Outros – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Fri, 09 Sep 2022 15:04:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Renovando o Meio Ambiente e a Segurança nas Rodovias: O Programa Renovar https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3676&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=renovando-o-meio-ambiente-e-a-seguranca-nas-rodovias-o-programa-renovar Fri, 09 Sep 2022 15:04:11 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3676    Da Vitória Qualificação [1]

A Medida Provisória (MPV) nº 1.112/22 instituiu o Programa de Aumento da Produtividade da Frota Rodoviária no País, o Renovar. O Programa funcionará como agregador de iniciativas e ações voltadas à retirada de circulação, de forma progressiva, dos veículos em fim de vida útil, à renovação de frota e à economia circular no sistema de mobilidade e logística do País. Tive a grande honra de ser relator desta MPV na Câmara dos Deputados, onde pude discuti-lo com os Ministérios da Economia, Infraestrutura, Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e representantes do setor privado, especialmente da indústria automotiva. A MPV 1.112/22 foi aprovada em 02 de agosto de 2022 no plenário da Câmara dos Deputados como Projeto de Lei de Conversão (quando há mudanças na MPV) e no dia seguinte no plenário do Senado sem alterações de mérito, e aguarda sanção presidencial.

O mérito da proposta me convenceu principalmente por causa dos seus dois principais objetivos: contribuir para a urgente melhoria do meio ambiente e para o incremento da segurança nas estradas brasileiras. O Renovar ataca estes dois problemas que, infelizmente, não se resolvem espontaneamente sem uma intervenção inteligente do Estado.

O Renovar incentiva o desmonte ou destruição, como sucata, de caminhões, ônibus, vans e implementos rodoviários antigos, baseados em tecnologia bem mais poluidora, trocando-os por novos. De fato, o material particulado emitido por caminhões que atendem à atual fase do Programa de Controle de Emissões Veiculares – Proconve P-7- chega a ser 96% menor do que em caminhões que atendem aos requisitos da fase P-3, do início dos anos 2000. Essa menor emissão de partículas no ar pelos veículos automotores pode reduzir problemas de saúde que custaram ao Sistema único de Saúde – SUS –, em 2018, mais de R$ 1,3 bilhão, em função de internações devido a problemas respiratórios. E ainda há um dado muito preocupante: caminhões e ônibus respondem por 47% da poluição do ar por carbono negro na cidade de São Paulo, mesmo sendo apenas 5% da frota veicular. Estes valores tendem a ser ainda maiores se considerarmos também as vans e furgões, que fiz questão de acrescentar aos bens elegíveis da proposta, o que amplia bastante o seu alcance social.

Vale ressaltar que nossa matriz logística se concentra em mais de 60% no modal rodoviário, o que torna esse modo de transporte vital para a distribuição de produtos e serviços e, consequentemente, para o bom funcionamento de nossa economia. Tendo em vista que quase um quarto dos nossos caminhões têm mais de trinta anos de fabricação, e, portanto, consomem mais óleo diesel e têm manutenção mais custosa, sua substituição por veículos mais modernos tem o potencial de impactar substancialmente os custos de frete, que por sua vez têm influência direta nos índices de inflação.

Além disso, equipamentos muito antigos tendem a oferecer mais riscos de ocorrência de falhas mecânicas, o que pode causar acidentes. No caso de veículos pesados, sabemos que acidentes podem ter consequências particularmente desastrosas. De fato, a falha mecânica é apontada como causa de 3% a 5% dos acidentes de trânsito no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde. A ocorrência de acidentes com caminhões, bem como o dano ao ocupante, aumenta conforme avança a idade dos veículos, uma vez que caminhões mais novos trazem consigo novos itens e requisitos de segurança. De fato, os veículos novos, além de livres do desgaste ao qual os antigos foram submetidos, contam com tecnologia mais avançada e itens de segurança adicionais (não obrigatórios anos atrás) que nos fazem crer que a renovação da frota evitará acidentes e salvará vidas.

O Renovar constitui mecanismo baseado em parcerias negociais ou operacionais entre a instituição coordenadora das iniciativas e as instituições financiadoras ou parceiras públicas ou privadas. Por meio da Plataforma Renovar, operada pela ABDI, a qual coordenará a iniciativa de âmbito nacional, os proprietários de caminhões, ônibus, vans e implementos rodoviários antigos poderão vendê-los e adquirir novos veículos com os recursos recebidos dos financiadores, além de benefícios e condições especiais oferecidas pelos parceiros.

O mecanismo de financiamento que deverá ser mais utilizado no Programa se dará por meio das contratadas para exploração e produção de petróleo e gás natural. O incentivo será dado pelo fato de o projeto permitir que os recursos aplicados nas iniciativas sejam considerados no cálculo de adimplemento de obrigações contratuais de pesquisa, desenvolvimento e de inovação (PD&I) naquele setor.

Este foi um ponto que recebeu algumas críticas de que se estaria retirando recursos de investimento em PD&I para o Programa. Segundo o Ministério da Economia, no entanto, frequentemente este valor não é cumprido, ensejando multas às empresas. O investimento no Renovar seria uma forma de evitar este tipo de penalidade quando não houver demanda suficiente para aquela finalidade.

De qualquer forma, me sensibilizei pelo argumento que não é desejável reduzir o montante gastos nestes programas de ciência e tecnologia em um país tão carente deste tipo de atividade. Afinal, são estes dispêndios que sustentam o incremento da produtividade da atividade econômica do País que é o que permite incrementos sustentados na renda dos brasileiros.

Entendemos que a distribuição ideal de recursos ano a ano, no entanto, está longe de ser estática e, portanto, não faz sentido cravar um percentual pela via legislativa. Dessa forma, propus regra na qual o Poder Executivo deverá regulamentar a proporção entre recursos destinados a PD&I e ao Renovar. Quando houver interesse da empresa em financiar o Programa, o montante correspondente deverá ser limitado ao teto estabelecido. O Poder Executivo é o agente com melhores condições de definir ano a ano, de acordo com os avanços da PD&I e das necessidades de renovação da frota, qual montante de recursos adequado a cada iniciativa.

As empresas de desmontagem participantes do Renovar poderão comercializar os materiais decorrentes da desmontagem ou destruição como sucata. Tais empresas destinarão à iniciativa nacional ou às outras iniciativas credenciadas o montante correspondente ao valor, por elas definido no ato de adesão.

Espera-se, com isso, o fortalecimento do mercado de reciclagem de veículos, o que por si só contribuirá para a preservação ambiental, uma vez que promove destinação das peças de forma mais sustentável e adequada.

Com relação às recicladoras, observamos que o texto original da Medida Provisória não esclarece os critérios para a escolha de empresas para atuação no Renovar. A ABDI, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas, desenvolveu estudo cujas conclusões apontam para o fato de que, no mundo[2] em geral, e também no Brasil, a atividade de reciclagem veicular é, via de regra, deficitária. Ou seja, a receita auferida com a venda de peças e do aço frutos da desmontagem não seria suficiente sequer para cobrir os custos dessa atividade. A Medida Provisória previa apenas pagamento, por parte das recicladoras, pelo veículo a ser reciclado. Assim, entendemos ser necessário propor texto que permita a remuneração da recicladora, no sentido de tornar o arranjo do programa viável no caso concreto.

Por se tratar de atividade remunerada, e também por envolver direito à incorporação dos valores obtidos com a venda das partes recicladas, entendemos que essa escolha deve se basear em elementos de direito público, especificamente nos princípios da impessoalidade e da economicidade. Assim, propomos diretrizes para a escolha das empresas parceiras a ser feita pelo Poder Executivo.

No sentido de reforçar os mecanismos em favor dos impactos positivos para o meio ambiente, e fazer com que esta certificação tenha consequências concretas em favor desses objetivos, propomos que, por meio da certificação, os benefícios para a aquisição de novos veículos no âmbito do Renovar sejam crescentes com os resultados alcançados. Essa seria típica regulação de incentivo que, a depender de como for concretizada, pode representar estímulo a veículos sempre mais seguros e ambientalmente adequados. Aqui a velha regulação por “comando e controle” perde espaço para uma abordagem mais moderna em que se conta com os incentivos aos esforços e ao uso da melhor informação pelos agentes privados para atingir os objetivos do regulador.

Cabe destacar aperfeiçoamentos adicionais da Medida Provisória, sugeridas por meio de emendas parlamentares e pelo diálogo com o setor produtivo.

O Deputado Jerônimo Goergen propôs a remissão de débitos não tributários dos veículos no Renovar e a criação de linha de crédito no BNDES para aquisição de novos veículos, proposta também pelo Senador Mecias de Jesus. Ambas medidas incrementam a atratividade do Renovar e podem ser determinantes para o sucesso da iniciativa.

O Deputado Hugo Leal sugeriu regras aperfeiçoando procedimentos relativos aos veículos em fim de vida útil ou transferidos por leilão, confisco, apreensão ou doação à Administração, permitindo a baixa do veículo independentemente da existência de débitos fiscais ou multas. Permitem, ainda, a remoção de veículo abandonado, deteriorado ou acidentado sem responsável no local do acidente, medida sugerida também pela Deputada Christiane Yared. Essas medidas conferem maior fluidez ao processo nos departamentos estaduais de trânsito.

Em parceria com o Ministério da Infraestrutura, por meio da Secretaria nacional de Trânsito, oferecemos diversas alterações no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) que, em seu conjunto, contribuirão para o aumento da segurança e da fluidez do trânsito além de aumentar a eficiência dos processos relacionados à sua gestão. Profundamente discutidas com membros de câmaras temáticas do Conselho Nacional de Trânsito (Contran)[3] e com entidades representantes de transportadores, essas sugestões foram construídas visando a corrigir falhas conhecidas do CTB.

Dentre elas, destaco, por exemplo, alteração proposta ao art. 67-C. Esse dispositivo obriga os motoristas profissionais a observar descansos regulares durante o exercício de sua atividade, sob pena de multa no caso de inobservância desses intervalos. Em que pese a boa intenção do comando e a reconhecida importância do descanso para a preservação da atenção e reflexos do motorista, é atributo desejável do legislador que observe a realidade fática do País e a considere ao propor normas de tamanho impacto. Nosso País não oferece infraestrutura suficiente para que os intervalos impostos sejam cumpridos em todas as rotas possíveis. A despeito dos ditames da Lei do caminhoneiro[4], que incentiva a criação dos pontos de parada e descanso, são frequentes as rotas nas quais o motorista simplesmente não consegue cumprir a regra do descanso pela total ausência de local seguro e adequado para estacionar o veículo. Nossa decisão, revestida de bom senso e amparada pelas discussões desenvolvidas, foi no sentido de suspender a aplicação de multa nesses casos. Naturalmente, onde houver pontos de parada e for possível cumprir a norma, ela continuará sendo aplicada. Entendo que o Estado não pode impor ao cidadão obrigação sem, por outro lado, oferecer meios para que ela seja cumprida e, como se não bastasse, aplicar multas por seu não cumprimento. Nosso texto corrige essa insensata realidade hoje em vigor.

Em favor do transporte de cargas e do transportador autônomo (TAC), ajustei a Lei nº 10.833, de 2003, para promovera isonomia tributária entre o TAC e as empresas de transporte. Atualmente, a norma define que poderá haver crédito presumido de 75% sobre o percentual de PIS/Cofins de 9,25% apenas quando uma empresa de serviços de transporte rodoviário de carga subcontratar um transportador autônomo ou transportadora optante pelo Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte – SIMPLES.

No entanto, se o usuário final do serviço contratar diretamente um transportador autônomo ou transportadora optante pelo SIMPLES, este crédito presumido não pode ocorrer. Ou seja, esse dispositivo, apesar de permitir que o crédito do PIS/Cofins seja efetivado com a operação de transporte realizada pelo autônomo, obriga a que haja a intermediação da empresa de serviços de transporte rodoviários. Nossa proposta promove isonomia fiscal e concorrencial entre as empresas e os caminhoneiros autônomos, oferecendo maior neutralidade ao sistema: o usuário escolherá diretamente um autônomo ou uma empresa conforme preços e confiabilidade/qualidade do transporte sejam mais vantajosos para si. A forma de incidência dos tributos deixa de afetar as decisões dos usuários, afastando os artificialismos competitivos.

Ainda sobre a tributação incidente na atividade de transporte rodoviário de cargas, objeto principal desta Medida Provisória, apresentamos dois ajustes adicionais à legislação do Pis/Pasep e Cofins. Na Lei nº 10.865/2004, propomos ajuste para permitir a restituição, ressarcimento ou compensação do estoque de créditos não consumido regularmente na sistemática da não-cumulatividade, nos casos de operações de importação e revenda de bens, não abarcadas por isenção, alíquota zero ou não incidência do Pis/Cofins.

Incluímos ainda os serviços associados às atividades com suspensão da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins, da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação, hoje vigente, no caso de regime de drawback suspensão, apenas para mercadorias. Embora muitas empresas façam uso de serviços prestados por terceiros na produção dos bens destinados à exportação, tais serviços não podem ser adquiridos sob amparo do regime de drawback suspensão, já que o mecanismo em questão, à luz da legislação atual, viabiliza a suspensão de tributos que recaem apenas sobre mercadorias importadas ou compradas localmente para a produção de itens destinados ao mercado externo.

Enfim, o Renovar constitui política pública que mitiga externalidades negativas relacionadas à poluição gerada por veículos automotores e à possibilidade de danos a terceiros ocasionados por acidentes, além da redução do custo de transporte nas rodovias, diminuindo o chamado “Custo Brasil”. Assim, os benefícios extrapolam o setor de transporte rodoviário e atingem toda a sociedade, com impactos positivos para a economia, a segurança viária e o meio ambiente. As outras modificações introduzidas racionalizam procedimentos de trânsito e tornam mais eficiente e isonômica a tributação de forma a beneficiar a concorrência no transporte de caminhões, especialmente desonerando a atuação dos autônomos.

___________

[1] Deputado Federal pelo Espírito Santo.

[2] Exceto nos Estados Unidos, onde a dinâmica do mercado automotivo é tal que, aliada ao desenvolvimento tecnológico, viabiliza o mercado de reciclagem de veículos e recertificação de peças.

[3] As Câmaras Temáticas, órgãos técnicos vinculados ao Contran, são integradas por especialistas e têm como objetivo estudar e oferecer sugestões e embasamento técnico sobre assuntos específicos para decisões daquele colegiado.

[4] Lei nº 13.103, de 2 de março de 2015.

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Regulação pelas Agências Infranacionais https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3600&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=regulacao-pelas-agencias-infranacionais Mon, 11 Apr 2022 17:46:02 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3600 Regulação pelas Agências Infranacionais

 

Por Marcelo Nunes de Oliveira*

 

Quando se ouve falar a respeito de agências reguladoras no Brasil, é normal vir à mente as diversas instituições que foram criadas no país a partir da década de 1990, como resultado do processo de redução do papel do Estado Brasileiro enquanto empresário, passando para um papel de Estado Regulador de determinados setores econômicos que passaram por processos de privatização e desestatização de empresas.

Existem atualmente onze Agências Reguladoras em nível federal em sentido estrito, conforme enunciado do art. 2º da Lei nº 13.848/2019[1], embora seu parágrafo único disponha que outras autarquias em regime especial possam ser caracterizadas como tal. Além disso, outras instituições do Estado Brasileiro também possuem competências de regulação setorial, sendo o Banco Central do Brasil – BCB talvez o caso mais notório.

A mais antiga delas é a ANATEL, criada por meio da Lei nº 9.472/1997 e instalada em novembro do mesmo ano. A ANEEL, embora tenha sido instituída por lei anterior (nº 9.427/1996), só iniciou suas atividades em dezembro de 1997, pouco mais de um mês após a ANATEL. Curiosamente, a caçula do grupo, ANM, criada em 2017 por meio da Lei nº 13.575, é a sucessora da instituição que pode ser considerada a primeira com competências regulatórias no país: o Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, criado em 1934.

Todas essas agências atuam em setores cuja competência pela exploração ou para legislar recaem sobre a União, nos termos dos artigos 21 e 22 da Constituição Federal.

Outra característica dessas instituições é a especialização: todas possuem competências sobre um mercado específico, ou, quando muito, setores fortemente relacionados, caso, por exemplo, da ANTT (transporte de passageiros, transporte de cargas, rodovias e ferrovias) e, mais recentemente, da ANA (recursos hídricos e saneamento básico).

Uma outra face da regulação nacional, um pouco menos conhecida mas que possui grande importância para a economia nacional, é o das agências reguladoras infranacionais, que podem ser estaduais, municipais ou intermunicipais. Difícil precisar com exatidão a quantidade de agências infranacionais. Para se ter uma noção, a ANA contabiliza em seu sítio eletrônico 83 agências infranacionais que atuam em saneamento básico, além de outros setores. A Associação Brasileira de Agências de Regulação – ABAR, por sua vez, possui 57 filiadas infranacionais.

Essas agências atuam em setores cuja competência não são da União ou, em alguns casos, são por ela delegados. Grande parte dessas autarquias atua nos setores de transporte de passageiros intermunicipal (dentro das fronteiras de um estado) e dos serviços locais de gás canalizado, ambos de competência estadual nos termos do art. 25 da Constituição Federal[2]. Além desses setores, a regulação dos serviços de saneamento básico também é, majoritariamente, exercida pelas agências estaduais, embora a titularidade do serviço seja municipal – a maioria dos prestadores de serviços de saneamento no Brasil ainda são empresas estatais estaduais, realidade em intensa transformação desde a aprovação do novo marco legal do saneamento básico – Lei nº 14.026/2020. Também é relativamente comum o exercício da regulação de serviços de energia elétrica por agências estaduais, cuja competência originária é da ANEEL, que, por meio de convênios de cooperação, delega parte das atribuições, sobretudo fiscalização, para agências estaduais. Atualmente, dez reguladores estaduais possuem convênios do tipo com a ANEEL, a Agência Goiana de Regulação, Controle e Fiscalização de Serviços Públicos – AGR dentre eles.

Além desses, outros serviços cujas competências sejam concorrentes  com a União ou não vedada aos entes infranacionais também são objeto de regulação por parte dessas instituições, como recursos hídricos, rodovias estaduais, serviços de mobilidade urbana e demais atividades que possam ser objeto de delegação ou parceria ao setor privado.

Além do objeto, outra característica que distingue boa parte dos reguladores infranacionais em relação aos pares federais é o caráter não exclusivo, ou multissetorial, de boa parte dessas agências. A tabela abaixo traz alguns exemplos de agências estaduais e os setores por elas regulados:

 

Agência Ente Federativo Setores regulados
ARESC SC Saneamento Básico, Recursos Hídricos, Recursos Minerais, Exploração e Distribuição de Gás Natural Canalizado e Energia Elétrica.
ARSAL AL Energia elétrica, Gás canalizado, Transporte e Saneamento Básico.
ARSESP SP Energia Elétrica; Saneamento Básico e Gás canalizado.
ARTESP SP Transportes Ferroviários, Metroviários e Rodovias.
AGR GO Bens e Serviços Delegados; Energia Elétrica; Saneamento Básico; Transportes e Gás canalizado.
AGIR Municípios do Vale do Itajaí – SC Saneamento Básico e Transporte Público.
Fonte: Associação Brasileira de Agências de Regulação – ABAR. https://abar.org.br/agencias-associadas-a-abar/.

Nos últimos dois anos essas agências têm enfrentado desafios e atraído atenção em razão da aprovação de dois novos marcos regulatórios de setores por elas regulados: saneamento, já mencionado, e de gás natural – Lei nº 14.134/2021.

O primeiro, aprovado em 2020, propõe resolver o problema do saneamento básico no Brasil até 2033, estipulando metas e definindo penalidades para os prestadores que não alcançarem a universalização dos serviços[3]. Dentre as atribuições conferidas aos reguladores infranacionais pelo novo marco, destacam-se: (i) atestar a capacidade econômico-financeira dos atuais prestadores contratados sem licitação (caso da maioria das estatais estaduais de saneamento), condição para que os contratos vigentes permaneçam regulares com vistas ao alcance das metas; (ii) regulamentar e fiscalizar metas intermediárias anuais de ampliação dos serviços, com vistas à universalização em 2033; e (iii) regulamentar normativos em consonância com regras gerais a serem editadas pela ANA. Além disso, o novo marco do saneamento impõe a necessidade da chamada “regionalização nos estados” (divisão em grupos de municípios para fins de ganhos de escala e escopo) e licitação para os locais com contratos vencidos ou a vencer, abrindo a possibilidade de múltiplos prestadores passarem a atuar na área geográfica regulada, conferindo maior complexidade à regulação do setor.

Quanto ao mercado de gás canalizado, o novo marco tem o objetivo de alterar profundamente a estrutura do setor, até hoje altamente concentrado e verticalizado em toda sua cadeia em razão da atuação histórica da Petrobrás, especialmente nas etapas de exploração, produção, processamento e transporte da molécula de gás. A nova legislação prevê a desverticalização do setor, reduzindo a participação da estatal na cadeia produtiva com o objetivo de fomentar a competição. Embora o novo marco não adentre especificamente na questão da distribuição local, há divergências interpretativas sobre um possível avanço da Lei Federal sobre questões de competência dos estados, como a classificação de gasodutos e o fornecimento direto entre gasodutos de transporte a distribuidores de GNL e GNC.

Tais inovações têm trazido desafios aos reguladores infranacionais e a necessidade de atualização dos normativos locais ao novo modelo do setor como um todo. Alguns estados, como Paraíba, Maranhão, Ceará, Piauí, Pernambuco e Amazonas já aprovaram novos marcos estaduais. Contudo, há críticas em razão de possível sobreposição às definições do novo marco federal sobre o conceito de gasoduto, além de criação de regras que dificultam a transição de consumidores para o mercado livre – medida que tem por objetivo aumentar a competição na venda da molécula mas potencialmente reduz o poder de mercado das concessionárias estaduais, monopolistas na oferta para o mercado cativo.

Por fim, mas não menos relevante, questões de governança que tanto afligem reguladores federais não poderiam deixar de afetar as agências infranacionais, possivelmente até em maior grau. Por se tratarem de agências menores e com regulados muitas vezes pertencentes ao mesmo ente (muito comum nos setores de gás canalizado e saneamento) o risco de captura e de confusão de papéis entre Estado enquanto Regulador e Estado enquanto Regulado não é desprezível. Nessa seara, ressalta mencionar importante iniciativa da ABAR que estipulou em seu Estatuto, art. 6º, que é condição para filiação como associada a Agência que possua garantia de mandato fixo para seus dirigentes estipulado em Lei.

Como visto, não são poucos nem simples os desafios da regulação infranacional. Atuar em setores tão sensíveis e essenciais para o bem estar da população, como é o saneamento básico, e ter que entregar resultados à população em um ambiente de menor disponibilidade de recursos do que em nível federal e com distintos níveis de maturidade institucional, em que não raro o papel da regulação como política de Estado, e não de Governo, é pouco compreendido. Soma-se a esse fato a necessária capacidade de transitar entre diferentes setores, alguns com pouco ou nenhuma conexão material entre si a não ser o fato de serem regulados – como transporte de passageiros e energia elétrica, tornando ainda mais complexo o caminho para o avanço de temas como Análise de Impacto Regulatório (AIR), Análise de Resultado Regulatório (ARR) e de regulação de incentivos. Por outro lado, todos esses desafios se transformam, a depender do frame de quem analisa, em um campo fértil à implementação de melhorias regulatórias e transformações com enorme potencial de aumento do bem-estar da população. Depende de conhecimento, vontade e disposição.

