas constitucionais amplas ou mesmo em novas constituições. As alegações podem ser variadas, mas a base dos argumentos geralmente se assenta no entendimento de que o governante se vê impossibilitado pelos dispositivos constitucionais vigentes de produzir justiça social e os bens públicos de que a nação precisa para seu bem-estar e progresso.

Em certos casos, alterações constitucionais podem ter origem em desenvolvimentos ocorridos na esfera internacional, como foi o caso dos países do Leste europeu diante do colapso da URSS em Dezembro de 1991. Por outro lado, o caso do avanço da integração europeia é um dos casos mais notáveis de como desenvolvimentos na esfera internacional, mesmo em ambiente ordeiro e pacífico, podem influenciar as constituições nacionais. Nos primeiros anos do processo de integração, o estabelecimento da Comunidade Econômica Europeia (CEE) em termos jurídicos implicava essencialmente negociações com organismos internacionais como o GATT e com outras nações dentro e fora do bloco, uma vez que, nos primeiros anos, a CEE vivia as fases iniciais da integração econômica nas quais o bloco poderia ser classificado como um agregado de soberanias, semelhante ao que tem sido até hoje o Mercosul.

Com o aprofundamento da integração, especialmente a partir do Tratado de Maastricht (1992), surgiu a necessidade de os países integrantes do bloco reverem suas bases constitucionais, em particular no que tange a um dos princípios essenciais de qualquer Estado moderno: o princípio da soberania. Com efeito, após o Tratado de Maastricht (1992) a CEE foi transformada em União Europeia, e os países membros viram-se diante da necessidade de rever suas constituições nacionais, introduzindo o princípio da subsidiaridade. Por esse princípio, os Estados membros da União Europeia reconhecem soberanamente que há questões econômicas, políticas e sociais para as quais os governos nacionais não podem mais decidir sem a aprovação de instâncias decisórias da União Europeia.[23]

A existência de uma moeda comum – o euro – é um dos exemplos mais materialmente visíveis da impossibilidade de manter intocado o princípio da soberania em sua forma original na União Europeia. Antes do euro, as moedas nacionais, quase tanto quanto as bandeiras, desempenhavam um papel simbólico como representativas das nações e, além disso, a própria teoria econômica corrente afirmava que a moeda define um país, em grande parte pelo reconhecimento da importância das políticas cambiais e monetárias para as economias nacionais.[24] Por essa razão Robert Mundell que, no início da década de 1960, já previa o advento de uma moeda europeia, ficou sendo considerado por muito tempo como um visionário até que, afinal, o advento do euro acabou por se tornar um forte argumento para que, em 1999, Mundell fosse agraciado com o Prêmio Nobel de Economia. O fato é que a evolução da economia, especialmente na Europa onde os mercados de bens, serviços e de mão de obra já haviam se integrado, para a maioria das economias da Europa os custos de transação decorrentes da manutenção de várias moedas sob o argumento da soberania, haviam se tornado um peso adicional que não mais compensava manter.

Outro caso interessante da experiência europeia em relação às pressões sobre o princípio da soberania é o dos Acordos de Schengen, que trata da liberdade da livre movimentação de pessoas através das fronteiras europeias.[25] Os acordos preveem a uniformização das exigências e dos procedimentos no que tange à movimentação de pessoas, isto é, concessão de vistos e de asilo a refugiados e de tratamento de migrantes oriundos de outras regiões, além de ampla cooperação judiciária e policial entre os países europeus. Embora os Acordos de Schengen tenham sido incorporados pela União Europeia, a eclosão de conflitos e guerras civis em regiões próximas do Mediterrâneo têm alimentado discussões sobre as normas e as práticas sob os Acordos Schengen, uma vez que as pressões migratórias geradas por esses conflitos não afetam da mesma forma as nações integrantes da União Europeia. Tanto pela maior proximidade geográfica quanto pelo destino desejado pelos migrantes que passaram a chegar em grande número em alguns pontos da Europa a pressão dos fluxos migratórios se fazem sentir de forma diferente pelas sociedades e pelos governos europeus dificultando a prática de políticas comuns.

O Artigo 23 da Constituição da República Federal da Alemanha trata especificamente do comprometimento do país com a União Europeia e enuncia como o princípio da subsidiaridade será aplicado pelo governo e pelas instituições políticas e jurídicas da nação. Também a constituição Francesa, produzida sob a liderança de Charles De Gaulle em 1958, ao longo do tempo introduziu emendas significativas para se adequar às mudanças em curso na cena internacional, especialmente europeu. Uma delas foi a inclusão da “Carta Ambiental de 2004” na qual declara o profundo comprometimento da nação com as causas ambientais. Por exemplo, no Artigo 2º. e 3º. da Carta estabelece que “Toda pessoa tem o dever de participar da preservação e da melhoria do meio ambiente… (e que) deve, nas condições definidas pela lei, prevenir as ameaças que pode causar ao meio ambiente ou, caso contrário, limitar suas consequências”. Em relação à União Europeia, a Constituição Francesa dedica o Capítulo XV que, embora sem empregar o termo subsidiaridade, tal como o faz a Constituição da Alemanha, estabelece os termos dentro dos quais o Tratado da União Europeia será respeitado e posto em prática naquele país, reconhecendo as muitas situações em que disposições da União Europeia devem prevalecer sobre o que poderia ser a vontade soberana da França.

De forma semelhante, os demais países integrantes da União Europeia incorporaram em suas constituições as instituições e práticas estabelecidas pelo bloco. Na realidade, o próprio processo de ingresso na União Europeia já inclui, além da aceitação dos Tratados da União Europeia e dos princípios contidos nesses tratados, a aceitação e o cumprimento de condições tais como os padrões de desempenho macroeconômico que devem estar em harmonia com o bloco de tal forma que não prejudique a estabilidade econômica e social do bloco. A integração europeia que havia se iniciado com 6 países membros chegou a ter 28 integrantes até a saída do Reino Unido. No caso do Reino Unido, obviamente, a saída da União Europeia, formalmente, implica a denúncia do Tratado da União Europeia enquanto as discussões do Brexit referem-se principalmente à negociação sobre custos e prazos dos compromissos assumidos durante o período em que foi membro pleno da União Europeia. Em um sentido mais geral, a saída formal da União Europeia significa que o Reino Unido deixará de participar dos custos e das facilidades oferecidas pela União Europeia, passando a depender de seu próprio dinamismo a forma pela qual serão definidos os padrões de relacionamento tanto com a Europa quanto com o resto do mundo.

Considerações finais: as constituições e as nações no mundo

Na essência, a história tem mostrado que a posição de uma nação diante de outras nações depende diretamente das práticas, dos valores e dos padrões locais de conduta e de comportamento da população, e também da qualidade dos governantes. A qualidade do governante é essencial muito menos pelos atos de governo em si, mas muito mais pelo que representa para a nação como modelo de conduta, de caráter e de valores que devem ser representativos das expectativas da nação, frequentemente não expressos em documentos e manifestações públicas. Vale notar que a expressão “qualidade do governante” não se restringe apenas ao rei ou ao presidente, mas refere-se a toda classe dirigente da nação, ou seja, parlamentares, magistrados, ministros, e dirigentes de instituições que comandam a ordem social e política da nação. Foi assim que, ao longo da história, povos e culturas se destacaram e algumas nações se tornaram grandes potências enquanto outras permaneceram à sombra dos acontecimentos, ou ainda, em casos muito particulares, deixaram um notável legado de cultura e de civilização.

O fato de que alguns povos prosperaram e se tornaram ricos, poderosos e influentes enquanto outros não se destacaram, sendo até mesmo dominados por povos menos numerosos, continua sendo até nossos dias objeto de curiosidade e de reflexão. Pensadores como Arnold Toynbee, Michael Oakeshott e Johann Herder procuraram oferecer um painel amplo e geral da história de povos e de civilizações que deixaram marcas notáveis como testemunho de terem vivido no passado eras de glória e de realizações políticas e culturais. Em tempos mais recentes alguns fatos como a revolução industrial continuam a intrigar historiadores e pensadores por seu enorme alcance que, como raros eventos na história, efetivamente mudaram de forma bastante radical os padrões de vida de toda a humanidade. Por que um desenvolvimento tão amplo e poderoso teve sua origem e seu desenvolvimento inicial na Inglaterra e não no âmbito de outras nações? Além disso, por que se estendeu para outras sociedades no mundo de modos tão diferentes em intensidade e em características, diferenças essas que se manifestaram até mesmo em partes da Europa? Embora hajam interpretações bastante correntes na economia que destacam o papel do capital no processo de industrialização da Inglaterra, sempre fica a sensação de que não explicam a essência da questão, já que à época havia outras nações bastante ricas. Por exemplo, a França no século XVIII vivia um momento cultural e econômico de grande prestígio, mas houve a coroação de Louis XVI, que estava longe de possuir as qualidades de um bom governante, associada ao fato de que no substrato da sociedade francesa se gestava a revolução que iria lançar a nação num torvelinho de revolta e de paixões que, por décadas, iria consumir os recursos e as energias da nação. Raymond-Leopold Bruckberger, historiador e pensador, integrante da Academia Francesa, argumenta que a revolução industrial foi o modo inglês de realizar as transformações sociais e políticas que a França iria tentar realizar de forma trágica e turbulenta a partir de 1789.[26]

A história mostra que, tal como ocorre com a abundância de recursos naturais e com as condições geográficas, as constituições e a ordem política por elas estabelecida são importantes, mas não impedem a ocorrência de maus governantes e nem são as únicas responsáveis pela produção de bons governos. Com efeito, no ancien régime houve um Louis XIV que, nas palavras de Voltaire, conduziu a França em um momento de grande esplendor nas ciências e na cultura – um verdadeiro século de ouro.[27] No entanto, foi sob o mesmo ancien régime que Louis XVI foi coroado meio século após a morte de Louis XIV e foi sob Louis XVI que a França viu-se vivendo o caos e a revolução de 1789. Por outro lado, na história da república americana, houve um Abraham Lincoln e um Franklin D. Roosevelt, que conduziram a nação com notável denodo e competência em tempos difíceis de grandes incertezas e turbulências. No entanto, sob o mesmo regime e sob a mesma constituição, houve também vários presidentes que se notabilizaram pela pouca competência e por exercerem uma liderança sem brilho e bem pouco benéfica para a nação.[28] Assim, nos tempos modernos, as constituições definem regimes e estabelecem padrões e normas de conduta para os governantes, mas não impedem que as nações convivam com a alternância entre bons e maus governantes.

Provavelmente, nesse aspecto, as maiores diferenças entre os tempos do ancien régime e a era das modernas repúblicas é que no ancien régime o sistema era basicamente hereditário, quando o poder não era obtido pela força, enquanto nas repúblicas modernas estabelecem-se mandatos com períodos definidos para os governos eleitos.[29] Com efeito, nas monarquias hereditárias o tempo de duração de um mau governo era limitado apenas pela morte do governante que poderia ocorrer de forma natural, após arrastar o reino por décadas através de um reinado sem brilho e marcado por um ambiente de insatisfação e de desânimo ou, por vezes, um mau governo podia ser encerrado por um fim trágico como foi o caso de Louis XVI, deposto e guilhotinado pelos revolucionários em 1793.  Nas artes, os trágicos dilemas do poder que assolavam os homens antigos foram retratados em tragédias imortalizadas pelo teatro grego ou por dramaturgos como Shakespeare.  Para além da ambição, do ódio e da inveja, entre os dilemas cruciais, um dos aspectos mais angustiantes era o do sentimento moral entre o respeito às leis e às instituições e a consciência de que os destinos da nação estavam inexoravelmente ligados às qualidades, ou à falta delas, que caracterizavam governantes e que afetavam a vida e a prosperidade das nações. Entre os antigos, o lado trágico desse dilema emergia do fato de que só a morte poderia interromper os efeitos nefastos de um mau governo.

Nesse sentido, pode-se dizer que a alternância de poder trazida pelas sociedades abertas, típicas da modernidade, praticamente eliminou o conteúdo trágico dessa relação entre a nação e o destino de seus governantes. Além disso, a modernidade também diluiu os impulsos para a ambição em uma miríade de possibilidades no campo das artes, das ciências, dos negócios e até mesmo da própria política ao limitar, por meio de leis, o poder dos governantes. Na realidade, a história mostra que os maus governantes na ordem antiga, em razão de suas fraquezas diante de ambições desmedidas, geralmente transformavam-se em tiranos, fazendo com que suas ações se tornassem ainda mais odiosas e insuportáveis.

Nos fins do século XVIII houve um intenso debate intelectual sobre as diferenças entre o mundo antigo e o mundo moderno. Benjamin Constant de Rebecque argumentava que uma diferença essencial era o do entendimento da liberdade que, no mundo antigo valorizava as liberdade das nações, mas não havia o governo representativo. Este sistema (representativo) é uma descoberta dos modernos e vós vereis, Senhores, que a condição da espécie humana na antiguidade não permitia que uma instituição desta natureza ali se introduzisse ou se instalasse. Os povos antigos não podiam nem sentir a necessidade nem apreciar as vantagens desse sistema. A organização social desses povos os levava a desejar uma liberdade bem diferente da que este sistema nos assegura, escreve Benjamin Constant.[30]

O grande problema é que a representatividade não é um conceito absoluto e precisa ser transformada em um sistema de escolha de representantes, isto é, em um sistema eleitoral. Dessa forma, como qualquer sistema construído pelo homem para organizar sua convivência, pode ser falho e necessita sempre de melhorias, de aperfeiçoamentos e, principalmente, de adaptações contínuas a uma realidade sempre em transformação. Além disso, como já lembrava Aristóteles em seu tratado sobre a política, os regimes podem ser bons e eficazes, mas podem degenerar-se. Os iluministas no século XVIII, preocupados com as tiranias em que as monarquias se degeneravam com certa frequência, propunham o conhecimento e a educação dos príncipes como forma de recuperar e de fazer valer as virtudes de um bom regime monárquico. De acordo com Aristóteles, a demagogia seria a forma degenerada das democracias, isto é, governos, embora escolhidos e constituídos pelo povo, ao invés de serem benéficos a esse povo, os governantes, valendo-se de argumentos distorcidos, mas aparentemente corretos e convincentes, podem produzir leis e agir em benefício próprio e não em benefício da sociedade e da nação. Isto é, mesmo governos representativos (democraticamente eleitos) ao invés de cuidarem da promoção do bem comum, podem ceder à tentação de usar da autoridade do Estado para seu próprio benefício.

Obviamente, distinguir até onde, ou a partir de quando, um interesse particular se choca com o bem comum não é uma tarefa simples e, provavelmente mais difícil, é transferir essa distinção para um sistema político de forma que seja capaz de produzir bons representantes e bons governantes. Além disso, a deterioração de um sistema político não deixa de ser uma manifestação das leis gerais da entropia a que estão sujeitos todos os sistemas, sejam eles do mundo físico ou da ordem social.[31] O conceito de entropia foi originalmente desenvolvido no âmbito da termodinâmica. Por esse conceito, os sistemas perdem gradativamente suas características originais na medida em que interagem com o ambiente. O exemplo mais simples dessa lei é o do cubo de gelo em um copo de água que, gradativamente, vai perdendo seus contornos e sua consistência à medida que vai derretendo em razão da troca de calor com a água.

O entendimento de que as constituições refletem um sistema político e social sujeito à entropia, ajuda a explicar porque devem mudar ao longo do tempo ou, como no caso da constituição americana ou de vários países na Europa, recebem emendas que incorporam transformações ocorridas tanto na esfera doméstica quanto na cena internacional. A esse respeito, pode-se dizer que algumas constituições como a brasileira apresentam o problema do excessivo detalhamento. Por exemplo, o Título II da Constituição que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais em seu Capítulo I intitulado “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” compreende basicamente o Artigo 5º. onde são enunciados 78 direitos e garantias que devem ser assegurados e providos pelo Estado. Além disso, no Capítulo II (Artigo 6º.) são estabelecidos os “Direitos Sociais” que também devem ser assegurados pelo Estado aos indivíduos organizados ou não em corporações. Nesse artigo, são enunciados mais 34 direitos ou circunstâncias em que direitos podem emergir criando gastos e obrigações a serem cumpridas pelo Estado. O Artigo 9º, por exemplo, trata especificamente do “direito de greve”, algo que praticamente só existe na constituição brasileira. Em suma, de um lado, uma constituição desse tipo está muito mais sujeito às demandas por alterações pelo simples passar do tempo pois, em uma analogia, retomando o exemplo da termodinâmica, seria como um cubo de gelo esculpido artisticamente por um mestre escultor e que, em razão da riqueza e das sutilezas dos detalhes, perde seus contornos e suas formas originais muito mais fácil e mais rapidamente. Por outro lado, o que os artigos 5º.  e 6º. dizem é que praticamente tudo é constitucional. Qualquer assunto relativo à defesa de direitos civis, econômicos e sociais seja em relação a atores públicos ou privados, nacionais ou internacionais, tudo está mencionado nos referidos artigos, ou seja, são questões constitucionais. Em termos práticos, significa que qualquer causa pode, sem dificuldades, ser tratado como questão constitucional e levado até a instância do Supremo Tribunal Federal. É o que explica em grande parte, porque o STF no Brasil tem dezenas de milhares de processos a serem julgados enquanto seu equivalente nos EUA julga apenas poucas dezenas de processos por ano.

Em termos econômicos, esse quadro ajuda a explicar também porque a economia brasileira, ao longo das duas décadas deste milênio, cresceu significativamente menos do que a economia mundial, isto é, a nação ficou mais pobre em relação à média mundial. Em termos da posição internacional do país, o Artigo 4º. que trata especificamente das relações exteriores tem muito pouca importância, ou simplesmente é diluída nas dobras e nas sutilezas jurídicas de uma constituição barroca e marcada por cuidados que, na prática, protege prioritariamente as autoridades constituídas nos três poderes. Um sistema judiciário que leva em média anos para julgar as inevitáveis pendências que emergem da atividade econômica e da convivência social de uma forma geral, torna-se um forte desestímulo à inovação e ao empreendedorismo. Na teoria econômica trabalha-se com o conceito de “custo de transação” para referir-se aos custos tanto em termos financeiros quanto em termos de tempo e de esforço para a realização dos negócios em geral. Ou seja, os custos de transação impostos pela constituição são excessivamente elevados quando comparados com os padrões mundiais.

A constituição brasileira de 1988 pode não ser a causa do declínio da posição brasileira no cenário internacional, mas certamente vem dando uma considerável contribuição a esse processo ao estabelecer normas e cláusulas que transformam o Estado e suas instituições em fatores de verdadeiras externalidades negativas à atividade econômica, isto é, funciona ao contrário das externalidades positivas como aquelas geradas pela construção de uma ponte que, ao ser construída, favorece o desenvolvimento da indústria, do comércio, do turismo, e de outras atividades econômicas na região. Pelo quadro jurídico atual, nada menos do que 94% de toda a arrecadação fiscal prevista no orçamento estão comprometidos com despesas compulsórias (União, Estados e Municípios) tais como o pagamento de salários dos três poderes, aposentadorias, pensões, indenizações, subsídios e benefícios a certas categorias e atividades, etc. Ou seja, são despesas derivadas de leis e de decisões judiciais que os governos eleitos não podem deixar de cumprir. Em países como os EUA a proporção das despesas compulsórias gira em torno de 65% da arrecadação fiscal. Por essa razão, no Brasil, qualquer esforço adicional, ou que não estejam previstos no orçamento anual, é transformado inevitavelmente em déficit público, como está ocorrendo com os gastos inevitáveis com o enfrentamento da crise gerada pela disseminação da Covid-19. Mesmo antes da crise da Covid-19 a previsão de déficit público para 2020 já era de R$ 124 bilhões e calcula-se que em 2020 tenha atingido a casa dos R$ 800 bilhões. Em outros países grande parte dos gastos públicos com a Covid-19 está sendo coberta por meio de transferência de gastos previstos em outras rubricas. No Brasil, cada tostão gasto com o combate à Covid-19 tem sido feito por meio de endividamento. Os efeitos desse quadro parecem óbvios: pressões inflacionárias crescentes, grandes dificuldades na retomada do crescimento econômico, pressão por aumento nos impostos e, de uma forma geral, maior distanciamento dos padrões tecnológicos e econômico mundiais. Em larga medida, esse quadro é uma decorrência das possibilidades abertas e até estimuladas ao longo do tempo pela constituição vigente, que vê com desconfiança a eficiência econômica e a integração à economia mundial.

[1] O Tratado de Tordesilhas alterou de 100 para 370 léguas a oeste de Cabo Verde, o meridiano separando os territórios atribuídos à Espanha e aquelas atribuídas a Portugal. Com o declínio do poder universal da Igreja Católica e com ascensão do Estado Nacional moderno, os tratados patrocinados por Alexandre VI passaram a ser contestados politicamente por outras potências europeias como a Inglaterra, a França e a Holanda que ainda lutava para se separar do reino de Espanha.

[2] A expressão significa literalmente “as palavras voam, os escritos permanecem” foi popularizada ainda na Idade Média.

[3] Francisco de Vitória. Relectiones. Sobre os Índios e o Poder Civil. Editora UnB e Funag, 2016. A primeira edição de Relectiones data de 1532. O direito dos cristãos fazerem a guerra contra os “bárbaros” era enunciado claramente em documentos como a Bula Papal Intercœtera (1493).

[4] O foco de interesse de Bodin era o Estado Francês, que era um dos Estados mais poderosos e organizados da Europa. A soberania é o objeto de seu Livro Primeiro pois, na essência, tudo começava por compreender até onde se estendia a autoridade do governo do reino de França.

[5] Thomas Hobbes em De Cive (1642) explica esse sentido do termo cidadão.

[6] Ver M. W. Janis, Jeremy Bentham and the Fashioning of “International Law”, publicado em The American Journal of International Law. Vol. 78, No. 2 (Apr., 1984), pp. 405-418. O livro de Emer de Vattel, pioneiro na elaboração de um código estruturado de Direito Internacional, foi publicado em 1758 e tinha por título Le Droit des Gens.

[7] A capa da primeira edição de Leviathan (1651) apresenta o gigante bíblico tendo uma espada em sua mão direita e o cetro do poder na mão esquerda e tem seu corpo composto por pessoas. A ilustração foi criada por Abraham Bosse.

[8] A Constituição Brasileira de 1824 é um bom reflexo dessa transformação. O Artigo 5º., ao mesmo tempo que estabelece o cristianismo de Roma como religião oficial do Império, reconhece a liberdade de culto de seus cidadãos. Por outro lado, a noção de que a religião deveria ser vivida na consciência dos indivíduos já era percebida no século XIII, como se pode deduzir da obra de Dante Alighieri (Da Monarquia) e da figura da heráldica da águia das duas cabeças coroadas.

[9] Pelo Tratado de Verdun (843 d.C.) os três filhos de Carlos Magno (Lotário, Luís o Germânico e Carlos o Calvo) dividiram entre si o Império Carolíngio, cabendo a Carlos o Calvo a parte do território aproximadamente correspondente ao que é a França de hoje.

[10] Biógrafos de Joana D’Arc, em alguma medida, tomaram partido na discussão sobre a origem divina de sua sabedoria e de sua determinação, mas não questionaram em nenhum momento a clareza com que Joana D’Arc via a necessidade de coroar o Delfin em Reims. O fato é que será sempre um enigma da história saber como uma pastora iletrada, mal saída da adolescência e, portanto, sem qualquer cultura e experiência política, pudesse ver com tanta clareza que coroar o rei era tão importante quanto vencer o inimigo no campo de batalha (J. Guitton, Problema e Mistério de Joana D’Arc. Dominus Editora, S. Paulo, 1963).

[11] The Federalist Papers é uma coleção composta de 85 artigos ou ensaios escritos por Alexander Hamilton, James Madison, e John Jay sob o pseudônimo “Publius” e publicado em 1787. O objetivo principal desses ensaios era o de convencer líderes e o povo em geral das 13 ex-colônias britânicas acerca da importância e das vantagens da ratificação da Constituição formando uma só nação, os Estados Unidos da América.

[12] Walter Bagehot, em 1867, publicou seu The English Constitution no qual reúne esse conjunto de leis, normas, costumes e as instituições e procedimentos que compõem essa constituição não escrita e define a ordem política da nação. Vale notar que, apesar de não reunida organicamente, a monarquia constitucional inglesa serviu de inspiração para muitas das nações modernas, inclusive o Brasil, que foi uma monarquia constitucional até o advento da república em 1889.

[13] A. G. Kenwood & A. L. Lougheed. The Growth of the International Economy, 1820-1980. Unwin Hyman, London, 1983.

[14] A denominação União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) foi adotada na Constituição de 1924, após o tratado de união, ou incorporação pela Rússia, da Ucrânia, da Bielorrúsia e da República Transcaucasiana, realizada em 1922.

[15] Após a morte de J. Stalin, Nikita Kruschev (Secretário Geral do Partido Comunista da URSS) preparou um relatório dos crimes cometidos pelo regime durante o período em que Stalin esteve à frente do governo da União Soviética (1922-1953)

[16] Vale notar que autores como Norberto Bobbio enfatizaram em seus escritos o fato de que o marxismo jamais produziu uma teoria do estado, até por entender que o Estado constituía uma “superestrutura”, um instrumento de dominação.

[17] Diferentemente da tradição ocidental, o confucionismo não deixou tratados filosóficos, mas deixou os Analectos, que é uma coleção de “sabedorias” sobre o papel dos governantes e sobre a moral e as virtudes necessárias para bem governar um Estado (Confúcio. Os Analectos, Folha de S. Paulo, 2015).

[18] A 13ª. Emenda à Constituição dos EUA foi aprovada pelo Senado em 8 de abril de 1864 e, depois pela Câmara dos Representantes em 31 de janeiro de 1865 e adotada formalmente em 6 de dezembro de 1865.

[19] Roosevelt havia sido eleito sucessivamente em 1932, 1936, 1940 e 1944, falecendo em abril de 1945. A 22ª. Emenda à Constituição dos EUA foi aprovada pelo Congresso em 1947 estabelecendo que os presidentes não poderiam mais eleger-se para além de dois mandatos. Alguns constitucionalistas como Walter Costa Porto costumam dizer que, de fato, o sistema americano estabelece um mandato de 8 anos para o presidente que, no entanto, na metade de seu mandato precisa ser “confirmado” pelo voto popular. É o que explica porque o presidente candidato a re-eleição goza de certos privilégios no processo eleitoral em relação a outros candidatos.

[20] Washington’s Farewell Address, 1796.

[21] A Constituição dos EUA é composta apenas por sete artigos que definem basicamente a composição do governo e a ordem federativa. O longo do tempo foram sendo introduzidas as emendas constitucionais cuja aprovação necessita da aprovação de dois terços do Senado e da Câmara dos Deputados e da ratificação pelos Estados.

[22] O. Nogueira, A Constituição de 1824. Centro de Ensino à Distância, Brasília, 1987 (p. 3). Obviamente essa afirmação não se aplica ao caso brasileiro, uma vez que no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) a constituição inclui praticamente todas as situações em que eventuais direitos de cidadãos e de corporações podem ser objeto de disputa.

[23] O enunciado clássico do princípio da subsidiaridade que aparece nos dicionários, diz que esse princípio está presente quando uma autoridade central deve ter apenas uma função subsidiária, agindo somente em questões que não podem ser decididas em um país individualmente.

[24]R. A. Mundell, em A Theory of Optimum Currency Areas. American Economic Review, Sept. 1961 (pp.657-665) levanta a hipótese da adoção de uma moeda supranacional. Outro trabalho importante de R. Mundell dessa época foi publicado pelo FMI em 1962 intitulado The Appropriate Use of Monetary and Fiscal Policy for Internal and External Stability.

[25] O 1º. Acordo de Schengen foi assinado em 1985 entre Alemanha, Bélgica, França, Luxemburgo e os Países Baixos. Em 1990, esses países assinaram a Convenção de Schengen que introduzia regras, condições e garantias para a livre movimentação de pessoas nesse espaço. Outros países decidiram aderir ao acordo e, em 1997, o Acordo foi incorporado pela União Europeia muito embora sem a obrigação de que todos os países integrantes do bloco participassem do arranjo.

[26] R. L. Bruckberger, La République Américaine. Librairie Gallimard, Paris, 1958.

[27] Voltaire publicou Le Siècle de Louis XIV em 1751 no qual compara a França de Louis XIV à Grécia de Péricles, à Roma dos Césares e à Itália dos Médici e dos Sforza em termos de brilho nas ciências e na cultura.

[28] Nathan Miller, em seu livro Star spangled men. The America’s ten worst presidents, faz um apanhado do desempenho de uma dezena de presidentes que, na sua avaliação, foram governantes fracos e incompetentes (Simon & Schuster Pub. N.Y. 1998).

[29] Em O Príncipe Maquiavel argumenta que “Os principados ou são hereditários … ou são totalmente novos …” por meio de aquisição ou pela força das armas (O Príncipe, Capítulo I).

[30] Discurso pronunciado em 1819 por Benjamin Constant de Rebecque no Athénée Royal de Paris. Tradução de Laura Silveira, edição organizada por Marcel Gauchet, intitulada De la Liberté cliez les Modernes  (Le Livre de Poche, Collection Pluriel. Paris, 1980).

[31] A entropia é entendida como o processo físico que rege a segunda lei da termodinâmica, a qual estabelece que nos sistemas abertos, no limite, a entropia do universo avança pela troca de calor de forma contínua, devendo aumentar até atingir um valor máximo num estado de equilíbrio.

Eiiti Sato

Professor de Relações Internacionais na Universidade de Brasília

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Por Eiiti Sato

Nas relações exteriores, o fim dos governos militares marcou também o fim do projeto “Brasil Potência”. Os equívocos e, por fim, o fracasso na administração da crise do petróleo levaram o país a um pesado endividamento que se revelaria um fardo cujo peso seria decisivo para impedir qualquer possibilidade de dar continuidade a um projeto como o “Brasil Potência”, que demandaria taxas de crescimento econômico consistentes e mais elevadas do que a média mundial, além de investimentos pesados em infraestrutura econômica e estratégica para servir de base para um longo período de crescimento consistente. Em outras palavras, a manutenção de um tal projeto exigiria capacidade para atuar em consonância com as lideranças inovadoras em escala mundial, além de condições econômicas para participar com desenvoltura dos mercados comerciais e financeiros, que se ampliavam e se tornavam cada vez mais competitivos, o que seria impossível com uma economia debilitada como era o caso do Brasil do início da década de 1980.

O fim dos governos militares também coincidiu com mudanças substanciais no cenário internacional, onde a guerra fria perdia seu papel e a crise do petróleo mudava de forma bastante radical as condições econômicas internacionais, inviabilizando a continuidade das políticas que o país vinha praticando inclusive na esfera das relações exteriores. Em consequência, após a década de 1980, os governos não tinham outra opção a não ser buscar novos caminhos para a inserção do Brasil no cenário internacional. O caminho escolhido foi o de passar a olhar mais para a vizinhança e para as economias em desenvolvimento e menos para as grandes potências. Nesse quadro, algumas opções encontradas foram investir na integração regional e no multilateralismo e, de uma forma geral, procurar construir novas alianças, em especial com os países em desenvolvimento. O problema é que nessa busca, os sucessivos governos, preocupados com a retomada da democracia entendida apenas como voto e representação, não conseguiram imprimir o necessário dinamismo e a integração das forças econômicas e políticas da nação. O resultado tem sido o baixo desempenho da economia e a consequente estagnação da posição brasileira no cenário internacional.

Assim, neste breve ensaio, esse processo de mudança será analisado resumidamente para construir algumas especulações sobre as perspectivas do Brasil no futuro próximo, no âmbito das relações internacionais neste primeiro quarto do século XXI já notavelmente marcado por turbulências, transformações e por muitas incertezas.

Uma visão renovada da integração regional

A orientação da política exterior do Brasil no sentido da formação de um sistema regional viveu seu momento de maior interesse na década de 1990. Após a transformação da Alalc em Aladi pelo Tratado de Montevideo em 1980, entre outras disposições, incorporou uma cláusula semelhante à cláusula XXIV do Gatt, permitindo que as diferenças sub-regionais fossem levadas em conta em projetos de integração na América Latina. Tratava-se de uma disposição importante pois, como argumentavam analistas e observadores como Hélio Jaguaribe, uma das grandes dificuldades de um processo de integração na América Latina formando um só bloco, como se pretendia com a Alalc, eram as enormes disparidades econômicas, culturais e sociais, formando um “aglomerado excessivamente heterogêneo e desequilibrado de países”, e fazendo com que uma integração horizontal de toda a região fosse completamente inviável.[2] Nesse sentido, um arranjo sub-regional como o Mercosul, ao reunir apenas quatro países vizinhos no sul do continente apresentava chances bem maiores de constituir um arranjo regional de sucesso.[3] Por meio do Mercosul, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai podiam fazer avançar um sistema regional sem precisar preocupar-se em acomodar problemas e demandas de nações tão distantes e díspares como Guatemala, Equador ou México. Vale notar também que o fim do ciclo dos governos militares na região fazia com que os governos eleitos se aproximassem mais do mercado e de sua mecânica tornando esses governos mais previsíveis, especialmente no que tange a políticas de estabilização econômica.

Uma característica da época era o entendimento de que o mundo vivia a era dos blocos econômicos. O sucesso da Comunidade Econômica Europeia (CEE), que acabava de evoluir para uma união econômica, completando assim, o ciclo da integração econômica previsto na teoria, exercia grande influência sobre o ambiente político e intelectual especialmente na América Latina. Entre outros fenômenos notáveis da época, o fim da guerra fria trouxe como um dos efeitos mais imediatos a corrida frenética dos países que integravam o bloco soviético no sentido de se tornarem membros da União Europeia. Em outras palavras, em muitos sentidos, essa corrida para a União Europeia confirmava com fatos a hipótese extremamente atraente de que a formação de blocos era não apenas um arranjo comercial que podia promover o desenvolvimento econômico, mas também um arranjo político capaz de promover a paz, como haviam argumentado os “pais fundadores” da integração europeia como Maurice Schumann, Konrad Adenauer, Paul-Henri Spaak, Jean Monnet e todos os líderes que, no pós-guerra imediato, faziam parte das várias associações voltadas para a promoção da unidade da Europa em torno de um grande projeto comum. Nesse quadro, a formação de blocos emergia como alternativa para as nações em toda parte e não apenas para o Brasil, que buscava uma alternativa para sua política exterior.

De fato, o interesse pela integração regional motivava até mesmo uma nação poderosa como os EUA – à época considerada a única superpotência após o colapso da União Soviética. Com efeito, o governo dos EUA concebeu a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), que deveria englobar os países das três Américas.[4] Houve muitas resistências, inclusive dentro dos EUA, e a proposta não prosperou. Em seu lugar, sob a liderança dos EUA foi criado em Janeiro de 1994 o Nafta (North American Free Trade Agreement) como bloco sub-regional reunindo EUA, Canadá e México. Foi nesse ambiente que surgiu o Mercosul (Mercado Comum do Sul), estabelecido pelo Tratado de Assunção assinado em Março de 1991, formando uma união aduaneira que, mais tarde, poderia evoluir para formas mais completas de integração econômica.

Na realidade, no Brasil, o interesse pela integração regional assim como as bases para a formação do Mercosul emergiram ainda na década de 1980, em grande medida como resultado de mudanças no ambiente político e econômico ocorridas na região. Com efeito, do ponto de vista econômico, a década de 1980 ficou conhecida como a década perdida para boa parte dos países da América Latina, que saíram da crise do petróleo endividados e impossibilitados de continuar com as estratégias de desenvolvimento que haviam permitido elevadas taxas de crescimento na década de 1960 e início dos anos 1970.[5] Politicamente, as duas nações de maior peso econômico e político na região – Argentina e Brasil – viviam as frustrações e o declínio dos governos militares, que deixavam o poder melancolicamente. Na Argentina a nação ainda cuidava das feridas físicas e morais da derrota dos governos militares na Guerra das Malvinas enquanto, no Brasil, o sonho de um “Brasil Potência” havia se desfeito num pesado endividamento que deixava exposta a incômoda e impopular dependência externa e cujos efeitos para a sociedade se traduziam em aumento da pobreza e da inflação. Em 1982 foi preciso uma grande operação diplomática e financeira para evitar o default, mas cinco anos depois, o governo brasileiro declarou uma moratória unilateral para evitar o esgotamento das reservas internacionais e forçar uma renegociação geral das dívidas com credores externos.[6]

Tanto na Argentina quanto no Brasil, que passavam a ser comandados por governos civis, foram deixados de lado os sonhos de projeção de poder internacional e passou-se a buscar alternativas para suprir as necessidades de suas economias e de suas sociedades. Em 1985 os presidentes Alfonsín e Sarney assinaram a Declaração de Iguaçu com o propósito de aprofundar as relações econômicas e comerciais entre os dois países. Além disso, esses presidentes fizeram avançar as negociações que culminariam com o acordo de cooperação nuclear entre Argentina e Brasil criando, em 1991, a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares. Na realidade, ainda sob os governos militares, em 1979, houve a assinatura do Tratado Tripartite (Argentina, Brasil e Paraguai) sobre o aproveitamento dos recursos energéticos das usinas de Corpus e de Itaipu, dando sinais de que a cooperação regional não era apenas viável e nem uma opção ideológica, mas uma necessidade para a região. Desse modo, a assinatura do Tratado de Assunção que estabelecia em seu Artigo 1 que “Os Estados Partes decidem constituir um Mercado Comum, que deverá estar estabelecido a 31 de dezembro de 1994, e que se denominará “Mercado Comum do Sul (Mercosul)” foi um passo natural no processo de integração real que avançava na região.[7]

Em fins da década de 1990, o Mercosul atingiu seu auge no que tange à sua importância para o comércio exterior de seus integrantes. Apesar de tudo, essa evolução jamais representou sucesso semelhante ao da integração europeia. Enquanto na Europa, o comércio intra bloco sempre fora de grande importância para todos os integrantes do sistema europeu, na América Latina, o comércio dentro da região sempre fora secundário para a maioria dos países. Em 1990, as exportações brasileiras para os países do Mercosul representavam apenas 4,2% do total exportado e em 1998 esse percentual havia evoluído para 17,37%, e o mesmo aconteceu com a Argentina que passou de 14,84% em 1990 para 35,64% em 1998. Também cabe notar que, nessas cifras, inclui-se o fato de que a maior parte dos produtos comercializados era de manufaturados enquanto as exportações tanto do Brasil quanto da Argentina para outros países de fora do bloco eram de produtos primários. Por outro lado, na Europa o comércio intra bloco historicamente tem representado, na média, sempre mais de 50% do comércio exterior de seus integrantes.

Desde os fins da década de 1990 a importância do Mercosul passou a declinar diante da evolução do quadro internacional. No caso do Brasil, o destino das exportações brasileiras para o Mercosul caíra pela metade entre 1998 e 2004, enquanto no caso da Argentina esse percentual se reduzira de 35,64% em 1998 para 18,59% em 2004. Essa tendência, em alguma medida, foi resultado também de mudanças que ocorriam no cenário mais geral do comércio internacional, mas foi também influenciado por mudanças na orientação da política externa tanto brasileira quanto argentina, que passaram a enfatizar o lado mais ideológico das relações externas que resultaria na criação em 2008 da Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e no interesse crescente por novas alternativas que emergiam no cenário internacional como o G-20 e o BRICS. Com efeito, no caso do Brasil, a política exterior do governo Lula passou a concentrar suas atenções no multilateralismo, que era o lado mais pragmático da política exterior, e no globalismo, que consistia exatamente no lado mais ideológico, ao entender que o país deveria participar como ator ativo de um presumido grande jogo de poder no cenário mundial.

O multilateralismo e o globalismo

Multilateralismo é uma expressão que, em sentido genérico, se refere a iniciativas nas quais vários países trabalham de forma cooperativa sobre um ou mais assuntos. Tecnicamente, significa que vários países procuram construir regimes internacionais de forma institucionalmente organizada. Em larga medida, o termo se confunde com organizações internacionais e, por essa razão, quando se fala em multilateralismo é difícil não associar o termo organizações como a OMC, em assuntos de comércio, ou a ONU para as questões de segurança internacional. Assim, embora o multilateralismo na política internacional seja antigo, foi transformado em experiência prática na política entre as nações apenas há cerca de um século com o surgimento da Liga das Nações. Assim, o Brasil tem uma tradição de atuação em instâncias multilaterais desde a primeira hora uma vez que sua participação na Liga das Nações foi bastante expressiva e, assim, trata-se de um fato dizer que desde o surgimento da prática do multilateralismo, a diplomacia brasileira sempre atuou nessas instâncias.[8] Também na criação e consolidação do Sistema Nações Unidas a participação da diplomacia brasileira foi expressiva, inclusive na composição de órgãos e de comissões criadas logo após a criação da ONU.

Dessa forma, no início do século XXI, parece até natural o reavivamento do interesse da diplomacia brasileira pelo multilateralismo. Nas duas administrações do Governo Lula, esse movimento foi caracterizado pelos historiadores Amado Cervo e Clodoaldo Bueno como multilateralismo de reciprocidade e tinha por pano de fundo a orientação geral do Brasil no sentido de integrar-se a um mundo onde a globalização comercial e financeira se tornara uma realidade após o fim da polarização imposta pela guerra fria que condicionava a ação dos países no cenário internacional.[9] Entre as iniciativas do período estava a expansão da rede de representações diplomáticas especialmente no Caribe e no continente africano. A abertura de representação diplomática em países de pouca expressão internacional era uma forma de obter apoio desses países em foros internacionais, isto é, a pratica do multilateralismo.[10]

Na aposta no multilateralismo durante os dois mandatos do presidente Lula ganhou destaque a demanda por um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Os argumentos eram variados, mas se concentravam em algumas hipóteses ou pressupostos que acabaram por se revelar pouco eficazes em termos de resultados esperados. A primeira era a de que a estrutura do processo decisório da ONU havia sido concebida quando a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim. Meio século mais tarde, o cenário havia mudado substancialmente, dizia o argumento. Entre essas mudanças, a supremacia americana, embora ainda permanecesse, o diferencial de poder em relação a outras grandes potências havia se reduzido de maneira substancial.[11] Além do mais Japão, Alemanha e Itália – a aliança contra a qual EUA, Grã-Bretanha e seus aliados lutaram na Segunda Guerra Mundial – haviam se tornado democracias ativas e aliados importantes dos EUA e da Europa na construção e na manutenção da ordem internacional enquanto, por outro lado, a posição internacional da URSS e da China também havia mudado ao longo da segunda metade do século XX. O desparecimento do bloco socialista e o colapso da URSS trouxeram um novo papel para a Rússia na ordem internacional enquanto a China que agora se fazia representar na ONU, não era mais a China de Chiang Kai-Shek, aliada do Ocidente, mas a República Popular da China, criada pela revolução comunista de Mao Tsé-Tung. Assim, eram muitos os fatos que justificavam o entendimento de que a composição do Conselho de Segurança não mais refletia a ordem vigente no cenário mundial e, em consequência, acreditava-se que uma reforma da ONU seria necessária para torná-la mais representativa da ordem mundial. O fato é que na política internacional a concretização de reformas sempre se revelou um passo muito mais difícil do que a criação de uma nova entidade, como havia ocorrido com a própria ONU que, apesar de ser bastante semelhante à Liga das Nações em termos de objetivos e até de procedimentos, ao final da Segunda Guerra Mundial preferiu-se criar a nova entidade e, em seguida, transferir o patrimônio material e político da Liga das Nações para a ONU.