 

 

[1] Art. 2º Consideram-se agências reguladoras, para os fins desta Lei e para os fins da Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000:

I – a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel);

II – a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP);

III – a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel);

IV – a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa);

V – a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS);

VI – a Agência Nacional de Águas (ANA);

VII – a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq);

VIII – a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT);

IX – a Agência Nacional do Cinema (Ancine);

X – a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac);

XI – a Agência Nacional de Mineração (ANM)

 

[2] A competência para exploração dos serviços locais de gás natural canalizado está expressa no § 2º do art.25, enquanto no transporte intermunicipal ela é uma decorrência do § 1º do caput do mesmo artigo, que reserva aos estados as competências não vedadas pelo texto Constitucional.

[3] Para fins do novo marco legal, a universalização é alcançada com 99% da população municipal atendida por água potável e 90% com coleta e tratamento de esgotos até 2033.

 

* Marcelo Nunes de Oliveira é presidente da Agência Goiana de Regulação, Controle e Fiscalização de Serviços Públicos – AGR. Servidor efetivo da carreira de Gestor, do Ministério da Economia. Graduado em Administração ela UNB, especialista em Defesa da Concorrência pela FGV e mestre em Economia pelo IDP.

 

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Desafios do próximo governo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3575&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=desafios-do-proximo-governo Sun, 06 Feb 2022 14:01:16 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3575 Desafios do próximo governo

 

Por Roberto Teixeira da Costa

 

Héracles ou Hércules é o herói mais popular de toda mitologia clássica. Das lendas, a que se distingue é a dos 12 Trabalhos, façanhas que Hércules executou por ordem de seu primo Euristeu, entre elas a de libertar o mundo de certos monstros.

Creio que ao nosso futuro presidente não faltarão monstros, novos, e também velhos conhecidos, que sobrevivem há muitos anos. O 1.º desafio são as expectativas em torno do futuro presidente. Não esperar milagres, e sim racionalidade, elencando as prioridades.

Nós nos acostumamos com a centralização do poder na mão do Executivo, esquecendo-nos que a Constituição de 88 esvaziou muitas de suas funções e redistribuiu recursos, sem necessariamente a transferência das responsabilidades. Portanto, caberá ao eleito não criar expectativas irrealistas.

O 2.º é costurar alianças partidárias que permitam viabilizar uma base de governabilidade capaz de apoiar um programa racional de governo. Convém evitar erros cometidos por antecessores, que em sua campanha eleitoral prometeram uma Presidência de total independência, e, posteriormente, tiveram de se dobrar à dura realidade, fazendo sucessivas concessões. A qualidade do Congresso eleito será fundamental para vencer os enormes desafios e deve estar sintonizada com o programa do futuro presidente.

Apesar da fragmentação do nosso sistema político, as próximas eleições não devem contrariar a necessidade de coligações.

O 3.º é a formação de um Ministério que não decepcione expectativas dos eleitores. O atual presidente começou por frustrar a sociedade com a indicação de pessoas, com exceções, que, por inexperiência ou arrogância, não tiveram o respaldo para enfrentar os desafios. Assim, um conjunto de nomes expressivos e identificados com as pastas que ocuparão é de fundamental importância para dar viabilidade ao governo.

O 4.º é ter um programa de governo realista, que até o momento não foi apresentado pelos dois candidatos que lideram as pesquisas. Essencial que sejam pragmáticos e viáveis de serem implementados.

O 5.º faz referência às questões do nosso Judiciário, que precisa estar continuamente aparelhado para as suas importantes funções. Dentro das limitações existentes, tem se desdobrado para atender às demandas da sociedade. O equilíbrio entre os Três Poderes é essencial e o excesso de judicialização nos demais Poderes deve ser evitado.

Na área econômica, os desafios não são menores e estão condicionados aos aspectos políticos mencionados. É claro que o maior deles é a consolidação do real como moeda confiável e, para tanto, termos uma política fiscal e de equilíbrio nas contas públicas é essencial. Estes estão ligados à aprovação de reformas estruturais:

a) Constitucional – com ênfase na simplificação e na reforma do capítulo da ordem econômica, e a revisão dos monopólios e aceleração das privatizações;

b) Fiscal – consolidações para geração primária de superávit. Simplificação do sistema tributário para aprimorar a qualidade de arrecadação com maior equidade;

c) Administrativa – modernizar as instituições governamentais, para sermos competitivos, acabando com privilégios e lutando contra a burocracia que emperra o País. A corrupção deve ser combatida e priorizada com todo arcabouço legal disponível;

d) Não retroceder na Reforma Trabalhista aprovada pelo Congresso em 2017.

10.º refere-se ao emprego. Esse desafio extrapola inclusive as fronteiras nacionais, posto que o desemprego está na agenda de muitos países.

A eventual abertura comercial ampliará o debate sobre essa questão, em que conciliá-la com a abertura, sendo um global player, defendendo o mercado, será um dos maiores desafios e tem no seu bojo a questão da nossa inserção externa.

Reciclar e ajustar a nossa mão de obra, na qual a inteligência artificial já é uma realidade.

O 11.º é a busca de um Estado mínimo, mais eficiente e dinâmico, e que cumpra seus objetivos na área de educação, saúde, habitação, segurança pública e também o aumento de nossa taxa de poupança, para voltar aos níveis da década de 70-80, quando nos aproximamos dos 25%. Nas condições atuais, com participação de 15% do Produto Nacional Bruto (PNB), estamos relegados a continuar sendo um país em desenvolvimento, que nunca alcançará seus objetivos.

Temos ainda um condicionante indeterminado: a questão da pandemia que está tomando características endêmicas.

Não poderia deixar de mencionar o retorno de uma política externa que vise a recuperar a credibilidade de nosso país, para sermos novamente vistos e respeitados como um país que cumpre suas obrigações, respeitador das leis e comprometido em mitigar as desigualdades de renda, a prioridade de todas prioridades.

Vamos lutar para que, quem quer que seja eleito, esteja imbuído da mesma coragem e determinação de Hércules e que obtenha o sucesso que todos nós desejamos para que nosso País realmente dê um salto qualitativo e quantitativo que nos recoloque na linha de frente daqueles países que são respeitados e procurados por seu potencial de crescimento.

 

 

Roberto Teixeira da Costa é economista, conselheiro emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) e do Conselho Empresarial da América Latina (CEAL) e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 5 de fevereiro de 2022.

 

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Voto impresso já existe de forma agregada por seção eleitoral https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3490&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=voto-impresso-ja-existe-de-forma-agregada-por-secao-eleitoral Fri, 20 Aug 2021 13:45:32 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3490 Voto impresso já existe de forma agregada por seção eleitoral

O Boletim de Urna, impresso, é a base de um sistema de apuração seguro

 Por Roberto Macedo

Sempre fui convicto de que o sistema eleitoral brasileiro, de urnas eletrônicas, reflete com precisão a vontade do eleitor, não cabendo a grande e obsessiva suspeição com que é visto pelo presidente Bolsonaro e parte de seus apoiadores. Mas resolvi rever o assunto, procurando também saber mais sobre o voto impresso tão defendido por esse grupo, ainda que ele não esclareça bem o que entende por isso.

Esse reexame foi útil, pois aprendi mais sobre o sistema eleitoral, em particular o fato de que as urnas já são dotadas internamente de uma impressora que no final da votação nas seções eleitorais produz uma lista dos totais de votos obtidos individualmente pelos candidatos e pelos partidos, o chamado Boletim de Urna (BU). Meu aprendizado veio principalmente de conversas com pessoas que atuaram como mesários nas eleições de 2018: minha filha Cristiana Santos de Macedo, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, e um amigo advogado, Wilson Victorio Rodrigues, também diretor-geral da Faculdade do Comércio de São Paulo (FAC-SP), ligada à Associação Comercial da capital paulista.

Após os mesários se reunirem para dar início à votação, às 8 horas da manhã, a urna primeiro imprime a chamada “zerésima”, um termo que vem do zero, para comprovar que não há registros de votos na urna utilizada.

A urna não está ligada à internet, só se liga à eletricidade, sendo assim à prova de hackers, e pode ser auditada quanto ao seu bom funcionamento. Ela contém três dispositivos de memória, na forma de dois cartões eletrônicos, para garantir a segurança dos registros, e um pendrive. Concluída a votação, este é retirado e levado pelo presidente da mesa ao cartório eleitoral, onde passa à apuração usando uma rede virtual privativa da Justiça Eleitoral.

Como já disse, ignorava uma informação muito importante, a de que o BU é impresso no fim da votação. Ele segue com o pendrive e uma cópia é postada na porta da seção eleitoral. Soube que o BU é longo, pois o papel de impressão é bem estreito, como o de impressoras de caixas de supermercados. Inclui um código QR para ser copiado por interessados. Nas eleições de 2022, pretendo chegar perto do encerramento da votação, para ver também o BU, e se meu voto estará lá, ainda que somado a outros para os mesmos candidatos em que votarei.

Ora, o BU deveria ser de conhecimento geral, o que exigiria acesso fácil. Não sei como é feito no detalhe o processo da apuração e agregação dos votos, mas imagino que algo parecido com as planilhas do Excel seja utilizado para somar os resultados das seções eleitorais por zona eleitoral, estes também agregados no nível municipal, depois estadual e, finalmente, o nacional, como será o caso das eleições do ano que vem. Soube que todos esses dados e suas agregações estão no site da Justiça Eleitoral, mas isso não facilita o acesso aos cidadãos em geral.

Diário Oficial da União não é mais impresso e talvez fosse o caso de contratar um jornal diário para publicar, com fonte diminuta, todos os BUs e as planilhas que os agregam. Assim, qualquer pessoa poderia verificar se os resultados divulgados pela Justiça Eleitoral contam com seu voto, conferindo também as somas das planilhas. Creio que poucas pessoas se interessariam por essa conferência, mas o processo eleitoral se tornaria mais transparente para os interessados. Para saber mais sobre o BU recomendo esta apresentação do ministro Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), atuando como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) (https://www.youtube.com/watch?v=zlIASijb6Go).

Também conheci a versão do voto impresso defendida na proposta que a Câmara dos Deputados não referendou. Segundo o site www.politize.com.br/pec-135-19, seria adicionado ao texto constitucional (artigo 14), um parágrafo nestes termos: “No processo de votação e apuração das eleições, dos plebiscitos e referendos, independentemente do meio empregado para o registro de votos, é obrigatória a expedição de cédulas físicas conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas, de forma automática e sem contato manual, em urnas indevassáveis, para fins de auditoria”.

Ou seja, o eleitor iria apenas conferir seu voto, creio que pela tela da urna, sem tocar no impresso. Auditoria? O próprio eleitor poderia fazer a sua, vendo se seu voto está totalizado na lista de resultados, mas é preciso facilitar o acesso a ela, conforme já argumentado. Ninguém conseguiu provar que individualmente a urna esteja sujeita a fraudes.

Como economista, entendo que a complicação da referida proposta de voto impresso não resiste também à sua análise em termos da relação entre seu o custo e o seu benefício, o qual não vejo, mas vi estimativas de custo variando entre R$ 2 bilhões (do ministro Luís Barroso, já citado), e R$ 2,5 bilhões (do TSE). Ou seja, muitíssimo dinheiro por nada, sem contar o maior tempo tomado do eleitor e dos mesários no processo de votação.

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 19 de agosto de 2021.

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A Revolução Verde https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3422&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-revolucao-verde Sat, 13 Mar 2021 16:13:30 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3422 A Revolução Verde: concessões florestais como instrumento de desenvolvimento sustentável da Amazônia

Por Ismael Alves de Brito Neto e Raquel de Oliveira Alves

Introdução – Florestas no Brasil 

A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) aponta[1] que a área total de cobertura florestal do mundo, em 2020, é de 4,06 bilhões de hectares. Cinco países concentram mais da metade das florestas do mundo (54%): Rússia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e China. O Brasil apresenta a segunda maior área de florestas, com 497 milhões de hectares, atrás apenas da Rússia, com 815 milhões de hectares. Dentre estes cinco países, o Brasil é o único que é tropical, e abriga[2] a maior biodiversidade do planeta. Esta abundante variedade de vida – mais de 20% do número total de espécies do planeta – eleva o Brasil ao posto de principal nação entre os 17 países megadiversos (ou de maior biodiversidade).

Em 2019, o mundo perdeu 3,8 milhões de hectares[3] de florestas primárias tropicais. É quase uma Suíça, equivalente a um campo de futebol a cada 6 segundos durante todo o ano. Só no Brasil, de acordo com o Programa de Monitoramento por Satélite da Cobertura da Terra dos Biomas Brasileiros (Prodes), foi perdido 1,10 milhão de hectares de floresta Amazônica[4] no período de agosto de 2019 a julho de 2020. Fazendo o comparativo histórico, conclui-se que foi o maior volume dos últimos 11 anos. O Brasil representou, sozinho, quase um terço[5] de toda a perda de florestas primárias tropicais úmidas a nível mundial, ultrapassando qualquer outro país tropical.

Como potencial solução, considerando a importância de fomentar a economia ambiental, valorizar os ativos florestais e criar instrumentos de exploração sustentável desses recursos, desponta a Lei de Gestão de Florestas Públicas (Lei nº 11.284 de 2006), que é o mais importante marco regulatório de uso sustentável da floresta, baseada em concessões de florestas públicas.

A concessão florestal é mundialmente reconhecida[6] como um instrumento que viabiliza a exploração sustentável de recursos florestais madeireiros e não madeireiros em terras públicas. Trata-se de mecanismo legal pelo qual a Administração Pública concede, mediante licitação, a uma empresa ou comunidade, o direto de manejar determinada área de floresta pública segundo claros critérios de sustentabilidade. Dessa forma, as concessões florestais são um fundamental mecanismo de preservação da floresta em pé e de combate ao desmatamento e à extração ilegal de madeira.

Em 2016, a FGV estimou que os impactos oriundos da concessão florestal de hipotéticos 20 milhões ha no Brasil seriam de um incremento de R$ 3,3 bi no PIB, aumento de R$ 250 milhões na arrecadação de impostos e criação de 170 mil empregos. Deve-se ressaltar ainda, nessa situação, o grande efeito benéfico que adviria do anteparo da ilegalidade e da preservação da floresta em pé, e com a redução do desmatamento amazônico. O Tribunal de Contas da União (TCU) afirmou que, considerados os relevantes benefícios identificados, todas as medidas para ampliar as concessões deveriam ser tomadas sem vacilação.[7]

A despeito desses fatos, a Lei de Gestão de Florestas Públicas (LGFP) adota regras que dificultam o necessário crescimento das áreas concedidas, com processos excessivamente burocráticos e imposição de condições que oneram desnecessariamente o empreendedor, reduzindo o interesse pela concessão florestal.

Dessa forma, a tramitação do PL nº 5518/2020 na Câmara dos Deputados pode representar um grande avanço, depois de 14 anos de pouquíssima efetividade da LGFP. 

Gestão de Florestas Públicas e as Concessões Florestais

Na concessão florestal, a titularidade da terra permanece pública. Ao concessionário é permitida a exploração de recursos madeireiros e não madeireiros, mas a LGFP[8] veda-lhe a outorga de direitos de: i) acesso e exploração econômica do patrimônio genético; ii) uso de recursos hídricos acima de níveis insignificantes; iii) exploração de recursos minerais; iv) exploração de recursos pesqueiros e da fauna silvestre e; v) comercialização de créditos de carbono.

Para a exploração sustentável da área, o concessionário elabora um Plano de Manejo Florestal Sustentável (PMFS), que caracteriza o meio físico e biológico, descreve as técnicas de produção adequadas, a intensidade de colheita, o ciclo de corte, entre outros[9]. Apenas uma porção da área é manejada anualmente, respeitando o ciclo de corte estabelecido no PMFS, que varia entre 25 e 35 anos na Amazônia. Assim a estrutura da floresta fica resguardada, pois retira-se, em média, cinco árvores por hectare[10]. Percebe-se claramente, aí, o mecanismo que preserva a floresta em pé.

O outro efeito mais relevante esperado da prática da concessão florestal é o efetivo combate ao desmatamento ilegal. Tal resultado somente surge por meio de grande volume de produção de madeira legalizada – ou seja, a partir de relevante quantidade de concessões, que é a grande deficiência da LGFP, e ações de fiscalização.

Em 14 anos de vigência do marco legal da matéria, a despeito do Brasil possuir 309 milhões de hectares de florestas públicas, foi concedido apenas um milhão de hectares[11]. Ainda que muitas áreas apresentem impedimentos legais para concessão, como, por exemplo, terras indígenas, florestas públicas estaduais e municipais, áreas militares e unidades de conservação não passíveis de concessão, o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) tem disponíveis cerca de 17,2 milhões de hectares para concessão imediata e apenas 5% da área habilitada foi concedida. Considerando toda área florestal do Brasil, concedemos apenas 0,03% da área.

Tais resultados são incompatíveis com a realidade de desmatamento da floresta e de carências da população amazônica, que não dispõe de alternativas de desenvolvimento socioeconômico. Também há que se considerar a efetiva demanda por madeira no país. A partir da visão consensual da relevância do instrumento da concessão florestal para a reversão dessa persistente e incômoda perda de áreas de floresta, destaca-se a importância da valorização do instrumento e de sua urgente implementação. O caminho mais auspicioso que ora se apresenta é o da adequação do marco legal, a LGFP.

Em uma análise comparativa com os demais países do mundo, o Brasil se destaca negativamente pelo baixo percentual de área florestal sob manejo sustentável. Enquanto 96% das florestas da Europa[12] estão sob algum tipo de manejo, os percentuais na África e na América do Sul representam 24% e 17% das florestas com planos de manejo, respectivamente, e apenas 4% na América Latina[13]. A pequena área sob concessão na América Latina deve-se, em grande parte, ao pouco uso do instrumento no Brasil, que responde por quase 75% da área florestal da região (FAO, 2018).

Um dos complicadores da extração de madeira legal no Brasil é a presença de florestas tropicais, que são significativamente mais diversas que as florestas temperadas. É o chamado “dilema da biodiversidade”, pois um único hectare de uma floresta tropical contém mais de 250 espécies de árvores; por outro lado, na floresta temperada é improvável a ocorrência de mais de 20 espécies de árvores em um hectare.[14]

Também por isso, as florestas predominantes em países da Europa e Canadá, as florestas temperadas, apresentam mais sucesso na taxa de concessão florestal do que em países como Brasil, Indonésia, Colômbia, Peru e Malásia, regiões de floresta tropical. Nestas últimas, as árvores são maiores, mais pesadas e mais caras de extrair, observam-se custos mais altos por unidade de volume extraído, a infraestrutura de transporte é precária, a ilegalidade e a informalidade do setor predominam.[15]

Auditoria do TCU já apontava que a existência de deficiências no arcabouço institucional e legal tende a impactar negativamente a implantação e consolidação das concessões florestais federais[16]. E que as condições atuais oferecidas necessitam de maior atratividade econômica, tendo em vista a carência de incentivos para fazer frente à necessidade de realização de altos investimentos para operacionalizar a concessão florestal.

O PL nº 5.518/2020, em tramitação no Congresso Nacional, para adequar a LGFP, a Lei nº 11.284, de 2006, que dispõe sobre a gestão de florestas públicas, busca propor melhorias regulatórias capazes de fomentar a atividade e torná-la mais atrativa economicamente. 

Concessões Florestais: os órgãos envolvidos e o processo

São três os órgãos federais envolvidos no processo, com competências distintas, responsáveis conjuntamente pelas concessões florestais: o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), vinculados ao Ministério do Meio Ambiente.

O SFB exerce a função de órgão gestor[17], cujas competências incluem: elaboração do Plano Anual de Outorga Florestal (PAOF), operacionalização das concessões florestais, elaboração e publicação de editais, execução das licitações e seus procedimentos, inclusive audiência e consulta pública, fiscalização dos contratos de concessão florestal e acompanhamento do PMFS.

O Ibama exerce o poder de polícia ambiental no âmbito federal, sendo responsável pelo processo de licenciamento, que envolve: a elaboração de estudo prévio de impacto ambiental (EIA); a realização de relatório ambiental preliminar (RAP);[18] a emissão de Licença Prévia (LP); a aprovação do PMFS; a manifestação sobre o Plano de Operação Anual (POA) com a consequente emissão da Autorização de Exploração Florestal (Autex).[19]

Já o ICMBio é o responsável pela gestão das Unidades de Conservação. No âmbito das concessões florestais, elabora o plano de manejo da floresta objeto das concessões, e fica responsável pela gestão da área até que seja concedida.

Cabe lembrar que o objetivo principal do SFB é gerir as concessões florestais. Entretanto, o mesmo não ocorre com o ICMBio e Ibama, que têm como objetivo principal outras atividades e atribuições, o que, per si, já sinaliza problema na execução.

As falhas de coordenação na atuação integrada desses atores abre margem a atrasos no âmbito do processo e dificultam o atendimento das exigências por parte do concessionário, o qual deve se reportar a órgãos distintos em locais e condições distintas, sem orientação clara de quando deve recorrer a cada um deles.

Levantamento do TCU do tempo entre a contratação das concessões do SFB e o início da execução dos serviços encontrou prazos de 24 a 50 meses. Para o estado do Pará, que implementou uma estrutura de balcão único para atendimento ao concessionário, o mesmo estudo apontou prazo de 11 meses[20].

As etapas do processo de concessão florestal no Brasil são as seguintes:

1) O ICMBio elabora o plano de manejo da unidade de conservação (nesse caso, uma floresta nacional). O plano estabelece o zoneamento e as normas que regulam o uso que se fará da área e o manejo dos recursos naturais;

2) O SFB elabora o plano anual de outorga florestal (PAOF) que indica as áreas passíveis de concessão florestal, diagnóstico fundiário, inventário da área, estudo de infraestrutura e mercado;

3) Com a aprovação do PAOF pelo ministério setorial, o SFB elabora o edital de licitação na modalidade concorrência, critério técnica e preço, e realiza a licitação;

4) Selecionada a empresa vencedora, o contrato é assinado e o vitorioso elabora o plano de manejo da área e o plano operacional anual, documento contendo a especificação das atividades a serem realizadas no período de 12 meses, para avaliação do Ibama;

5) Aprovado o plano de manejo e o plano operacional anual, ocorre a emissão das autorizações de exploração (Autex), documento do Ibama que autoriza o início da exploração;

6) O SFB faz o monitoramento do contrato e, juntamente com o Ibama, o controle ambiental (controle de cadeia de custódia, rastreamento por satélite);

7) A empresa paga ao Governo o valor relativo aos produtos extraídos e serviços explorados na concessão florestal, valor que é ajustado anualmente.

Percebe-se que o processo de concessão florestal depende de diferentes atores com competências distintas, e implica altos custos administrativos, tanto para o empreendedor quanto para a Administração Pública. Em atenção ao ponto, o PL nº 5.518/2020 visa simplificar a legislação de forma a torná-la atrativa economicamente para o concessionário e menos custosa para a administração. 

Principais alterações propostas pelo PL nº 5.518/2020

Conforme já sugerido, os objetivos básicos do PL são proporcionar maior segurança jurídica ao concessionário, tornar a atividade mais atrativa economicamente, agilizar o processo licitatório, reduzir o excesso de controle e implantar medidas que tornem a atividade mais eficiente:

  1. Aumentar o leque de atividades passíveis de exploração pela concessão

A Lei vigente, no âmbito da concessão florestal, define as seguintes vedações: acesso ao patrimônio genético; uso dos recursos hídricos acima do especificado como insignificante; exploração dos recursos minerais; exploração de recursos pesqueiros ou da fauna silvestre e comercialização de créditos decorrentes da emissão evitada de carbono em florestas naturais.

Com essas restrições, as possibilidades do SFB de oferta de negócios ao concessionário ficam prejudicadas, o que potencialmente reduz a atratividade econômica, na medida em que o concessionário poderia obter rendas por meio do desenvolvimento de outras atividades.

Nesse aspecto, o PL nº 5.518/2020 abre outros tipos de concessão florestal: a concessão para conservação, com foco na conservação de serviços ecossistêmicos e da biodiversidade, e a concessão para restauração, para recuperar áreas antropizadas[21] através de atividades de restauração florestal, incluindo sistemas agroflorestais.

Ainda, passa a ser possível incluir no objeto da concessão, nos termos do regulamento, serviços ambientais; acesso ao patrimônio genético para fins de conservação, pesquisa, desenvolvimento e bioprospecção, desde que em conformidade com a Lei de acesso ao Patrimônio Genético, a Lei nº 13.123/2015, que não existia na época da aprovação da LGFP;  atividades voltadas à conservação da vegetação nativa e exploração de recursos pesqueiros ou da fauna silvestre.[22]

Esse esforço de ampliação do escopo de atividades em busca de maiores retornos econômicos está alinhado ao que já se desenvolve em outros países. Na Indonésia, por exemplo, existe a categoria “Concessão de Restauração de Ecossistemas” (ERCs)[23] em que o titular da licença precisa promover atividades de restauração para “restabelecer um equilíbrio biológico“, incluindo a venda de créditos por serviços ecossistêmicos como carbono, conservação da biodiversidade ou recursos hídricos, além de ecoturismo e produção e venda de produtos florestais não madeireiros. Já na África Central se observam as “Concessões 2.0”, cujo espectro ampliado de atividades inclui acesso a recursos genéticos, produção agroflorestal, caça esportiva, energia (produção e distribuição).[24]

  1. Agilizar o processo licitatório e o início das atividades de manejo

As empresas concessionárias são selecionadas mediante processo licitatório na modalidade concorrência. É bem conhecido o fato de que a etapa de habilitação de uma concorrência, em que são avaliados vários documentos de todos os candidatos que apresentam propostas, é muito longo, podendo durar vários meses. A mudança proposta pelo PL nº 5.518/2020 é a inversão da ordem das fases de habilitação e julgamento, permitindo assim, que passe pelo processo de habilitação apenas a empresa mais bem colocada, segundo o critério de técnica e de preço.

Essa inversão, tal como vem sendo praticado pela Administração Pública, permite maior simplicidade, eficiência e economicidade no tramite do processo licitatório, tendo em vista a burocracia relacionada à análise dos documentos requisitados no instrumento convocatório.[25]

Outra alteração relevante, que busca dar celeridade ao processo licitatório, é a alteração do Plano Anual de Outorga Florestal (PAOF) para um Plano Plurianual de Outorga Florestal. Informa o SFB que o nível de detalhes do PAOF exigidos pela LGFP demanda foco da equipe por cerca de três meses[26]. Ademais, é necessário realizar consultas a vários órgãos e ser submetido à aprovação do colegiado CGFLOP (Comissão de Gestão de Florestas Públicas). Ou seja, grande parte do trabalho do SFB fica voltado para a área de planejamento e para a coleta de informações de pouca (ou nenhuma) utilidade no processo, e não para a execução propriamente dita da política pública, de forma eficaz e efetiva. Assim, tornou-se consenso que a instituição de um plano de outorga Plurianual trará maior eficiência ao processo licitatório.

Outra mudança contemplada no PL nº 5.518/2020, que permitirá agilidade no início das atividades de manejo, é a previsão de que o ato da assinatura do contrato de concessão florestal autoriza o concessionário a iniciar as atividades prévias de instalação de infraestrutura e o inventário para a elaboração do PMFS. Hoje, mesmo com a assinatura do contrato, o concessionário precisa buscar autorização de outros órgãos, eventualmente estaduais, para iniciar atividades prévias à instalação, como, por exemplo, uma licença prévia para a construção de uma estrada de acesso.

Outra alteração proposta é a previsão de que a aprovação do PMFS confere ao seu detentor a licença ambiental para a prática do manejo florestal sustentável na Unidade de Manejo Florestal outorgada, não se aplicando outras etapas de licenciamento ambiental. Essa foi uma flexibilização instituída pelo Código Florestal, para o manejo florestal em áreas privadas (Lei nº 12.651/2012, art. 31, caput e §2º)[27]. Entretanto, o Código Florestal deixou de inserir tal benefício na LGFP. Tal fato gerou a incômoda condição em que se exige uma quantidade de controles, fiscalização, regulação, etapas e trâmites de licenciamento mais rigorosos que o manejo florestal em áreas privadas, que foram isentados de licenciamento prévio. Ficou configurada uma situação contrária ao interesse público, que precisa ser corrigida por alteração legislativa, como a que aqui se propõe.[28]

  1. Reduzir o excesso de controle da atividade de manejo

Na sistemática atual, após a aprovação do PMFS, o Plano de Manejo elaborado pelo concessionário, o Ibama emite a Autorização para Exploração (Autex), documento que autoriza o início da exploração da Unidade de Produção Anual (UPA) e especifica o volume máximo por espécie permitido para exploração, conforme já apresentado.

A Autex tem vigência de 12 meses, e pode ser prorrogada por mais 12 meses, desde que devidamente justificado[29]. O novo PL estipula que a Autex terá validade de até cinco anos, a fim de reduzir custos de transação para o empreendedor e manter seu foco na qualidade do manejo, e não no processo de renovação anual de uma autorização para atividade de longo prazo, em média 25 anos.

Outro instrumento que o PL nº 5.518/2020 busca alterar é o Plano Operacional Anual (POA), documento com especificações técnicas e detalhamento das atividades a serem realizadas na unidade de manejo no período futuro de 12 meses[30]. Propõe-se que o POA passe a ter caráter declaratório, cujas informações serão conferidas pelo órgão ambiental por ocasião do acompanhamento da execução e avaliação técnica do PMFS. Cabe ressaltar que essa não é uma inovação regulatória, mas uma medida de segurança jurídica, pois norma infralegal do Ministério do Meio Ambiente (MMA)[31] já estabelece que, a partir do segundo POA, o órgão ambiental responsável poderá optar pelo POA declaratório, em que a emissão da Autex não está condicionada à aprovação do POA, por até dois POAs consecutivos.

4. Reduzir custos para o concessionário, melhorando a atratividade econômica

O PL nº 5.518/2020 estabelece cláusula de revisão dos termos do contrato em busca de reequilíbrio econômico-financeiro após a elaboração do inventário florestal e da aprovação do PMFS, entre um e dois anos da assinatura do contrato e, subsequentemente, a cada cinco anos, considerando a produtividade real da área concedida e o inventário completo dos últimos cinco anos.

A própria Lei de Licitações e Contratos e a Lei de Concessões preveem o instituto do reequilíbrio em virtude do longo prazo do contrato. Entretanto, a referência do projeto de lei à produtividade real da área é temerária, uma vez que os riscos do negócio precisam ser, sempre, integralmente atribuídos ao concessionário. De outra forma, deixa de fazer sentido a concessão da área à iniciativa privada, se riscos permanecem com o proprietário da área.

Outra inovação do novo PL é retirar a obrigatoriedade de pagamento de preço calculado sobre os custos de realização do edital de licitação da concessão florestal, associado ao inventário para identificação de espécies com potencial econômico exploratório. Dessa forma, esse custo que hoje é do concessionário, passaria a ser da administração pública, o que merece uma avaliação mais criteriosa sobre os impactos da medida.  Outro ponto que se busca excluir refere-se ao pagamento mínimo anual, em que o concessionário paga um valor específico ao poder concedente independentemente de ter havido produção. 

  1. Permitir a unificação operacional das atividades de manejo

A Lei nº 11.284/2006 estabelece, em seu art. 27 que, para cada unidade de manejo licitada, será assinado um contrato de concessão florestal com um único concessionário. Contudo, conforme informações do SFB, há cinco casos de um mesmo concessionário que detém dois contratos numa mesma floresta. Na prática, esses contratos são replicados, aumentando os custos para os concessionários e para a administração.

Os prejuízos apurados se relacionam a: (i) excessiva burocracia, com consequente ampliação de custos, na obtenção de licenciamento para operação, pagamentos pela produção e cumprimento de cláusulas contratuais, como garantias e depósitos de valores do Indicador Social; (ii) obrigatoriedade de elaboração de dois Planos de Manejo Florestal Sustentável e, anualmente, dois planos operacionais; (iii) necessidade de duplicação de equipes e equipamentos para produção florestal ou de seu deslocamento de uma Unidade de Manejo Florestal (UMF) para outra, com reflexos econômicos e ambientais;[32]

Para a Administração, as perdas relativas são as seguintes: (i) demasiada quantidade de processos físicos e eletrônicos; (ii) tempo excessivo reservado ao monitoramento in-loco e monitoramento remoto destes contratos, que resultam muitas vezes na construção de documentos similares; (iii) custo administrativo aumentado para o monitoramento das mesma cláusulas em contratos de concessão florestal distintos.[33]

Visando reduzir esses custos, o PL faculta ao concessionário a unificação operacional das atividades de manejo florestal sustentável em unidades de manejo florestal contínuas ou não concedidas ao mesmo concessionário, desde que situadas na mesma Unidade de Conservação ou lote de concessão. Para os contratos vigentes, estabelece a unificação operacional por termo aditivo, permitindo a elaboração de um único Plano de Manejo Florestal Sustentável para todas as unidades de manejo e a unificação das operações florestais, nos termos do regulamento.

  1. Incluir competência ao poder concedente de evitar e reprimir invasões nas áreas concedidas

Na legislação vigente, não há definição clara sobre quem é o responsável pelo controle de legalidade dentro das áreas que são objeto de concessão florestal. Mesmo nessas áreas, é possível verificar invasões para exploração ilegal de madeira, o que deixa o concessionário em situação de vulnerabilidade. Nesse sentido, o PL estabelece que será competência do poder concedente empregar os meios e esforços necessários para evitar e reprimir invasões nas áreas concedidas e sujeitas à concessão florestal.

Essa previsão, a princípio, gera uma maior segurança jurídica para o concessionário. No entanto, é importante ressaltar que, após as alterações administrativas do governo, o poder concedente, que era o Ministério do Meio Ambiente, passou a ser o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA). A Lei nº 9.605/99 define que as autoridades competentes para exercer o poder de polícia administrativa ambiental são os órgãos do SISNAMA, e o MAPA não faz parte desse sistema. Nesse sentido, cabe discussão sobre essa proposta de alteração da lei, pois tal medida pode enfraquecer as ações de proteção das áreas concessionárias. 

Conclusão

A concessão florestal apresenta-se como um instrumento estratégico para a política de uso sustentável das florestas brasileiras, e revela-se promissor na geração de benefícios ambientais, sociais e econômicos. Todavia, a legislação vigente apresenta muitas limitações, inibindo a atratividade da atividade.

A atualização do marco legal terá impactos significativos, destravando o mercado e permitindo a exploração sustentável dos recursos florestais, com geração de renda em áreas que apresentam poucas alternativas econômicas, reduzindo a extração ilegal.

A despeito disso, é necessário implantar outras medidas que não se restringem à alteração do marco regulatório, como: incentivos ao uso de madeira proveniente de concessões florestais em compras públicas; ampliação de mecanismos de financiamento da atividade econômica; instituição de um “balcão único” em que o concessionário possa obter respostas, solicitar e enviar documentos e melhor coordenação dos diferentes órgãos envolvidos no processo.

Bibliografia

BARBOSA, M. A inversão das fases licitarias na modalidade concorrência: um comparativo entre a lei estadual baiana 9.433/05 e a Lei Federal 8.666/93, e a proposta do projeto de lei nº 6.814/2017. 2019. Conteúdo Jurídico, 25 de jan. de 2019. Disponível em:<http://ri.ucsal.br:8080/jspui/bitstream/prefix/599/1/TCCMARCELOBARBOSA.pdf>. Acesso em: 21 fev 2021.

BRASIL. Lei 8.666 de 21 de junho de 1993.  Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm>. Acesso em: 25 de fev. de 2021.

BRASIL. Lei 11.284 de 2 de março de 2006. Dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável; institui, na estrutura do Ministério do Meio Ambiente, o Serviço Florestal Brasileiro – SFB; cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal – FNDF; altera as Leis nºs 10.683, de 28 de maio de 2003, 5.868, de 12 de dezembro de 1972, 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, 4.771, de 15 de setembro de 1965, 6.938, de 31 de agosto de 1981, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973; e dá outras providências. Brasília, 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11284.htm>. Acesso em: 23 de fev. de 2021.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Resolução CONAMA nº 406, 02 de fevereiro de 2009. Estabelece parâmetros técnicos a serem adotados na elaboração, apresentação, avaliação técnica e execução de Plano de Manejo Florestal Sustentável – PMFS com fins madeireiros, para florestas nativas e suas formas de sucessão no bioma Amazônia. Brasília, 2009. Disponível em: <http://www2.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=597>. Acesso em: 23 de fev. de 2021.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Portaria nº 4.396, de 10 de dezembro de 2019. Brasília, 2019. Disponível em: <https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-4.396-de-10-de-dezembro-de-2019-232666255>. Acesso em: 26 de fev. de 2021.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Instrução Normativa nº 5 de 11 de dezembro de 2006. Dispõe sobre procedimentos técnicos para elaboração, apresentação, execução e avaliação técnica de Planos de Manejo Florestal Sustentável – PMFSs nas florestas primitivas e suas formas de sucessão na Amazônia Legal, e dá outras providências. Brasília, 13 de dez. de 2006. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=76720. Acesso em: 27 de fev. de 2021.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL nº 5.518/2020. Altera a Lei n.º 11.284, de 2 de março de 2006, para conferir maior celeridade ao processo licitatório, flexibilidade aos contratos e atratividade ao modelo de negócio das concessões florestais. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2267073>. Acesso em: 25 de fev. de 2021.

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PERDEMOS UM CAMPO DE FUTEBOL DE FLORESTA TROPICAL PRIMÁRIA A CADA 6 SEGUNDOS EM 2019. Global Forest Watch. Washington, 2 de junho de 2020. Disponível em: <https://blog.globalforestwatch.org/pt/data-and-research/dados-globais-de-perda-de-cobertura-de-arvore-2019/>. Acesso em: 25 fev. 2021.

SFB. Plano Anual de Outorga Florestal 2020. Brasília – DF, julho de 2019. Disponível em: <https://www.florestal.gov.br/publicacoes/1690-plano-anual-de-outorga-florestal-paof-2020>. Acesso em: 20 fev. 2021.

TCU. Autos de Auditoria Operacional n. TC 021.791/2016-3. Brasília – DF, nov de 2016. Disponível em: <https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/auditoria-operacional-nas-concessoes-florestais-federais.htm>. Acesso em: 27 fev 2021.

VERÍSSIMO, A.; PEREIRA, D. Produção na Amazônia Florestal: características, desafios e oportunidades. Revista Parcerias Estratégicas. Maranhão, v.19, n.38, p. 13-44, 2014. Disponível em:  <http://seer.cgee.org.br/index.php/parcerias_estrategicas/article/viewFile/731/671>. Acesso em: 25 de fev. de 2021.

 

 

[1]  http://www.florestal.gov.br/ultimas-noticias/1893-fao-lanca-principais-resultados-do-relatorio-de-avaliacao-global-dos-recursos-florestais-fra-2020. Pg. 11

[3] https://blog.globalforestwatch.org/pt/data-and-research/dados-globais-de-perda-de-cobertura-de-arvore-2019/

[5] https://blog.globalforestwatch.org/pt/data-and-research/dados-globais-de-perda-de-cobertura-de-arvore-2019/

[6]  http://www.fao.org/forestry/45024-0c63724580ace381a8f8104cf24a3cff3.pdf. Pg. 12

[7] FGV. Coalizão Brasil clima, floresta e agricultura: eixo II: contribuições para análise da viabilidade econômica das propostas referentes à duplicação da área de manejo florestal sustentável: resumo executivo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas / Centro de Estudos em Sustentabilidade, 2016.

[8] Brasil. Lei 11.286 de 2 de março de 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11284.htm,

[9] SFB. Plano Anual de Outorga Florestal 2020. Disponível em: https://www.florestal.gov.br/publicacoes/1690-plano-anual-de-outorga-florestal-paof-2020

[10] https://www.florestal.gov.br/perguntas-frequentes/63-concessoes-florestais/88-perguntas-frequentes-sobre-concessoes-florestais. Acesso em: 20 fev 2021.

[11] MAPA. Plano Anual de Outorga Florestal (PAOF -2020). Pg. 11, 30.

[12] https://www.florestal.gov.br/ultimas-noticias/1893-fao-lanca-principais-resultados-do-relatorio-de-avaliacao-global-dos-recursos-florestais-fra-2020. Pg. 14

[13] FAO. Rethinking forest concessions. http://www.fao.org/3/I6037EN/i6037en.pdf. Pg. 13

[14] FAO. Rethinking forest concessions. http://www.fao.org/3/I6037EN/i6037en.pdf. Pg. 29

[15] FAO. Rethinking forest concessions. http://www.fao.org/3/I6037EN/i6037en.pdf. Pg. 32

[16] TCU. Auditoria Operacional nas Concessões Florestais – TC 021.791/2016-3.

[17] Cf. art. 53, da Lei nº 11.284, de 2006 – LGFP

[18] O RAP destina- se a avaliar a viabilidade ambiental do empreendimento. Deve ser apresentado na licença prévia e servirá de base para a exigência ou não do Estudo de Impacto Ambiental. O EIA é um estudo mais amplo e interdisciplinar que caracteriza ambientalmente a região de construção do empreendimento e define também os mecanismos de compensação e mitigação dos danos previstos.

[19] TCU. Auditoria Operacional nas Concessões Florestais – TC 021.791/2016-3. Parágrafo 47.

[20] TCU. Auditoria Operacional nas Concessões Florestais – TC 021.791/2016-3. Parágrafo 54 em diante.

[21] Área antropizada: área cujas características originais foram alteradas pela ação humana, como por exemplo alterações no solo, vegetação, relevo.

[22] CD. PL nº 5.518/2020. Altera a Lei n.º 11.284, de 2 de março de 2006, para conferir maior celeridade ao processo licitatório, flexibilidade aos contratos e atratividade ao modelo de negócio das concessões florestais.

[23] WRF. Indonesia: What is an Ecosystem Restoration Concession?

[24] FAO. The contemporary forest concessions in West and Central Africa: chronicle of a foretold decline?

[25] LOI e BARBOSA. A inversão da ordem das fases licitatórias na modalidade concorrência: um comparativo entre a lei estadual baiana 9.433/05 e a lei federal 8.666/93 e a proposta de projeto de lei nº 6.814/2017.

[26] Nota Técnica nº 1/2019/DCM/SFB.

[27] Idem.

[28] Idem.

[29] Resolução do CONAMA nº 406/2009.

[30] Idem.

[31] Instrução Normativa MMA nº 5 de 11/12/2006.

[32] Nota Técnica nº 1/2019/DCM/SFB.

[33] Idem.

 

Ismael Alves de Brito Neto e Raquel de Oliveira Alves são analistas de planejamento e orçamento federal do Ministério da Economia.

 

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Dívida e Riqueza: uma nova métrica para a solvência fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3412&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=divida-e-riqueza-uma-nova-metrica-para-a-solvencia-fiscal Wed, 10 Mar 2021 10:00:14 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3412 Por Renato Lembe

A economia brasileira é notória pelos seus paradoxos: fenômenos bizarros e inconcebíveis ocorrem aqui desde tempos imemoriais. Pelo menos, essa é uma suposição implícita compartilhada por muitos economistas brasileiros, os quais inventaram, inclusive, um termo para esses fatos anormais: “jabuticaba” (Franco, 2012)

Há quatro anos, o juro real brasileiro, dos mais altos do mundo, era a “jabuticaba” mais intrigante do país, tida como inexplicável à luz do pensamento convencional. Segundo a teoria padrão, juros reais em mercados livres refletem a (in)solvência fiscal: governos muito endividados, se comprometidos com a estabilidade de preços, porém relutantes em reduzir a despesa líquida corrente, precisam oferecer juros mais elevados para atrair a poupança privada necessária. Ceteris paribus, os juros reais tendem a superar àqueles de nações cujo governo deve menos.

Contudo, quando se comparam os dados brasileiros com os de outras economias, tanto desenvolvidas quanto emergentes, os juros reais do país não são explicados pelo seu patamar de dívida pública (se mensurada como uma fração do produto interno). Entre 2011 e 2016, os juros brasileiros eram o dobro dos da Islândia, por exemplo, embora a razão dívida/PIB aqui fosse menor.

Fonte: FMI

No mundo das “jabuticabas”, fatos excêntricos se atribuem a causas excêntricas. Em busca de explicações não-convencionais (Barboza, 2015), alguns economistas têm argumentado que a política monetária brasileira é excepcionalmente ineficaz, culminando em juros excessivos como forma de compensação. Outros sugerem que a resposta-chave de taxas anômalas é a incerteza jurisdicional. Um terceiro grupo, por sua vez, tem acusado as autoridades monetárias de formar um “conluio” com sistema financeiro, oligopolizado por cinco bancos – todos interessados em preservar juros elevados por razões políticas e gerenciais.

Independentemente do valor de cada posição, o fato é que, segundo os dados internacionais, o raciocínio convencional também não se aplica aos juros reais de outras nações. Especialmente quando se consideram economias avanças, juros e dívida não parecem estar correlacionados de forma alguma.

Surge imediatamente uma questão: por que os investidos preferem alocar seus recursos em economias desenvolvidas, mais endividadas e menos rentáveis, do que em economias em desenvolvimento, menos endividadas e mais lucrativas? A diferença institucional é tida como a resposta-chave para solucionar esse aparente paradoxo. Todavia, a lógica convencional ainda pode elucidar o problema, se aplicada de um outro modo.

Reagindo à hipótese do excepcionalíssimo brasileiro, os economistas Gustavo Franco e Evandro Buccini (2017) argumentaram que a dívida pública não deve ser mensurada como uma fração do produto interno, mas da riqueza privada. A razão para tanto é simples e direta: títulos públicos são comprados não com a renda dos investidores (a qual pode ser totalmente consumida pelas despesas cotidianas), mas com a sua riqueza financeira, ou a sua poupança.

Do ponto de vista meramente matemático, esse detalhamento conceitual seria irrelevante se a proporção entre renda nacional e riqueza privada fosse estável ao redor do globo – mas ela não é: duas economias com o mesmo PIB per capita podem diferir significativamente em termos de riqueza particular. Essa diferença existe, dentre outras razões, porque a renda nacional é um fluxo que se mede anualmente, enquanto a riqueza privada é um estoque que se acumula no tempo. É irrelevante para a mensuração da renda corrente a produção do período anterior, mas esta não o é para a mensuração da riqueza atual. Bens duráveis produzidos em 2020, por exemplo, não serão incluídos na produção de 2021, mas certamente serão na riqueza de 2021, na medida em que ainda estarão disponíveis para consumo. Um corolário desse raciocínio é que nações industrializadas tendem a ser mais prósperas que nações primário-exportadoras, assumindo renda equivalente. Portanto, supondo iguais PIB e dívida, um país do primeiro tipo gozaria de maior poupança privada para financiar o setor público e, pois, estaria efetivamente menos endividado do que um do outro tipo.

Fonte: FMI, Global Wealth Report

O segundo gráfico, construído a partir desse novo método, evidencia que a dívida pública pode explicar as altas taxas de juros do Brasil, salvando, inclusive, o pensamento convencional do descrédito. Se os dados do Japão (outlier da direita) fossem removidos, dívida e juros reais estariam ainda mais correlacionados.

Obviamente, este texto não é propriamente científico. Ele apenas sugere uma constatação verossímil: embora a mensuração da riqueza privada esteja sujeita a uma série de desafios metodológicos e conceituais, as vantagens práticas e teoréticas dessa nova abordagem não podem ser subestimadas. A teoria macroeconômica evoluiria muito, acredito, se se aprimorasse a aferição da riqueza, de modo a torná-la um confiável denominador de comparação internacional.