A segunda ordem de argumentos para a diplomacia brasileira investir na obtenção de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU era o entendimento de que, politicamente, o Brasil era um “candidato natural” dos países em desenvolvimento e, geograficamente, um representante também natural dos países latino-americanos, por suas dimensões e por seu peso político internacional que se refletia, por exemplo, no papel que desempenhara na criação, juntamente com outros países em desenvolvimento, do G-20, que podia servir de contraponto ao grupo dos 8 países mais ricos do mundo (G-7-1).[12]

Um outro argumento da diplomacia brasileira era o de que sua participação no Conselho de Segurança da ONU seria visto pelas potências como um reforço para os objetivos centrais da ONU, que eram o de promover a paz e o entendimento pacífico entre as nações. O argumento considerava que a longa tradição diplomática brasileira seria uma forte credencial para qualificar o país para um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Essa tradição apontava para uma história do país predominantemente pacífica em relação à convivência com seus vizinhos e apontava também para a índole e a competência da diplomacia brasileira, marcada pela preferência permanente pela solução pacífica das controvérsias e pela ênfase e no desenvolvimento da capacidade de negociação. É curioso notar que esses argumentos eram bastante semelhantes aos que haviam sido utilizados na década de 1920, quando a diplomacia brasileira se empenhara em obter um assento permanente do Conselho da Liga das Nações.

É notável que no início do século XXI os governantes e responsáveis pela política exterior não prestassem atenção à experiência vivida oito décadas antes quando, de um lado, as grandes potências se revelaram muito mais preocupadas com seus interesses individuais e com o jogo de poder na política internacional, enquanto de outro lado, as nações periféricas, sobretudo nas vizinhanças do Brasil, observavam a demanda brasileira por um assento permanente no Conselho da Liga das Nações como uma inciativa para reforçar a posição brasileira diante delas e não como uma força emergente para, eventualmente, defendê-las contra políticas de poder das grandes potências.[13] No curto prazo, talvez o efeito mais importante da orientação da política exterior do Brasil no sentido de obter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU tenha sido a de comprometer o Mercosul e o projeto de integração regional. Tal como ocorrera na época da Liga das Nações, os países vizinhos no continente sul-americano jamais viram o Brasil como “representante”, mas sim como rival nessas instâncias multilaterais, especialmente em relação à demanda por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Vale notar que essa demanda tinha pouco respaldo até mesmo junto à população brasileira. Com efeito, um trabalho de pesquisa realizado por Amaury de Souza na época em que a demanda brasileira por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU estava no auge, revelava esse descompasso entre a diplomacia e a opinião pública. Amaury de Souza consultou a opinião de profissionais de várias categorias, entre os quais executivos empresariais, professores, jornalistas e integrantes das áreas técnicas do Legislativo e do Executivo a respeito da política externa do governo Lula e os resultados revelaram que, entre 18 prioridades sugeridas pela pesquisa, a demanda por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU tinha muito pouca aprovação, ficando em 16º. lugar, superando apenas “controlar e reduzir a imigração ilegal para o País” (13%) e “fortalecer a CPLP – Comunidade de Países de Língua Portuguesa” (12%).[14]

Como já mencionado, a vertente “globalista” do pensamento em política exterior considerava que havia um jogo mundial do poder e que o Brasil deveria atuar ativamente nesse jogo. Esse pensamento coincidia com a eleição em outros países da região de governos de esquerda dentro do espectro político, para quem os EUA eram um dos grandes obstáculos a serem contornados. Cabe notar que o termo “globalismo” é bastante vago e controvertido. Na presente análise o termo é entendido como uma alternativa à expressão “globalização”, uma espécie de versão conceitual do que ocorrera em 2001, quando foi criado o Fórum Social Mundial como alternativa ao Fórum Econômico Mundial de Davos. O destino dessa visão do globalismo parece ter sido o mesmo do Fórum Social Mundial, que perdeu completamente o interesse enquanto, por outro lado, o Fórum de Davos continuou muito ativo como uma instância efetiva de debates para autoridades políticas e empresariais das nações mais influentes do mundo, que podiam expor suas preocupações e ouvir propostas em estágio preliminar para as grandes questões da economia mundial.

Política e economia no Brasil depois da redemocratização

A projeção de qualquer país no cenário internacional tanto no âmbito regional quanto no cenário global depende fundamentalmente do desempenho da nação. As dimensões geográfica e demográfica podem ser condições necessárias da posição internacional do país, mas estão longe de ser suficientes. A China, apesar de suas dimensões continentais, só se tornou uma nação realmente relevante na cena internacional após o longo período de crescimento iniciado com Deng Xiaoping na década de 1980. Até então, a China não passava de um uma nação fechada, com todos os indicadores do ‘subdesenvolvimento”, sem qualquer expressão internacional, na realidade, uma verdadeira incógnita para a política internacional. Por outro lado, uma economia como a da Suíça, reconhecidamente estável e confiável de longa data, capaz até mesmo de transpor sem abalos as grandes crises do século XX, jamais teve sua moeda sequer cogitada para desempenhar papel de relevância no sistema monetário internacional em virtude das limitadas dimensões de sua economia. Além desses, existem muitos outros casos que ilustram essa relação entre as dimensões de uma nação, seu desempenho econômico e político e sua relevância no cenário da política e da economia mundial.

Nas últimas décadas, efetivamente o Brasil teve algum papel de relevância no cenário internacional apenas em uns poucos momentos. Em larga medida, na maior parte do tempo seu desempenho econômico e político tem ficado muito aquém de suas dimensões geográficas e demográficas e de seu potencial econômico. Os governos militares ensaiaram um processo de aglutinação dos recursos e das energias sociais e econômicas em torno de um projeto de âmbito nacional nesse sentido, mas o projeto que ficou conhecido como “Brasil Potência” apresentava muitos problemas e foi alvo de muitas críticas que, em geral, principiavam com a crise de um regime autoritário que perdia sustentação política rapidamente reduzindo muito o espaço para enfrentar quaisquer dificuldades que eventualmente emergissem. Nesse quadro, as turbulências e as pressões geradas pela crise do petróleo da década de 1970 foram fatais para a estabilidade do regime político bem como para as estratégias de desenvolvimento. Na realidade, a crise do petróleo era apenas a parte mais visível e ruidosa das grandes mudanças em curso na ordem econômica internacional, entre as quais destacava-se a substancial redução das tradicionais fontes oficiais de financiamento, notadamente governos, Banco Mundial e as várias agências oficiais de fomento ao desenvolvimento internacional.

A substituição do regime autoritário por uma ordem democrática, apesar do grande entusiasmo – ou talvez em razão do grande entusiasmo – foi realizada de forma que alguns problemas de governabilidade e de eficiência iriam emergir na ordem econômica e política nas décadas seguintes. É certo que as virtudes da democracia são indiscutíveis. A história mostra que os regimes democráticos são aqueles que, como nenhum outro, têm garantido valores essenciais como a liberdade e a dignidade do cidadão. Apesar de tudo, “democracia” é apenas um conceito abstrato. No mundo real o termo só existe no plural. No mundo real o que existe é a “democracia inglesa”, a “democracia americana”, a “democracia francesa”, a “democracia holandesa”, entre outras. O que é comum nessas “democracias” é que, além de garantir valores essenciais como a liberdade, essas democracias procuram adaptar-se suas instituições políticas às tradições e às peculiaridades culturais nacionais e, ao mesmo tempo, procura organizar e regular a ordem social e econômica de forma que ajudem a promover o progresso e a prosperidade da nação. O desejo de prosperidade está presente não apenas nas chamadas sociedades ocidentais, mas na grande maioria das sociedades espalhadas pelos cinco continentes. Nesse ambiente marcado pela diversidade, a qualidade do regime pode variar de lugar para lugar e também ao longo do tempo significando que o fato de haver democracia não significa que haverá progresso e prosperidade. Os surveys periodicamente produzidos por organizações internacionais como o Banco Mundial e a Organização para Cooperação Econômica e o Desenvolvimento apontam essas diferenças de desempenho, ou seja, há sociedades democráticas que inovam e prosperam mais do que outras. Esse aspecto revela-se especialmente importante para as economias em desenvolvimento como o Brasil para quem prosperar significa corrigir desigualdades sociais e qualificar-se para levar para considerável parte da população os benefícios das modernas tecnologias.

Com o retorno da democracia, desde 1989 o Brasil tem realizado ininterruptamente eleições livres e o estado de direito passou a regular a vida dos indivíduos e das organizações públicas e privadas. Com efeito, o voto livre – um dos quesitos essenciais dos regimes democráticos – tem sido praticado em todos os rincões deste Brasil de dimensões continentais. Na realidade, a tradição de democracia no Brasil não remonta apenas ao estabelecimento da República há exatamente um século antes da redemocratização. Mesmo nos tempos do Império, a democracia era uma prática vivenciada notavelmente até pelo próprio Imperador Pedro II na forma de uma monarquia constitucional. Apesar de tudo, o estado de direito e o funcionamento livre e regular das instituições democráticas, embora importantes, são apenas parte da história.

Com efeito, de uma forma geral, a história recente mostra que os sucessivos governos brasileiros, embora democraticamente constituídos, têm negligenciado o fato de que o sucesso econômico constitui fator essencial tanto para a melhoria das condições sociais internas quanto para a própria ordem internacional. Uma nação pobre não contribui em nada para a comunidade internacional, na realidade torna-se um peso e uma fonte de problemas para seus vizinhos e para a comunidade internacional como um todo. Uma visão de conjunto da posição brasileira no cenário internacional revela que a incapacidade de buscar o progresso, associada a algumas escolhas equivocadas têm produzido a estagnação dessa posição internacional. Por vezes, ao invés de preocupar-se com posturas e alianças de inspiração mais ideológica e de sonhos de poder, a nação deveria estar mais adequadamente preparada tanto para enfrentar com sucesso os problemas que surgem de tempos em tempos na esfera internacional quanto para captar positivamente as oportunidades que também emergem na política e nas relações econômicas internacionais. Objetivamente, a nação precisa tanto de instituições que proporcionem segurança jurídica e estabilidade política – ou seja, obter a confiança internacional – quanto de uma economia suficientemente robusta e saudável capaz de assegurar que o país fique ao menos razoavelmente alinhado com os padrões mundiais.

As tabelas a seguir mostram que o crescimento da economia brasileira tem ficado bem abaixo da média mundial, ou seja, tem se empobrecido em termos relativos. As tabelas mostram também que há pelo menos duas décadas as taxas de investimento têm ficado substantivamente abaixo das taxas praticadas por outros países. Essas taxas de investimento são importantes porque refletem a parcela do PIB que o país destina não apenas à inovação tecnológica e ao aumento da produtividade e da capacidade de produção de bens e de serviços, mas refletem também os investimentos feitos em educação, nos serviços de assistência médica e em outros serviços sociais, assim como na ampliação e manutenção da infraestrutura de esgotos, saneamento, comunicações e em todos os modais de transporte, ou seja, portos, aeroportos, estradas, ferrovias e transporte urbano. Um país como a China, que vem apresentando taxas elevadas e consistentes de crescimento econômico investe, proporcionalmente, mais do que o dobro do Brasil e até mesmo países “prontos” como a França, que têm toda a infraestrutura social e econômica madura, investe significativamente mais do que o Brasil, como mostra a tabela 2. O fato é que esses investimentos são cumulativos e cada ano com baixos investimentos significa instalações industriais deterioradas ou não construídas, rodovias que deixaram de ajudar a dinamizar a economia, alguns milhares de jovens que não terão boas escolas ou cidades que continuarão com boa parte da população sem acesso aos benefícios da água encanada e dos esgotos tratados, além e muitos outros elementos de infraestrutura econômica e social deteriorados dificultando o bem estar do cidadão em suas rotinas diárias e também fomentando a criminalidade em todas as suas formas. Em valores, de acordo com a tabela 2, significa que o Brasil (setor público + setor privado) deixou de investir algo em torno de US$ 100 bilhões por ano ao longo de duas décadas.[15]

                Tabela 1 – Crescimento econômico, países selecionados

Anos recentes 2007-2018 (%)

País/Região 2007 2010 2013 2014 2015 2016 2018 2013-2018

(média anual)

Brasil 6,07 7,52 3.00 0,50 -3,54 -3,27 1,31 -0,40
Argentina 9,00 10,12 2,40 -2,51 2,73 -2.08 -2,48 -0.38
Chile 4,90 5,84 4,04 1,76 2,30 1,67 4,02 2,75
Colômbia 6,84 4,34 4,56 4,72 2,95 2,08 2,56 3.37
México 2,29 5,11 1,35 2,80 3,28 2,91 2.13 2,49
Peru 8,51 8,33 5,85 2,38 3,25 3,95 3,97 3,88
Am. Lat. e Caribe 5,51 5,84 2,75 1,00 0,08 -0,33 1,57 1,01
China 14,23 10,63 7,76 7,30 6,90 6,73 6,56 7,05
Mundo 4,31 4,29 2,65 2,83 2,85 2,58 3,05 2,79

Fonte: World Bank

            Tabela 2 – Investimento bruto do país como proporção do PIB

Ano Brasil Mundo China França Chile
2000 16,8 24,3 34,4 22,5 22,1
2002 16,4 23,2 37,0 21,3 22,3
2004 16,1 24,5 42,8 21,9 19,8
2006 16,4 25,3 40,9 23,2 20,8
2008 19,1 25,5 43,2 24,1 23,5
2010 19,5 24,2 47,6 21,9 26,8
2012 18,1 24,3 47,2 22,6 23,1
2016 16,4 23,8 44,2 22,7 26,1

Fonte: OCDE. National Accounts Data Files

Em resumo, a trajetória recente da política exterior do Brasil tem apresentado poucos resultados, em grande parte por estar desconectada das bases econômicas, sociais e políticas da nação. O Brasil pode ter um grande potencial de soft power, mas para realizar esse potencial será preciso que a nação inspire confiança na comunidade internacional em todos os sentidos, a começar por uma taxa de crescimento econômico ao menos mais elevada do que a média mundial. Escolher opções como integração econômica regional, até pelas dimensões do país, o que se espera é que o país contribua para que esse arranjo floresça e não seja um verdadeiro “peso morto” nesse empreendimento, isto é, que se torne um fator de estímulo e de canalização positiva das energias para todos os demais parceiros. Na realidade, a condição necessária (embora não suficiente) para que um arranjo como o Mercosul avançasse efetivamente é que o integrante de maior peso (no caso o Brasil) apresentasse esse desempenho positivo, consistente e construtivo.

Brasil um país do futuro, até quando?

Desde que Stefan Zweig publicou em 1941 seu livro “Brasil, um País do Futuro”, cada geração experimentou a sensação de que haveria de ver esse futuro chegar pensando em um Brasil próspero e poderoso no concerto das nações.[16] Na realidade, o sentido que Zweig dava a esse futuro não era esse. Sua experiência de vida era o de sua terra natal, a Áustria, e do continente europeu, que vivenciaram ao longo da primeira metade do século XX o sofrimento e a destruição das duas guerras mundiais e a perseguição implacável aos judeus pelo nazismo – uma perseguição que afinal trouxera Zweig para o Brasil em 1940. Para Stefan Zweig, o futuro promissor que antevia para o Brasil era o de um país pacífico e isento dessas loucuras coletivas que marcaram seu país e a Europa de seu tempo. Na introdução do livro escreve Zweig: “Por isso, é sobre a existência do Brasil, cujo único desejo é a construção pacífica, que repousam nossas maiores esperanças de uma civilização futura e de pacificação do nosso mundo devastado pelo ódio e pela loucura … É por isso que escrevi este livro”.

Apesar de tudo, é parte da natureza humana a permanente busca pelo progresso e pela prosperidade individual e coletiva e, nesse quesito, as esperanças da nação brasileira têm sido sistematicamente frustradas, geração após geração, por muitas razões que, neste ensaio, não cabe discutir.[17] Um ponto que parece oportuno analisar nestas considerações que devem servir de conclusão sobre as perspectivas para a política exterior do país é o fato de que, aparentemente, os sucessivos governantes e as forças políticas no País não têm levado na devida conta o fato de que, na essência, progresso e prosperidade são a base sobre a qual se assentam a posição de uma nação no cenário internacional. Na realidade, a política exterior de qualquer país depende essencialmente de duas ordens de variáveis: de um lado, as variáveis que conformam o meio internacional, sobre as quais até mesmo grandes potências têm pouca influência; de outro lado, as capacidades nacionais em termos de recursos econômicos sobre as quais se assentam tanto o hard power quanto o soft power. Na essência, orquestrar essas capacidades constitui uma das missões essenciais e intransferíveis dos governos.

Nestas reflexões conclusivas, portanto, cabe apontar o fato de que, virtualmente, os sucessivos governos no Brasil têm buscado alternativas de política exterior como integração regional, investimento em instâncias multilaterais, ou em tópicos como alianças com grandes potências ou com nações em desenvolvimento, mas têm descuidado da construção de uma base social e econômica nacional que, efetivamente, são capazes de tornar o país um ator capaz de se beneficiar dos fluxos internacionais de comércio e de capital e também de exercer alguma influência positiva na ordem internacional. Com efeito, o meio internacional continua a ser eminentemente anárquico no sentido de que as nações podem construir, modificar ou mesmo eliminar regimes, mas a história tem mostrado que qualquer dessas possibilidades, ocorrem a posteriori, isto é, os desenvolvimentos ocorrem e, em seguida, procura-se estabelecer algum referencial normativo para esses desenvolvimentos. Mesmo em casos como o da integração europeia as instituições foram criadas para ordenar e dar segurança à integração comercial, social e política que, de muitas maneiras, já existiam há séculos na Europa.

Em termos gerais, o caso do desenvolvimento tecnológico é bastante ilustrativo da dimensão anárquica do meio internacional. De muitas formas a tecnologia desempenha um papel central nas relações interacionais da atualidade uma vez que influencia diretamente os padrões de produtividade e a capacidade das nações transformar seus recursos naturais e humanos em riqueza. Por exemplo, os desenvolvimentos ocorridos no mundo das tecnologias de informação, processamento e transmissão de dados e de imagens, abriram um novo mundo de oportunidades para os negócios em toda parte e não apenas em tradicionais centros dinâmicos da economia mundial. A globalização financeira e comercial só foi possível por meio de tecnologias como essas, que permitiram a integração internacional da produção industrial assim como dos mercados financeiros ajudando, dessa forma, a promover uma verdadeira redistribuição mundial da atividade econômica e da riqueza.[18] No caso recente mais notável, a ascensão da China ao status de segunda maior potência mundial, deu-se por meio do enorme fluxo de capitais e de tecnologia oriundos dos EUA, do Japão e da Europa. Um processo que foi motivado não pela disposição deliberada desses centros de poder e de riqueza mundial no sentido de fortalecer a economia chinesa, mas em decorrência dessa característica intrínseca do meio internacional que os analistas chamam de “condição anárquica”, isto é, sem uma autoridade central e um ordenamento formalmente estabelecido, e onde cabe a cada ator escolher a forma e as estratégias de se relacionar com as forças em ação no meio internacional para obter benefícios ou, por vezes, simplesmente para contornar problemas. Nesse sentido, de uma forma geral, a história recente mostra que os sucessivos governos brasileiros têm negligenciado esses fatos. Objetivamente, pode-se afirmar que uma nação como o Brasil precisa tanto de democracia quanto de instituições robustas que proporcionem segurança jurídica e estabilidade política em condições de contar com a confiança internacional para ser um participante ativo e capaz de, em condições de razoável igualdade, compartilhar da grande aventura da ordem internacional na busca do progresso espiritual e material.

Em resumo, a trajetória recente da política exterior do Brasil tem apresentado poucos resultados, em grande parte por estar desconectada das bases econômicas, sociais e políticas da nação. O Brasil pode ter um grande potencial de soft power, mas para realizar esse potencial será preciso que a nação inspire confiança na comunidade internacional em todos os sentidos, a começar por uma taxa de crescimento econômico mais elevada do que a média mundial para indicar claramente que a nação está efetivamente reduzindo sua pobreza relativa e melhorando consistentemente seus indicadores sociais. Uma análise mais acurada mostraria que, em larga medida, o BRICS só existe em razão da China e do que ela representa, especialmente em termos simbólicos como nação, cuja relevância no mundo em termos econômicos, tornou-se indiscutível e cujo desempenho ao longo de três décadas tornou-se uma verdadeira inspiração para substancial parte das nações do mundo.

Ella Wilcox, escritora e poetisa norte-americana fez sucesso em seu tempo, mas tornou-se conhecida universalmente por uma frase que se transformou em adágio popular em muitos lugares: “Ria e o mundo rirá com você. Chore e você chorará sozinho[19]”. Rubens Ricupero ainda no início da década de 1990, de certa forma, deu a esse fato uma interpretação teórica argumentando que nas relações entre os países da América Latina predominavam as relações triangulares, isto é, não se podia entender as relações entre os países da região a não ser por meio de triângulos onde sempre há um vértice ocupado pelos EUA ou, em tempos mais recentes, por outra potência de sucesso de fora da região[20]. A verdade é que países de sucesso, que inspiram e transmitem confiança, não precisam buscar parceiros – têm o privilégio de escolhê-los. Mesmo na esfera pessoal pode-se dizer que o sucesso atrai enquanto o fracasso afasta ou nos torna indiferentes. Nos últimos anos, as agências de classificação de risco financeiro tornaram-se populares na literatura de relações internacionais. Apesar de tudo, pouca gente tem prestado a devida atenção para o fato de que os grandes fluxos imigratórios de pessoas, mesmo aqueles causados por motivações dramáticas e trágicas, instintivamente, tendem a seguir as mesmas direções recomendadas pela Standard & Poors e por outras agências de classificação de risco financeiro, isto é, a preferência dos migrantes é, notavelmente, pelos países “Triple A”. De fato, nestes tempos, um dos indicadores mais sensíveis e expressivos do desempenho econômico e social de um país é o movimento migratório. Segundo notícias recentes divulgadas pelo Ministério das Relações Exteriores, o número de brasileiros vivendo no exterior é de cerca de 3 milhões de pessoas, enquanto o número de estrangeiros vivendo no Brasil não chega a 750 mil, ou seja, é 4 vezes menor. Vale notar que esse número de estrangeiros vivendo no Brasil é menor do que o de estrangeiros vivendo em países próximos como a Argentina e o Paraguai. Certamente que tal quadro não poderá ser revertido apenas pela política exterior, será preciso que o próprio Estado brasileiro reveja suas prioridades e o funcionamento de suas instituições.