Não foi por acaso, creio eu, que Adam Smith e Jean-Baptiste Say, os pais da ciência econômico, se interessaram mais pela riqueza do que pela renda: seu poder explicativo parece compreender um número maior de fenômenos econômicos – incluso nestes as “jabuticabas” brasileiras.

 

Referências

Franco, G. (2012). As Leis Secretas da Economia: Revisitando Roberto Campos e as leis do Kafka. Rio de Janeiro, Brazil: Zahar.

Buccini, E. (2017). Riqueza e ‘intolerância com dívida’: Estimativas empíricas muito preliminares [online]. Available at: http://www.gustavofranco.com.br/uploads/files/EB75%20paper%20riqueza%20final_limpo_.pdf  [Accessed 20 Feb. 2021].

Barboza, R. (2015). Taxa de juros e mecanismos de transmissão da política monetária no Brasil. Revista de Economia Política, 35(1), 133-155.

 

Renato Lembe é graduado em economia pela FAAP, analista de crédito corporate e mestrando em economia na Bocconi.

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Sistema político passou ao incentivado presidencialismo de cooptação https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3404&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=sistema-politico-passou-ao-incentivado-presidencialismo-de-cooptacao Fri, 19 Feb 2021 13:30:44 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3404 Sistema político passou ao incentivado presidencialismo de cooptação

 

Parlamentares ficam soltíssimos para defender interesses pessoais e grupais

 

 Por Roberto Macedo

 

Há o presidencialismo de coalização, descrito como uma combinação do presidencialismo com o apoio de uma coalizão multipartidária no Legislativo. Segundo o cientista político Sérgio Abranches, que criou esse conceito, “… é um requisito imprescindível da governabilidade no modelo brasileiro. Nem todos os regimes presidenciais multipartidários dependem tanto de uma coalizão majoritária. No Brasil, as coalizões não são eventuais, são imperativas. Nenhum presidente governou sem o apoio e o respeito de uma coalizão. É um traço permanente de nossas versões do presidencialismo de coalizão”.

E há o presidencialismo de cooptação. Nele o presidente busca o apoio de parlamentares por meio do toma lá verbas e cargos e o dá cá apoio parlamentar. Outra diferença relativamente ao de coalização é que essa troca se dá com parlamentares específicos, ou um grupos deles, e pode ser feita mesmo contrariando a orientação das lideranças e dos programas partidários.

A recente eleição para a presidência da Câmara e a do Senado foi bem mais na linha da cooptação do que da coalizão. Meu artigo anterior neste espaço destacou a reportagem deste jornal Por eleição, Planalto libera R$ 3 bi a parlamentares, publicada em 29 de janeiro. Nela, o que chamou a atenção foi a grande dimensão desse valor, a coincidência dos entendimentos com o período pré-eleitoral nas duas Casas e o amplo alcance de negociações individuais. O ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, que tentou articular uma candidatura em oposição à apoiada pelo Executivo, até reclamou quanto à cooptação praticada.

O senador Tasso Jereissati, em entrevista ao jornal O Globo digital no domingo passado, afirmou: “… esse período agora é diferente, (…) todos os partidos, todos, foram triturados (…) pelo processo eleitoral de Senado e Câmara. (…) Sempre teve isso, mas os partidos também tinham um grande peso. Agora os partidos foram ignorados como se não existissem. (…) o processo (…) nas duas Casas do Congresso foi na base da captação de votos individual”.

A cooptação individualizada envolveu grupos de tamanho relevante no contexto das organizações partidárias, mas também houve dentro delas grupos contrários à cooptação, com o que vieram rachas partidários marcados por posições opostas na eleição. O mais evidente foi no DEM, de Rodrigo Maia, onde alcançou o grupo dele em contraposição ao do ex-prefeito de Salvador Antônio Carlos Magalhães Neto. Os dois até trocaram impropérios em declarações à imprensa.

Outro racha muito citado foi no PSDB. Aí a liderança do governador João Doria alcançava deputados que votaram em Baleia Rossi, o candidato articulado por Rodrigo Maia. Mas houve também quem optasse por Arthur Lira, o candidato de Bolsonaro. O deputado tucano Aécio Neves, uma liderança em evidente declínio nacional, ainda assim foi apontado por Doria como um dos mobilizadores desse apoio, novamente com troca de insultos entre as partes.

Esses dois partidos terão enorme trabalho para recuperar sua identidade programática, e arregimentar seus membros em torno dela, se quiserem ter uma influência de peso nas eleições de 2022. Tudo isso tem como pano de fundo um sistema partidário e eleitoral que cria incentivos para os parlamentares buscarem as cooptações. Não havendo o voto distrital, eles não são cobrados pelos eleitores ao longo de seus mandatos, nem tomam por si a iniciativa de relatar o que fazem, ficando assim soltíssimos para defender interesses pessoais e de grupos que os pressionam. Esse comportamento é também aético, pois se desvia do que, como representantes do povo, e não de si mesmos ou desses grupos, deveria marcar as atitudes parlamentares, a defesa do bem comum.

Temas como a retomada do crescimento econômico, o enorme tamanho e a disfuncionalidade do Estado brasileiro, as carências educacionais, sanitárias, ambientais e tecnológicas, a imagem do Brasil no plano internacional, onde está bem atrás dos países que mais avançam, nada disso parece despertar seu interesse e o empenho em ações corretivas. Salvo exceções cada vez mais excepcionais, o que os move mesmo é o interesse em renovar seus mandatos, para o que focam nas distribuições de benesses, sem ponderar seus custos, e no apoio político inquestionado a quem tem o poder de financiar seus projetos eleitorais.

No contexto desse poder, tem papel importante a enorme quantidade de cargos governamentais a oferecer e a liberação de verbas de interesse exclusivo dos parlamentares e de seus apoiadores, as quais constituem financiamento público indireto de campanhas eleitorais, em prejuízo de candidatos não incumbentes.

Mas a Constituição não diz que todos são iguais perante a lei? Ora, no Brasil é costume dizer que leis são como vacinas: umas pegam, outras não. Assim, o momento atual, o das vacinas previamente testadas, deveria servir para o País buscar vacinas legais eficazes contra nossos muitos males político-institucionais.

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 18 de fevereiro de 2021.

 

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Ao escolher o presidente, Câmara ignorou seus representados https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3402&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=ao-escolher-o-presidente-camara-ignorou-seus-representados Fri, 05 Feb 2021 14:56:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3402 Ao escolher o presidente, Câmara ignorou seus representados

Os congressistas deveriam explicar aos eleitores o seu voto e a razão

Por Roberto Macedo

A Carta Magna de 1988 diz no seu artigo 1.º, parágrafo único, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A julgar por isso, a recente eleição de Arthur Lira (PP-AL) para presidente da Câmara seria inconstitucional, tamanha a distância que a maioria dos seus deputados manteve do povo.

O que se viu foi um processo de vassalagem a um candidato que não teria vencido se não fosse o apoio recebido do presidente Jair Bolsonaro, até mesmo sob forma que anteriormente abominava, o toma lá de verbas e cargos, e o dá cá de votos, vistos como o melhor para lhe evitar incômodos, como um processo de impeachment e comissões parlamentares de inquérito. E também para facilitar medidas para aumentar sua popularidade e suas chances de reeleição em 2022. O anterior presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, não se curvava diante de Bolsonaro, já Lira deve responder com gratidão.

Quanto a isso, merece destaque a reportagem Por eleição, Planalto libera R$3 bi a parlamentares, publicada por este jornal no último dia 29. Lamentavelmente, negociações de liberação de recursos para parlamentares em troca de apoio político no Congresso é prática antiga e comum em Brasília, mas o que chamou a atenção agora foi a dimensão do valor e a coincidência com o período pré-eleitoral nas duas Casas do Congresso.

Quanto a essas negociações, o jornalista Carlos Brickmann fez esta comparação: “Para evitar o constrangimento de levar uma proposta indecente a um parlamentar decente”, o que procurasse o governo ou fosse chamado para negociar deveria portar um código de barras para mostrar o valor de seu interesse, e acelerar as negociações.

Nos Estados Unidos, propostas legislativas feitas por congressistas em favor de seus redutos eleitorais são chamadas de earmarks, como aquelas plaquinhas colocadas em orelhas de bovinos. Lá são combatidas por uma instituição chamada CAGW (Cidadãos contra o Desperdício Governamental), como não cabíveis num orçamento federal que deve ser voltado para o bem comum, e não para interesses específicos e locais. Aqui caberia iniciativa similar, pois tais emendas parlamentares e outras verbas que recebem violam outro dispositivo constitucional, o de que todos são iguais perante a lei, pois no processo eleitoral os candidatos já incumbentes são beneficiados por essas dotações relativamente aos candidatos sem mandato. Assim, elas constituem indiretamente um financiamento público de campanhas, que distorce a competição entre candidatos.

Voltando à representação dos eleitores, a brasileira é extremamente frágil. Vivi em países com voto distrital, em que o eleito passa a representar um distrito, e não apenas aqueles que o elegeram, e tem o hábito de prestar contas aos moradores distritais ao longo de seu mandato, sem o que poria em risco a renovação dele. Houvesse isso aqui, os congressistas deveriam estar agora explicando em quem votaram na segunda-feira passada e a razão. Muitos enfrentariam problemas, pois a avaliação de Bolsonaro vem caindo e está perto de 30% a proporção dos que veem sua gestão como ótima ou boa. Aliás, a representatividade dos parlamentares eleitos no Brasil é tão baixa que é como se eles fossem parlamentares cometas, pois só aparecem diante do eleitor a cada quatro anos, em busca de votos.

No Senado, o resultado pareceu-me diferente do da Câmara e não tão ruim. Foi eleito o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) por maior margem relativa de votos, tendo como adversária apenas uma concorrente simbólica, Simone Tebet (MDB-MS), que disputou individualmente. Seu próprio partido deixou de apoiá-la. Bem articulado, Pacheco teve apoio até do PT.

Li na Agência Brasil reportagem sobre seu discurso de posse e destaco estes trechos: “Defendeu a independência da Casa, o combate à corrupção, a geração de empregos, o combate à pandemia, a estabilidade econômica e a preservação do meio ambiente. (…) (O Senado deve) atuar com vistas no trinômio saúde pública, desenvolvimento social e crescimento econômico, com o objetivo de preservar vidas humanas, socorrer os mais vulneráveis, gerar emprego e renda. (…) também citou as reformas, sobretudo a tributária. (…) votações de reformas que dividem opiniões (…) deverão ser enfrentadas com urgência, mas sem atropelo”. Em tese, tudo muito bonito.

Pacheco chegou ao Congresso em 2014, como deputado federal, e no seu primeiro mandato alcançou a presidência da importante Comissão de Constituição e Justiça, o que demonstra poder de articulação, ratificado pela eleição recente. Seu currículo não levanta tanto as sobrancelhas como o de Arthur Lira, mas tem sido criticado por conflito de interesses entre suas ações políticas e negócios da família.

O que quero mesmo é um Brasil melhor, mas tenho minhas dúvidas quanto à eficácia, nessa direção, dos novos presidentes da Câmara e do Senado, principalmente do primeiro. Certo mesmo é que vou acompanhar de perto o trabalho deles.

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 4 de fevereiro de 2021.

 

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A regra de transição de 30 anos das linhas de ônibus interestaduais https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3394&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-regra-de-transicao-de-30-anos-das-linhas-de-onibus-interestaduais Tue, 19 Jan 2021 15:08:50 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3394 Por Liliane Galvão e Rodrigo Novaes

“Se quisermos que tudo continue como está,

é preciso que tudo mude”.

Giuseppi Tomasi de Lampedusa

O Transporte Rodoviário Interestadual e Internacional de Passageiros (TRIIP), a partir da promulgação da Lei nº 12.996, de 18 de junho de 2014, passou a ser outorgado por autorização. A Lei alterou dispositivos da Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, que trata das competências da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), reguladora do setor.

A autorização como forma de outorga do TRIIP é estabelecida pelo  art. 43, inciso II, dessa Lei, e tem as seguintes características:

  1. a) independe de licitação;
  2. b) é exercida em liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competição;
  3. c) não prevê prazo de vigência ou termo final, extinguindo-se pela sua plena eficácia, por renúncia, anulação ou cassação.

O modelo de autorizações para o TRIIP tem sido alvo de ataques tanto no Poder Judiciário – por meio de duas ações diretas de inconstitucionalidade que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) –, como no Poder Legislativo – por meio do Projeto de Lei (PL) n° 3.819, de 2020.

O objetivo dessas investidas parece ser a permanência da situação atual de um mercado fechado e sem concorrência – ou seja, manter os atuais incumbentes com liberdade de praticar os preços que entenderem adequados aos seus interesses sem serem ameaçados por novos entrantes.

O Poder Executivo, por meio do Decreto nº 10.157, de 4 de dezembro de 2019, buscou, justamente, equacionar essas questões, regulamentando o comando atual da Lei nº 10.233, de 2001. Espera-se com isso beneficiar a população, proporcionando um sistema de preços livres, em um ambiente competitivo e sem exclusividade de linhas, o que deve levar à queda de preços e ao aumento de oferta.

Na contramão desta iniciativa, no último dia 22 de dezembro, o Senado Federal remeteu à Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei (PL) nº 3.819, de 2020, que altera a Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, para – novamente – alterar os critérios para a outorga de autorização da operação do TRIIP.

Apesar de o projeto ter sido aprovado na forma de um substitutivo, que manteve a possibilidade da operação do TRIP no regime de autorização, o texto proposto para o art. 47-B da Lei nº 10.233, de 2001, estabelece um conceito de “inviabilidade técnica, operacional e econômica” para limitar o número de autorizações e obrigar a realização de um processo seletivo público para escolha das empresas autorizatárias. Os critérios para a caracterização desta “inviabilidade” serão definidos pelo Poder Executivo; as regras do processo seletivo, pela ANTT.

Na prática, a depender das regras a serem criadas pelo Poder Executivo, poderá ser exigida a realização de processo de seleção, cujas regras da competição, como mostra a história recente do TRIIP, tendem a ser bastante restritivas. Além disso, regulamentos deixados a cargo do Poder Executivo podem ser alterados ao sabor das conveniências do momento, como se vê em todos os setores regulados.

Nesse contexto, o objetivo deste artigo é contribuir para a avaliação do modelo legal vigente para o mercado do TRIIP. Iniciaremos com a apresentação de um relato cronológico da regulamentação do TRIIP. Em seguida, argumentaremos sobre a adequação do marco regulatório vigente para a operação do TRIIP.

Relato cronológico da regulamentação do TRIIP

Ao longo da história, o transporte rodoviário de passageiros no Brasil sempre foi prestado por meio de autorizações outorgadas pela União a particulares, em caráter precário e sem licitação.

Com o advento da Constituição de 1988, que previa licitação para outorga de concessão ou permissão de serviços públicos (art. 175, parágrafo único e incisos), foi editado o Decreto nº 99.072, de 8 de março de 1990, para alterar o regulamento dos serviços públicos rodoviários de transporte coletivo de passageiros, e exigir licitação, na modalidade de concorrência, para a exploração dos “serviços públicos rodoviários de transporte coletivo de passageiros, interestaduais e internacionais, quando não prestados diretamente”.

Como as linhas existentes não haviam sido licitadas, foi estabelecido por decreto que elas somente poderiam ser exploradas até outubro de 2008 – tempo mais do que suficiente para amortizar os investimentos em ônibus, cuja depreciação se dá, em média, entre sete e dez anos. Mesmo contando com prazo tão extenso, as licitações que regularizariam as linhas do TRIIP jamais foram realizadas. Assim, as autorizações vigentes foram sucessivamente prorrogadas com a justificativa de que os serviços de transporte não poderiam sofrer descontinuidade.

Quando, finalmente, foi publicada a licitação das linhas, em 29 de agosto de 2013, o edital foi questionado por um sindicato de empresas de transportes do estado de São Paulo. A licitação foi suspensa por decisão judicial, e, posteriormente, cancelada em razão da entrada em vigor da Lei nº 12.996, de 18 de junho de 2014, que estabeleceu a autorização como modalidade de outorga do TRIIP, fosse ele regular ou especial.

Embora a nova lei preveja, em seu art. 5º, que as autorizações especiais deveriam ter sido extintas no período de um ano contado de sua publicação, também consta nela que tal prazo poderia ser prorrogado a critério do então ministro de Estado dos Transportes, mediante proposta da ANTT. Somente um ano após a alteração do marco legal do setor é que a Agência editou a Resolução nº 4.770, de 25 de junho de 2015, para disciplinar o novo regime de outorgas.

Essa norma criou um regime de transição para que a ANTT promovesse “estudos de avaliação dos mercados, com o objetivo de detalhar e estabelecer os parâmetros de avaliação dos casos enquadrados como inviabilidade operacional”. Nesse período, o número de autorizatárias por mercado (ligação entre pares de cidades) ficou limitado (i) à quantidade de autorizatárias existentes por mercado e (ii) a duas transportadoras em cada mercado novo.

Ao impor o número de vagas por mercado e conferir preferência aos transportadores nele estabelecidos, a ANTT criou, sem previsão legal, barreiras à entrada de novas transportadoras, em favorecimento às incumbentes.

Assim, pela via regulatória, a ANTT manteve o mercado em completo desacordo com as características do modelo de autorização que, conforme o art. 43, inciso II, da Lei nº 10.233, de 2001, “é exercida em liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competição”.

Somente em 18 de junho de 2019, em decorrência do que previa o art. 4º da Lei nº 12.996, de 2014, que estabeleceu prazo de cinco anos para o controle de preços máximos e mínimos no TRIIP, o mercado passou a atuar em regime de liberdade de preços. As transportadoras, porém, continuam, em sua grande maioria, prestando os serviços em caráter precário, usufruindo do regime de autorização especial que lhes fora anteriormente concedido.

Na prática, a situação atual, então, é a de um mercado fechado, sem concorrência, em que os incumbentes, paradoxalmente, têm liberdade de preços. Não há elementos que indiquem que essa situação atenda ao interesse público de forma satisfatória, já que o estabelecimento tanto de monopólios quanto de oligopólios em que haja um líder claro de mercado produz a chamada “perda de peso morto”. Em suma, o monopolista (ou o líder do oligopólio) estabelece um preço acima do que seria possível com competição eficiente, abrindo mão da parte da demanda que poderia pagar esse preço menor, para extrair mais lucro dos consumidores dispostos a desembolsar o preço cobrado.

Com a edição do Decreto nº 10.157, de 4 de dezembro de 2019, que “institui a Política Federal de Estímulo ao Transporte Rodoviário Coletivo Interestadual e Internacional de Passageiros”, esperava-se que, finalmente, fosse possível fazer valer o regime de liberdade tarifária, em ambiente competitivo e sem exclusividade das linhas, nos termos previstos pela Lei nº 12.996, de 2014. Isso, porém, ainda não ocorreu, visto que tanto o Decreto quanto a Lei que o fundamenta são alvos de enormes embates jurídicos, que têm como objetivo claro a permanência do regime de transição que dura até os dias atuais.

E assim, o mercado de TRIIP, passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição, ainda vive em uma situação que poderia ser descrita como o “jeitinho brasileiro”, sob o eterno pretexto da necessidade de continuidade dos serviços.

A adequação da operação do TRIIP no regime de autorizações

As autorizações trazem benefícios ao interesse público na grande maioria dos casos, pois se destinam a reduzir, de forma bastante significativa, os custos para entrada no mercado. Ao acabar com critérios de escolha discricionários, já que, sendo ato vinculado, a autorização deve ser dada a todos os que preenchem os critérios estabelecidos em Lei, amplia-se a competição no mercado, que atualmente é inexistente ou ineficaz.

Não vemos boa razão para essa proteção do mercado do TRIIP. O argumento principal é que o regime de competição pode deixar localidades desatendidas. Porém, em primeiro lugar, não há razão econômica para que as empresas incumbentes façam grandes desinvestimentos em linhas superavitárias. Mesmo que isso ocorra pontualmente – por exemplo, para atendimento a uma rota potencialmente mais lucrativa em um mercado próximo – deve-se considerar que, sendo livre a entrada de qualquer empresa, de qualquer porte, em pouco tempo outro operador reestabelecerá o serviço. Não havendo exigências excessivas de frequência mínima e de idade da frota, o investimento necessário é bastante pequeno. Considerando uma região com cidades com distância de 400 km entre elas, um único ônibus consegue distribuir passageiros de um ponto central a, no mínimo, sete outras localidades, com frequência semanal, restando ainda tempo suficiente para sua manutenção.

O transporte de longa distância, como é o caso do transporte interestadual, não tem a característica pendular que marca o transporte semiurbano, em que a disponibilidade de determinados horários é extremamente importante, já que o passageiro não compra a viagem com antecedência. Nos serviços de longa distância, os passageiros simplesmente se programarão para viajar nos dias e horários disponíveis, e o mercado pode se ajustar sem grandes dificuldades.

Portanto, não consideramos que haja prejuízo à qualidade do transporte com as autorizações.

Também não deverá haver prejuízo ao acesso ao transporte pela descontinuidade de rotas de menor demanda. A grande maioria das rotas deve ser superavitária, já que as empresas que as operam estão no mercado há décadas. As rotas que sejam deficitárias, inclusive as que estejam nessa condição após a pandemia da covid-19, podem sofrer ajustes de preços de modo a refletir seu real custo. De fato, com a redução das barreiras, o número de rotas ofertadas deve ser maior do que seria com a regulação anterior nas mesmas condições de mercado, seja porque rotas antes inviáveis passam a fazer sentido econômico, seja porque operadores que antes trabalhavam na clandestinidade podem se regularizar, formando empresas ou cooperativas autorizadas.

A linha de argumentação de redução de acessibilidade parte do pressuposto de que há linhas cronicamente deficitárias no sistema, e que essas linhas são de interesse social. Se esse for o caso, no entanto, devemos no perguntar: será que, de fato, é essencial o acesso frequente de passageiros de pequenas localidades a centros maiores em uma unidade da federação diferente daquela em que residem? Caso a resposta seja positiva, prosseguimos: quem deve pagar por esse acesso? Dificilmente há algum sentido econômico ou mesmo social em fazer com que o passageiro de ônibus da cidade vizinha pague essa conta, que é o que aconteceria em um modelo de operação em linhas superavitárias e deficitárias. Nesse caso, deveria haver a definição de uma rede de interesse social e de uma fonte de recursos pública para subsidiar essa operação.

Outra alegação bastante presente na argumentação contrária ao regime de autorizações é o “problema” do excesso de oferta em rotas superavitárias.

Parte da suposta injustiça causada por essa situação se explicaria pela utilização das receitas obtidas na operação dessas linhas para subsidiar linhas deficitárias, argumento que não deve prosperar, pelo motivo que acabamos de expor.

Outra parte é, simplesmente, a busca de compensação por uma posição de antiguidade no mercado, comportamento observado em diversos setores diante de potenciais mudanças de regras. Contudo, a história demonstra que os reguladores devem evitar encampar esse tipo de ideia, já que, cedo ou tarde, tecnologias disruptivas destroem o excedente de arrecadação proveniente de uma posição inicialmente vantajosa – como aconteceu com a entrada das linhas aéreas de baixo custo, ou com a concorrência dos aplicativos de transporte com os táxis.

Além do mais, onde é permitida a exploração de posições de mercado privilegiadas, seja por antiguidade ou por monopólio natural, o correto é que ao menos parte dos recursos arrecadados seja destinada ao poder público, para reinvestimento em outros setores, mediante o pagamento de outorga. Ainda que o modelo outorgado do TRIIP contivesse linhas deficitárias, se a soma dos lucros econômicos esperados é positiva, o pagamento ao Estado pela continuidade da operação das linhas seria devido, como mostram as concessões de aeroportos em blocos. No entanto, no caso do TRIIP, nada é repassado ao poder público em razão do usufruto do direito de explorar linhas de ônibus antigas, apenas se paga uma taxa de fiscalização à ANTT, de valor irrisório.

Ainda nesse quesito, há uma ressalva importante a fazer: o que se chama muitas vezes de “concorrência predatória” é a entrada de uma empresa mais eficiente no mercado, em relação à incumbente. Essa empresa consegue vender a preços menores porque produz a preços menores, não porque tenha uma estratégia de criação de monopólio. Certamente, é uma situação muito difícil para a incumbente, que precisa cortar custos ou ganhar escala de produção para sobreviver. Esse movimento, porém, é considerado parte das regras do jogo no sistema capitalista, já que se entende que a redução de ineficiências é, em geral, positiva para a sociedade. É verdade que a empresa mais eficiente pode aumentar seus preços após a falência da incumbente original. Porém, em um mercado contestável, há uma margem bastante pequena para esse tipo de comportamento, já que ele atrairia novos entrantes. De toda forma, socialmente, o aumento de excedente do produtor ainda é mais positivo do que a perda por ineficiência, já que pode estimular a inovação e a entrada em outros mercados, fomentando a competição.

Quanto aos questionamentos de lisura nos processos de autorização, embora seja possível que agentes corruptos retardem alguns processos e favoreçam outros, esse é um problema de polícia, que não pode ser resolvido por uma lei ou decreto. Ora, naturalmente, em uma rota que não estivesse sendo operada, não haveria nenhum mal em conceder autorização a quem quer que fosse para que se pudesse testar a viabilidade de uma entrada. O que está em jogo realmente é se o “sistema que funciona hoje” – com uma ou duas empresas, muitas vezes pertencentes ao mesmo grupo atuando em cada mercado – deve ser protegido da entrada de novos autorizados, sob o pretexto de que pode haver algum tipo de falha de governo nessa transição. Acreditamos que os potenciais benefícios da opção por uma menor regulação sejam muito superiores a esses prejuízos, que, de todo modo, sempre podem ser objeto de correção de rumo por parte da Agência Reguladora.

Também é improcedente argumentar que as autorizações prejudicarão o usuário, já que não há qualquer diferença nas regras de gratuidade, de segurança, e de regularidade e constituição de pessoa jurídica entre uma empresa autorizada e outra – e as atuais operadoras devem, de toda forma, se enquadrar no novo regime, já que a situação delas é, como vimos, bastante problemática.

A autorização não passa pelo processo de “concorrência pelo mercado” (licitação) justamente porque ela está livremente disponível para qualquer empresa que atenda aos critérios preestabelecidos e publicados de participação no mercado, e que tenha interesse comercial na operação. Ou seja, a concorrência se dá diretamente no mercado, onde as empresas têm capacidade de demonstrar diretamente suas boas práticas e sua eficiência. Ao contrário, a concorrência pelo mercado privilegia empresas de maior porte, bem estabelecidas e, muitas vezes, com conexões políticas na Agência Reguladora.

Quanto a possíveis alegações de que o modelo de autorização facilitaria conluios ou a concorrência predatória, esses são crimes contra a ordem econômica, tipificados pela Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990 (art 4º, I e II).

Não se deve, em nossa opinião, questionar o novo modelo pelo potencial de produzir atos criminosos, já que existe o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para lidar justamente com esses casos. E, ainda que fôssemos por esse caminho, é muito mais fácil fazer acordos para divisão de licitação entre poucas empresas do que uma ação coordenada com todas as empresas do mercado para evitar entradas em um ambiente livre.

Neste momento em que a ANTT busca colocar em prática novas regras, acreditamos que o melhor caminho seria observar o comportamento do mercado e promover as correções necessárias – seja em nível infralegal ou legal – com base nas falhas que surgirem. Alterar mais uma vez o marco regulatório quando se está prestes a resolver o problema do mercado terminará por estender a situação transitória, o que contribuirá para perpetuar o privilégio das empresas incumbentes, que exploram os serviços sem nem mesmo oferecer qualquer contrapartida à União.

Conclusão

O setor de transporte rodoviário internacional e interestadual de passageiros vem operando por mais de vinte e cinco anos sem licitação, por meio de autorizações precárias.

A configuração atual do mercado é péssima para o interesse público e extremamente benéfica para os operadores incumbentes, que se encontram, neste momento, no melhor de dois mundos: possuem ao mesmo tempo a liberdade de preços de um sistema competitivo e a proteção de mercado de um sistema concedido.

O que nos parece o mais adequado à realidade tanto do mercado quanto da capacidade regulatória da ANTT é a efetivação, na prática, do modelo de autorizações proposto desde 2014, pois nada indica que o resultado de um eventual esforço de realização de alguma forma de processo seletivo para entrada no mercado será diferente do ocorrido na última tentativa de licitação das linhas, em que foi travada uma guerra na Justiça para procrastinar o andamento da licitação. Mantido o comportamento histórico dos agentes do setor, a situação atual de privilégio dos operadores incumbentes prosseguirá por mais alguns anos, quiçá décadas.

Embora tenha havido tentativas de regularizar a situação das empresas que se encontram no mercado, ao que tudo indica, muitas dessas próprias empresas se dispõem a lutar para que a situação atual permaneça, adotando o caminho ilustrado na obra O Leopardo, de Giuseppi Tomasi de Lampedusa: “se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”.

Liliane Galvão e Rodrigo Novaes são consultores do Senado Federal.

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O novo marco do saneamento e a remoção da barreira aos investimentos privados https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3391&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-novo-marco-do-saneamento-e-a-remocao-da-barreira-aos-investimentos-privados Mon, 18 Jan 2021 19:57:49 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3391 Por Cíntia Leal Marinho de Araújo, Gabriel Godofredo Fiuza de Bragança & Diogo Mac Cord de Faria

A aprovação da Lei 14.026/2020 (Novo Marco Legal) é um divisor de águas no saneamento básico brasileiro. Ela traz inúmeras inovações liberalizantes no aparato legal do mercado e estabelece obrigações para a universalização dos serviços de água e esgoto até 2033[1]. Os investimentos necessários para a consecução dessa universalização são estimados em R$ 753 bilhões de reais[2]. Trata-se de um montante vultoso que demandará uma participação significativa de recursos privados. Dada a magnitude desse desafio, concentraremos o presente artigo em analisar a contribuição do atual marco legal para a remoção de barreiras históricas ao investimento privado nos setores de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Por conta disso, a análise do setor de saneamento básico neste artigo terá como foco esses dois segmentos[3].

Os setores de água e esgotamento sanitário quando pensados conjuntamente, além de tratarem da provisão de um bem essencial e sem substitutos, possuem peculiaridades como economia de escala e elevado custo dos investimentos que os caracterizam como um caso clássico de Monopólio Natural em que não é economicamente eficiente ter mais do que uma firma provendo os serviços. Essa característica faz com que seja economicamente eficiente que a prestação desse serviço seja estruturada de forma que uma localidade seja atendida por apenas um prestador. Por outro lado, para evitar que haja abuso de poder de mercado, capturar ganhos de eficiência e maximizar o bem estar social, monopólios naturais demandam uma regulação apropriada e ainda mais cuidados para garantir que haja concorrência pelo direito de oferta do serviço de partida. Em outras palavras, é primordial que se promova no saneamento básico uma concorrência efetiva pela prestação do serviço (competição pelo mercado) ainda que não seja salutar que haja concorrência na prestação do serviço (competição no mercado).

Apesar de se tratar de um princípio econômico plenamente consolidado, o aparato normativo do setor de saneamento básico brasileiro escolheu ignorá-lo até a sanção do Novo Marco Legal. A legislação que vigorava até a edição da Lei 14.026/2020 inviabilizava a devida competição pelo serviço através de um processo licitatório, criando barreiras quase intransponíveis para que o prestador privado concorresse pela prestação do serviço. Na prática, a estrutura normativa posta impossibilitava que ganhos de eficiência fossem exauridos no início da operação em benefício da sociedade.

O mais curioso é que essa incongruência econômica se dava também ao arrepio de comandos constitucionais. O art. 175[4] da Constituição Federal é bastante claro com a necessidade de que esse tipo de prestação seja submetido a um procedimento licitatório, havendo inclusive manifestação pela irregularidade de contrato de prestação de serviço por contrariar a regra constitucional[5].

O que se verificou na prática foi a utilização de artifícios jurídicos engenhosos para não submeter a prestação desse serviço a um procedimento competitivo e delegar a prestação do serviço à Companhia de Saneamento do Estado. Esses subterfúgios, além de violarem o preceito constitucional, também se caracterizam como uma barreira à entrada para que o privado dispute essa prestação de serviço público.

O preço pago pela sociedade é alto. Essa situação tem óbvia relação com o atual cenário do saneamento básico, em que quase 100 milhões de brasileiros não possuem acesso a esgotamento sanitário, e mais de 30 milhões ainda não possuem abastecimento de água[6].

1           A situação de atendimento do setor e a necessidade de endereçar

Atualmente, o setor de saneamento básico conta, majoritariamente, com a operação das companhias estaduais de saneamento básico – CESBs, que estão presentes em 72% dos municípios. Por outro lado, o setor privado atende apenas 5,2% dos municípios e 25,7% são atendidos pelos serviços municipais (ABCON, 2020). Nota-se que a somatória[7] ultrapassa 100%, isto se deve ao fato de que em muitos municípios o operador público presta apenas o serviço de abastecimento de água, cabendo ao privado o serviço de coleta e tratamento de esgoto.

A prestação do serviço de abastecimento de água e de esgotamento sanitário por diferentes operadores não tende a ser eficiente por não se beneficiar das economias de escopo pela prestação concomitante desses serviços pelo mesmo operador (NAUGES; VAN DEN BERG, 2008). Todavia, a prestação desses serviços por diferentes operadores está entre uma das inúmeras ineficiências observadas no setor.

Muitas vezes isso ocorre pela falta de capacidade do público em prestar o serviço de esgotamento sanitário, que muito se deve pela indisponibilidade de capacidade econômica financeira para realizar os investimentos necessários para o serviço. Assim, esse serviço é subdelegado a um prestador privado com capacidade para tal, o que explica a diferença entre o número total de prestadores e o número de municípios.

Apesar de estar presente em apenas 5,2% dos municípios, dados da Abcon (2020) mostram que o setor privado foi responsável por mais de 20% dos investimentos direcionados ao setor em 2018.

Segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS, em 2018, o total de investimentos realizados por todos os prestadores de serviços no setor correspondeu a R$ 10,959 bilhões. Esses valores estão muito aquém do necessário para universalizar o saneamento no Brasil. Conforme mencionado anteriormente, serão necessários R$ 753 bilhões em investimentos para que a universalização do setor seja possível até o ano de 2033, conforme meta do Plano Nacional de Saneamento Básico – Plansab.

Para se atingir essa meta nos próximos anos, serão necessários muito mais investimentos do que o montante investido atualmente no setor. A grande necessidade de investimentos ocorre pois além dos investimentos necessários para a expansão do atendimento, também sendo preciso realizar investimentos para compensar a depreciação.

Segundo destacou o estudo da Abcon, do montante total estimado de investimentos, R$ 255 bilhões serão necessários apenas para repor a depreciação do estoque de capital, enquanto para a expansão da rede para a universalização do serviço serão necessários mais R$ 144 bilhões para abastecimento de água e R$ 354 bilhões para esgotamento sanitário, totalizando R$ 498 bilhões.

Esses investimentos na melhoria, manutenção e recomposição dos sistemas de saneamento básico se fazem extremamente necessários, especialmente quando se avalia os dados de perdas de água na distribuição. A Tabela 1 abaixo apresenta os dados de perdas por região no país.

Tabela 1: Índice de perdas na distribuição (IN049) – SNIS2018

Macrorregião IN049
Norte 55.50%
Nordeste 46.00%
Centro-Oeste 35.70%
Sudeste 34.40%
Sul 37.10%
Brasil 38.50%

Observa-se que o Brasil ainda apresenta índices altos de perdas na distribuição de água, o que contribui para onerar o serviço, além de significar um prejuízo à conservação dos recursos hídricos. O destaque negativo está nas regiões mais pobres. A região Norte tem uma perda superior a 50% de seus insumos. Já a região nordeste, onde a escassez hídrica é um tema extremamente sensível, possui uma perda de água próxima a 50%, demostrando que apenas programas na região para aumento da oferta hídrica precisam ser aliados a uma melhoria desse índice e redução dos níveis de perdas.

1.1         Despesas operacionais no saneamento: público x privado

Com o objetivo de se avaliar a eficiência dos gastos pelos operadores no setor, Araújo (2020) busca decompor as despesas de exploração do serviço de saneamento básico para comparar os componentes de despesa operacional das companhias públicas de saneamento básico – CESBs, representativas da operação pública, com os componentes de despesa operacional das empresas privadas. O objetivo do exercício é comparar cada item que compõe as despesas de operação, de forma que seja possível identificar quais seriam os maiores gastos, verificando a diferença entre os componentes da função entre operadores públicos e privados. Essa comparação busca, inclusive, incentivar uma melhor gestão de recursos, para que seja possível aumentar o percentual destinado aos investimentos no setor na busca da universalização da prestação do serviço.

Araújo (2020) considera ainda que a despesa operacional da exploração do serviço de abastecimento de água e esgotamento sanitário seria dada pelo somatório das despesas de pessoal, produtos químicos, despesa de energia elétrica, despesa com água bruta importada, despesa de esgoto exportado, impostos e outras despesas de exploração. Os dados foram extraídos do SNIS (2018) e para a definição do tipo de prestador aplicou-se o filtro por natureza jurídica, sendo selecionadas apenas “empresa privada” e “sociedade de economia mista com administração pública”. Esta última equivale à natureza jurídica das companhias estaduais de saneamento básico.

Com base nesse exercício, a autora observou que o componente que apresenta maior discrepância entre prestadores é o gasto com despesa de pessoal. O estudo verificou que o prestador público possui um gasto com salário de 42,73% em relação ao total das despesas de exploração, enquanto o valor dos gastos com salários proporcionalmente à despesa de exploração do prestador privado é de 24,82%.Avaliando-se esses montantes despendidos com despesa de pessoal por tipo de prestador, verifica-se ainda que os valores médios gastos pelas CESBs é quase três vezes o valor médio gasto pelo privado. Enquanto as CESBs possuem uma média salarial de R$ 158 mil anual, a média salarial do operador privado é de R$ 66 mil (SNIS 2018).

Conforme apresentado por Araujo, C.L.M; Bragança, G.G.F e Faria, D.M.C., em POZZO, 2020, no gráfico 1 abaixo de investimentos potenciais, caso os salários médios pagos pelos prestadores públicos fossem equivalentes aos pagos aos empregados das empresas privadas, R$ 78 bilhões a mais poderiam ter sido investidos no período de 2007 a 2018.

Gráfico 1: Investimentos Potenciais

Fonte: Pozzo (2020)

Os dados apresentados indicam uma eficiência significativamente maior na operação pelo prestador privado, gerando ganhos de eficiência para o setor, que poderão ser revertidos para a sociedade na forma de investimentos para universalizar a prestação do serviço.

2           Alterações propostas pela Lei nº 14.026/2020

A Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, atualiza o marco legal do saneamento básico e altera outras sete leis que regulamentam o setor, conforme discriminado a seguir:

  • Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, para atribuir à Agência Nacional de Águas competência para editar normas de referência nacionais sobre o serviço de saneamento;
  • Lei nº 10.768, de 19 de novembro de 2003, para alterar as atribuições do cargo de Especialista em Recursos Hídricos;
  • Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005, para vedar a prestação por contrato de programa dos serviços públicos de que trata o art. 175 da Constituição Federal;
  • Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, para aprimorar as condições estruturais do saneamento básico no País;
  • Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, para tratar dos prazos para a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos;
  • Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole), para estender seu âmbito de aplicação às microrregiões;
  • Lei nº 13.529, de 4 de dezembro de 2017, para autorizar a União a participar de fundo com a finalidade exclusiva de financiar serviços técnicos especializados.

Cada um desses dispositivos legais versa sobre um aspecto do setor de saneamento básico. A figura abaixo apresenta a forma como esses aspectos se integram na lei, trazendo uma reforma completa para o setor.

Figura 1: Integração dos Componentes de Reforma Estrutural do Setor de Saneamento Básico

Fonte: Elaboração Própria

A figura 1 apresenta a forma como os componentes estruturais se relacionam, entre eles e com os temas de abastecimento de água e esgotamento sanitário, que para fins de simplificação estão representados pelo saneamento, e resíduos sólidos. Observa-se que o componente institucional regulatório possui um destaque pela transparência, segurança jurídica e estabilidade que trará ao setor. O outro componente de destaque é o organizacional geográfico, que trata de um elemento central abordado na lei e essencial na busca da universalização.

No centro, a figura apresenta os temas mais impactados pelo novo marco, água, esgoto e resíduos. O abastecimento de água e esgotamento sanitário têm um destaque pois as alterações legais foram desenhadas com o objetivo principal de solucionar os déficits no setor. O tema de resíduos sólidos também teve pontos importantes endereçados pelo marco, como a obrigatoriedade de instituição da cobrança pelo serviço ao usuário final, o que trará sustentabilidade para o setor. O tema de drenagem também é um aspecto importante de saneamento básico, mas por não se tratar do foco principal das mudanças do marco, não está retratado na figura.

Por último os últimos dois componentes, o elemento contratual representa um dos instrumentos utilizados para viabilizar as alterações no setor para atingir a universalização. Na outra ponta, as fontes de financiamento público também são utilizadas como um instrumento para possibilitar e garantir que essas novas regras sejam implementadas.

Abaixo esses elementos serão descritos individualmente, bem como as alterações legais específicas as quais estão relacionados.

O componente institucional-regulatório da figura 1 representa, principalmente, as primeiras duas alterações legais do novo marco legal. Ao atribuir à Agência Nacional de Águas – ANA a competência de editar normas de referência nacionais sobre o serviço de saneamento e possibilitar aos servidores da agência o respaldo legal para exercer esse papel, se buscou estabelecer um ambiente regulatório mais seguro, aperfeiçoando a legislação de gestão de recursos hídricos e saneamento básico.

Essa nova atribuição proporcionará uma maior uniformização das normas do setor, que hoje possui mais de sessenta agencias subnacionais, com diferentes normas e níveis de maturidade institucional.

Entre as regras que deverão ser tratadas pela ANA, estão:

  • Governança das agências reguladoras subnacionais, para que a regulação seja desempenhada por entidade autárquica, com independência decisória e autonomia administrativa, orçamentária e financeira, atendendo os princípios de transparência, tecnicidade, celeridade e objetividade das decisões (art. 21 Lei 11.445/2007);
  • Regulação Econômica com normas de regulação tarifária, contabilidade regulatória e indenização de ativos;
  • Regulação Técnica, estabelecendo padrões de qualidade e eficiência para a prestação do serviço; metas de universalização e formas de avaliar o cumprimento dessas metas; regras para redução e controle de perdas; medidas de segurança, emergência, contingenciamento e racionamento; regras para reuso da água; e regras de substituição do sistema unitário para o sistema separador absoluto;
  • Regulação Contratual, buscando a padronização dos modelos de contrato; estabelecer parâmetros de determinação de caducidade contratual; conteúdo mínimo para a prestação regionalizada[8]; e procedimentos de fiscalização e sanções contratuais.

Com relação ao componente Contratual apresentado na Figura 1, ele possui o aspecto formal de padronização de instrumentos a ser elaborada pela ANA, mas também se refere a um dos maiores benefícios trazidos pelo novo marco: a retirada de barreiras à entrada do prestador privado. As alterações sobre a forma de contratar o serviço de saneamento, ratificadas no art. 10 da Lei nº 11.445/2007, reforçam a necessidade de se cumprir o art. 175 da Constituição Federal, obrigando que a prestação do serviço, quando não prestada diretamente, seja precedida de licitação.

Assim, as alterações na Lei 11.445/2007 trazem grandes contribuições sobre a forma de contratar o serviço, especialmente do art. 10 ao art. 11-B, em que são elencadas as regras contratuais para aprimoramento da prestação do serviço.

Outro ponto que o novo marco vem esclarecer no art. 10-A, diz respeito à importância de que os contratos de pactuação do serviço contenham as cláusulas previstas no art. 23 da Lei nº 8.987/1995, equiparando em exigência e regra de atendimento a prestação por “contrato de concessão” e “contrato de programa”.

A prestação atual do serviço se saneamento muitas vezes é pactuada pelos chamados “contratos de programa”. Esses contratos são pactuados entre as empresas públicas e os municípios, sem licitação prévia. Esse formato de contratação representava uma vantagem do prestador público sobre o privado, além de constituir um descumprimento da Constituição, conforme mencionado anteriormente.

Outro ponto que representava uma grande barreira ao prestador privado era o fato de a lei prever que em caso de privatização, esses contratos de programa seriam automaticamente extintos[9], fazendo com que a empresa perdesse todo o valor.

Ainda sobre os “contratos de programa”, o que se verifica no setor é a falta de padronização desses instrumentos, sendo a prestação do serviço feita muitas vezes de forma precária, sem contrato, quando existem esses contratos não possuem metas de universalização do serviço, muito menos estão vinculados a regras regulatórias pactuadas no início da operação.

O objetivo do novo marco é uniformizar os contratos de prestação do serviço, equiparando em exigências os contratos de programa aos contratos de concessão, com a inclusão das cláusulas essenciais dos contratos de concessão para os contratos de programa. que não possuem metas ou regras regulatórias. A inclusão dessas exigências busca mensurar o esforço necessário para a expansão do serviço e universalização no prazo definido na Lei.

Além das regras da Lei nº 8.987/1995, os contratos de prestação do serviço de saneamento também precisarão conter:

  • Metas de expansão e eficiência dos serviços;
  • Possíveis fontes de receitas alternativas, complementares ou acessórias;
  • Metodologia de cálculo de eventual indenização relativa aos bens reversíveis não amortizados por ocasião de extinção do contrato;
  • Repartição de riscos entre as partes.

As metas de universalização que precisam ser perseguidas nesses contratos estão estabelecidas no art. 11-B, que define que essas metas de universalização precisam garantir o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033.

Dessa forma, a lei inclui a obrigatoriedade de metas de universalização do serviço, o que busca mensurar o esforço necessário para a expansão do serviço e universalização no prazo definido na Lei.

Além disso, para possibilitar que os contratos atuais que não possuam essas metas sejam ajustados, se estabeleceu um prazo até 31 de março de 2022 para que seja feito esse ajuste. Destacando ainda que, contratos licitados com metas diversas deverão ser mantidos, permanecendo inalterados. Nesse caso, as metas de universalização deverão ser buscadas de três formas:

  1. pela prestação direta da parcela que não está incluída no contrato de prestação de serviço;
  2. com uma licitação complementar dessa parcela não atendida pelo contrato original; ou
  3. por meio de um aditivo no contrato original licitado, com o devido reequilíbrio econômico-financeiro para inclusão das metas, com a condição que o prestador desse contrato concorde com esse ajuste.

O art. 10-B complementa os anteriores ao prever a necessidade de avaliação da capacidade econômico-financeira da contratada. Dessa forma, se garante que a empresa que prestará o serviço de saneamento terá capacidade financeira para realizar os investimentos necessários para a universalização da prestação do serviço em determinada localidade. Essa exigência é mais uma forma de equiparar os atuais contratos de prestadores públicos ao contrato do privado, já que este último passa por essa avaliação de capacidade no momento da licitação.