 

 

[1] Este ensaio foi escrito em homenagem ao notável historiador Amado Luiz Cervo, Professor Emérito da Universidade de Brasília que completa 80 anos de uma vida extremamente produtiva. Formou toda uma geração de estudiosos e suas obras tornaram-se referência para todos aqueles que se interessam por relações internacionais e, mais especificamente, pela trajetória do Brasil no cenário internacional.

[2] Hélio. Jaguaribe, Significação de Mercosul. In Mercosul, Sinopse Estatística. Vol. I, IBGE, Rio de Janeiro, 1992 (p. 31)

[3] Mesmo antes da transformação da ALALC em ALADI, já existiam iniciativas de integração sub-regional como o Sistema de Integração Centro-Americana (SICA), de 1951, e o Pacto Andino ou Grupo Andino criado em 1969, reforçando a importância de facilitar a formação de arranjos sub-regionais.

[4] A Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) foi uma iniciativa dos EUA proposta formalmente durante a Cúpula das Américas, realizada em Miami, no dia 9 de dezembro de 1994. Nesse arranjo seriam eliminadas as barreiras alfandegárias entre os 34 países americanos, com exceção de Cuba.

[5] Ver o Relatório Pearson, que proporciona uma visão panorâmica do desempenho econômico da economia mundial na década de 1960 (Pearson Commission on International Development, Partners in Development, The World Bank, Washington, D.C., 1969). No Brasil o período compreendido entre 1967 e 1973 ficou conhecido como os anos do “milagre brasileiro” devido às elevadas taxas de crescimento superiores a 10% ao ano.

[6] P. N. Batista Jr. A Moratória de 1987. Folha de S. Paulo, 20/Fev./1997.

[7] A integração real é feita de formas de interação como o aumento do fluxo internacional de pessoas ou a construção de uma obra como a usina de Itaipu que afeta os interesses de mais de um país normalmente leva a acordos e tratados. Em larga medida, pode-se dizer que a formação da CEE em 1957 foi um arranjo necessário para organizar uma Europa onde a integração real já existia desde a Idade Média.

[8] Há várias obras e artigos que discutem essa participação, entre essas obras o livro O Brasil na Liga das Nações. 1919-1926, de autoria de Eugênio Vargas (Editora Funag/Editora UFRGS, 2000) faz um balanço dessa atuação brasileira.

[9] Ver História da Política Exterior do Brasil de Amado L. Cervo & Clodoaldo Bueno (Editora UnB, 4ª. Edição, 2011, pp.530-544).

[10] Em 2019, o Brasil tinha 223 representações no exterior, entre embaixadas, consulados e missões em organizações internacionais. Destas, 72 (32,3%) foram criadas por Lula e Dilma, incluindo-se um escritório de representação em Ramallah (sede de Autoridade Nacional Palestina) e cinco missões e delegações em organizações internacionais como a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) e a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). (E. Oliveira & A. Duchiade. O Globo, 5/Junho/2019).

[11] Em 1950 o PNB dos EUA era maior do que a soma das demais grandes potências (Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Japão, e URSS). P. Kennedy, The Rise and Fall of the Great Powers (Fontana Press, London, 1988, p. 475)

[12] Neste caso trata-se do G-20 dos países em desenvolvimento criado em Cancún (México) em 2003, na esteira da conferência da OMC e não do G-20, criado em 1999, reunindo as 19 maiores economias do mundo e mais a União Europeia, cujo propósito mais imediato era o de discutir e encaminhar soluções para os problemas financeiros globais.

[13] No capitulo 3 do livro O Brasil na Liga das Nações (op. cit.) Eugênio Vargas discute as várias iniciativas tomadas pelo governo Arthur Bernardes entre 1922 e 1925 no sentido de qualificar a demanda brasileira por um assento permanente no Conselho da Liga. O livro relata também a oposição ou a indiferença dos países vizinhos à demanda brasileira que acabou com a retirada do Brasil como membro da Liga das Nações em 1926.

[14] Amaury de Souza, A Agenda Internacional do Brasil: a Política Externa Brasileira de FHC a Lula. Editora Campus/Elsevier, Rio de Janeiro, 2009.

[15] Em valores de Dezembro/2019.

[16] S. Zweig. Brasil. Um País do Futuro. L&PM Editores, Porto Alegre, 2013. A primeira edição de 1941, foi lançada simultaneamente em alemão, inglês, sueco e francês, além do português.

[17] Sérgio Moura, em seu livro Podemos ser Prósperos. Se os Políticos Deixarem discute essa questão de forma exaustiva e interessante, lembrando bastante Brasil, o País dos Coitadinhos, de Emil Farhat, de grande sucesso na década de 1970. (S. Moura. R. Janeiro, 2017).

[18] Em O Mundo Pós-Americano, Fareed Zakaria faz um balanço de longo prazo da ordem mundial, desde que se tornou visível no século XVI. O autor chama de “movimentos tectônicos” as transformações que levaram ao centro dessa ordem primeiro a Europa, depois os EUA e finalmente o que ele chama de “ascensão do resto” num processo movido muito menos por guerras do que pelo gênio humano e pela criatividade que incrementa a produção e a produtividade. (Zakaria, Fareed. O Mundo Pós-Americano. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[19]  Rejoice, and men will seek you;

Grieve, and they turn and go;

(…)

Be glad, and your friends are many;

Be sad, and you lose them all,

(Ella W. Wilcox (1850-1919) no poema Solitude)

[20] R. Ricúpero, O Brasil, a América Latina e os EUA desde 1930: 60 Anos de uma Relação Triangular. Pub. em J. G. Albuquerque (Org.) 60 Anos de Política Externa Brasileira (1930-1990). NUPRI/USP, 1996. Vol. 2 pps. 37-60.

 

Eiiti Sato é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IREL/UnB). Foi Diretor do IREL/UnB de 2006 a 2014. Foi chefe da Assessoria Internacional da UnB (2014-2016). Foi o primeiro presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais – ABRI (2005-2007). Tem ministrado regularmente cursos sobre Economia Política Internacional e Política Internacional, Teoria e História (irel.sato@gmail.com;  http://lattes.cnpq.br/8614060463115652).

 

Artigo publicado na revista INTELLIGERE, USP, vol. 10, ano 2020.

 

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A abertura do mercado de gás natural no Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3292&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-abertura-do-mercado-de-gas-natural-no-brasil Wed, 12 Aug 2020 16:58:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3292 As primeiras descobertas de gás no Brasil ocorreram nos anos 1950. Contudo, o mercado de gás natural cresceu muito lentamente até a promulgação da Emenda Constitucional de 1995, que quebrou o monopólio da Petrobras na produção, transporte e importação de petróleo e gás natural.

Essa alteração na Constituição, em conjunto com a inauguração do gasoduto Bolívia-Brasil em 1999, foi fundamental para impulsionar a indústria de gás natural. O consumo cresceu de 7,6 MMm3/d (milhões de metros cúbicos por dia) em 1998 para 64 MMm3 /d em 2019.

Porém, dados de 2018 mostram que a participação do gás natural na matriz energética brasileira (13%) continua baixa, quando comparada à média mundial (22%). Por sua vez, o preço do gás natural vendido às distribuidoras não acompanhou os preços do mercado internacional, chegando a US$ 14 MM/BTU, o que contribuiu para a redução da sua competitividade no período recente (Gráfico 1).

Gráfico 1 – preços de gás natural no city gate – média 1º semestre de 2018 – Fonte: EPE.

 

Somente em 2020, quando novos contratos foram assinados entre a Petrobras e as distribuidoras, os preços começaram a se aproximar dos vigentes nos mercados internacionais.

Ao comparar o marco legal brasileiro com o dos países desenvolvidos, depreende-se que há necessidade de o Brasil ampliar a concorrência por meio da liberalização nos três segmentos da cadeia produtiva do gás natural: upstream (produção), midstream (escoamento e processamento) e downstream (distribuição nos estados).

Ainda hoje o mercado brasileiro se constitui em um quase monopsônio (único comprador) no upstream, com a empresa monopsonista controlando a capacidade dos gasodutos de transporte. Também apresenta estrutura regulatória sem incentivos à eficiência no downstream. Esse desenho de mercado não leva a preços competitivos, o que inibe o consumo industrial.

Desde a década de 1980, a liberalização do mercado de gás natural já é uma realidade em muitos países europeus. O Brasil está atrasado pelo menos quarenta anos nesse processo de abertura. Com isso, em tempos de pandemia da Covid-19, no bojo da discussão sobre a transição para uma economia menos poluente, enquanto a Europa discute o fim da era do gás e o início da era do hidrogênio, aqui, continua-se discutindo a abertura plena do mercado de gás natural.

Apesar de abundante tanto no alto-mar quanto em terra, o gás natural continua relativamente pouco explorado e caro, com consequências maléficas para o crescimento econômico doméstico. A intensificação da exploração do gás natural ajudaria o Brasil a alavancar substancialmente seu potencial de crescimento, mas os formadores de opinião não se envolvem na discussão sobre o custo econômico de não se abrir plenamente o mercado e consequentemente de não se explorar o gás natural.

Quanto poderia se elevar a renda real média e diminuir a pobreza brasileira se o gás natural fosse explorado eficientemente? Essa é uma pergunta que quase não é discutida. Mesmo entre os especialistas do setor, as discussões se concentram no processo de abertura, com perguntas do tipo: deve-se usar o mercado de energia elétrica para subsidiar a abertura do mercado de gás natural? Deve-se implantar termelétrica fixa na base antes da abertura?

Enfim, concentra-se em como vai ser feita a abertura, e não necessariamente quando será feita e quanto custará (não) fazê-la. Nesse aspecto, diante do esforço do governo federal desde 2016 para a plena abertura do mercado de gás natural, vale mencionar a diferença entre a estratégia política e econômica utilizada entre 2016 e 2018, por meio do grupo interministerial “Gás para Crescer”, e a implantada em 2019, por meio do “Novo Mercado de Gás”.

De fato, não obstante o Gás para Crescer e o Novo Mercado de Gás tenham convergido no diagnóstico, utilizaram estratégias diferentes na consecução da abertura, visando modernizar o marco legal, sobretudo o regulatório, cuja estrutura básica está representada nas leis 9.478/97 e 11.909/2009.

O Gás para Crescer direcionou a decisão de abertura de mercado para o Congresso Nacional, por meio de encaminhamento de melhorias ao Projeto de Lei 6.407/2013 (PL do Gás), que lá tramita desde 2013. Somente no final de 2018, a partir de Nota Técnica enviada pela ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis) ao CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), adotou-se uma medida infralegal, o decreto 9.616 de 17 de dezembro de 2018.

Já o Novo Mercado de Gás (NMG) optou por aproveitar essa medida e um acordo entre a empresa dominante e o órgão de defesa da concorrência para criar, de imediato, o mercado, com o objetivo de estrutura-lo e aperfeiçoá-lo ao longo do seu desenvolvimento. Além disso, cabe destacar que, no NMG, não há alteração na estrutura de distribuição sob controle dos Estados, mas incentivos para que a regulação seja modernizada.

Visando transformar o atual quase monopsônio da Petrobras em um ambiente competitivo e modernizar a regulação no midstream, liberando capacidade nos gasodutos de transporte, o NMG também atacou infralegalmente as causas que levam à baixa oferta e aos altos preços do gás natural por meio de um decreto presidencial oriundo de resolução do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). Posteriormente, a Petrobras e o CADE firmaram o acordo já citado.

Esse acordo consiste em um Termo de Compromisso de Cessação (TCC) entre a Petrobras e o CADE. No texto, são enfrentadas uma série de questões concorrenciais, especialmente em relação:

⦁ à venda de ativos e participações da Petrobras em modelo que desconcentre o mercado;
⦁ ao acesso de terceiros aos dutos de escoamento, Unidades de Processamento de Gás Natural (UPGNs) e terminais de GNL;
⦁ ao acesso de terceiros aos dutos de transporte da Petrobras;
⦁ à viabilização do sistema tarifário de entrada e saída para cessão de capacidade; e
⦁ à adoção dos mecanismos de gás release e capacity release.

 

Em tese, o cumprimento do aludido TCC permitiria quebrar o quase monopsônio da Petrobras e criar um mercado inicial de gás natural no Brasil. O TCC permite que empresas que hoje entregam gás à Petrobras possam vender o insumo diretamente aos distribuidores, permitindo competição entre empresas e melhoria da situação do consumidor, com mais opções de fornecimento.

A estratégia do NMG vem dando certo. Diante da visível possibilidade de preços competitivos, há intensa mobilização de grandes consumidores e de agentes da indústria em busca de oportunidades de negócios e investimentos no mercado de gás natural. Basta observar, por exemplo, a forte procura tanto pela compra do gás diretamente da Bolívia, escoado pelo gasoduto Bolívia-Brasil, quanto pelo arrendamento dos terminais de gás natural liquefeito (GNL).

Por outro lado, por meio dos incentivos trazidos pelo NMG, evidenciando potencial aumento de crescimento econômico para os estados que modernizarem a regulação da distribuição, vários já modificaram a regulação na distribuição do gás natural, destacando-se Rio de Janeiro e Sergipe.

Espera-se que, em um futuro próximo, haja incentivos ainda mais fortes para que outros estados adequem sua regulação de distribuição. De fato, com a concretização da abertura no upstream e a modernização na regulação no midstream, espera-se aumento maior nos investimentos, geração de empregos e tributos naqueles estados que modernizaram a regulação na distribuição. Com isso, outros estados terão incentivos (por meio de um efeito-demonstração) para também modernizar a regulação na distribuição.

No momento em que os autores finalizam este artigo, discute-se a tramitação de uma “versão simplificada” do PL do Gás então apoiado pelo Gás para Crescer. Essa proposta dará maior segurança jurídica e abrangência, ao estabelecido infralegalmente, alcançando todos os agentes, em complemento ao acordo CADE-Petrobras, que só tem efeito sobre a estatal, tendo sido aprovada na Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados e encontrando-se pautada em regime de urgência para votação no plenário.

Essa versão simplificada se concentra em pontos fundamentais, como a mudança de “concessão” para “autorização” do regime de exploração da atividade de transporte e de estocagem de gás natural, assim como a desverticalização das atividades de transporte. No entanto, para que a implementação seja efetiva, é importante que a ANP seja célere e ágil ao regulamentar os dispositivos estabelecidos infralegalmente pelo NMG.

Posto isso, entende-se que, diante das circunstâncias da pandemia da Covid-19, um Novo Mercado de Gás vem efetivamente sendo implantado, com mudanças relevantes na dinâmica do setor de gás natural. Ainda há muito por fazer (a aprovação da Lei do Gás no Congresso Nacional, a adoção de medidas por parte da ANP e o cumprimento das cláusulas do TCC), mas já se pode visualizar efetivamente um Novo Mercado de Gás nos próximos anos no Brasil.

Por fim, deve-se mencionar que os benefícios oriundos da plena abertura e desenvolvimento do mercado nacional de gás natural serão compartilhados entre diferentes agentes por meio do aumento da oferta de gás a preços mais competitivos, com efeitos multiplicadores na economia, elevação da atividade industrial, geração de empregos e crescimento econômico.

 

 

Referências Bibliográficas
GOMES, Ieda. Política, Mercado e Legislação de Gás Natural no Brasil: Pontos para Comparação, Reflexão e Mudança, capítulo 7 in Gás Natural no Cenário Brasileiro. Editora Synergia, 1° edição, 2015. Organizadora: Maria D’Assunção Costa.

LEITE, Antônio Dias. A energia do Brasil. Editora Lexikon, 3° edição, 2014.

NOTA Técnica: Propostas para o Mercado de Gás Natural – Comitê de Promoção da Concorrência no Mercado de Gás Natural do Brasil. Acessada no site:
http://www.mme.gov.br/documents/36112/491930/2.+Relat%C3%B3rio+Comit%C3%AA+de+Promo%C3%A7%C3%A3o+da+Concorr%C3%AAncia+vfinal+10jun19.pdf/2379cc7f-f6b7-8ba0-72db-1278e7d252ca

 

 

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A economia mundial como rede complexa https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3130&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-economia-mundial-como-rede-complexa Mon, 11 Dec 2017 12:47:30 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3130 Esse é o primeiro de uma série de textos no blog que abordarão o papel da complexidade no desenvolvimento econômico. Complexidade é aquilo que se observa em um sistema composto por um grande número de agentes inter-relacionados, sem controle central, cujo comportamento global emergente não pode ser explicado ou previsto pela soma do comportamento individual dos agentes. O estudo da complexidade, bem como do mapeamento das interações em um sistema complexo, ou seja, das redes complexas, não é originário das ciências sociais. Dentre as aplicações de origem mais conhecidas, estão, por exemplo, pesquisas sobre a relação entre genes, proteínas e metabólitos para compreender o funcionamento das células e pesquisas sobre as conexões neurológicas para entender as funções cerebrais. Nas últimas décadas, entretanto, a aplicação das redes complexas ganhou tração nas ciências sociais, sendo identificadas em cidades, na internet, no mercado financeiro, no comércio internacional, entre outros.

Aplicar conceitos de outros campos de estudo não é novidade para os economistas há um bocado de tempo: os pais do marginalismo, Walras e Jevons, revolucionaram nosso campo de estudo ao importarem da Física Mecânica as noções de equilíbrio estável e otimização restrita. Utilizando o instrumental de ciência de redes e complexidade, provavelmente o trabalho que até hoje obteve maior impacto na Economia é o de Hausmann e Hidalgo. Ao observar dados de exportação de bens, esses autores concluíram que o desenvolvimento econômico de um país está intimamente relacionado com o que ele produz. Países mais desenvolvidos seriam aqueles que produzem bens mais complexos, geralmente industriais, como máquinas e computadores, enquanto os menos desenvolvidos seriam especializados em produzir produtos primários, como soja.

Os primeiros passos dados para compreender a natureza do desenvolvimento econômico no âmbito da complexidade fizeram renascer o debate sobre o papel da indústria na trajetória virtuosa de acumulação de riqueza pelos países. Nesse primeiro artigo sobre o tema, proponho que alterar a base de dados do trabalho seminal de Hausmann e Hidalgo pode contribuir para esse debate, lançando algumas conclusões iniciais. Apesar do pioneirismo brilhante em se utilizar exportações de bens para observar o desenvolvimento de um país, esses dados ignoram as relações econômicas desempenhadas domesticamente, bem como a importância dos serviços para a geração de valor econômico, que representam quase 70% da produção mundial. Ademais, atrelar a geração de valor a bens finais também pode ser inadequado, uma vez que está cada vez mais relacionada ao conceito de atividades. Nesse sentido, observar a cadeia produtiva capturaria melhor o processo pelo qual se embute valor a produtos, levando em conta a gama complexa de conexões entre os setores ao longo do processo produtivo. A cadeia produtiva do iPhone, por exemplo, envolve pesquisa e desenvolvimento, design, desenvolvimento de plataforma e de sistema operacional, marketing, produção de semicondutores e de telas de LCD, montagem do produto e diversas outras atividades.

Para operacionalizar a análise de complexidade por meio de cadeias produtivas, utilizo uma matriz mundial de insumo-produto, a WIOD. Essa base de dados compreende as relações entre 56 setores de 43 países, totalizando 85% do PIB mundial. A WIOD apresenta a relação econômica que cada setor de cada país tem com todos os outros setores de todos os países. Para os 2408 “agentes” – setores produtivos – da economia mundial, há quase 6 milhões de conexões que compõem essa malha econômica. Após tratamento de dados*, restaram cerca de 30.000 conexões, com um número médio de conexões por setor-país igual a 18. Os dados da economia mundial de 2014 foram plotados no aplicativo de redes Gephi, via algoritmo de visualização OpenOrd. Veja o resultado abaixo.

Cada nó representa um setor de um país. O tamanho do nó é a soma das suas conexões, ou seja, tanto do que foi oferecido como do que foi demandado de insumos de outros setores. A cor de cada nó segue um algoritmo de detecção de comunidades de acordo com as relações que cada nó tem com seus pares. Como é de se esperar, a cadeia produtiva se organiza de maneira a possuir maior relacionamento entre setores do mesmo país. Dessa maneira, mesmo sem forçar tal resultado, há a formação de agrupamentos de mesma cor, que representam, ultimamente, um país. Os setores brasileiros – os nós verdes ao lado da China – possuem natureza marginal na cadeia global de valor. Estão pouco conectados a setores externos e, quando conectados, a poucos países. Curiosamente, o país mais conectado aos setores brasileiros é a China, não os Estados Unidos.