Para a aferição do cumprimento dessas metas, serão utilizados os seguintes critérios:

  • O cumprimento das metas deverá ser verificado anualmente pela agência reguladora;
  • O critério de aferição considera que para cada intervalo dos últimos cinco anos, as metas deverão ter sido cumpridas em, pelo menos, três anos;
  • A primeira fiscalização deverá ser realizada apenas após o término do quinto ano de vigência do contrato;

Caso a agência reguladora verifique que as metas não estão sendo cumpridas, deverá iniciar procedimento administrativo com o objetivo de avaliar as ações a serem adotadas, incluídas medidas sancionatórias, com eventual declaração de caducidade da concessão.

O terceiro componente trata do aspecto Organizacional/Geográfico também necessário para que se atinja a universalização de forma completa no território brasileiro. Para que seja possível atender a todos os municípios do nosso país, é importante que se avalie a região de uma forma completa. Para isso, os requisitos de prestação regionalizada preveem três possibilidades de regionalização: A “Região Metropolitana”, de caráter compulsório, as Unidades Regionais de Saneamento Básico – URSB, em que o Estado desenha o agrupamento no qual o município se insere de forma voluntária; e por último, o “Bloco de referência”, no qual a União proporá o desenho para que os municípios se agrupem, caso a URSB não tenha sido estabelecida.

A agregação desses municípios é essencial para que se estabeleçam ganhos de escala que possibilitem a universalização do serviço de saneamento. Além disso, o agrupamento de municípios também possibilita o melhor gerenciamento de recursos hídricos sob o ponto de vista da Bacia Hidrográfica, possibilitando a internalização de externalidades ambientais.

Além disso, conforme destaca KINDGOM (2005),  a associação entre municípios pode aumentar a capacidade de endividamento do grupo, e melhorar o acesso a financiamentos. Verifica-se dessa forma, que o componente geográfico tem sinergia com o quarto componente que trata das fontes de financiamento. Dessa forma, a Lei prevê a regionalização como um condicionante para a disponibilização de recursos pela União para saneamento básico.

O quarto componente trata das fontes de financiamento, elemento essencial para viabilizar os investimentos e também instrumento utilizado pelo marco como enforcement para adoção das diretrizes estabelecidas pela ANA e como forma de incentivar a prestação regionalizada, já que esses pois pontos são condicionantes para o acesso às fontes públicas de financiamento.

As regras das fontes de financiamento apresentadas na Lei estão previstas no art. 50 da Lei nº 11.445/2007 e no art. 13 da Lei nº 14.026/2020, bem como na Lei 13.529/2017. Todos esses dispositivos buscam adequar o serviço ao Novo Marco, disponibilizando recursos da União para esses ajustes.

Por fim, verifica-se que a figura 1 busca apresentar a percepção de que esses componentes possuem sinergias importantes entre si e se influenciam mutuamente.

A Lei prevê ainda que as normas de referência devem ser orientadas para estimular a concorrência, a cooperação entre os entes federativos, a regionalização e assegurar a prestação concomitante dos serviços de água e esgotamento sanitário.

Estudos do setor ressaltam que a agregação dos serviços proporcionam maior eficiência por meio de economias de escala e compartilhamento de custos, bem como maior capacidade humana, ressaltando que economias de escala na agregação e regionalização estão relacionadas a despesas gerais de gestão, custos operacionais e faturamento, maior capacidade profissional e troca de conhecimento, gestão integrada de recursos hídricos, maior acesso a financiamento e capacidade de atrair investimentos do setor privado (FERRO, 2017).

Observa-se assim que o novo marco legal do setor de saneamento buscou estabelecer regras que propiciam a entrada do parceiro privado, retirando barreiras à entrada, garantindo tratamento igualitário com o prestador público, e estabelecendo regras regulatórias mais uniformes para o setor, como forma de garantir a estabilidade jurídica.

3           Conclusão

Barreiras legais e artificiais vigentes durante décadas prejudicaram o serviço de saneamento básico em nosso país. O novo marco do setor mapeou essas barreiras e procurou removê-las, estabelecendo regras que permitam aos prestadores privados competir nas mesmas condições que o prestador público. Além disso, o Novo Marco Legal estabeleceu regras claras para a universalização do serviço, com metas de atendimento a 99% da população com serviço de abastecimento de água e 90% da população com coleta de esgoto até o ano de 2033.

Para que seja possível atingir esses objetivos é fundamental que os regulamentos infralegais previstos sejam publicados e que garantam a efetiva aplicação da Lei (enforcement).

Também é importante que a ANA publique as normas de referência previstas para o setor e que a adoção dessas normas, bem como as alterações contratuais previstas, seja realizada com transparência para que a universalização do serviço chegue a todos os cidadãos.

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BRASIL. Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o marco legal do saneamento básico. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 158, n. 135, p. 1-91, 16 jul. 2020.

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WEIZÄCKER, V. Barriers to Entry: A Theoretical Treatment. [s.l: s.n.].

[1] O §9º do Art. 11-B dispõe sobre condições excepcionais em que o prazo dessa universalização pode ser estendido até no máximo 2040.

[2] KPMG/ABCON (2020) disponível em https://assets.kpmg/content/dam/kpmg/br/pdf/2020/07/kpmg-quanto-custa-universalizar-o-saneamento-no-brasil.pdf (04/01/2021).

[3] Isso não desmerece a importância econômica e social dos segmentos de resíduos sólidos e drenagem pluvial que também fazem parte do setor de saneamento básico. Estes subsetores ficaram de fora da análise mais pormenorizada por guardar características bastante particulares e distintas dos segmentos de água e esgoto.

[4] Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos

[5] A decisão do TJRJ na Apelação Cível nº 0004772-52.2013.8.19.0064, é um exemplo deste caso, o desembargador Camilo Rulière destacou em seu parecer:

Fosse intenção dos demandados firmar convênio, providência inarredável seria a abertura de certame licitatório, pena de ferimento ao artigo 175 da Constituição Federal.

Tanto o Convênio de Cooperação firmado entre o Munícipio de Valença com o Estado do Rio de Janeiro e a CEDAE, como o Contrato de Programa celebrado, na sequência, entre o Ente Municipal e a CEDAE, são inequivocamente inválidos, por violação aos requisitos de validade da delegação dos serviços de saneamento básico previstos na Lei 11.445/2007.

Na mesma medida, afronta regras da Lei de Licitações, da Lei de Concessões e Permissões e da Lei de Contratação de Consórcios Públicos.

Mais que isso. Afeta os princípios gerais da atividade econômica, mais precisamente, os artigos 170, inciso IV e 175 da Carta Política Nacional.

Arremate-se que, nada obstante a roupagem dada pelos réus à avença em comento, nominando-a de convênio, disso não se trata, posto que se cuida de verdadeiro contrato, certo que a delegação dos serviços de fornecimento de água e tratamento de esgoto sanitário deve ser formalizada através de contrato, vedada a disciplina por convênio, contrato de programa ou termos de parceria.

Tudo bem expendido, restou evidente que o Convênio de Cooperação e o Contrato de Programa firmado pelos réus foram uma manobra engendrada, um subterfúgio para mascarar a necessidade de delegação dos serviços através de prévio procedimento licitatório, a implicar a invalidade dos ajustes, como bem delineado na Sentença.

[6] Cálculo feito a partir de dados do SNIS2018 que informa que o déficit de coleta de esgoto é de 46,80% e de abastecimento de água de 16,40%.

[7] O SNIS 2020 apresenta dados referentes a 5.627 prestadores.

[8] O conceito de prestação regionalizada em saneamento será devidamente explicado adiante no texto.

[9] §6º, art. 13 da Lei 11.107/2005 – Revogado

Cíntia Leal Marinho de Araújo é economista de carreira da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, onde atualmente ocupa o cargo de assessora da Diretoria. Possui graduação e mestrado em Economia e pós-graduação em Defesa da Concorrência e Direito Econômico – FGV/CADE.

Gabriel Godofredo Fiuza de Bragança é servidor de carreira do IPEA e atualmente ocupa o cargo de subsecretário de Regulação e Mercado da Secretaria de Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia. É PhD em Economia pela Victoria University of Wellington (VUW), mestre em Economia pela EPGE/FGV e mestre em Métodos Matemáticos em Finanças pelo IMPA.

Diogo Mac Cord de Faria é secretário Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia. Engenheiro mecânico, mestre em Administração Pública pela Harvard University e doutor em Sistemas de Potência pela USP.

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Legalização de jogos de azar no Brasil e sua vulnerabilidade à lavagem de dinheiro: liberalização, regulamentação ou proibição https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3381&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=legalizacao-de-jogos-de-azar-no-brasil-e-sua-vulnerabilidade-a-lavagem-de-dinheiro-liberalizacao-regulamentacao-ou-proibicao https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3381#comments Tue, 22 Dec 2020 16:08:11 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3381 Por Mauro Salvo

 

1 – Introdução

O artigo propõe analisar as possíveis vulnerabilidades que a liberalização e regulamentação dos jogos de azar traria à economia brasileira, incluindo o risco de contágio a outros setores no que diz respeito à lavagem de dinheiro. O problema está na atividade econômica de exploração das casas de apostas e seu modus operandi, que traz riscos para a sociedade e para o sistema econômico que as hospeda. A decisão sobre permitir ou proibir as apostas carece de uma análise de seus custos e benefícios em administrar os riscos inerentes ao seu funcionamento. O principal argumento contrário à legalização dos jogos de azar é a sua frequente utilização por organizações criminosas como meio para lavagem de dinheiro. Uma casa de jogos pode facilmente ser utilizada com a finalidade de dar aparência de legitimidade para recursos de origem criminosa.

Em outras palavras, quanto mais canais disponíveis para a lavagem de dinheiro, maior será o incentivo para o crime, já que é por meio dela que os criminosos viabilizam o usufruto destes recursos e reduzem a probabilidade de serem descobertos e punidos pelos seus atos. O texto explora os argumentos dos defensores da legalização (lobistas), considerados simplistas pelos críticos, pois não levam em conta a vasta gama de custos e externalidades negativas. Baseado no exposto, a abordagem julgada mais adequada é a de seleção .

A legalização dos jogos de azar é reconhecida como causadora de alguns danos à sociedade, todavia a atividade apresentou uma forte onda de legalização nos últimos 25 anos, principalmente em países em desenvolvimento, decorrente da alta demanda pelo serviço e pela renda gerada para o governo através da tributação. Outros motivos são a atração de investimentos estrangeiros e o incremento do turismo e atividades correlatas. Portanto, a legalização é facilmente defendida por ter seus benefícios facilmente quantificáveis, enquanto os contra-argumentos são dificilmente mensuráveis e têm seus custos difusos na sociedade, dado seu caráter subterrâneo (FATF Report[1], março, 2009)

Levando-se em conta as características econômicas, geográficas e culturais do Brasil seria recomendável especial atenção na regulamentação da atividade. A experiência brasileira em passado recente, e muitos casos ao redor do mundo, demonstram que a preocupação com a lavagem de dinheiro nesse setor de atividade não é mero preconceito ou apenas uma possibilidade teórica. Mesmo sendo regulamentado, manter a sua operação constitui um risco elevado. Assim, fica claro que o motivo para defender a não legalização dos jogos de azar é a sua facilitação ao crime, direta ou indiretamente.

 

2 – Base teórica

As pessoas respondem por incentivos, ou seja, tomam decisões comparando custos e benefícios, assim seu comportamento pode mudar quando esta relação se altera. Este pensamento pode ser utilizado para qualquer ação humana, inclusive para ações criminosas, visto tratar-se de atividades humanas. Gary Becker (1968), com o artigo seminal “Crime and punishment: an economic approach”, impôs um marco à abordagem sobre os determinantes da criminalidade ao desenvolver um modelo formal em que o ato criminoso decorreria de uma avaliação racional em torno dos benefícios e custos esperados nele envolvidos, comparados aos resultados da alocação do seu tempo no mercado de trabalho legal. Basicamente, a decisão de cometer ou não o crime resultaria de um processo de maximização de utilidade esperada, em que o indivíduo confrontaria, de um lado, os potenciais ganhos resultantes da ação criminosa, o valor da punição e as probabilidades de detenção e aprisionamento associadas e, de outro, o custo de oportunidade de cometer crimes, traduzido pelo salário alternativo no mercado de trabalho.

Na perspectiva da teoria econômica do crime, em sua esmagadora maioria, o criminoso é uma pessoa normal que pondera e decide dentro de uma determinada estrutura de incentivos ou condicionantes. Portanto, o evento “crime” é visto como uma decisão onde são ponderados os benefícios e os custos, e, também, como uma troca intertemporal, entre o benefício imediato e um custo provável no futuro (punição). Os benefícios consistem nos ganhos monetários e psicológicos proporcionados pelo crime. Por sua vez, os custos englobam a probabilidade de o indivíduo que comete o crime ser preso, as perdas de renda futura decorrentes do tempo em que estiver detido, os custos diretos do ato criminoso (tempo de planejamento, instrumentos etc.) e os custos associados à reprovação moral do grupo e da comunidade em que vive. Uma notação possível desta equação seria: Crime = b – p * c, onde b é o benefício do crime, p é a probabilidade de prisão e c os custos medidos pela perda de renda durante o tempo de prisão mais os custos diretos e morais.

 

3 – Lavagem de dinheiro através dos jogos de azar

Agentes que tenham obtido recursos de forma ilícita têm a necessidade de que, pelo menos, parte destes recursos seja incorporado ao mercado formal de modo a dificultar o rastreamento de sua origem criminosa e assim possa ser utilizado livremente por seus detentores. A este procedimento dá-se o nome de “lavagem de dinheiro”.

A lavagem de dinheiro pode ocorrer em qualquer setor de atividade. Todavia, há aqueles mais vulneráveis. Para que o lavador de dinheiro tenha êxito ele costuma buscar setores com características que facilitem alcançar seu objetivo. Em termos genéricos, os lavadores de dinheiro procuram setores com falhas no trinômio regulação-monitoramento/fiscalização-punição. Mais especificamente, os setores que oferecem as melhores condições para que criminosos reciclem os ativos obtidos ilegalmente apresentarão algumas (ou todas) características como: a) algum grau de informalidade; b) os preços apresentam forte oscilação (como característica inerente ao setor); c) regulamentação inexistente ou frágil; d) fiscalização inexistente ou frágil; e) difícil avaliação quanto ao preço e qualidade dos bens negociados (parâmetros subjetivos); f) difícil rastreamento; g) raras punições.

Os métodos de reciclagem de ativos e suas tipologias, em qualquer local, são fortemente influenciados pela economia, pelos mercados financeiros, e pelas políticas adotadas para combatê-los. Consequentemente, os métodos variam de lugar para lugar e ao longo do tempo.

Em relatório sobre a efetividade dos programas de PLD/CFT (Prevenção à Lavagem de Dinheiro e Combate ao Financimento do Terrorismo) o FMI apresenta as três chaves para a avaliação de risco – ameaça, vulnerabilidade e conseqüências – e suas aplicações à Lavagem de Dinheiro (LD) e Financimento do Terrorismo (. As normas internacionais de gestão de risco definem o risco como uma função da probabilidade de ocorrência e a conseqüência de eventos de risco, sendo a primeira uma função da coexistência de ameaça e vulnerabilidade. Em outras palavras, os eventos de risco ocorrem quando uma ameaça explora a vulnerabilidade. Formalmente, R, um nível de risco de LD de uma jurisdição, pode ser representado como: R = f [( T ), ( V )] x C, em que T representa “ameaça”, V representa “vulnerabilidade”, e C representa “consequência”. Assim, o nível de risco pode ser atenuado através da redução do tamanho das ameaças, vulnerabilidades, ou suas conseqüências. (FMI, 2011 pg. 64)

Quando se trata de LD, uma “ameaça” é em grande parte relacionada com a natureza e a escala da demanda potencial por LD, ou seja, o conjunto de ativos ilegalmente adquiridos que precisam ser lavados. Assim, a avaliação de risco de LD implica compreensão e geração de indicadores para os produtos do crime (POC) que são gerados ou trazidos para a jurisdição. (FMI, 2011 pg. 65)

A “Vulnerabilidade” na avaliação de risco LD ou FT engloba os produtos, serviços, canais de distribuição, bases de clientes, instituições, sistemas, estruturas e jurisdições (incluindo deficiências nos sistemas, controles ou medidas) que permitem LD ou abuso FT. Os indicadores de vulnerabilidade são numerosos, mas eles podem ser agrupados em categorias, tais como localização geográfica, serviços e produtos financeiros, os níveis de informalidade em vários setores, deficiências nos sistemas de PLD/CFT e da adequação dos controles de PLD/CFT existentes, os níveis gerais de corrupção, a eficácia das agências de aplicação da lei e do sistema de justiça criminal, e outras características da jurisdição que poderia facilitar sucesso da LD ou do FT. (FMI 2011 pg. 65-6)

As “Consequências” relacionam os resultados com a ocorrência dos eventos de risco. As consequências podem se relacionar com o custo, dano causado, ou com a significância dos resultados. De um ponto de vista, os processos de LD e FT geram dois tipos de consequências: em primeiro lugar, aqueles associados com a lavagem em si, e, em segundo lugar, os associados com o uso dos ativos, depois de terem sido lavadas com sucesso. (FMI, 2011 pg. 66)

De acordo com o Relatório do GAFI (Grupo de Ação Financeira, 2009), há uma ampla gama de fatores a incluir numa avaliação de risco para o setor de cassinos e dos jogos de azar: ambiente jurídico e regulamentar; as características da economia, bem como do próprio setor; estrutura de propriedade, integridade dos controles internos e governança corporativa das instituições de cassino/jogos, de intermediários e de negócios associados (promotores de junke, agentes, equipamentos de jogos, provedores de serviços financeiros); estrutura de propriedade ; tipos de produtos e serviços oferecidos e clientes atendidos; atividades criminosas e produtos do crime gerados domesticamente, bem como gerados no exterior, mas lavados a nível nacional.; serviços financeiros oferecidos pelas instituições de cassino/jogos e por seus intermediários. (Relatório do GAFI, 2009, p. 22)

Antes de permitir o seu funcionamento, a avaliação objetiva compreender:

– O escopo do setor de cassino: número, tipo, localização, propriedade, perfil de risco etc.

– Como os casinos são usados como intermediários financeiros.

– Casos de aplicação da lei/inteligência de como os casinos são usados para lavagem de dinheiro ou estão associados com delitos subjacentes (fraude, agiotagem etc).

– Tendências criminais ligadas aos cassinos. (Relatório do GAFI, 2009, página 23)

Os cassinos são, por definição, instituições não financeiras. Como parte de sua operação, os casinos oferecem apostas para entretenimento, mas também podem realizar várias atividades financeiras que são semelhantes às instituições financeiras, o que os coloca vulneráveis ao risco de lavagem de dinheiro. A maioria, se não todos, os cassinos realizam atividades financeiras semelhantes às instituições financeiras, incluindo: aceitar depósitos em conta; realizar troca de dinheiro; realizar transferências de dinheiro; realizar câmbio de moeda estrangeira; serviços de depósito de valores (ativos físicos); saques de cartões de débito, resgate de cheques; cofres; etc. Em muitos casos, estes serviços financeiros estão disponíveis 24 horas por dia. (Relatório do GAFI, 2009, p.25 e p. 36)

A função essencial de todos os reguladores de cassino é assegurar que o jogo seja conduzido honestamente ao aprovar as regras dos jogos e exigir dos operadores que forneçam um alto padrão de sistemas de vigilância e segurança. Isso garante a confiança do público no produto do jogo, minimiza as oportunidades de atividade criminosa e fornece certeza de fluxos de receita ao governo. A exploração de cassinos por criminosos ou via sua influência parece ser motivada tanto para lavagem de dinheiro, quanto para a recreação e em alguns casos para complementar seus empreendimentos criminosos fora do cassino. (Relatório do GAFI, 2009, p.26-7)

Todos os tipos de consequências têm direta ou indiretamente impactos financeiros, micro ou macroeconômicos, tanto no setor público quanto no privado. Portanto, é dever de todos colaborarem para a prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, visto que seus efeitos causam danos por toda a sociedade. Cabe salientar que as políticas de prevenção à lavagem de dinheiro existem não como um fim em si mesmo, mas como auxílio no combate à criminalidade. Tornar a equação do crime desfavorável aos criminosos, aumentando seus custos e a probabilidade de pegá-los, é a melhor maneira de combatê-los.

 

4 – O caso brasileiro: liberalização, regulamentação ou proibição?

De acordo com matéria publicada no sítio da ABRABINCS (http://www.abrabincs.com/#!blank/izdul) o tema há muito é controverso e mostra que os sucessivos governos demonstravam insegurança, mesmo quando favoráveis à legalização. A proibição de jogos de azar foi instituída no Governo de Eurico Gaspar Dutra através de Decreto-Lei n°. 9.215/46 que, em seu art. 1º, determinava a restauração, em todo o território nacional, da vigência do art. 50 e seus parágrafos da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei n°. 3.688/41 do Governo de Getúlio Vargas).

Em 1993 a Lei n° 8.672 com a finalidade de angariar recursos para serem utilizados no fomento da atividade desportiva, permitiu a exploração de sorteios da modalidade denominada “Bingo”. Nova redação foi dada pela Lei n° 9.615/98, revogando o instrumento anterior. Todavia, apesar da modernização das leis, os problemas continuaram.

Na própria exposição de motivos da Medida Provisória 168/2004 que proibia todas as modalidades de bingo e jogos “caça-níqueis” no Brasil – jogos também considerados de “azar” – constava como argumento para a proibição que “em torno desses estabelecimentos formou-se um círculo de sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e corrupção, a ponto de ameaçar a estabilidade institucional e gerando até mesmo reflexos nos investimentos econômicos”.

No Congresso, desde que o bingo foi proibido, deputados discutem propostas sobre o assunto. De 2004 até hoje, mais de dez projetos de lei foram criados em volta do tema, alguns a favor e outros contra a regulamentação dos jogos. Em 2011, todos eles foram unificados no PL 2.944/04, de autoria do deputado federal Valdemar Costa Neto (PR-SP), que determina a regulamentação dos jogos de bingo e das máquinas caça-níqueis no país. (BOECHAT, B. 2014)

Toda atividade econômica passa pelo “filtro” da liberalização, regulamentação ou proibição. O “filtro” que determinará se a atividade será totalmente livre, ou seja, se as relações entre ofertantes e demandantes não sofrerão qualquer intervenção estatal. Se não for o caso de liberalização total a atividade pode ser autorizada desde que respeite determinadas condições, isto é, regras para seu funcionamento que estabelecerá certos limites. No outro extremo à liberdade total está a sua proibição. O que determinará o destino da atividade econômica é o seu potencial de causar danos às partes envolvidas ou a terceiros. Como destacam Ragazzo e Ribeiro (2012):

 

Atividades que acreditamos gerar impactos negativos, que superem os possíveis benefícios (se houver), tendem a ser desestimuladas por meio de proibição. Isso se aplica a qualquer atividade que gere risco. Isso abre espaço para a implementação de uma cultura regulatória que leve a sério uma devida e criteriosa análise dos potenciais custos e benefícios associados a cada possível linha regulatória, para avaliar cada alternativa antes de se chegar a uma conclusão. (RAGAZZO e RIBEIRO, 2012, p. 629-630)

Em 2014 começou a tramitar no Senado Projeto de Lei n° 186 sobre o tema. De acordo com o projeto a justificativa para a legalização dos jogos pode ser sumarizada da seguinte forma.