Note, também, a posição central dos setores estadunidenses na rede. Isso ocorre, em boa parte, devido à grande importância dos setores aos quais os setores americanos estão conectados. A eigencentralidade, uma das diversas medidas de importância de cada nó na rede, captura esse efeito “diga-me com quem andas que eu te direi quem és”. Já a centralidade de intermediação mede a capacidade de um nó de transmitir informação para toda a rede, como um broker. Se para “caminhar” entre dois nós quaisquer da rede, deve-se passar frequentemente por um nó específico, esse nó possuirá grande centralidade de intermediação.

De acordo com os resultados da Tabela 1 abaixo, os nós que possuem as maiores estatísticas de centralidade na rede são os setores industriais. Dessa maneira, a participação desses setores nas cadeias domésticas e globais de valor não somente revela a capacidade de contribuir diretamente à geração de valor, já que são os maiores nós da rede, como também a capacidade de conectar diversos setores ao longo do processo de produção, já que são os nós mais centrais da rede. O mais importante, certamente, é essa capacidade de servir como hubs, de conectar setores, pois ela amplifica o papel indutor que as atividades industriais possuem, similar à ideia de backward e forward linkages, proposta por Hirschman décadas atrás. Antes de fazer qualquer análise sobre a complexidade econômica das atividades industriais, é importante ressaltar, portanto, que essas atividades demandam e são demandadas por soluções que muitas vezes transbordam o seu escopo, gerando inovação e ganhos econômicos difusos. Não à toa, apesar de representar 15% do valor adicionado do PIB da União Europeia em 2015, a indústria correspondeu por 64% dos investimentos totais em P&D.

O estudo da economia mundial como rede complexa pode auxiliar a compreender a função que atividades econômicas desempenham nesse grande emaranhado produtivo. Estatísticas de redes apontam a importância das atividades industriais como conectores econômicos, podendo funcionar como catalizadores de outras atividades. Para escapar da armadilha da renda média e garantir o desenvolvimento econômico, seria suficiente, portanto, apenas industrializar um país? E qual seria o papel dos serviços? E o relacionamento entre indústria e serviços na trajetória do desenvolvimento econômico? Internalizar o instrumental de redes complexas parece ser importante para chegarmos um pouco mais perto de responder a essas perguntas. Entretanto, só conseguiremos usufruir eficientemente desse novo instrumental caso consigamos debater o problema de maneira agnóstica. Quem sabe, assim, para a ciência econômica, não se concretize a previsão de Stephen Hawking feita em 2000: I think the next century will be the century of complexity.

*O tratamento de dados consistiu em agrupar alguns setores para viabilizar a comparação entre setores de países e a aplicação de um filtro de US$200 milhões para facilitar a visualização da rede.

Versão deste texto foi publicada no blog Economia de Serviços em 21 de novembro de 2017.

 

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Vamos continuar a brincar de avestruz? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3094&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=vamos-continuar-a-brincar-de-avestruz https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3094#comments Mon, 13 Nov 2017 14:30:16 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3094 Políticas de proteção setorial são ótimas quando funcionam. Existem muitos exemplos bem-sucedidos de estímulos para o desenvolvimento de atividades produtivas por meio da concessão de subsídios ou do investimento em desenvolvimento de novas tecnologias.

No caso da Noruega, por exemplo, depois da descoberta de petróleo no país o governo criou uma universidade para formar técnicos, constituiu uma empresa estatal e desenvolveu uma sofisticada governança pública, incluindo uma agência reguladora que estimulou a concorrência e a gestão eficiente da produção. Além disso, foi criado um fundo soberano para garantir renda para a população quando os recursos do petróleo se tornem escassos.

Outros países, como a Coreia, investiram significativamente na educação da sua população e, posteriormente, apoiaram o desenvolvimento de alguns setores de exportação com metas de desempenho e prazo para o término das medidas de proteção.

Existem casos de sucesso também no Brasil. Os grandes investimentos públicos e privados em pesquisa na agricultura nos anos 1970, diversas medidas de estímulo, como crédito subsidiado, e empreendedores que corriam o risco do negócio resultaram no notável crescimento da produtividade nas últimas quatro décadas, e na expansão da oferta e das exportações, além da queda dos preços dos alimentos, para benefício da sociedade.

O problema das políticas setoriais ocorre quando fracassam. O resultado é o desperdício dos escassos recursos produtivos, capital, trabalho e infraestrutura, em atividades em que persistem em ser menos produtivas do que nos demais países. Ao invés de fazer mais o que fazemos bem, condenamo-nos a fazer em demasia aquilo que fracassamos em ser competitivos. A consequência é um país mais pobre do que podia ser.

O custo social do fracasso é ainda maior. Os recursos da sociedade que poderiam estar sendo utilizados em outras atividades não são de fácil mobilidade. O capital, escasso e caro em um país como Brasil, assume a forma de fábricas e infraestrutura que não podem ser imediatamente realocados. O mesmo ocorre com o emprego. O país se descobre refém das políticas equivocadas. Preservar os empregos no curto prazo requer pagar mais caro do que o necessário pelos bens produzidos ou manter subsídios às custas de outras políticas públicas. O fracasso custa caro e é difícil revertê-lo.

Esse tem sido o caso da indústria automobilística nos últimos anos.

Desde o fim dos anos 2000, o setor tem tido dificuldade em competir com a produção de outros países, como China e Coreia, nos automóveis de massa, e alguns europeus, no caso de carros de luxo. Em reação a essas dificuldades, o governo brasileiro criou o programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovar-Auto), que introduziu uma alíquota adicional de 30% sobre os carros importados desde que o seu produtor não tivesse uma fábrica já instalada no Brasil.

Deve-se ressaltar que o Brasil faz parte da Organização Mundial do Comércio (OMC) que limita as tarifas de importação e tem um conjunto de regras a ser obedecido pelos países signatários. A alíquota máxima de importação deve ser de 35%, o que já é o caso dos automóveis, e há restrição contra o tratamento preferencial para a produção nacional. Com o Inovar-Auto, a alíquota para os importados de produtores que não tinham fábrica no Brasil passou para 65%. A política fere claramente a regra de não discriminação dos importados. Não surpreendente que o Brasil tenha sido condenado pela OMC.

A OMC prevê algumas exceções às suas regras, e o governo brasileiro procurou revestir o Inovar-Auto de alguns propósitos para escapar da norma. Não convenceram.

O fracasso do Inovar-Auto não se resume ao desrespeito aos acordos internacionais dos quais o Brasil faz parte e aos carros mais caros para a sociedade.  Segundo estudo recente do Banco Mundial1, o Inovar-Auto também fracassou em estimular a pesquisa e desenvolvimento no setor que, oficialmente, seria o seu principal objetivo.

Muitos produtores se viram compelidos a produzir por aqui, mesmo que as suas fábricas fossem improdutivas. Afinal, a eficiência das fábricas de carros depende da escala da produção, em geral bem mais de 100 mil unidades por ano. O mercado brasileiro para diversos modelos, porém, é reduzido e o resultado foi a proliferação de pequenas fábricas para produzir poucos milhares de automóveis. Esse era o preço a pagar para evitar a alíquota adicional de importação.

Em 2013, antes do agravamento da crise econômica, somente Fiat, Ford, GM e VW produziram mais do que 300 mil veículos por planta. No bloco seguinte, tivemos a Renault com 141 mil, Honda com 135 mil e Toyota com 130 mil. Na sequência, Peugeot&Citroen com 72 mil, Mitsubishi&Suzuki com 43 mil e CAOA (Hyundai) com 35 mil. Evidentemente, com a crise, a produção reduziu-se ainda mais, caindo de 3,5 milhões em 2013 para 2,1 milhões em 2016.

O Inovar-Auto estimulou a expansão da oferta local para atender o consumo doméstico. As preferências dos consumidores, porém, requerem uma diversidade incompatível com a escala eficiente de produção, o que resulta na profusão de plantas pequenas e improdutivas, cuja consequência são automóveis mais caros do que o necessário e o desperdício de capital e trabalho que poderiam ser mais bem alocados em outras atividades.

O programa estimulou a instalação de inúmeras montadoras que produzem para o segmento de carros de luxo, com plantas que produzem pouquíssimas unidades. Em 2016, por exemplo, a BMW produziu 8690 unidades; a Mercedes, 3080; e a Jaguar, 753. Por qualquer critério, produzimos em um número excessivo de modelos em demasiadas fábricas. Temos, atualmente, 22 montadoras de veículos produzindo no Brasil. Embora o mercado interno seja grande, ele oferece escala para apenas 6 ou 7 montadoras. A política de atração de diferentes marcas para produzir no país resultou em empresas produzindo em uma escala abaixo da ideal, aumentando o custo unitário dos produtos. Para continuarem lucrativas, elas dependem de benefícios fiscais e subsídios. O resultado, além da condenação pela OMC, são carros mais caros para a população, além do desperdício de capital e trabalho que seriam mais produtivos em outras atividades.

O Inovar-Auto não atacou o problema estrutural da indústria que é a falta de competitividade. A entrada de montadoras chinesas, que atuam no segmento de carros mais simples, no qual a indústria nacional é mais forte, resultou em um ajuste ainda mais severo na produção do que seria necessário. Afinal, como consequência do programa passaram a existir mais produtores locais que podem apenas vender para o mercado doméstico, dada a pouca produtividade da nossa indústria. O resultado foi a imensa capacidade ociosa dos últimos anos. Caso os carros desses novos produtores ainda fossem produzidos no exterior, o ajuste poderia ter ocorrido com a queda da importação. A regra que induziu produção local resultou apenas, porém, em fábricas e trabalhadores ociosos.

O Inovar-Auto não promoveu nenhum ajuste. A indústria simplesmente se beneficiou de uma anestesia de seis anos – de 2012 até 2017 – sem enfrentar as suas dificuldades. De quebra, estimulou a instalação de fábricas que mal produzem 10 mil unidades ao ano. Tática de avestruz, que enfia a cabeça no buraco para não enfrentar o problema.

O tamanho do buraco foi o imenso custo de oportunidade do programa. Nosso escasso capital foi alocado a fábricas que ficaram com cerca de 50% de capacidade ociosa na crise, ao invés de terem sido utilizados em outras atividades, como infraestrutura, que poderiam ter sido expandidas para benefício do restante da sociedade. Não temos apenas carros mais caros, em meio a fábricas a meia capacidade e a trabalhadores demitidos. Temos menos estradas e portos que poderiam ter sido construídos com esses mesmos recursos.

Esse problema deve se agravar nos próximos anos. Inúmeras economias na Ásia além da China têm apresentado crescimento elevado – casos da Índia, Mianmar, Camboja, Filipinas, Indonésia e Vietnam. Segundo o FMI, esses países deverão crescer entre 2017 e 2022 ao redor de 6,5% ao ano. Amanhã teremos a competição, digamos, das montadoras indianas, e teremos que aumentar ainda mais as alíquotas de importação.

Existem, essencialmente, dois modelos de produção de automóveis. Há os países que sediam as grandes montadoras mundiais – EUA, Alemanha, Japão, França e Coreia do Sul – que, além das plantas de montagem, mantem as atividades mais nobres, como pesquisa e inovação. Ressalte-se que, desde o pós-guerra, a Coreia é o único caso de ingresso nesse seleto clube.

O segundo modelo de inserção é estimular o desenvolvimento de setores da indústria em que o país tem vantagens competitivas, sendo o restante da produção importado de outros países. Essa tem sido a opção da Malásia, da Turquia e da Tailândia, entre outros países. O México, por exemplo, produziu, em 2015, pouco menos de 3,5 milhões de unidades, sendo 2 milhões de veículos de passageiros e 1,4 milhão de veículos comerciais leves. Quase metade da sua produção de veículos de passageiro foi destinada ao mercado externo, principalmente a outros países, como EUA e Canadá. Adicionalmente o México tem 12 acordos bilaterais e alguns acordos de comércio preferencial.

Foi noticiado na imprensa que o governo prepara o programa Rota 2030 em substituição ao programa Inovar-auto. Esse programa deveria, diferentemente do Inovar-Auto, atacar os problemas de competitividade que afligem a indústria e tentar aumentar a especialização do Brasil em alguns tipos de veículos e componentes em meio a abertura da economia para que passemos a integrar as Cadeias Globais de Valor (CGV), como ocorre no caso do México. Essa também foi a opção que viabilizou a Embraer no Brasil.

Desistir da estratégia do avestruz poderá reduzir a produção local de automóveis, melhor do que insistir na velha política de proteção que fracassou sistematicamente nas últimas décadas na esperança que, desta vez, será diferente. Essa foi a escolha da Austrália, cujo resultado, entretanto, foi a sua desindustrialização. Deve ser possível manter uma produção doméstica expressiva em função da distância que temos dos maiores centros produtores, caso distinto da Austrália que fica próxima à Coreia e ao Japão, e com mercado interno bem menor do que o do Brasil.

Outra opção seria tentarmos o desenvolvimento completo de uma indústria de capital nacional, um caminho que foi adotado pela Coreia e pelo Japão, bem antes das CGV. Em ambos os casos, essa opção, adotada em tempos muito diferentes, necessitou de muito esforço e de uma eficiente coordenação do setor público, com metas objetivas de desempenho, penalidades em caso de fracasso, além de, principalmente, muita poupança e educação básica de qualidade.

Nunca perseguimos esse caminho. Não sabemos se após 60 anos seria o momento de tentarmos. A China, por exemplo, tenta desenvolver as suas montadoras. Em que pese as elevadíssimas taxas de poupança, qualidade do sistema educacional e a coordenação do setor público, o seu resultado não tem sido muito animador. Até o momento 2/3 das exportações chinesas de manufaturados deve-se a empresas de capital externo. A montadora Chery procura-se integrar-se com as CGV – como no caso da Embraer.2

Tendo em vista os nossos fracassos – indústria naval, construção de plataformas e fábricas de microprocessadores – não se recomenda insistirmos em um caminho que sistematicamente não tem funcionado. Somente com a indústria naval foram três insucessos nos últimos 60 anos: nos 50, com JK; década de 70, com os militares; e, recentemente, com Lula e Dilma.

Não parece que temos as condições necessárias ao modelo asiático de desenvolvimento. Afinal, não conseguimos prover a educação básica para a maioria da sociedade e temos uma baixa taxa de poupança. Adicionalmente o Estado brasileiro não tem apresentado as características necessárias para o sofisticado papel coordenador de programas dessa natureza: conseguir avaliar o desempenho das políticas; estabelecer prazos e metas; e, principalmente, ser capaz de descontinuar as políticas que não tem funcionado. Por outro lado, o que muitos defendem como políticas de construção das vantagens comparativas dinâmicas pode resultar apenas na distribuição de benefícios a grupos de interesse.3

Não há nenhuma evidência que o desenvolvimento de Japão e Coreia seja o único caminho possível. Certamente a economia americana percorreu um caminho mais liberal4, o mesmo ocorrendo com o Chile, Canadá, Nova Zelândia, Portugal e Espanha.

Adicionalmente não é verdade que o desenvolvimento de São Paulo se deveu à instalação da indústria automobilística. Pelo contrário. São Paulo já era a economia mais rica e o maior mercado consumidor bem antes dos anos 1950. Além disso, a evidência indica que os municípios de São Paulo que receberam imigrantes com maior escolaridade no começo do século XX, independente da sua especialização produtiva, ainda hoje apresentam maior renda por habitante.5 A educação e as condições locais resultaram em maior desenvolvimento econômico que, em alguns casos, resultou em industrialização; em outros, não.

O programa Rota 2030 não deve ser mais uma tentativa de editar uma versão recauchutada do Inovar-Auto, uma nova tentativa de avestruz em reação às vedações da OMC. O pouco que se conhece do Programa, porém, indicar que ele repete os velhos erros, além de criar novos problemas. Continua a haver discriminação de importados na competição com os nacionais, além de aumentar os custos de conformidade para o pagamento de impostos e os custos de fiscalização, dada a criatividade tributária do Rota 2030.

Há um injustificável benefício para o segmento de veículos de luxo, a título de estimular a inovação, mas que parece apenas subsidiar um segmento que trabalha com custos baixos ao produzir em escala reduzida. São concedidos benefícios tributários para fins de maior eficiência energética e maior segurança veicular. As mesmas metas poderiam ser obtidas mediante regulação que obrigasse padrões mínimos de consumo e segurança, sem a necessidade de renúncia fiscal.

Restam muitas dúvidas: por que se faz necessária uma política que força o contribuinte nacional a transferir renda para a indústria automobilística? Quais os seus custos e os seus benefícios? Quantos gastos sociais são sacrificados com a renúncia fiscal decorrente do incentivo à indústria automobilística? Por que esse setor e não outros?

Corrigir os equívocos do Inovar-Auto não será fácil. Teremos que viabilizar uma transição que reduza os custos do ajuste de trabalhadores e de empresas que investiram em um país que cavou o seu próprio buraco. Podemos insistir na estratégia do avestruz. Alternativamente, podemos começar a enfrentar os nossos difíceis problemas para que, finalmente, a indústria possa caminhar com as suas próprias pernas.

 

Versão resumida deste texto foi publicada no jornal Folha de São Paulo, edição de 10 de novembro de 2017.

 

REFERÊNCIAS

Carvalho Filho, Irineu de e Renato P. Colistete 2010. “Education Performance: Was It All Determined 100 Years ago? Evidence from São Paulo, Brazil”, https://mpra.ub.uni-muenchen.de/24494/.

Justin Lin and Ha-Joon Chang 2009. “Should Industrial Policy in Developing Countries, Conform to Comparative Advantage or Defy it? A Debate Between Justin Lin and Ha-Joon Chang”, Development Policy Review, 27 (5): 483-502.

Mehri, Darius Bozorg 2015. “The role of engineering consultancies as network-centred actors to develop indigenous, technical capacity: the case of Iran’s automotive industry”, Socio-Economic Review, 13(4): 747-769.

Sturgeon, T.; Leonardo Lima Chagas e Justin Barnes 2017. “Rota 2030: Updating Brazil’s Automotive Industrial Policy to Meet the Challenges of Global Value Chains and the New Digital Economy”, https://ipc.mit.edu/sites/default/files/documents/Brazil%20in%20Automotive%20Global%20Value%20Chains%204%20October%202017-final.pdf.

Whittaker, D. Hugh, Tianbiao Zhu, Timothy Sturgeon, Mon Han Tsai e Toshie Okita 2010. “Compressed Development”, Studies in Comparative International Development, 45(4): 439–467.

Wright, Gavin, 1990. “The Origin of American Industrial Success,” American Economic Review, 80(4): 651-668.

_______________

1 Ver Sturgeon e colaboradores (2017).

2 Ver Whittaker e colaboradores (2010) página 451-3, e Bozorg Mehri (2015) para a curiosa tentativa de desenvolvimento da indústria automobilística no Irâ..

3 Justin Lin no texto em que trava produtivo de bate com Ha-Joon Chang [Justin Lin e Ha-Joon Chang, (2009)] argumenta que a vantagem comparativa estática de um país pode ser alterada profundamente em caso de rápida acumulação de capital humano e elevada poupança. Uma política industrial, nesse caso, pode auxiliar a economia a encontrar a sua nova vantagem comparativa.

4 Gavin Wright (1992).

5 Carvalho Filho e Colistete (2010).

 

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Precisa-se de imigrantes https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3008&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=precisa-se-de-imigrantes https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3008#comments Tue, 18 Jul 2017 16:03:07 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3008 Em 1872,  excluindo os nascidos em Portugal e África, havia apenas 120.000 estrangeiros no Brasil. O país tinha 10 milhões de habitantes (entre as quais 16% eram pessoas escravizadas), renda per capita inferior à da Somália de hoje e a expectativa de vida ao nascer não passava dos 28 anos. Do total de brasileiros, apenas 1,5 milhão sabia escrever. Mesmo em 1910, apenas 12% das crianças estavam na escola.

Guiada por motivos racistas e econômicos, a imigração foi promovida e mudou o país. Entre 1872 e 1920, mais de 3,2 milhões de estrangeiros entraram no país. No fim do período, a população brasileira chegou a 30 milhões, dos quais 5,1% eram estrangeiros ou naturalizados.

Uma larga parcela de imigrantes era pobre e mal educada, mas fizeram a diferença em um país cuja população se encontrava em situação ainda pior. Essa onda de imigração nas primeiras décadas do século passado foi essencial para o desenvolvimento brasileiro. Os estrangeiros trouxeram conhecimentos diversos e criaram o mercado que impulsionou a industrialização.

Diversos estudos mostram que o impacto dessa onda imigratória se mostra ainda hoje na população e na economia brasileiras. Eu calculei que 16% dos trabalhadores formais têm sobrenomes não-ibéricos. Há evidências de que persistem as vantagens de trabalhar em cidades com pessoas de origem diversas. Philipp Ehrl e eu estimamos, em estudo recente-  que um aumento de 10% no percentual de trabalhadores brasileiros com ancestralidade não-ibérica (estimada pelo sobrenome)  causa um incremento de 2,2% nos salários de todos.

Lamentavelmente, o Brasil voltou a ser um país demasiadamente fechado.  Hoje, a parcela de estrangeiros no país mal chega a 0,9% da população, valor semelhante ao observado em 1872.  Uma parcela  irrisória quando comparado com os 13% dos Estados Unidos ou 27% na Austrália de pessoas que nasceram fora desses países. O número de  30 mil refugiados que o Brasil recebe por ano pode assustar alguns, mas também é ínfimo perto dos 3 milhões de brasileirinhos que nascem no mesmo período.

A  recém-sancionada Lei de Migração deu passos importantes para retirar os entraves mais anacrônicos à vinda de migrantes. É claro que  nenhum estrangeiro – por si só –  fará o Brasil melhorar seu ensino, reduzir a violência ou ofertar saneamento básico para a população. Porém, é um passo importante para o desenvolvimento de longo prazo.

Eu quase posso ouvir o contra-argumento: “Ah, mas dessa vez é diferente! Falta emprego. Antes eles vieram para empreender; agora o imigrante do século XXI é de outro tipo”.

Em primeiro lugar, o número de empregos em uma sociedade não é fixo. Obviamente, os imigrantes demandam bens e serviços que geram empregos para os locais. O leitor não precisa acreditar em mim, ou na Teoria Econômica; basta olhar a dinâmica de cidades como Londres, Nova Iorque e Los Angeles. Lá – onde se observa uma centena de nacionalidades –  não falta emprego.

Além disso, os que querem selecionar os imigrantes se esquecem que todos os grupos  étnicos já foram vistos como ameaças. Apesar da justificativa inicial à imigração ter se baseado no “branqueamento” da sociedade brasileira, os imigrantes não portugueses passaram a ser mal vistos e se transformaram em ameaça.  Logo depois da revolução de 30,  Vargas legislou que as firmas deveriam ter no mínimo de ⅔ de trabalhadores brasileiros. Em seguida, foram criados regimes de cotas por nacionalidade baseados nos históricos de entrada no país. Nessa campanha de nacionalização, os alvos eram os japoneses e os alemães, considerados “quistos étnicos” pela dificuldade de se integrarem à sociedade brasileira.  Os italianos eram mais bem vistos, mas – mesmo assim – houve temores por estarem associados a movimentos anarquistas.

Muitas dessas restrições persistiram e imigrar para o Brasil seguiu sendo um problema. O Estatuto do Estrangeiro de 1980 o via como uma ameaça e, entre 1988 e 1996, nem mesmo as universidade públicas puderam contratar professores estrangeiros como servidores públicos. Era justamente o período no qual o fim do império soviético fez com que cientistas altamente qualificados buscassem emprego pelo globo afora. O Brasil perdeu grandes chances.

Ainda hoje, uma startup tem que esperar pelo seu quinto aniversário para pedir visto para seus administradores no Brasil. 5 anos é tempo demais em setores mais dinâmicos. Outras restrições administrativas fazem com que apenas as firmas maiores, já estabelecidas, consigam cumprir os requisitos para a obtenção de vistos de permanência e possam contratar estrangeiros legalmente. Isso reduz a competição e a inovação na economia brasileira.

Faz sentido tratar imigrantes diferentemente de acordo com origem ou religião? Não. Uma característica une os migrantes: mesmo quando pobres, eles são mais empreendedores que seus semelhantes no país de origem. Afinal, só assim para arriscarem a vida em um país estranho. A tarefa de definir qual cor, sotaque ou religião de imigrante seria melhor para o Brasil não só é moralmente errada, como também destinada ao fracasso. No século XIX os britânicos consideraram os japoneses preguiçosos e os alemães, desonestos. Em partes dos EUA, a chegada de irlandeses católicos foi vista como ameaça grave e reprimida com violência. Em suma, todos os povos, em certo momento da sua história, já foram mal vistos. No Brasil, imigrantes africanos, do oriente-médio, caribenhos e sul-americanos, hoje vítimas de preconceito, podem ter papel-chave no desenvolvimento do país nas próximas décadas.

Em meados dos anos 1950, um adolescente boliviano, franzino, filho de sapateiro, só com Ensino Médio, chegou no Brasil. Era meu pai. Ele se formou em Medicina e passou toda a sua vida profissional atendendo no Hospital do Câncer do Rio de Janeiro. Milhões de nós temos histórias semelhantes. Quanto mais rápida e mais fácil for a integração dos recém-chegados, mais certo é que relatos como esse continuarão a acontecer.

 

Este texto foi originalmente publicado no Indigo, em 5 de julho de 2017.

 

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O Brasil deveria receber os refugiados sírios? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2960&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-brasil-deveria-receber-os-refugiados-sirios https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2960#comments Tue, 21 Feb 2017 12:56:16 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2960 Todos nós aprendemos a conviver com o conflito da Síria. Quando o telejornal mostra as cenas de destruição, crianças mutiladas e o desespero dos refugiados tentando uma vida melhor na Europa, mandamos os filhos saírem da sala. Assim, podemos ficar indignados com Putin, Assad, islamistas ou americanos, e esperar a novela começar.

Enquanto isso, milhões de sírios não têm para onde ir. Alemanha e Suécia, seguindo o imperativo moral de ajudar ao próximo, receberam centenas de milhares de refugiados, mas já têm tentado fechar a porteira. É a vez do Brasil fazer algo para aplacar a dor das vítimas.

Que país melhor que o nosso para receber uma parcela dos refugiados? Recebemos milhões de imigrantes nos últimos 200 anos e podemos fazer o mesmo hoje. Desde o começo do século XX, sírios e libaneses chegaram para plantar café, comerciar, estudar e contribuir para nossa civilização. Centenas de seus descendentes se sobressaíram na arte, cultura, ciências, política e esporte. E milhões de outros, anônimos, são nossos vizinhos e colegas.

Mas receber refugiados é caro. E não temos dinheiro sobrando.

É mais caro, entretanto, para a Europa. Os números não mentem. A quantidade de pedidos de asilo quintuplicou nos últimos anos. Se tomarmos a iniciativa, podemos negociar um acordo no qual a Comunidade Europeia e os Estados Unidos pagariam a conta para a instalação de algumas centenas de milhares de refugiados no Brasil. Para criar uma barreira à migração aos países europeus, a Turquia recebeu € 6 bilhões da Comunidade Europeia. Com ajuda financeira dos países ricos, poderíamos oferecer um lar permanente aos refugiados.

E não estaríamos apenas alimentando nossa consciência tranquila. Os refugiados sírios, em geral, têm maior nível de escolaridade que a população brasileira, e depois de um período de transição e adaptação, aumentariam a produtividade média. Uma oferta maior de mão de obra qualificada teria o efeito de reduzir a desigualdade e seria bem-vinda já que, em breve, teremos uma redução da força de trabalho com o envelhecimento da população.

Ao fazer parte da solução, o Brasil estabeleceria papel de protagonista. Afinal, país grande não é apenas aquele cujo presidente tem seu jato ou cujas construtoras subornam ditadores de países mequetrefes, mas sim aqueles que demonstram força moral e liderança por um mundo melhor.

Quando o terremoto no Haiti deixou centenas de milhares desabrigados, nos faltou coragem no coração para agir. Os poucos haitianos que aqui chegaram, por conta própria, conseguiram se estabelecer, embora em condições às vezes precárias e já contribuem para nosso país.

Nós sempre carregaremos a vergonha da abolição tardia da escravidão, mas podemos nos orgulhar de termos sido o Eldorado para muitas gerações passadas de imigrantes, hoje brasileiros.

Somos fortes porque temos diversidade. Também podemos ser bons.

 

Originalmente publicado em edição de O Globo, de 24 de novembro de 2016.

 

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Acordos de liberalização do comércio de serviços de fato liberalizam o mercado? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2910&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=acordos-de-liberalizacao-do-comercio-de-servicos-de-fato-liberalizam-o-mercado Wed, 09 Nov 2016 14:04:28 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2910 1. A importância crescente do setor de serviços

A importância do setor de serviços na participação do PIB e na criação de emprego aumenta de acordo com o nível de desenvolvimento dos países. Nas últimas três décadas, a participação do setor de serviços no PIB nos países da OCDE aumentou de 58% para 75% do PIB [FRANCOIS e HOEKMAN (2010)]. No mundo, o setor de serviços corresponde a aproximadamente 60% da produção global.

No Brasil, a atividade econômica, os investimentos e a criação de empregos acontecem primeiramente e em especial no setor de serviços.O setor de serviços no Brasil corresponde a 71% do PIB (dados de 2015), valor maior queo de outras economias emergentes, como China (47%) e Índia (51%). Na Coreia do Sul, em que o PIB per capita é 3,8x maior que o brasileiro, o setor de serviços corresponde a 59% do PIB.

A preponderância dos serviços na economia foi influenciada pela crescente integração de bens e serviços na produção e nas vendas da indústria manufatureira, uma tendência global que ganhou o nome de “servicification”. Além da exportação direta de serviços, o setor de serviços contribui para as exportações indiretamente, como insumos utilizados na produção de bens. Working paper da OCDE sobre o setor de serviços no Brasil avalia o comércio em termos de valor agregado (Trade in Value Added – TiVA) e revela que os serviços representam aproximadamente 49% do conteúdo das exportações brasileiras de bens (commodities e manufaturas). Esse valor é similar ao de demais países da América Latina, maior que o da China e da Índia (aprox. 30%), e um pouco abaixo da média da OCDE (54%).

 

2. Acordos internacionais de comércio de serviços e liberalização

A Rodada Uruguai, que culminou na criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995, foi também a rodada que criou o Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (da sigla em inglês, GATS). O GATS foi inspirado pelos mesmos objetivos da sua contraparte do comércio de bens, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT): a criação de um sistema de regras previsível e confiável para o comércio internacional, um tratamento justo e equitativo para todos os participantes e a promoção do comércio e do desenvolvimento econômico por meio da progressiva liberalização comercial.

O GATS estabeleceu muitas bases sobre as quais hoje são negociados os acordos internacionais de comércio de serviços: a classificação em 4 modos de prestação; o reconhecimento de 12 categorias de setores e 155 subsetores; e as cláusulas de não discriminação: tratamento nacional1 e acesso a mercados2. No entanto, mais de 25 anos após a sua assinatura, muitos importantes desdobramentos ainda estão pendentes. As negociações durante a Rodada Uruguai foram apenas um primeiro passo para a agenda do GATS. A negociação teve êxito para o estabelecimento da estrutura e dos princípios do Acordo. Os efeitos liberalizantes, no entanto, foram modestos.

Mas, dada a importância atual do setor de serviços nas economias, por que o GATS ainda está incompleto? Por que a OMC obteve sucesso no GATT e ainda encontra dificuldades em avançar nas rodadas de negociação de serviços, 25 anos após a primeira negociação do GATS? Enquanto o setor de serviços corresponde atualmente a mais de 60% da produção e emprego global, esse setor corresponde a não mais que 20% do comércio internacional total.

A explicação reside em uma característica intrínseca dos serviços: enquanto o comércio de bens se trata do comércio do resultado do processo de produção, o comércio de serviços é sobre o comércio dos fatores de produção. Na fórmula clássica de produção, Y = F (K, L), o setor de serviços está refletido na mão de obra e no capital. Nesse sentido, enquanto na negociação de acordos de comércio de bens a moeda de troca são tarifas de importação, em negociações de acordos de comércio de serviços, a moeda de troca é a regulação doméstica. Qualquer mudança de marco regulatório precisa ser intensamente analisada pelos órgãos reguladores, pelos legisladores e pelos prestadores de serviços impactados. É nesse sentido que a maior parte dos países que fizeram importantes liberalizações no seu setor de serviços o fizeram unilateralmente3.

Para ilustrar o argumento acima com dados, Hoekman (1996) fez um esforço empírico e calculou índices que representariam a liberalização de fato de países da União Europeia no GATS. A sua conclusão foi de que a cobertura de setores nos compromissos inscritos de Tratamento Nacional e Acesso a Mercados foi limitada e que, o maior benefício da listagem teria sido o “travamento” (lock-in) do marco regulatório daqueles países no momento de assinatura do acordo (1995). Em outras palavras, a Rodada Uruguai não entregou nenhuma liberalização de fato do setor de serviços4.

O gráfico abaixo apresenta o percentual de subsetores em que houve compromissos inscritos nas listas de oferta do GATS pelos países que originalmente assinaram o acordo. Pode-se perceber que na maior parte dos setores houve inscrição de compromissos em menos da metade do total de subsetores existentes.

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Diante da pouca (ou nenhuma) liberalização obtida no GATS e da paralisação da Rodada Doha, os países, em especial os desenvolvidos, têm aumentado o nível de importância de acordos regionais em suas políticas comerciais. De acordo com a OMC5, em 2011 já haviam sido notificados 87 acordos regionais com compromissos em serviços. Ademais, há os que ainda não estão em vigor, dentre os quais merecem destaque o TPP e a Aliança do Pacífico.

Muitos desses acordos regionais trazem inovações nos capítulos do setor de serviços, com vistas a trazer soluções para questões ainda pendentes na OMC. Uma dessas inovações é o novo formato de inscrição de compromissos: a adoção deofertas com listasnegativas, ao invés de positivas.

Na inscrição em listas positivas, método adotado no GATS, os países assumem compromissos de tratamento nacional e acesso a mercados apenas nos setores e modos que decidirem inscrever. Os setores em que o país não inscrever compromissos ficam automaticamente livres para regulamentação do governo sem reservas. Em uma negociação de listas negativas, método adotado por grande parte dos acordos regionais negociados recentemente, os países exaurem em suas listas as medidas desconformes e reservas com os compromissos assumidos de tratamento nacional e acesso a mercados. Ou seja: quaisquer medidas existentes no marco regulatório doméstico que apresentem discriminação ao prestador de serviço estrangeiro, representando um desrespeito aos compromissos assumidos, devem ser inscritos na lista de oferta desse país.

Diante dessa diferença de inscrição de compromissos, há quem argumente que a adoção de listas negativas em um acordo de serviços significaria, portanto, maior liberalização, de maneira que esse seria o método preferível de negociação. A verdade, no entanto, é que nenhum dos dois métodos apresenta liberalização de fato do setor de serviços. Os países, tanto em listas negativas quanto em listas positivas, apenas consolidam o seu marco regulatório atual.

A grande diferença entre o método de inscrição das duas listas reside na segurança jurídica e na transparência que decorrem de uma lista negativa. A lista negativa é mais transparente, pois cada país deve exaurir suas medidas desconformes com os compromissos assumidos, enquanto na lista positiva cada país faz os compromissos que considerar pertinentes. Dessa maneira, um prestador de serviços estrangeiro ao ler a oferta de um país que inscreveu seus compromissos em uma lista positiva pode ainda ter dúvidas com relação à regulamentação de um determinado setor. Ao ler uma lista negativa, no entanto, esse mesmo prestador de serviços estrangeiro tem conhecimento de todas as medidas desconformes daquele país com relação aos compromissos assumido em um determinado acordo.

 

3. Considerações finais

Bem, se acordos de comércio de serviços não liberalizam o comércio de serviços, por que negociá-los? Há dois benefícios imediatos que decorrem da assinatura de um acordo de serviços. O primeiro é o travamento6 (lock-in) do marco regulatório daquele país. Isto quer dizer que, a partir do momento da assinatura do acordo, aquele país não poderá adotar medidas mais discriminatórias com prestadores de serviços estrangeiros do que aquelas já existentes e inscritas em suas listas. O segundo é o já mencionado ganho de transparência e segurança jurídica que decorre da adoção de listas negativas.A consolidação do marco regulatório dos países em uma lista padronizada em muito facilita a vida de prestadores de serviços e investidores.

Um terceiro benefício que decorre da negociação de um acordo de serviços advém da adoção de um “marco geral”, que estabelece padrões internacionais de conduta para os participantes, além de servir como um “guarda-chuva” para potenciais acordos posteriores de cooperação, facilitação, reconhecimento mútuo, etc.

E, por fim, é uma oportunidade para o próprio governo, em contato com seus órgãos reguladores e setor privado, rever todo o seu marco regulatório doméstico. Afinal, por que não?

 

 

Referências

Francois, Joseph, and Bernard Hoekman. “Services trade and policy.”Journal of Economic Literature 48.3 (2010): 642-692.

Hoekman, Bernard. “Assessing the general agreement on trade in services.”The Uruguay Round and the developing countries 996.1 (1996): 89-90.

 

____________

1 Tratamento nacional: um compromisso em tratamento nacional implica que um membro não pode adotar medidas discriminatórias que beneficiem prestadores de serviços domésticos frente aos estrangeiros.

2 Acesso a mercados: o compromisso de acesso a mercados está relacionado a um compromisso de não criar certos tipos de medidas que dificultem ou impeçam o acesso de um prestador de serviço estrangeiro ao mercado doméstico. Os tipos de medidas que os países se comprometem a não adotar estão listadas no inciso 2 do Artigo XVI do GATS.

3 Há exceções, como por exemplo a Costa Rica. Maiores detalhes desse caso podem ficar para um próximo post.

4 Aqui é importante deixar clara a exceção de países que aderiram tardiamente a OMC (latecomers). Esses países tiveram que assumir compromissos determinados pelos países integrantes, de maneira que de fato fizeram compromissos de liberalização.

5https://www.wto.org/english/tratop_e/serv_e/dataset_e/dataset_e.htm

6 Essa cláusula é chamada de standstill. Há outra inovação introduzida por alguns acordos regionais chamada de cláusula ratchet (ou cláusula cremalheira). Com essa inovação, toda nova medida mais liberalizante adotada pelo país é automaticamente travada e o país não pode adotar medidas mais discriminatórias que ela. Há ainda muita crítica a essa cláusula, em especial por parte dos países em desenvolvimento, que afirmam não ter um marco regulatório maduro o suficiente para esse mecanismo.

 

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Os investimentos no Brasil estão perdendo valor? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2138&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=os-investimentos-no-brasil-estao-perdendo-valor https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2138#comments Mon, 24 Feb 2014 15:16:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2138 1. Introdução

Ao final de janeiro, o blog Beyond Brics, ligado ao jornal Financial Times, ventilou uma notícia sobre a perda de valor dos investimentos feitos por estrangeiros no Brasil. A notícia, além de trazer preocupações em seu título (Investing in Brazil: Value creation and value destruction), traz outra ainda maior sob o ponto de vista da estrutura do balanço de pagamentos e da posição de vulnerabilidade externa.

As duas principais contas do balanço de pagamentos1 – o resultado em transações correntes e a conta capital e financeira – servem como referência para avaliar a situação do país frente ao sistema financeiro internacional. Países deficitários em transações correntes – ou seja, aqueles que consomem mais do que produzem, precisando importar bens e serviços do exterior – precisam recorrer ao financiamento externo, seja por investimento estrangeiro ou por ajuda externa, como faz o Fundo Monetário Internacional (FMI) ao detectar países com desequilíbrios nas contas externas. O Brasil, nos últimos dez anos, tem conseguido manter o financiamento de seu déficit em transações correntes de forma saudável, sendo o investimento direto a principal fonte de financiamento. De 2002 até o final de 2012, não havia necessidade de financiamento externo nas contas externas2. Esse cenário benéfico, entretanto, foi revertido em 2013, com o desempenho ruim da balança comercial, passando o país a necessitar de 0,8% do PIB para financiar o resultado negativo das transações correntes.

Apesar do resultado, o país não fechou as contas em 2013 de forma totalmente negativa porque os investimentos estrangeiros em carteira3 ajudaram no financiamento do saldo negativo. Preocupa, todavia, o fato de que investidores estrangeiros possam estar perdendo dinheiro ao investir no país, fazendo com que esses atores revejam suas estratégias de investimento para outros países emergentes. O artigo supracitado argumenta que houve destruição de valor nos investimentos de estrangeiros no Brasil e expõe dados do Banco Central para avaliar o tamanho da perda de valor no estoque de investimento estrangeiro no país, tanto direto, como em renda fixa e em ações.

O objetivo desse texto é avaliar os números de estoque e fluxo de investimento estrangeiro no Brasil, verificar se há perda de valor desses investimentos e avaliar se essa perda está relacionada com a volatilidade cambial e/ou com a perda do valor dos ativos nacionais.

2. Investimento Estrangeiro Direto

Avaliando os dados atualizados recentemente pelo Banco Central4, observa-se que, entre janeiro de 2003 e novembro de 2013, o fluxo de IED no Brasil valia US$405 bilhões e que o estoque de IED – todo o investimento acumulado nesse período – aumentou em quase US$600 bilhões. Esse aumento se deve aos fluxos e à valorização dos ativos. Os números podem ser observados no Gráfico 1.

Gráfico 1

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Importante ressaltar que o País tem atraído fluxos de investimento direto cada vez maiores, por anos seguidos e acumula, entre 2003 e 2013, um estoque de investimento estimado em US$725 bilhões5. Em 2010, apesar de um fluxo menor de IED em relação a 2009, o país captou investimentos no valor de US$26 bilhões. Além da alta no valor das empresas brasileiras nesse ano (IBOVESPA), a apreciação do Real (que altera o valor do estoque em dólar) também ajuda a explicar parte da alta no valor do estoque entre 2009 e 2010. O mesmo raciocínio pode ser utilizado para explicar o grande recuo no estoque de IED a partir de 2011, quando o valor das empresas brasileiras caiu e o houve subsequentes desvalorizações da moeda nacional. Por exemplo, enquanto o dólar valia R$1,69 ao final de 2010, esse valor subiu para R$1,83 ao final de 2011, uma desvalorização de 8,5% em um ano. Um investidor estrangeiro que tenha trazido R$1.690 (ou US$1.000) para o país em 2010, se resolvesse retirar essa quantia do país ao final de 2011, teria o valor equivalente a US$923,5, ou seja, perda de US$76,5. O Gráfico 2 mostra que a correlação6 entre a variação no estoque de IED e a variação cambial é de -0,75, ou seja, uma desvalorização cambial está fortemente associada a uma variação negativa do estoque de IED.

Gráfico 2

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Em 2010, observa-se que a alta dos ativos brasileiros influenciou fortemente o aumento no valor dos estoques de investimento no país. Como mostra o Gráfico 3, a correlação entre o índice Bovespa e os estoques de investimento direto 7é fortemente positiva, de forma que aumentos no índice Bovespa estão associados a variações positivas no valor do estoque de IED. Portanto, a queda no valor desses estoques, observadas a partir de 2011, além de refletir a desvalorização cambial, também é resultado do baixo desempenho das ações das empresas negociadas na Bovespa.

Gráfico 3

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3. Investimento Estrangeiro em Renda Fixa

A análise seguinte compara estoques e fluxo dos investimentos estrangeiro em renda fixa a partir de 2002. O dado mais recente do Banco Central mostra que o estoque de renda fixa em posse de estrangeiros soma US$175,5 bilhões no período. Entre 2009 e 2010, o fluxo em renda fixa, somado, foi de US$ 47 bilhões e o estoque aumentou US$56,5 bilhões.