 

“Em termos econômicos, além da geração (manutenção) de empregos e da maior circulação (formal) de riquezas, destacamos que a descriminalização dos jogos de azar terá como consequência o aumento das receitas públicas devido à tributação incidente sobre a atividade. Ademais, a proposição prevê a instituição, por lei complementar, de contribuição social que incidirá especificamente sobre os jogos de azar. Trata-se de criar nova fonte de custeio destinado a manter e expandir a seguridade social por meio da chamada competência residual tributária da União. Desse modo, a saúde, a previdência e a assistência social poderão contar com mais recursos, oriundos da nova atividade agora legalizada. Isso significa que, além de todos os tributos que já incidirão normalmente sobre os jogos de azar, haverá uma nova contribuição sobre a atividade, específica e exclusiva, e cuja arrecadação beneficiará um grande número de cidadãos brasileiros, em todo o País.” (PLS 186)

 

Arrecadação a qualquer custo? Melhor não.

O principal argumento para a legalização é o potencial de arrecadação de tributos, todavia existem muitas outras atividades que podem ser fomentadas com vistas ao aumento de arrecadação. É muito importante destacar que para fins de lavagem de dinheiro os criminosos estarão mais propensos a pagar tributos, pois a prioridade é reduzir a probabilidade de que as autoridades descubram a origem ilícita dos recursos. Os lavadores de dinheiro sabem que pagar impostos tende a acalmar os órgãos fiscalizadores e entendem que os tributos fazem parte inerente ao processo de reciclagem de ativos.

Os valores propagandeados na mídia como estimativas dos ganhos em termos de investimentos, arrecadação e geração de empregos aparentemente estão superestimados. Na realidade, há indícios de que se trata apenas de meros “chutes”. Em suas manifestações são citadas estimativas que variam entre R$ 20 bilhões e R$ 200 bilhões. Os defensores da legalização, quando indagados, esquivam-se e não apresentam estudos ou estimativas com o mínimo de metodologia. Oportunidades e tempo não faltaram, tendo em vista vários projetos de lei protocolados nas últimas décadas. Cabe também ponderar que juntamente com novas receitas virão novas despesas, que incluiriam, por exemplo, segurança, fiscalização e saúde pública, dentre outras, dependendo de quais modalidades de jogos serão regularizadas e como isso será feito. Não é perfeitamente claro se o impacto final no orçamento público vai ser positivo. (RAGAZZO e RIBEIRO, 2012, p. 628).

 

Não aposte na religião

O argumento de que os opositores à legalização dos casinos e jogos de azar no Brasil assim se posicionam por motivos religiosos não procede. Este argumento vem sendo repetido por décadas e todas as menções referem-se apenas a uma narrativa fantasiosa ou baseadas em boato datado da década de 1940. Porém o que temos de fato é que após seu banimento em 1946, nos curtos lapsos de tempo em que foi permitido algum tipo de jogo de azar, como por exemplo os bingos, sua relação com atividades criminosas foi instantânea. Isso levou a nova proibição muitas décadas após a não comprovada tese do tal “motivo religioso”. Ademais, se a religiosidade dos brasileiros fosse o motivo para a restrição dos jogos no Brasil, as loterias estatais não teriam tantos apostadores (que inclusive pedem aos deuses para serem agraciados com o prêmio). Aliás, o brasileiro não aposta, faz uma “fezinha”.

Quando se diz que o Brasil é o único país não muçulmano a proibir jogos de azar comete-se um grande equívoco. O relatório do GAFI, já citado, aponta numa lista não exaustiva de mais de 20 países onde os jogos não são permitidos, dentre eles, há vários não muçulmanos distribuídos pelos 5 continentes.

 

Cassinos lavam dinheiro pelo mundo afora

Mesmo dentre os países nos quais é permitido jogos de azar há que se diferenciar alguns aspectos, tais como:

  1. Permitido sem ser regulamentado
  2. Permitido com regulamentação, porém não menciona políticas de PLD-CFT
  3. Permitido com regulamentação que inclui políticas PLD-CFT
  4. Proibido

Outro aspecto importante é que há casos de lavagem de dinheiro através de casinos em muitos países (talvez todos) onde o jogo é permitido e regulamentado. Vejamos alguns casos.

Recentemente uma empresa alemã (Wirecard) lavou dinheiro para a máfia italiana num cassino em Malta, conforme matéria publicada no Financial Times[3].

Matéria publicada pela Bloomberg aborda caso de lavagem de dinheiro em Cingapura por meio de uma grande rede internacional de Cassinos, Las Vegas Sands Corp. O artigo também relata tratar-se de um contumaz reincidente[4].

O maior operador de cassinos na Austrália, The Crown, foi relacionado ao crime organizado, lavagem de dinheiro e concessão de vistos para grandes apostadores, fato que demonstrou falhas na supervisão e regulação daquele país, conforme notícias veiculadas[5].

Na França, o governo também esteve reticente em autorizar novos cassinos em Paris após a multiplicação de casos ligados a criminalidade, de acordo com o Le Parisien[6].

No Canadá uma série de reportagens investigativas da CBC News vem denunciando há mais de uma década suspeitas de lavagem de dinheiro nos cassinos[7].

Mesmo na China, onde os jogos de azar são proibidos (não consta que a China seja islâmica) pode-se encontrar fraudes para direcionar recursos para cassinos situados em outros países para fins de lavagem de dinheiro[8].

No Reino Unido reguladores dos jogos de azar estão aumentando as multas dos operadores que falham nas políticas de prevenção à lavagem dinheiro, incluindo grandes bookmakers como a Ladbrokes Coral, por exemplo. O dinheiro das multas está sendo direcionados para amenizar os danos causados pelos jogos[9]

Na Itália não há operação ou investigação contra as máfias que não contém pelo menos um capítulo dedicado à interferência criminosa na indústria de jogos e apostas. O jornal italiano Corriere dela Sera citou algumas das operações nas quais jogos de azar e máfia estavam envolvidas: Rischiatutto, Black Monkey, Clean Game, Criminal Games, Elite 12 Argo, Last Bet, Game Over.

Os EUA também não poderiam ficar de fora dos países aqui mencionados, tendo em vista que sempre são lembrados como exemplo de país onde o jogo é liberado e regulamentado. Por isso, é importante mostrar algum contraponto. Matéria publicada no Review Journal mostra caso no qual o FBI – Federal Bureau of Investigation indiciou 21 pessoas por lavagem de dinheiro num esquema que tinha como epicentro cassinos de Las Vegas[10].

A indústria de jogos dos EUA é um dos setores de negócios mais fortemente regulamentados e controlados em todo o mundo. Além das regulamentações estaduais de jogos abrangentes e rigorosas, a maioria das operações de jogos dos EUA também está sujeita aos requisitos federais de prevenção à lavagem de dinheiro (PLD). Desde 1985, os cassinos comerciais norteamericanos foram definidos como “instituições financeiras” pela Lei do Segredo Bancário (BSA – Bank Secret Act). De forma mais ampla, a BSA também exige que os cassinos formulem e implementem programas de prevenção à lavagem de dinheiro baseados em risco. (AGA-AML Best Practices Compliance 2019-2020, pp. 1-2)

Também corroboram com os argumentos pró-restrição, seja proibição ou liberalização regulamentada, da atividade de casinos no Brasil as estatísticas das unidades de inteligência financeira – UIF de vários países. Estes números mostram quantidade elevada e crescente de operações suspeitas reportadas na atividade de jogos de azar. No quadro abaixo foram selecionados 3 países de economias avançadas nos quais o jogo é permitido e regulamentado e o setor de jogos é obrigado a comunicar operações suspeitas à sua unidade de inteligência financeira para fins de combate à lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. Até mesmo nestes países o número de operações consideradas suspeitas e foram comunicadas pelos agentes do mercado à Unidade de Inteligência Financeira de cada país tem sido crescentes ano após ano.

Quantidade de Comunicações de operações suspeitas nos países selecionados

 

Turismo pode ser fomentado sem cassinos

Outro argumento em defesa da legalização é o fomento ao turismo com a possibilidade de atração de investimentos estrangeiros e consequente geração de empregos. Embora tenha fundamento deve-se considerar que o setor de turismo pode ser estimulado por muitas outras medidas, por exemplo, investimentos em infraestrutura que possuem efeito multiplicador muito maior, maior capacidade de atrair investimentos e de estímulo a outros setores da economia, maiores benefícios a toda a sociedade e geração de mais postos de trabalho. Como já mencionado na introdução deste trabalho, muitas atividades que movimentam grandes somas não são legalizadas por serem consideradas nocivas, mesmo que resultassem em elevação expressiva da arrecadação e geração de empregos. Ademais, a atividade econômica “jogos de azar” não é essencial e, portanto, a ausência de sua oferta no território nacional nada afeta o bem-estar social dos brasileiros.

 

Livre iniciativa sim, criminalidade não

O argumento de que o Brasil estaria impedindo a livre iniciativa cai por terra quando comparamos com Israel onde os jogos de azar também são proibidos. O Brasil ocupa a 144ª posição (entre 180 países) no índice de liberdade econômica (https://www.heritage.org/index/ranking) de 2020, situando-se no grupo de países majoritariamente não-livres, enquanto Israel ocupa a 26ª posição no grupo de países majoritariamente livres. Ou seja, mesmo num país com muita liberdade econômica a exploração de jogos de azar é vista como atividade cujo custo-benefício é negativo, ou no mínimo duvidoso, dados seus riscos inerentes. Com este exemplo também evapora o argumento de que somente países muçulmanos proíbem jogos de azar.

 

Já temos jogos, para que mais?

O argumento de que já existem outras loterias também deve ser relativizado, visto que são estatais. Outrossim, pode-se contra argumentar dizendo que por já existir jogos legalizados não seriam necessários outros tipos para atender à demanda. Vale ressaltar que novas loterias têm sido criadas e nem por isso a atividade ilegal foi reduzida, isso leva a crer que não há garantia de que a legalização atraísse todos para a economia formal. O fato de as loterias estarem sob controle estatal no Brasil, no que tange à lavagem de dinheiro, acrescenta uma barreira a mais visto que seria necessário haver a participação de servidores públicos em conluio com os criminosos. Ou seja, aumentaria os custos, mais um crime e o risco de ser pego. Não impede, mas dificulta.

 

Lucros privados, danos socializados

Outros dois argumentos é de que na maioria dos países os jogos são legalizados e que em outras atividades legalizadas há sonegação e lavagem de dinheiro. Nestes dois pontos convergimos para a questão chave do artigo, qual seja, o custo-benefício. Talvez as externalidades negativas sejam toleradas devido ao elevado benefício gerado para aquela economia em comparação aos custos. É uma hipótese. Outras hipóteses são o interesse de governos nas atividades criminosas, o grande poder de grupos de interesses, pode também não ter sido feita uma análise criteriosa dos possíveis danos à sociedade, entre outras. Se nem estimativas minimamente confiáveis dos ganhos seus defensores conseguiram apresentar em décadas, o que dizer de estimativas dos custos?

Por fim, o argumento de que produtos como fumo e bebidas alcoólicas são legalizados e arrecadam um enorme volume de recursos introduzem no debate um tema de extrema importância quanto ao impacto regulatório que é o dano causado e quem é a vítima. Nos casos de fumo e bebidas alcoólicas a regulamentação evoluiu no sentido de limitar o dano ao próprio agente – fumante ou bebedor. Além disso, nos casos em que o agente causar danos a terceiros, a vítima é facilmente identificada e pode ser indenizada. Quando se trata da lavagem de dinheiro através dos jogos de azar a vítima não é identificada, pois é a sociedade como um todo. Em situações como essa o recomendado é que o ônus da prevenção recaia sobre o fornecedor do produto ou serviço que está sendo utilizado para tal finalidade. RAGAZZO e RIBEIRO (2012, p. 631-3) categorizam os custos associados aos jogos em quatro grupos: crimes, doenças, falência pessoal e aspectos produtivos.

 

Seleção Adversa e regulamentação excludente

Um possível problema quando a regulamentação aumenta excessivamente os custos de sua observância é inibir o ingresso no setor de agentes honestos, promovendo uma seleção adversa. Ou seja, só são atraídos para o setor os agentes que desejam utilizar a atividade para encobertar ganhos ilícitos. Sempre que observamos a substituição dos agentes ou produtos ótimos pelos de menor qualidade em razão de uma falha de mercado (é o que ocorre com a lavagem de dinheiro) estamos diante da seleção adversa, usualmente causada pela assimetria de informação (AKERLOF, 1970).

Caso o Congresso Brasileiro opte por legalizar os jogos de azar novamente, o passo seguinte seria definir o grau de regulamentação que será aplicada ao setor. Seria importante a regulamentação considerar as características de cada jogo, tendo em mente seus eventuais problemas particulares e suas intensidades para elaborar um conjunto de normas específicas e eficazes na mitigação de possíveis danos, seja para os apostadores, seja para o funcionamento da economia, seja quanto os impactos criminais etc. A regulação é necessária para se corrigir os efeitos negativos decorrentes de falhas de mercado, como no caso de assimetria de informação entre o ofertante do jogo e o jogador.

 

Legalização como “Cavalo de Tróia”

A ideia de ver a legalização dos jogos de azar como “cavalo de Troia” remete à possibilidade de posteriormente à aprovação da liberalização abrirem-se brechas para a permissão de procedimentos mais arriscados, assim como incrementar o risco de contágio. O contágio ocorreria quando as casas de jogos fossem utilizadas para reciclar recursos de origem criminosa, causando um choque nos setores da cadeia produtiva.

A partir do momento em que se permite a inserção e manutenção de um fluxo de recursos originários do crime em setores produtivos legítimos torna-se mais difícil combater o crime antecedente. Além disso, o possível choque positivo inicial sobre emprego e renda causado pelo investimento em busca da ocultação de sua origem torna medidas de combate ao crime impopulares, visto que podem gerar desemprego e redução da atividade nos setores envolvidos quando repreendidos. Um dos setores mais preocupantes é o setor financeiro devido ao seu papel como alocador de recursos e inerente ramificação por toda a economia.

 

5- Considerações Finais

No artigo defendeu-se uma regulamentação bastante pormenorizada e específica para o setor, a fim de minimizar os riscos e reduzir sua vulnerabilidade. Todavia, não se pode negligenciar que uma regulamentação extremamente rígida normalmente eleva os custos de sua observância tanto para os agentes privados que operarão o negócio, quanto para os agentes públicos que fiscalizarão e punirão os desvios de conduta, quando houver. Há a possibilidade de que os custos da adoção de medidas de aderência inviabilizem alguns investimentos privados ou que os custos para o Erário anulem os benefícios do incremento da atividade econômica.

É importante esclarecer que caso o Brasil opte por permitir os jogos de azar novamente em seu território, especial atenção deve ser dada às vulnerabilidades do setor de ser utilizado por organizações criminosas para fins de lavagem de dinheiro e suas consequências socioeconômicas.

 

Referências

AKERLOF, George A. The Market for “Lemons”: Quality Uncertainty and the Market Mechanism. The Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, 1970.

BECKER, G. Crime and punishment: an economic approach. Journal of Political Economy. Vol. 76, 1968, pp. 175-209.

FATF/GAFI. Vulnerabilities of Casinos and Gaming Sector (March 2009). Available at http://www.fatf-gafi.org/media/fatf/documents/reports/Vulnerabilities%20of%20Casinos%20and%20Gaming%20Sector.pdf access in May 2016

IMF. Anti-Money Laundering and Combating the Financing of Terrorism (PLD/CFT) – Report on the review of the effectiveness of the program. Work Paper. May 2011.

RAGAZZO, C. E. J. e RIBEIRO, G. S. S. de A. O Dobro ou Nada: a regulação de jogos de azar. Revista Direito GV, São Paulo, B(2) p. 625-650, jul-dez 2012.

[1] Recomendo a leitura do relatório do FATF (Financial Action Task Force) sobre a vulnerabilidades do setor de jogos de azar no qual são expostos com detalhes diversos casos, tipologias e estruturas normativas em diferentes países.

[2] Junket é um grupo de jogadores que viajam para locais onde há cassinos, em outras palavras, excursão com a finalidade de apostas em casas de jogos.

[3] https://www.ft.com/content/b3eb9a37-ed8a-4218-9064-685b181740f0

[4] https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-06-04/adelson-s-singapore-casino-probed-over-money-laundering-controls

[5] https://theconversation.com/the-crown-allegations-show-the-repeated-failures-of-our-gambling-regulators-121173

[6] https://www.leparisien.fr/faits-divers/paris-renoue-avec-les-jeux-d-argent-25-04-2018-7683810.php

[7] https://www.cbc.ca/news/canada/british-columbia/organized-crime-money-laundering-vancouver-casinos-1.4158902

[8] https://www.scmp.com/abacus/culture/article/3100107/e-commerce-schemes-involving-empty-boxes-qr-codes-and-fake-tracking

[9] . https://www.caseware.com/alessa/blog/uk-gambling-watchdog-casino-fines/

[10] https://www.reviewjournal.com/crime/courts/21-charged-in-casino-based-money-laundering-scheme/ acesso em 12 de outubro de 2020.

 

 

Mauro Salvo é doutor em Economia e analista do Banco Central do Brasil

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Revolucionando a Cabotagem no Brasil com a Competição https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3377&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=revolucionando-a-cabotagem-no-brasil-com-a-competicao Tue, 15 Dec 2020 13:05:17 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3377 Por César Mattos e Sandro Gonçalves

Na última terça, dia 8 de dezembro, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) nº 4.199/2020, conhecido como “BR do Mar”, que altera a regulação do serviço de navegação de cabotagem no Brasil. A versão aprovada após intensa discussão no Plenário da Câmara manteve a linha mestra do texto original do Poder Executivo: ampliar a concorrência no setor.

Diferentemente da aviação civil, atividade na qual apenas recentemente (Lei nº 13.842/2019) a entrada de empresas com 100% de capital estrangeiro foi autorizada, a navegação de cabotagem nunca teve tal tipo de restrição. As duas maiores empresas de cabotagem no Brasil (com exceção da Transpetro, que atua com petróleo) são de propriedade de grupos estrangeiros: a Aliança, do grupo dinamarquês Maersk, e a Mercosul Line Navegação e Logística Ltda., do grupo francês CMA-CGM. A origem do capital, portanto, nunca foi problema. A origem da embarcação, sim.

A principal questão concorrencial, aqui, diz respeito à possibilidade de afretamento (aluguel) de embarcações estrangeiras. A lei atual impõe severas restrições a esse tipo de operação, obrigando, como espécie de condição à realização dela, que empresas desejosas de atuar na cabotagem ou de ampliar sua participação nesse mercado contratem a construção de navios no Brasil. Isso aumenta substancialmente o CAPEX requerido para entrar e, depois, crescer na atividade.

Por trás da regra que permite o afretamento de embarcação estrangeira na cabotagem e no transporte fluvial apenas no caso de a empresa de navegação possuir lastro em frota própria, construída ou em construção no País, está a ideia de vincular a política de transporte aquaviário à política de construção naval, há muito tempo materializada na legislação brasileira.

Não por acaso, enquanto na aviação comercial o aluguel de aeronaves é a regra, na cabotagem o afretamento de navio estrangeiro ainda é a exceção. Diante disso, o que pretende o legislador? A principal mudança da BR do Mar é relaxar as restrições atuais das duas modalidades principais de afretamento: por tempo, quando se aluga uma embarcação armada que traz também pelo menos parte da tripulação; e a casco nu, quando se aluga apenas a embarcação, desarmada e sem tripulação.

Inicialmente, no quadro abaixo, comparamos as condições existentes no regime atual de “afretamento por tempo”, conforme a Lei nº 9.432/97, que continuará valendo para as empresas que NÃO aderirem ao programa “BR do Mar”, com as condições previstas no “BR do Mar”.

Quadro I – O Novo Afretamento a Tempo da BR do Mar

Afretamento por Tempo pela Lei 9.432/97 Afretamento por Tempo pela “BR do Mar”
i) inexistir ou estiver indisponível embarcação de bandeira brasileira do tipo e porte adequados para o transporte ou apoio pretendido;

II) houver interesse público;

III) substituir embarcações em construção no País, em estaleiro brasileiro, com contrato em eficácia, enquanto durar a construção, por até 36 meses, até o limite:

a)da tonelagem de porte bruto contratada, para embarcações de carga;

b)da arqueação bruta contratada, para embarcações destinadas ao apoio.

i) para ampliar tonelagem de porte bruto das embarcações próprias efetivamente operantes;

ii) substituir embarcação de tipo semelhante em construção no País, na proporção de até 200% da tonelagem de porte bruto da embarcação em construção, por até 36 meses;

III) substituir embarcação de tipo semelhante em construção no exterior, na proporção de até 100% da tonelagem de porte bruto da embarcação em construção, até 36 meses;

IV atender exclusivamente contratos de transporte de longo prazo;

V prestar operações especiais de cabotagem (transporte de cargas em tipo, rota ou mercado ainda não existente ou consolidado) até 48 meses.

A BR do Mar amplia bastante o escopo dos afretamentos a tempo, diminuindo custos de transação na economia, em especial, ao permiti-los (i) para operações que envolvam contratos de longo prazo, os quais requerem maior segurança de atendimento; e (ii) para operações especiais de cabotagem, barateando a abertura do serviço em novas cargas, rotas ou mercados. Sem as novas hipóteses de afretamento, quase nada disso seria viável.

Mas é no “afretamento a casco nu” que se introduz uma flexibilização mais profunda na cabotagem: para realizá-lo, libera-se gradativamente a empresa brasileira de navegação da contrapartida de possuir embarcações próprias ou de contratar a construção de navios em estaleiros nacionais. O quadro abaixo faz para a mudança do regime no afretamento a casco nu a mesma comparação que realizamos para o afretamento a tempo.

        Quadro II – O Novo Afretamento a Casco Nu da BR do Mar

Afretamento a Casco Nu pela Lei 9.432/97 Afretamento a Casco Nu pela “BR do Mar”
Limitado ao dobro da tonelagem de porte bruto das embarcações, de tipo semelhante, por ela encomendadas a estaleiro brasileiro instalado no País, com contrato de construção em eficácia, adicionado de metade da tonelagem de porte bruto das embarcações brasileiras de sua propriedade, ressalvado o direito ao afretamento de pelo menos uma embarcação de porte equivalente Autoriza o afretamento de uma embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira, para navegação de cabotagem, independentemente de contrato de construção em eficácia ou de propriedade de embarcação brasileira.

Este limite de afretamento será ampliado:

I – após 1 ano para 2 embarcações;

II – após 2 anos para 3 embarcações;

III – após 3 anos para 4 embarcações.

IV- após 4 anos LIVRE

A redação atual da Lei nº 9.432/97 deixa claro a dependência do afretamento a casco nu tanto do fluxo de encomendas aos estaleiros nacionais quanto do estoque de embarcações próprias, no arcabouço regulatório atual da cabotagem. Esse regime implica que quanto menor (maior) uma empresa de cabotagem for, maiores (menores) as restrições para ela crescer pela via do afretamento a casco nu, gerando uma tendência natural a uma concentração no mercado.

Tornar o afretamento independente do fluxo de encomendas (o contrato em eficácia) e do estoque de embarcações próprias permite quebrar essa tendência concentradora atual do setor de cabotagem, gerando um grande potencial de concorrência.

Em particular, o afretamento permite aos entrantes ou empresas menores “testar” o mercado antes de investir em uma frota própria. Mais do que isso, favorece a multimodalidade. Empresas de transporte terrestre, por exemplo, passam a poder se verticalizar mais facilmente, seja com a propriedade de EBNs próprias, seja contratualmente com empresas menores, que passarão a ter mais oportunidades para afretar navio estrangeiro. Isso significa que, com as regras do BR do Mar, o transporte rodoviário e o de cabotagem tendem a ser mais complementares do que substitutos.