Gráfico 4

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Como apontam a maioria dos economistas em comércio internacional, investimentos em carteira, ao contrário dos investimentos diretos, são movidos por diferenças no retorno ao capital (Markusen et al, 1995). No caso dos investimentos em renda fixa, devido ao grande diferencial de juros oferecido pelos ativos brasileiros, estes têm sido pouco afetados pela mudança de percepção no risco e pela queda de valor das empresas brasileiras. Entre 2011 e 2012, por exemplo, enquanto o valor do estoque do IED caía, o estoque nessa categoria de investimento apresentou uma alta de US$42 bilhões. As variações do dólar não alteram tanto a decisão de investimento no país, quanto nos outros investimentos, como mostra o Gráfico 5, embora possa ser observada uma correlação negativa relativamente alta.

Gráfico 5

img_5

4. Investimento Estrangeiro em Ações

Quanto aos investimentos estrangeiros em ações, importante componente do investimento em carteira, há uma forte relação entre o valor do estoque e o valor das ações das empresas brasileiras avaliadas no IBOVESPA. O valor do estoque dos investimentos estrangeiros em ações caiu fortemente em 2008, ano da crise financeira internacional, quando houve perda no valor das empresas listadas no Ibovespa (em Reais), acompanhada da desvalorização da moeda nacional, como mostra o Gráfico 6.

Gráfico 6

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Apesar da recuperação do valor do estoque dos investimentos em carteira em 2009 e 2010, a variação estimada do valor desses estoques a partir de 2011 é negativa. O recuo no estoque de investimentos em ações, nos últimos 3 anos, apesar do país ter recebido fluxos positivos no período, resulta da desvalorização cambial recente, dado que houve leve recuperação nos valores das empresas brasileiras. O Gráfico 7, que mostra a relação entre a variação do valor do estoque dos investimentos em carteira e a variação cambial, aponta uma correlação de -0,87.

Gráfico 7

img_7

5. Considerações Finais

A situação de vulnerabilidade externa brasileira atual é muito diferente do observado pela história econômica do país. O país hoje possui reservas internacionais suficientes para cobrir sua dívida externa total. A dívida externa líquida, negativa, mostra que o país está na posição de credor internacional, algo inédito até 1998 (Gráfico 8).

img_8

Esses indicadores, entretanto, são extremos quando se considera as condições das contas externas. É possível explicar que a perda de valor dos investimentos estrangeiros, tanto direto quanto em carteira, ocorre devido à um ajuste cambial. Mas a queda nos preços dos ativos, causando a perda de valor no estoque dos investimentos em ações, preocupa, visto que este tem sido complementar no financiamento do déficit em transações correntes.

Em adicional, uma percepção de maior risco do país, acompanhada de baixo retorno dos ativos brasileiros frente a outros países – que pode piorar diante do rebaixamento da nota brasileira – tende a deixar o país em uma posição vulnerável, com saída de capitais estrangeiros. A divulgação de matérias como a do blog Beyond Brics altera a percepção de investidores estrangeiros sobre os ativos brasileiros e preocupa caso haja uma reversão no fluxo de investimento estrangeiro para o país.

_________________

1Instrumento de contabilidade que resume as transações econômicas de bens e serviços entre residentes e não residentes.
2Necessidade de financiamento externo= déficit de transações correntes menos os investimentos estrangeiros diretos líquidos.
3O investimento direto é constituído quando o investidor detém 10% ou mais das ações ordinárias ou do direito a voto numa empresa; considera-se como investimento em carteira quando ele for inferior a 10%.
4O Banco Central revisa periodicamente os dados de estoque de investimento estrangeiro no país para fins de demonstração da posição internacional de investimento, conforme o Padrão Especial de Disseminação de Dados, requerido pelo FMI.
5O estoque de investimento estimado depende do fluxo líquido captado e do valor de mercado desses investimentos durante cada ano. O valor do estoque de IED, em dólares, aumentou muito em 2009, resultado tanto da apreciação cambial quanto da alta no valor das ações brasileiras.
6O coeficiente de correlação mostra a influência que uma variável tem sobre a outra. Valores próximos a 1 (ou -1) mostram que elas são fortemente positivamente (ou negativamente) relacionadas.
7Por definição, investimentos acima de 10% em ações de uma mesma empresa são classificados como IED.

Referências:

Banco Central do Brasil, Sistema de Séries Temporais.
KRUGMAN, P., OBSTFELD, M., MELITZ, M., International Economics: Theory and Policy. Cap. 8, 9ª edição, 2011.
MARKUSEN, J., MELVIN, J., KAEMPFER, W., MASKUS, K., International Trade: theory and evidence. Cap. 22, 1995.
SARTORI, A., Estatística e Introdução à Econometria. Cap. 1, 2003.
Wheatley, J. Investing in Brazil: value creation and value destruction.  Financial Times, Beyond Brics. Publicado em 23 de jan. 2014

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As contas externas do Brasil estão se deteriorando? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1878&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=as-contas-externas-do-brasil-estao-se-deteriorando https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1878#comments Tue, 11 Jun 2013 14:14:31 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1878 As contas externas de um país estão retratadas no seu balanço de pagamentos, registros das transações econômicas entre residentes e não residentes. O balanço é dividido em duas partes principais. A primeira retrata as transações com bens e serviços, inclusive os juros e lucros pagos por investimentos feitos por estrangeiros. A segunda parte reflete as transações financeiras, entre as quais as entradas e saídas de investimentos diretos, empréstimos bancários e investimentos em carteira, que são operações com ações e títulos de empresas e do governo.

À exceção do modelo asiático, os países em desenvolvimento, a exemplo do Brasil, costumam ter déficit nas transações com bens e serviços, também conhecidas como transações correntes, e superávit nas transações financeiras. Assim, as aquisições líquidas de bens e serviços do exterior são financiadas com as entradas líquidas de investimentos estrangeiros, seja diretamente nas empresas (investimentos diretos), seja por meio dos empréstimos bancários e das aquisições de ações e títulos das empresas e do governo.

Esse mecanismo de financiamento externo pode ser útil ao esforço do país em desenvolvimento, normalmente caracterizado por escassez de capital, mas está sujeito também à instabilidade, por vezes pronunciada, como se viu em várias experiências de crise internacional nas duas últimas décadas. Nesses casos, os residentes encontram dificuldades para pagar seus compromissos externos, em geral pagos em dólar, moeda emitida apenas pelos Estados Unidos, gerando crise cambial, espécie de crise de liquidez do país.

Diante dos riscos, o desejável é que o país utilize o financiamento externo de modo adequado e parcimonioso, o que decorre da qualidade da política econômica do país receptor. Disso dependerá a intensidade dos efeitos internos em caso de mudanças abruptas do cenário internacional.

Feita essa introdução, cabe analisar a evolução das contas externas do Brasil nos últimos anos, com base nas estatísticas do balanço de pagamentos divulgadas pelo Banco Central do Brasil (Bacen)1.

No que tange às transações correntes, no período 2003 a 2006, o Brasil apresentou superávit entre 1% e 2% do PIB, média anual de US$ 13,1 bilhões, situação pouco usual em seu histórico. Tal fato refletiu o descompasso entre o aumento das exportações de bens, impulsionadas pela valorização das commodities exportadas pelo Brasil, em relação às importações de bens e serviços, contidas por conta da defasagem entre o crescimento econômico do Brasil e da economia mundial.

Em 2007, o superávit nas transações correntes foi praticamente eliminado e, no biênio 2008-2009, transformou-se em déficit de cerca de 1% do PIB, média anual de US$ 26,2 bilhões. No triênio 2010-2012, o déficit subiu ainda mais e ficou um pouco acima de 2% do PIB, média anual de US$ 51,3 bilhões. A evolução do déficit se deveu ao forte aumento das compras externas de bens e serviços, inclusive transporte, viagem e aluguel de equipamentos cujos gastos somados chegaram a US$ 55,2 bilhões em 2012.

Esse patamar de déficit não chega a ser preocupante. Ocorre que, desde setembro de 2012, a tendência pendeu para os 3% do PIB. No primeiro quadrimestre de 2013 houve surpreendente déficit na balança comercial por conta da redução das exportações de bens, enquanto as importações de bens e serviços mantiveram o ritmo anterior de aumento. O déficit de US$ 33,2 bilhões nas contas correntes do primeiro quadrimestre de 2013 foi 91% superior a igual período de 2012 e correspondeu a 61% do déficit acumulado nos doze meses do ano passado.

É cedo ainda para dizer para qual patamar caminhará o déficit em conta corrente, mas com certeza sua evolução é mais um sinal de alerta na economia brasileira. Vale observar que o déficit não superou os 4,55% do PIB entre 1999 e 2002, anos em que o Brasil passou por grandes dificuldades nas contas externas. A exemplo do cenário atual,

naquele período havia instabilidade no mercado financeiro internacional, trazendo muita incerteza acerca das condições do financiamento externo das economias deficitárias.

Outra dificuldade é o cenário macroeconômico atual da economia brasileira, no qual convivem baixo crescimento e inflação elevada. A eventual necessidade de ajustamento da economia por conta de falta de financiamento externo poderia piorar esse quadro, pois o ajuste normalmente requer desaceleração da economia e desvalorização cambial para conter as importações e elevar as exportações.

O assunto envolve ainda outras duas complicações. Uma é o efeito da desaceleração da economia chinesa sobre os preços e quantidades exportadas de commodities pelo Brasil. É sabido que boa parte do forte aumento das vendas externas brasileiras ao longo da década passada se deveu à crescente importância da China na economia mundial. Outra complicação é a reduzida capacidade competitiva do Brasil que se reflete não apenas na concentração das exportações em commodities de baixo valor agregado, como também na crescente importância das importações na economia brasileira, as quais não parecem arrefecer nem mesmo com o lento crescimento do país.

Como visto, o déficit nas transações correntes é financiado pelas entradas de capital no país. Se as condições do financiamento são favoráveis, abre-se espaço para que correções por ventura necessárias sejam feitas gradualmente e com menor custo para o país. Do contrário, o ajustamento pode ser traumático. Cabe, portanto, analisar a evolução nos últimos anos da parte do balanço de pagamentos que registra as transações financeiras entre residentes e não residentes no Brasil.

A principal marca dessas transações a partir de 2007 foi a forte entrada líquida de investimentos estrangeiros, tanto os investimentos diretos em empresas, como os investimentos em títulos e ações. O fluxo líquido de capital superou em larga medida o déficit das transações correntes, o que também traz dificuldades.

Em situações como essa, a política econômica se vê diante do seguinte dilema: deixar ou não que os efeitos da abundância de dólares se propaguem pela economia, a começar pela valorização do real e seu impacto sobre as exportações e as importações.

A resposta está em larga medida na avaliação que se faz da qualidade do financiamento externo. Em geral, os investimentos diretos são considerados financiamento de boa qualidade, já que ao implicarem envolvimento com o processo produtivo, não são facilmente revertidos, sugerindo compromisso de longo prazo com a economia brasileira. Os investimentos diretos brutos no Brasil (inclusive empréstimos intercompanhias) subiram da média anual de US$ 17,3 bilhões no triênio 2004-2006 para a média anual de US$ 47,7 bilhões no período 2007-2012. O aumento a partir de 2007 se deu em boa hora, pois, como visto, nesse ano, o saldo da conta corrente transitava para o déficit. Desde então, ou os investimentos diretos líquidos superaram o déficit em conta corrente ou financiaram boa parte dele.

Há duas dúvidas a respeito desses investimentos cujas respostas fogem ao escopo deste artigo. A primeira refere-se à continuidade ou não no futuro dos elevados fluxos de recursos dirigidos ao Brasil nos últimos anos, questão que ganha importância com o aumento do déficit nas contas correntes.

A segunda questão está relacionada com o efeito posterior desses investimentos sobre as contas externas do país. Há o efeito positivo decorrente do esperado incremento da produtividade da economia brasileira. Entretanto, há também o efeito sobre as transações correntes, por meio da remessa de lucros para o exterior, à medida que os investimentos entram em operação. Segundo o Bacen, o estoque de investimentos diretos no Brasil chegou a US$ 750,9, em abril de 2013, 366% a mais que o saldo existente no final de 2004. É claro que esse último efeito pode ser compensado pelo incremento na capacidade produtiva de setores exportadores ou que substituam importações. Entretanto, é preciso verificar se os investimentos diretos vêm sendo preponderantemente atraídos para esses setores, dados os incentivos econômicos vigentes nos últimos anos.

Já os investimentos em carteira, que são aplicações em ações e títulos das empresas e do governo, foram também bastante elevados desde 2007, excetuados os meses que se seguiram ao início da crise internacional, em setembro de 2008. A partir de 2011, entretanto, esses investimentos desaceleraram, sem dar mostras de que retornarão ao ritmo anterior. Considerando-se os valores médios anuais em cada período, os investimentos brutos em carteira de estrangeiros no Brasil foram de US$ 3,9 bilhões, US$ 40,3 bilhões e US$ 17,5 bilhões, respectivamente, nos períodos 2004-2006, 2007-2010 e 2011-2012.

Ainda que esses investidores levem em conta as perspectivas de longo prazo da economia receptora, predomina na sua avaliação o retorno esperado dos papéis adquiridos, relativamente ao retorno esperado nos demais países, notadamente nas grandes economias dos Estados Unidos e da União Européia. Os investidores também cotejam o diferencial de retorno com o risco da aplicação no país hospedeiro, especialmente quanto à mudança da taxa de câmbio no horizonte de cálculo, pois ela afeta o retorno em dólar do investimento.

Como os investimentos em carteiras, em geral, podem ser desfeitos com baixos custos, qualquer alteração no retorno esperado ou no risco, tanto no país receptor, como nas localidades alternativas, provoca ajustes rápidos na direção e intensidade dos fluxos de capital. Em situações mais graves, os fluxos líquidos de entrada podem ficar negativos, desequilibrando as contas externas, mesmo com investimentos diretos elevados.

Entre 2007 e 2010, excetuando-se os meses que se seguiram ao início da crise internacional, as condições foram muito atrativas para os investimentos em títulos e ações no Brasil. Em meados de 2007, a taxa de juros nos EUA caiu de forma acentuada, fato que se reproduziu na economia européia no ano seguinte. No Brasil, embora a tendência da taxa de juros tenha sido de queda, o processo se deu com idas e vindas. Houve ainda a melhora na percepção internacional do risco da economia brasileira, culminando na reclassificação do país para grau de investimentos pela agência classificadora de crédito Standard & Poor’s, em abril de 2008, seguidas de outras agências nos meses seguintes.

A reação das autoridades econômicas aos abundantes fluxos de capital foi um meio termo entre deixar o real se valorizar e acumular elevados montantes de reservas internacionais, por meio das intervenções do Bacen no mercado de câmbio, adquirindo o excesso de dólares.

A taxa de câmbio efetiva real calculada com base no IPA-DI valorizou-se entre 2005 a 2011. Ao final de 2004, alcançou o nível anterior às crises de 2001 e 2002, cerca de 90% do valor verificado em junho de 1994. Em meados de 2011, o percentual estava abaixo de 60%. A valorização cambial ajudou a compor o quadro negativo da evolução das exportações e das importações apontado anteriormente. Entretanto, a valorização teria sido ainda maior se as reservas internacionais não tivessem subido acentuadamente de US$ 62,7 bilhões em junho de 2006 para US$ 378,7 bilhões em abril de 2013.

Alguns estudos feitos com base em análises de custo-benefício, usuais na literatura econômica, entendem que tal montante de reservas supera o nível ótimo. Os custos são evidentes, tendo em vista que, no Brasil, a aquisição de reservas é financiada pelo aumento do caro endividamento interno do governo. Esse procedimento não afeta imediatamente a dívida líquida do setor público, mas o faz posteriormente por conta do aumento dos juros líquidos devidos. O custo fiscal no final dependerá da taxa de câmbio com que as reservas internacionais forem vendidas.

Entretanto, o problema não está no acúmulo de reservas em si. Dada a forte entrada de capitais, a opção faz sentido, pois o acúmulo reduz o risco de crises cambiais e, caso elas ocorram, o uso das reservas amortece os efeitos sobre a economia . A crítica que pode ser feita é a incapacidade da política econômica em evitar que o país atraia capitais em excesso. O controle da entrada ajuda, mas apenas acessoriamente, até que medidas mais eficazes surtam efeito.

A partir de 2011, os investimentos em carteira no Brasil desaceleraram, ao contrário dos investimentos diretos, que continuaram vindo ao país em ritmo ainda mais intenso do que o verificado nos anos anteriores. Inicialmente, a desaceleração decorreu de medidas internas então adotadas, mas, posteriormente, ganharam importância a deterioração dos indicadores da economia brasileira e a evolução da economia internacional.

No que tange às medidas internas, não propositalmente dirigidas à redução dos fluxos de capital, o Bacen passou a reduzir a taxa Selic a partir de maio de 2011 até baixá-la ao nível inédito de 7,25% ao ano em setembro de 2012. Outra decisão, aí sim propositalmente dirigida à redução da entrada de recursos, foram os sucessivos aumentos da alíquota de IOF, notadamente ao final de 2010, sobre as aquisições por estrangeiros de papéis privados de renda fixa, aqui ou no exterior. A política já havia sido utilizada entre março e setembro de 2008, mas foi abandonada com o início da crise internacional.

Resultado da desaceleração da entrada de capitais, e da já apontada elevação do déficit nas transações correntes, a tendência de valorização da taxa de câmbio foi revertida a partir do segundo semestre de 2011. Daí em diante, a taxa de câmbio chegou a patamares de desvalorização que não alcançava desde meados de 2009, período em que os efeitos da crise internacional ainda estavam bem presentes. É claro que a nova situação elevou as incertezas acerca do retorno esperado em dólar da aplicação estrangeira no país, criando desestímulo extra aos investimentos em carteira.

Em anos anteriores, com a abundância de capital, a desvalorização cambial só seria possível a custa de forte intervenção do Bacen no mercado de câmbio, tendo como resultado colateral o aumento ainda maior do saldo das reservas internacionais. Entretanto, desde meados de 2011, mesmo com a desvalorização cambial, as reservas deixaram de crescer no ritmo dos anos anteriores. Na verdade, após os US$ 353,4 bilhões alcançados em agosto de 2011, as reservas se mantiveram relativamente estáveis, a exceção dos meses de março e abril de 2012. Entre abril de 2013 e o mesmo mês de 2012, as reservas subiram apenas 1,2%.

O risco para o país agora é a possível transição de uma situação de abundância de capital que inclusive trouxe problemas para a gestão da política econômica, para outra de escassez, algo ainda mais problemático, levando-se em conta o já apontado desempenho recente das transações correntes do país.

A existência de reservas externas de quase US$ 380 bilhões representa um seguro importante, conforme já apontado. Já os investimentos diretos no Brasil têm se mantido em patamares elevados. Há ainda dois instrumentos que podem ser usados para atrair o investimento estrangeiro em carteira: a redução da alíquota de IOF aplicada sobre eles e a elevação da taxa Selic, que já voltou a subir em abril de 2013 por conta da inflação, estando agora em 8% ao ano.

Em que pese esses fatores, em alguns cenários possíveis para a economia internacional esses instrumentos podem ser insuficientes. Além da já citada desaceleração da economia chinesa com seus impactos sobre as exportações brasileiras, uma possibilidade cada vez mais concreta é a da reversão da política monetária americana fortemente expansionista iniciada em 2007, caso a recuperação da economia se consolide e a taxa de desemprego baixe para padrões mais aceitáveis.

Uma eventual elevação da taxa de juros oficial nos EUA atrairá pelo menos parte do capital que emigrou nos últimos anos em busca de melhor rentabilidade. Na verdade, as taxas de juros dos títulos do governo americano já vêm aumentando, diante da expectativa de alguma inflexão importante na política do banco central dos EUA. Ao final de maio e início de junho de 2013, quando esse artigo estava sendo concluído, o preço do dólar em relação a diversas moedas subiu fortemente. O real foi uma das moedas mais afetadas. Como resposta, o governo brasileiro reduziu a zero a alíquota do IOF sobre investimentos estrangeiros em papéis de renda fixa no Brasil. Vale lembrar que tal medida já havia sido adotada nos meses que se seguiram ao início da crise internacional, em setembro de 2008, período de severa escassez de capitais externos. O Bacen também passou a intervir mais no mercado de câmbio para conter a desvalorização cambial. As medidas foram em parte neutralizadas pelo anúncio da Standard & Poor’s de que a perspectiva da nota do Brasil é de baixa.

Tais riscos ao equilíbrio das contas externas do país não estão devidamente considerados nos usuais indicadores de endividamento externo divulgados pelo Bacen. Mais reveladoras são as informações sobre a posição internacional de investimentos do país, também divulgadas pela Autarquia.

Ao final de abril de 2013, os estrangeiros tinham aplicado no Brasil US$ 172,4 bilhões em títulos de renda fixa e US$ 235,9 bilhões em ações, enquanto os empréstimos externos estavam em US$ 197,7 bilhões. Apenas a soma dos dois primeiros valores já resulta em valor superior ao saldo das reservas no mesmo mês. Há que se considerar ainda a possibilidade de que os próprios residentes remetam capital ao exterior. Trata-se de algo esperado quando os estrangeiros estão retirando capital do país, já que o raciocínio econômico de ambos os grupos de investidores é essencialmente o mesmo.

Dito tudo isso, cabe sintetizar uma resposta para a pergunta feita no título deste artigo. De fato, em geral, os números do balanço de pagamentos estão piorando e a questão do equilíbrio das contas externas retorna ao centro das atenções nos noticiários e debates econômicos. Entretanto, ainda não se pode dizer que o país caminha inequivocamente para uma crise cambial. Há alguns sinais contraditórios. O déficit em conta corrente está subindo, mas, como proporção do PIB, ainda não está fora de controle. As entradas líquidas dos investimentos em carteira estão caindo, mas os investimentos diretos permanecem elevados. É muito difícil prever as trajetórias desses três agregados, pois, como expressões das relações econômicas entre residentes e não residentes, dependem simultaneamente da evolução da economia interna e internacional. O pior cenário para o Brasil, caso o déficit em conta corrente se situe acima de 3% do PIB, é a desaceleração do investimento direto estrangeiro no país conjugada à concretização de cenários externos desfavoráveis, notadamente no que tange à China (desaceleração econômica) e aos EUA (aumento de taxa de juros).

__________________

1Todos os dados utilizados neste artigo foram retirados da página eletrônica da Autarquia, mais exatamente das séries temporais e tabelas especiais relativas ao setor externo (https://www3.bcb.gov.br/sgspub/localizarseries/localizarSeries.do?method=prepararTelaLocalizarSeries)

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Quanto custa ao Brasil manter um elevado nível de reservas internacionais? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=418&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quanto-custa-ao-brasil-manter-um-elevado-nivel-de-reservas-internacionais https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=418#comments Mon, 04 Apr 2011 16:51:38 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=418 O governo brasileiro dispõe atualmente de aproximadamente US$ 300 bilhões de dólares registrados como reservas internacionais no balanço do Banco Central. O acúmulo desse valor se deu pelos sucessivos superávits no comércio internacional (exportações em valores maiores que as importações) e pela entrada de investimentos externos no país.

Quando os dólares entram no país em função das exportações, eles são da propriedade das firmas exportadoras. Quando entram por investimentos em ações, por exemplo, eles pertencem a quem vendeu as ações a investidores internacionais. Quando entram por investimentos em títulos bancários, pertencem aos bancos que venderam tais títulos. Como, então, esses dólares vão parar nas mãos do governo, mais especificamente do Banco Central?

Vão para o Banco Central porque ele compra tais dólares das mãos de seus detentores privados. Em um primeiro momento, essa compra significaria o Banco Central recolher dólares no mercado, e entregar reais. Mas isso implicaria aumentar substancialmente o volume de reais em circulação na economia. Para que esse imenso volume de compras não gere efeitos inflacionários, o próprio Banco Central utiliza títulos de sua carteira para fazer o que se chama tecnicamente de “esterilizar” os efeitos dessa compra de divisas externas. Em resumo, troca títulos por dinheiro. Para levantar os reais necessários à compra dos dólares, o governo aumenta a sua dívida dentro do país.

Se o governo tivesse superávit nas suas contas fiscais (receitas maiores que os gastos públicos) ele até poderia usar esse dinheiro poupado para comprar as reservas. Mas como o governo brasileiro é deficitário, a única forma de comprar dólares é expandindo o seu endividamento.

O governo tem diferentes motivos para acumular reservas em moeda estrangeira. O principal é garantir uma espécie de seguro contra crises internacionais. Quando uma crise interrompe o fluxo de empréstimos em dólares no mercado internacional, os países que não têm uma reserva dessa moeda não podem fazer importações (no caso do Brasil, por exemplo, ninguém aceitaria pagamentos em Reais, pois esta não é uma moeda de circulação internacional). Nos anos 80 e 90 do século passado, por exemplo, por diversas vezes o Brasil viu-se sem dólares e precisou pedir auxílio ao FMI e adotar medidas para lidar com o problema. Tais medidas são sempre custosas: elevação das taxas de juros internas (para atrair investidores internacionais), redução do ritmo de crescimento da economia (para reduzir a demanda por importações e gerar excedentes não consumidos no país a serem exportados), ajuste das contas públicas (para reduzir a necessidade de financiamento externo à dívida do governo).

A importância de dispor de grandes reservas internacionais pode ser vista no impacto da crise de 2009 sobre a economia brasileira. Tendo em vista que não sofremos escassez de dólares, devido ao alto volume de reservas, não foi necessário elevar os juros. Foi possível, inclusive, reduzi-los, para estimular a atividade econômica. A abundância de recursos externos também permitiu ampliar o déficit público, como forma adicional de alavancar a atividade econômica. A própria dívida pública caiu como proporção do PIB, devido à combinação de dois fatores: i) o País, àquela altura, já tinha se tornado um credor líquido em dólares; ii) houve desvalorização do real em relação ao dólar, o que significa que as reservas disponíveis, depositadas em dólares, passaram a valer mais quando avaliadas em reais. Como o valor das reservas (um ativo público) aumentou em reais (mesmo mantendo-se constante em dólares) e é deduzido da dívida pública bruta para se apurar a dívida pública líquida, o resultado final foi uma queda da dívida líquida[1].

Há, portanto, o benefício de não ter sido necessário gastar recursos públicos pagando-se juros mais altos, além do benefício de não ter havido uma redução drástica da atividade econômica (com perda de empregos e renda). Como não houve um choque de juros sobre a dívida pública, o prêmio de risco pago pelas empresas brasileiras que tomam empréstimo no exterior também não cresceu.

Não obstante esses benefícios, é preciso ficar claro que há um custo em se manter elevadas (e crescentes) reservas internacionais no Banco Central.

Deve existir, assim, um ponto em que os custos de carregamento das reservas passem a superar seus benefícios e que determinaria o volume ótimo de reservas. Saber com exatidão os custos das reservas, portanto, é crucial para que o País possa avaliar os custos e benefícios envolvidos na acumulação de reservas. São duas as fontes de custos:

(a) a diferença entre os juros que o governo paga sobre os recursos que tomou emprestados para comprar as reservas (juros sobre a dívida interna) e os juros que rendem as reservas internacionais;

(b) quando o real se valoriza em relação ao dólar, isso significa que as reservas em dólares passaram a valer menos reais, representando uma perda para o Banco Central e para o governo.

Não há estatísticas oficiais regularmente publicadas que apresentem o custo de manutenção das reservas. Aparecem na imprensa, esporadicamente, valores estimados pelo governo e pelas entidades de mercado, que nem sempre têm coincidido.

Em março de 2011 os dirigentes do Banco Central afirmaram[2] que o custo fiscal das reservas internacionais no ano de 2010 teria sido de R$ 26 bilhões.

Tal valor diverge daquele calculado pelo Departamento Econômico do Bradesco, por exemplo, que avaliou esse custo em aproximadamente R$ 46 bilhões[3].

A diferença poderia decorrer do fato de o Banco Central ter estimado apenas os custos descritos no item (a) acima (diferença de juros), não considerando os do item (b) (variações na cotação do real frente ao dólar).  Pode-se justificar esse método de cálculo argumentando que a perda decorrente de valorização do real só seria efetiva se o Banco Central vendesse os dólares. Já que o BC não vendeu dólares no período,  ele não teria realizado o “prejuízo”. No futuro, na ocorrência de apreciação do dólar, essa perda seria revertida.

Mas a diferença de estimativas não decorre desse tipo de procedimento, até porque a citada estimativa do Banco Bradesco também não computa a depreciação do dólar.

A origem da discrepância parece estar no fato de o Banco Central ter utilizado em seu cálculo um custo de financiamento da dívida interna muito baixo, de 7,8% ao ano.

No ano de 2010, a taxa Selic média, segundo dados do próprio Banco Central, foi de 9,8%, o que, por si só, levaria a uma diferença no custo de 2 pontos percentuais ao ano em relação aos 7,8% utilizados no cálculo do custo da reserva.

A posição do BC sobre o custo das reservas foi exposta em matéria da repórter Martha Beck, de O Globo, em 24 de fevereiro:

Segundo o diretor de administração do BC, Anthero Meirelles, o custo de captação de recursos no ano passado foi de 7,76%, enquanto a rentabilidade das reservas ficou em 1,88%. Isso resultou numa diferença de 5,86% que quando aplicada sobre o saldo médio das reservas – de R$ 455 bilhões – resulta num gasto de R$ 26,6 bilhões[4].

Tomando como referência a própria base de cálculo do Banco Central, de R$ 455 bilhões, o custo fiscal adicional decorrente da diferença de 2 pontos percentuais na taxa incidente sobre a dívida interna seria de R$ 9,1 bilhões, o que elevaria o custo total dos R$ 26,6 bilhões para R$ 35,7 bilhões.

Ocorre, entretanto, que esse cálculo pode ainda ser considerado subestimado. O custo da dívida para o Tesouro foi superior à taxa Selic, como demonstra o Anexo 4.2. do Relatório Mensal da Dívida Pública Federal divulgado pela Secretaria do Tesouro Nacional. Para o mês de dezembro de 2010, o custo da Dívida Pública Mobiliária Federal Interna (DPFMi) acumulado nos últimos doze meses foi de 11,83%.

Tabela 1. Custo da DPMFi em 2010

Fonte: STN

Com base nesse custo efetivo de captação do Tesouro Nacional, de 11,83%, tomando-se os valores diários das reservas internacionais, e, ainda, considerando-se a rentabilidade das reservas assumida pelo Bacen – 1,9% ao ano – a estimativa de custo fiscal do carregamento das reservas foi de R$ 42,5 bilhões. Muito próximo, portanto, dos R$ 46 bilhões estimados pelo Banco Bradesco.

Assim, o custo fiscal das reservas, sem computar o impacto da desvalorização do dólar ao longo de 2010, ficou no intervalo entre R$ 35,7 bilhões e R$ 42,5 bilhões. No primeiro caso, o custo de captação equivale à taxa Selic; no segundo caso, equivale à taxa média apontada pelo Tesouro Nacional para a DPMFi.

O custo relativo à desvalorização do dólar também pode ser calculado aproximadamente como o somatório das perdas ou ganhos diários decorrentes da desvalorização/valorização do dólar em relação ao saldo de reservas da véspera[5]. Usando essa metodologia, o custo da desvalorização das reservas em 2010 pode ser calculado em R$ 16,9 bilhões.

Desse modo, o custo total – o de diferença de taxas de juros  e o relativo à depreciação do dólar – pode ser estimado entre R$ 52,8 bilhões e R$ 59,4 bilhões.

Seria importante que o Banco Central estabelecesse com clareza a sua metodologia de cálculo do custo fiscal das reservas internacionais e, especialmente, justificasse o uso da taxa de dívida interna utilizada. A publicação regular desses valores, acompanhada da respectiva metodologia de cálculo, seria importante medida de transparência das contas públicas. Todos reconhecem os benefícios das reservas internacionais detidas pelo País. Não faz sentido que haja dúvidas quanto aos seus custos.

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Para ler mais sobre o tema:

Saraiva, B. e Canuto, O. (2009) Vulnerability, exchange rate and international reserves: whither Brazil? Disponível em http://www.roubini.com/latam-monitor/257719/vulnerability_exchange_rate_and_international_reserves_whither_brazil.


[1] A rigor, a queda na taxa internacional de juros que se seguiu à crise fez com que os títulos internacionais aumentaram seu valor, em dólar, o que também contribuiu para o aumento de nossas reservas. Mas esse fator teve impacto secundário na melhora da relação dívida líquida/PIB comparativamente à desvalorização do real.

[2] Declarações prestadas em audiência na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado  no dia 22 de março de 2011.

[3] http://oglobo.globo.com/economia/mat/2011/02/24/custo-de-carregamento-das-reservas-internacionais-foi-de-26-6-bi-em-2010-923874889.asp.

[4] Ver fls. 43 e 44 do Balanço do Bacen  em:

http://www.bcb.gov.br/htms/inffina/be201012/Demonstra%E7%F5es%20Financeiras%20Bacen%2031.12.2010.pdf

[5] As reservas não estão totalmente aplicadas em dólar norte-americano, apesar de contabilizadas, na posição diária, nessa moeda. Assim, o estoque considerado para fazer o cálculo da valorização/desvalorização tem uma pequena margem de erro. Como a desvalorização do dólar foi maior do que as demais moedas, a estimativa do custo derivado da desvalorização das reservas – que não é objeto principal de discussão nesse texto – pode estar ligeiramente superestimada.

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https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=418 24
Por que o Brasil não utiliza as reservas internacionais para financiar investimentos públicos em infraestrutura? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=43&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-o-brasil-nao-utiliza-as-reservas-internacionais-para-financiar-investimentos-publicos-em-infraestrutura-2 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=43#comments Sat, 19 Feb 2011 00:25:53 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=43 Um gargalo importante para o crescimento da economia brasileira é o baixo nível de investimento em infraestrutura. Segundo Cláudio Frischtak[1] o Brasil precisa investir em infraestrutura entre 5% e 7% do PIB, ao longo de 20 anos, para atingir o padrão de crescimento da Coréia do Sul. Mas o País tem investido pouco mais de 2% do PIB. Por isso, é preciso encontrar um meio de impulsionar tais investimentos.

Porém, usar as reservas internacionais para financiar esses investimentos não é uma boa opção. Isso equivaleria, em última instância, a financiar os gastos por meio de endividamento público. Financiar investimentos com endividamento não é, a princípio, uma opção ruim. Mas fazê-lo por meio do uso das reservas internacionais geraria efeitos colaterais indesejáveis: no curto prazo, haveria valorização da moeda nacional em relação ao dólar. Isso geraria impacto negativo sobre as exportações e sobre a competitividade das indústrias nacionais em relação a produtos importados. Em ambos os casos haveria perda de empregos no país. No médio prazo haveria mais inflação.

Pode-se fazer investimento público via endividamento do Tesouro sem necessidade de se mexer nas reservas internacionais e sem provocar esses efeitos colaterais indesejados.

Para entender essa questão, vamos partir de uma constatação básica: o setor público brasileiro tem déficit nas suas contas. Ou seja, gasta mais do que arrecada. Um indivíduo que, todo mês, gaste mais do que recebe em salários não pode acumular poupança na sua conta bancária. Da mesma forma, o governo não pode acumular mais de R$ 200 bilhões em poupança se não arrecada o suficiente para pagar as contas do mês.

De onde, então, vem o dinheiro para comprar as reservas internacionais? Vem de endividamento público. O setor público brasileiro toma dinheiro emprestado no mercado financeiro nacional para comprar as reservas internacionais. Logo, essas reservas não constituem uma “riqueza legítima” acumulada pelo governo. Elas são, simplesmente, a contrapartida de uma dívida. Se o governo gastar o dinheiro das reservas para fazer investimentos, restará uma dívida a ser paga. Portanto, em última instância, os investimentos públicos em infraestrutura terão sido financiados por endividamento público.

Fica, então, outra dúvida: se o governo não consegue poupar (gastando mais do que arrecada), por que ele pega dinheiro emprestado para comprar reservas internacionais? Não é racional, para uma família que tem um buraco mensal em seu orçamento, pegar dinheiro emprestado e colocá-lo na poupança. Logo, não parece ser racional que o governo aja dessa forma.

Ocorre que o governo compra reservas internacionais com dois outros objetivos: evitar que o real se valorize excessivamente em relação ao dólar (e demais moedas internacionais) e garantir que o Brasil tenha uma reserva de dólares para fazer suas compras no exterior.

Basicamente, se o real se valorizar demais os produtos brasileiros ficarão caros no exterior, o que prejudica nossas exportações. Se os exportadores perdem mercado, haverá redução na oferta de emprego nas empresas brasileiras dedicadas à exportação. Por outro lado, os produtos importados ficam baratos em relação àqueles produzidos no Brasil. As empresas que produzem no Brasil passam a gerar menos empregos.

Um outro motivo para se acumular reservas em dólares é que se faltarem dólares disponíveis no Brasil, os brasileiros não terão acesso ao meio de pagamento normalmente utilizado para fazer compras no exterior. Mesmo que os brasileiros tenham reais em mãos para fazer compras, eles não poderão adquirir mercadorias importadas, pois os reais não são aceitos como meio de pagamento na economia internacional. Logo, o acúmulo de reservas internacionais também funciona como um “seguro”, pois representa uma reserva de dólares para o caso de alguma crise econômica interromper o fluxo normal de dólares para o país.

Vejamos, agora, o que aconteceria se o governo resolvesse usar o dinheiro das reservas internacionais para financiar investimentos em infraestrutura no País. Para isso, ele teria que trazer os dólares que estão aplicados no exterior, convertendo-os em reais, para poder comprar cimento, ferro, asfalto, máquinas e pagar salários dos operários e engenheiros que farão as obras de infraestrutura. Logo, haveria forte entrada de dólares no País, fazendo com que o real se valorizasse.

Ora, se o governo acumula reservas justamente para evitar a valorização da moeda doméstica, trazer esses dólares para financiar investimentos no País significaria desistir da política de evitar tal valorização; com as consequências negativas sobre a oferta de emprego no país, como já descrito acima.

Um segundo efeito colateral seria o aumento do endividamento público líquido e, provavelmente, da inflação.

Quando o governo se endivida para comprar dólares ele ao mesmo tempo aumenta o seu passivo (pelo aumento da dívida interna) e o seu ativo (pela compra de dólares). Isso significa que a dívida líquida (passivo menos ativo) não se altera.

Se o governo decidir vender as reservas (um ativo) para financiar uma despesa (o investimento em infraestrutura) a dívida líquida vai aumentar, pois o governo terá se desfeito de um ativo (as reservas)  e o seu passivo (a dívida pública) terá ficado do mesmo tamanho.

Mas se os investimentos em infraestrutura representam, de fato, um ativo do Tesouro, porque eles não são deduzidos para fins de cálculo da dívida líquida? Se isso fosse feito, não haveria aumento na dívida. Ocorre que os investimentos em infraestrutura não têm a mesma liquidez que títulos do Tesouro ou dinheiro. Da mesma forma que se diz que um indivíduo se endividou para comprar um carro, diz-se que o governo se endividou para fazer obras. O indivíduo até pode argumentar que a sua situação patrimonial não mudou, pois o valor do carro compensa o valor da dívida. Mas sabe-se que o carro se deprecia ao longo do tempo (assim como os investimentos do governo) e que não tem liquidez imediata (se o indivíduo precisar vender o carro para pagar a dívida, terá dificuldade ou precisará aceitar um desconto no preço).

Aumentar a dívida para fazer investimentos não é necessariamente ruim. É um recurso legítimo. Assim como o carro presta um serviço ao indivíduo, o investimento em infraestrutura presta um serviço ao País (facilitando o crescimento econômico e gerando mais renda). Por isso, se o valor da nova renda que o investimento em infraestrutura trouxer para o País for maior do que os juros a serem pagos sobre a dívida, vale a pena fazer o investimento.

Mas o fato concreto que importa ressaltar é que o uso das reservas internacionais não é uma solução mágica para expandir os investimentos em infraestrutura. Em última instância, estará havendo um aumento do endividamento público para fazer tais investimentos. Logo, seria mais fácil financiar os investimentos diretamente via emissão de títulos, sem a complicação de se mexer com as reservas.

Se não traz nenhuma vantagem, esse procedimento pode trazer muitas desvantagens. A primeira delas, a valorização do real, já foi analisada acima. A segunda possível desvantagem é o aumento da inflação.

A conversão das reservas internacionais em reais e o uso desses reais para a compra de cimento, mão-de-obra, ferro e demais insumos necessários aos investimentos em infraestrutura significará um aumento da quantidade de dinheiro nas mãos dos indivíduos que venderem esses insumos ao governo. Os indivíduos que obtiveram emprego ou aumento de salário devido à maior demanda do governo por engenheiros e trabalhadores vão consumir mais; as empresas que executaram contratos de construção vão aplicar seus lucros em novos investimentos. E esse estímulo ao consumo tende a  ressionar os preços, elevando a inflação.

Se, em vez de financiar os investimentos públicos repassando reservas internacionais ao setor privado, o governo tivesse reduzido os seus gastos correntes e formado uma poupança, os efeitos expansionistas acima descritos (aumento de consumo pelas empresas e famílias) seriam compensados pela redução do consumo do governo. E os preços não aumentariam, pois o que o setor privado consumisse a mais seria compensado por um consumo menor do governo.

Em resumo, usar reservas internacionais para financiar investimentos públicos em infraestrutura não é um passe de mágica. Tal operação significa que, no caso brasileiro, cujo orçamento já é deficitário, esses investimentos serão financiados por aumento da dívida líquida do setor público.

Como desvantagem adicional, aumenta a vulnerabilidade do País a uma eventual crise de escassez de divisas internacionais: a venda das reservas significa abrir mão de um seguro em termos de liquidez internacional.

Pode-se até argumentar que as reservas internacionais passaram do montante necessário para garantir o acesso dos brasileiros a moedas de curso internacional e que custa caro manter as reservas (pois a sua remuneração, ao se aplicar os dólares no mercado financeiro internacional, é mais baixa do que os juros que o governo paga ao tomar empréstimos no País). Mas essa é uma outra discussão, que se refere ao que fazer na gestão dos dólares que entram no País. E que nada tem a ver com o outro problema, que é o de como financiar os investimentos em infraestrutura.

Para solucionar o problema da falta de investimentos em infraestrutura é preciso, em primeiro lugar, reduzir os gastos correntes do governo, para sobrarem mais recursos a serem investidos. Em segundo lugar, é preciso criar condições legais favoráveis ao investimento privado em infraestrutura, mediante privatizações e concessões de serviços públicos (aeroportos, estradas, ferrovias, portos, etc.). Isso abre uma ampla agenda: fortalecimento das agências reguladoras, superação do preconceito contra privatizações, ampliação das garantias contratuais dos investidores privados (para que o governo não confisque seus investimentos), melhoria da capacidade do governo para planejar investimentos, etc.

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[1] Frischtak, C. O investimento em infraestrutura no Brasil: histórico recente e perspectivas. Pesquisa e Planejamento Econômico, 38(2):307-48, ago. 2008.

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