Note-se que navios não são ativos que se caracterizam integralmente como “custos afundados”, pois o proprietário pode reutilizá-los para outras cargas e rotas assim que um determinado uso original se mostre não rentável. No entanto, há algum grau de “custos afundados”, pois navios para cargas como de granéis líquidos, por exemplo, não são reversíveis para carregar granéis sólidos. Ademais, se a empresa internaliza um navio, há custos para reutilizá-lo em outro país. Essa rigidez, que pode ser entendida como característica de custos afundados, constitui uma barreira à entrada quando se limitam as duas possibilidades de afretamento acima.

Após a flexibilização dos dois tipos principais de afretamento, a segunda grande mudança prevista no texto aprovado da BR do Mar foi a redução da alíquota do Adicional de Frete de Marinha Mercante, o AFRMM, tributo que alimenta o Fundo de Marinha Mercante.

Atualmente, a alíquota do AFRMM é de 25% na navegação de longo curso, 10% na cabotagem; e 40% na navegação fluvial e lacustre, quando do transporte de granéis líquidos nas regiões Norte e Nordeste. A proposta aprovada pela Câmara dos Deputados reduziu e uniformizou as alíquotas do AFRMM em 8%, o que tende a reduzir o chamado custo Brasil nesses serviços. Além disso, a uniformização gera mais neutralidade na política setorial, evitando que uma atividade aquaviária seja mais gravada, em benefícios de outras. Desde 1997, a lei prevê não incidência de AFRMM para cargas cuja origem ou destino seja porto localizado na região Norte ou Nordeste. Esse benefício foi prorrogado, no projeto aprovado, até 2027, para as navegações de cabotagem e fluvial.

O AFRMM é um subsídio cruzado que onera o preço do serviço de navegação para os contratantes, ao passo que gera recursos para a construção de embarcações ou sua ampliação nos estaleiros nacionais. O governo brasileiro nunca realizou estudos quantitativos sérios de custo e de benefício para avaliar o resultado econômico e social dessa política. Na falta deles, a discussão legislativa abraçou a hipótese bastante razoável de que o Adicional não precisa mais ter o tamanho que tinha, dado o ônus que impõe à produção de bens e o volumoso estoque de recursos (cerca de R$ 20 bilhões) de que dispõe o Fundo de Marinha Mercante, responsável pelo financiamento das atividades de construção naval.

Concluindo, a BR do Mar promove avanços importantes ao colocar a competição no centro da política pública para a cabotagem. A maior barreira para crescer neste setor são as rígidas regras de afretamento existentes, o que torna o mercado mais concentrado, a competição menor e os preços maiores do que poderiam ser neste serviço. A flexibilização dos afretamentos a tempo e a casco nu poderá gerar uma verdadeira revolução no transporte marítimo brasileiro, com transbordamentos generalizados para os setores que demandam o transporte de carga em suas cadeias produtivas. Constitui redução na veia do custo Brasil, com aumento da produtividade geral do país.

Com a palavra, agora, o Senado.

 

César Mattos é consultor legislativo da Câmara dos Deputados e doutor em Economia.

Sandro Gonçalves é consultor legislativo da Câmara dos Deputados e mestre em Transportes.

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PIX – potencial motor de inclusão financeira no Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3368&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=pix-potencial-motor-de-inclusao-financeira-no-brasil Wed, 18 Nov 2020 16:47:25 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3368 Por Carlos Ragazzo e Bruna Cataldo

O problema da exclusão financeira é global: o relatório mais recente do Banco Mundial sobre o tema indica que 1.7 bilhão de adultos não possuíam contas bancárias em 2017, problema mais concentrado em países de renda média e pobres. Apesar de o número materializar o tamanho do problema para o desenvolvimento social, o mesmo relatório faz o diagnóstico de que o movimento de inclusão financeira no cenário internacional acelerou desde 2014, com o aumento do uso de telefones celulares e internet em diversas regiões, inclusive pelas camadas mais pobres. O processo avançou nos 3 anos desde o lançamento do relatório e a digitalização e implementação de pagamentos instantâneos promoveram inclusão financeira em larga escala em países como Índia, China e Tailândia.

O Brasil ainda tem um longo caminho pela frente com 45 milhões de desbancarizados e este ensaio busca argumentar que o caminho tradicional de induzir participação no ecossistema financeiro por meio de contas bancárias é excludente e tem barreiras de difícil transposição: é no mercado de pagamentos – principalmente  por suas inovações digitais – que está o potencial de inclusão desses brasileiros. As recentes mudanças no país – tanto em termos de regulação com o Open Banking e a criação do PIX, quanto de aceleração da digitalização da população – apontam um caminho promissor, ainda que com desafios.

Desbancarização X Avanço digital

Exclusão Bancária: Problema na Oferta de Produtos Financeiros

No Brasil, são justamente as pessoas em situação de vulnerabilidade que possuem maior dificuldade de participar do sistema financeiro. Esse ponto fica claro a partir do perfil desses 45 milhões que estão excluídos do sistema bancário tradicional: 59% são mulheres, 69% negros, 86% pertencem às classes C, D e E, 39% são do Nordeste (39%) e 58% ou não possui escolaridade, ou estudou apenas até o ensino fundamental. Uma indicação de que a conta bancária é um obstáculo maior do que a efetiva participação no ecossistema financeiro em si é que 12% dessas pessoas têm cartão de crédito, apesar de não terem conta em banco, inclusive possuindo mais de um em parte dos casos. Mais forte ainda é o dado de que 75% evita recorrer a bancos sempre que possível, alegando, como motivo mencionado com mais frequência, a falta de confiança (49%). Existem também outros motivos importantes, como a falta de dinheiro (31%) e a preferência por dinheiro em espécie (29%), que devem ser levados em conta em estratégias de inclusão.

Adiciona-se a esse contexto uma realidade do mercado de trabalho brasileiro para a qual o formato dos produtos oferecidos pelos bancos nem sempre é adequado: a forte presença de informalidade. No estudo do Banco Mundial, fica claro que a maioria dos brasileiros que recebem salário e transferências do governo o fazem por meio de uma conta bancária ou digital. Mas o cenário muda ao olhar para os informais: são largamente remunerados apenas em dinheiro. Isso é relevante, dado que 36,9% da população ocupada se encontrava nessa situação em agosto deste ano, um número absoluto próximo de 31 milhões de pessoas. Para esses brasileiros, as altas tarifas bancárias, a falta de previsibilidade na renda, a relação com redes informais de fornecedores e a morosidade da burocracia, dentre outros motivos, tornam pouco atrativo o formato da conta bancária.

E essas pessoas, apesar de estarem fazendo transações por fora do sistema bancário, movimentam grande quantia de dinheiro: R$ 817 bilhões todo ano. Trazê-las para o ecossistema financeiro levaria ao consumo de uma variedade maior de produtos, representando um ganho para todos os agentes envolvidos. A estratégia que parece ter tração para impulsionar esse movimento é mudar o foco para induzir as pessoas a utilizar as inovações que o mercado de pagamento tem oferecido ao invés de trazê-las necessariamente para os bancos de forma tradicional pelo produto “conta bancária”.

Smartphones – Infraestrutura Digital para Inclusão Financeira

Se teve um ponto que a pandemia escancarou sobre a realidade do Brasil é que o país ainda não está preparado para um mundo majoritariamente digital. Dificuldades em transferência para teletrabalho, em adequação de processos governamentais e na oferta de serviços públicos ficaram evidentes. Desigualdade no acesso a computadores e internet estável para atividades educacionais remotas se tornaram o centro do debate dos especialistas em educação. Então como argumentar que é justamente através de produtos digitais que a parcela mais vulnerável será incluída ao sistema financeiro?

Embora não se possa afirmar que o país é digitalmente democratizado, existem áreas específicas em que o processo avançou com bastante força. Os smartphones representam bem a falta de homogeneidade no acesso ao mundo digital no Brasil: o país tem 234 milhões aparelhos, com um aumento de 10 milhões desde 2018. Esse valor representa mais de 1 aparelho per capita. No ano de 2018, 79,3% dos brasileiros tinham celular próprio, sendo que este foi o meio digital que mais adentrou domicílios de renda mais baixa: o rendimento médio per capita daqueles para quem o celular era a principal fonte de acesso à internet era pouco mais de 1,5 salário mínimo, quase metade em comparação a quem acessava por tablets/televisão. Também foi evidenciado que 16,6% dos que não têm celular próprio alegam não comprar um por usar o de outra pessoa.

Isso indica que o caminho mais natural e fácil para inclusão financeira daqueles para quem o digital já é realidade de alguma forma é o smartphone. E é justamente por meio dele que as inovações do mercado de pagamentos vêm ocorrendo, sobretudo a partir da popularização das carteiras digitais: o Brasil é único país da América Latina em que todos os principais operadores internacionais estão presentes. As carteiras digitais são aplicativos que podem ser instalados em smartphones que permitem a realização de pagamentos online ou presenciais, exigindo somente a inclusão de saldo na conta por meio de um boleto ou cadastro de um cartão. O pagamento é feito por aproximação ou QR Code. Estima-se que devem representar 28% do mercado de pagamentos até 2022 e que 61% dos brasileiros dos grupos sociais A, B e C com smartphones são usuários recorrentes, alegando a confirmação instantânea e a praticidade como vantagens.

O crescimento da utilização das carteiras digitais foi pronunciado no Brasil – 65%, frente 40% no mundo – e 75% da população relatou desejar fazer pagamentos em tempo real independente do provedor do serviço com 53% demonstrando interesse em fazê-lo através de aplicativos. Também houve um crescimento de 37% nas pesquisas sobre o tema no Google. Os dados indicam interesse da população, apesar da falta de investigação específica para a camada mais pobre. De qualquer forma, a capacidade de smartphones e aplicativos criarem capilaridade para ela é relevante, considerando a possibilidade de depositar valores no app por meio de boleto, não sendo necessária uma conta no banco. Como o meio de pagamento de preferência do desbancarizado é o dinheiro, a possibilidade de usar um serviço digital em que ele apenas passe seu dinheiro para um aplicativo sem associação a uma conta pode ser atrativo e de mais fácil adesão.

Algumas barreiras seguem existindo, no entanto: em 2019, 22.7% dos usuários de internet afirmaram que não fazem pagamentos por smartphone em lojas físicas por preferirem dinheiro e 32.4% dos usuários estavam familiarizados com o conceito de carteiras digitais, mas nunca usaram. Um possível incentivo para a superação desses obstáculos é a adoção de carteiras digitais como meio de pagamento em serviços do cotidiano como mobilidade urbana e aplicativos de entrega, com alguns já adotando o método. Esse tipo de nudge para induzir o usuário à utilização e superação de desconfianças é mais facilmente desenhado para meios de pagamentos que do que para contas bancárias.

Um exemplo prático dessas nuances do processo de digitalização dos pagamentos foi trazido pela pandemia de Covid-19. A necessidade de implementar auxílios governamentais e fazê-los chegar à população forçou o governo – por intermédio da Caixa Econômica – a acelerar processos de digitalização. Foi feito um esforço de identificação das pessoas e para trazê-las para o sistema da Caixa de maneira digital. A experiência com a plataforma digital Caixa Tem teve resultados mistos que trazem para o caso concreto as questões apontadas. Em um período de 6 meses, foi possível digitalizar 64 milhões de pessoas – segundo o ministro da Economia Paulo Guedes – com a plataforma como um todo tendo alcançado mais de 100 milhões.

Todas essas pessoas se tornaram visíveis a um sistema e passaram a receber transferências governamentais por meios digitais em um período curtíssimo de tempo, demonstrando capacidade de alcance e viabilidade de realização, embora, naturalmente, ainda sejam necessárias estratégias de aprendizado e fidelização ao acesso digital. Também é importante apontar que o número apontado pelo ministro da Economia está relacionado à inscrição na plataforma digital. Não endereça, necessariamente, os 45 milhões de desbancarizados, uma vez que a transição para o digital engloba indivíduos que já participam do sistema, mas não de maneira digitalizada. O universo de pessoas a ser digitalizado, portanto, é maior que o de pessoas a serem bancarizadas. Pode-se entender os movimentos como etapas diferentes de um mesmo caminho, que podem ou não ser feitas concomitantemente.

Carteiras digitais e o caso do aplicativo Caixa Tem são apenas exemplos de inovação do mercado de pagamentos que podem ser operadas por meio de smartphones, mas evidenciam que há uma porta de entrada para o ecossistema financeiro por aqueles que até então estão à margem do sistema financeiro tradicional, ainda que com desafios pela frente. A ação coordenada do Banco Central vem induzindo o surgimento de alternativas, até mais promissoras, com destaque para a plataforma de pagamentos instantâneos: o PIX.

O Banco Central toma a frente

A agenda BC#: PIX como Veículo de Transformação Financeira

Desde 2019, o Banco Central vem desenvolvendo a Agenda BC#, um conjunto de ações coordenadas com a finalidade de promover a democratização financeira do país a partir de cinco dimensões: inclusão, competitividade, transparência, educação e sustentabilidade. Entende-se por democratização financeira a capacidade de manter os juros baixos de forma duradoura, provisão de serviços financeiros de melhor qualidade e acesso de todos ao sistema financeiro. Essas ações do Banco Central levaram o Brasil à fronteira do que está sendo debatido internacionalmente em termos de sistema financeiro, diferente de outros setores em que o debate chega ao Brasil com até décadas de atraso.

Dentre as diversas iniciativas da Agenda BC#, o destaque do momento é o sistema de pagamentos instantâneos, PIX, que está incluído no pilar de competitividade. Pagamentos instantâneos são definidos pelo Banco Central como transferências eletrônicas nas quais a ordem de pagamento e disponibilização dos fundos ao recebedor é feita em tempo real, estando também disponível 24 horas ao dia em todos os dias da semana ao longo de todo o ano. O processo é feito direto da conta do pagador para a do recebedor; portanto, sem intermediários. Dessa forma, há redução dos custos de transação.

Diversas ações têm sido anunciadas para potencializar a rápida adoção do PIX pela população brasileira:  a primeira é a existência de uma marca única na figura do PIX para que os usuários identifiquem de forma clara e inequívoca essa alternativa de meio de pagamento. A ideia é que uma identidade visual facilite o entendimento do instrumento e, consequentemente, o seu uso. O BACEN também aposta nos nudges para incentivar a adesão: haverá a possibilidade de uso do PIX em recolhimentos à União. O mecanismo não servirá apenas para estimular a adesão, mas para melhorar a experiência dos usuários com esses serviços públicos. Além disso, os maiores agentes do mercado foram obrigados a aderir ao PIX enquanto serviço a fim de gerar mais alcance. Uma ação interessante foi a parceria com a Aneel para que consumidores paguem suas contas de luz com o PIX.

Embora tenha como objetivo imediato facilitar e tornar mais rápidas transações entre diferentes atores do sistema: indivíduos, governo, empresas, trazendo pressão competitiva e impactando potencialmente sobretudo o preço de tarifas bancárias, o PIX pode trazer benefícios para outros pilares da Agenda BC#, notadamente a possibilidade de inclusão financeira. É o reconhecimento de que existem hoje mais brasileiros com smartphones que desbancarizados que permite essa expectativa a partir da potencial adoção do PIX pelas camadas mais pobres da população, mais ainda ao se ter em mente que experiências de digitalização dos pagamentos (especialmente no formato instantâneo) no cenário internacional trouxeram resultados de inclusão financeira representativos.

A expectativa decorre da constatação de que a construção do sistema pelo Banco Central replica aspectos que induziram China, Índia e Tailândia ao sucesso. Os três possuem muitas especificidades e diferenças de políticas entre si, mas a inclusão financeira a partir do mercado de pagamentos está presente nos três. Eles viram a relação da população com pagamentos mudar em tempo recorde e com capilaridade para grupos socioeconômicos antes excluídos do sistema financeiro, cujas transações eram basicamente feitas com dinheiro e fora do sistema bancário. Para visualizar o potencial que os movimentos recentes do Banco Central têm de replicar tal fenômeno, é preciso olhar para como ele ocorreu nesses países em comparação aos passos que o Brasil está dando.

Os ensinamentos vindos da Ásia

A Revolução da UPI na Índia e o Promptpay na Tailândia

A Índia é um benchmarking relevante, pois o mecanismo de indução de inclusão foi semelhante ao PIX: uma infraestrutura de pagamentos instantâneos desenhado e coordenado pela autoridade regulatória. Os resultados foram revolucionários. O Banco Mundial estimava que levaria 50 anos para que a Índia bancarizasse pelo menos 80% da população no ritmo em que estava. Após a adoção do UPI (Unified Payments Interface) em 2016, equivalente indiano do PIX, a meta foi alcançada em 2018.

A UPI foi uma iniciativa do RBI (Reserve Bank of India) que, na ocasião do lançamento, operava USD 10 milhões mensais e, no início de 2020, já havia alcançado USD 1 bilhão mensal. Essa ação do Banco Central Indiano veio do diagnóstico que o país possuía excessiva exclusão financeira. Em 2011, somente 17% dos indianos tinham conta bancária. Segundo os representantes do RBI, a revolução de pagamentos do país dependeu da percepção da entidade que era necessário mudar o direcionamento do sistema de uma visão voltada para “baixo volume, alto valor e alto custo” para uma de “alto volume, baixo valor, baixo custo”.  Para isso, seria necessária uma estratégia clara com players privados inovando a partir de uma infraestrutura pública com a criação de compensações que seriam equilibradas pelo design da política em áreas habituais de conflito como: regulamentação e inovação; privacidade e personalização; e facilidade de uso e prevenção de fraude. A partir dessa mentalidade, o RBI criou a UPI com base em uma estrutura de interoperabilidade entre todas as fontes e destinatários de fundos, que são liquidados instantaneamente, e quebra de monopólios de dados.

No mesmo caminho, mas de conhecimento e alcance mais modestos, há o caso da Tailândia e seu programa PromptPay, sistema de pagamentos instantâneos que permite que pessoas registradas façam transferência por meio de smartphones usando apenas o número do celular ou de identidade do destinatário como informação. O programa também tem mostrado sucesso e tem parte de seu desenho emulado no PIX brasileiro, notadamente a possibilidade de uso para receber pagamentos do governo como benefícios de seguridade social, aposentadorias e restituições; e a funcionalidade de carteira digital para que os cidadãos não precisem mais de uma conta bancária

O projeto foi considerado ambicioso, uma vez que a cultura de pagamentos tailandesa era quase universalmente pautada em dinheiro: em 2010, mais de 97% dos pagamentos de varejo eram feitos em cash. A infraestrutura de pagamentos instantâneos da PromptPay, no entanto, tem permitido a milhões de tailandeses maior velocidade de pagamentos, ao mesmo tempo em que construiu um ambiente adequado para que bancos e outros provedores ofereçam novos produtos e serviços financeiros, gerando competitividade. Muitos dos produtos estimulados, inclusive, estão concentrados no acesso de indivíduos e empresas com histórico de exclusão financeira. O serviço está em expansão e, em 2018, a adesão já chegava à metade da população. Considerando que se espera que um sistema de pagamentos instantâneos potencialize e aumente a oferta de novos serviços financeiros a partir do mercado de pagamentos, os casos da Índia e Tailândia são complementares ao terceiro que será apresentado: a China e seu império de pagamentos.

Diversificação na oferta de serviços financeiros: o império chinês

A ideia aqui apresentada e que motivou os Bancos Centrais brasileiro, indiano e tailandês a apostar nas políticas de pagamento instantâneo foi a de que é possível criar um ciclo virtuoso de acesso a serviços financeiros cada vez mais personalizados e complexos independente de condição socioeconômica, a partir do mercado de pagamentos.

Na China, apesar de o ponto de partida não ter sido a criação de uma plataforma governamental de pagamentos instantâneos como nos outros casos, os serviços de pagamentos digitais por celular cresceram exponencialmente em um processo muito associado às grandes fintechs. Em 2011, apenas 3.5% dos pagamentos do país eram feitos por smartphones. Em 2018, esse valor havia subido para 83%. O crescimento de transações foi de 73.6% entre 2018 e 2019. Nas áreas urbanas, 92% dos pagamentos são via smartphone. Para zonas rurais a proporção é bem menor: 47%, com a probabilidade de o problema não ser mais a presença do digital sem uso das inovações em pagamentos, mas a falta de inserção no digital. O Brasil ainda está no primeiro passo.

Fato é que a China é considerada hoje o grande caso de país caminhando para ser uma cashless society, ou seja, o exemplo de redução do uso do papel moeda com praticamente universalização do acesso ao sistema financeiro digital através de plataforma de pagamento on line. O que chama atenção no caso Chinês, no entanto, foi a construção de uma grande diversificação de produtos financeiros ofertados via canais digitais após a expansão da rede de usuários das plataformas inicialmente focada em pagamento.

O processo começou com a ANT, dona da Alipay, criada em 2014 e que cresceu a partir da criação de plataformas de pagamento online desenvolvida para ampliar acesso e dar segurança ao e-commerce. Na sequência, a empresa desenvolveu uma estratégia de diversificação dos produtos ofertados para criar um ecossistema de serviços financeiros a partir do mercado de pagamentos. Hoje, a empresa atua no mercado de crédito, na administração de um fundo de mercado monetário que já se tornou um dos maiores do mundo e na análise de riscos de crédito a partir da grande quantidade de dados produzidas sobre padrão de consumo e crédito dos consumidores. Em 2019, entrou no mercado de seguros com um produto para saúde. A rede de produtos gerou recordes de resultados para a empresa: ela reportou um lucro de USD 3.2 bilhões no primeiro semestre de 2019, um crescimento de mais de 1.000% em relação ao mesmo período do ano anterior.

Esses resultados da empresa, no entanto, não representaram apenas benefícios aos seus acionistas. Os serviços de pagamentos disponibilizados alcançam quase a totalidade da população adulta chinesa, com o dinheiro tendo se tornado praticamente obsoleto em transações do dia-a-dia independente do recorte socioeconômico. A partir dos serviços de pagamento com o Alipay, essas pessoas hoje podem ter acesso a outros como seguros e crédito, a despeito da adesão ao sistema bancário e com produtos mais personalizados.

Assim como a Índia mostra o poder de inclusão financeira de um sistema de pagamentos instantâneo capitaneado por uma autoridade regulatória estruturada, com resultados representativos também na movimentação de dinheiro no mercado; e a Tailândia exemplifica que nudges podem trazer resultados bastante positivos na mudança de cultura de pagamentos pela população, a China evidencia o potencial do mercado de pagamentos na expansão da oferta de serviços financeiros e como estes podem se tornar praticamente de uso universal, caso a mentalidade de partida seja a promoção de acesso a tais serviços. Em análise mais aprofundada, seria possível identificar novos elementos e interseções, mas a título de exemplo e contribuição para a análise das frentes de atuação do PIX, a China mostra um exemplo das potencialidades do mercado de pagamentos não apenas para inclusão, mas também para a diversificação da oferta de serviços financeiros.

As três experiências citadas podem ser consideradas, portanto, benchmarks desse movimento de criação de inclusão financeira a partir do mercado de pagamentos, em que estruturas de digitalização e liquidação instantânea de pagamentos associadas à universalização de smartphones geram um ambiente de inovação, coordenação de interesses para equilíbrio do sistema e outras necessidades. Em particular, os três exemplos demonstram que o sistema de pagamentos pode ser um modelo de oferta mais adequado para a inclusão financeira, apresentando um caminho de entrada para não apenas a ampliação do acesso a camadas mais pobres da população, como também para a diversificação dos produtos financeiros que são disponibilizados à população em geral, com potenciais efeitos sobre o mercado de crédito, seguros, entre outros relacionados.

Carlos Ragazzo é professor da FGV Direito Rio. Mestre e doutor em Direito pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Presidente do Conselho Consultivo do Instituto Propague. Foi conselheiro e superintendente geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE.

Bruna Cataldo é mestre e doutoranda em Economia pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Pesquisadora associada ao Instituto Propague.

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Teoria dos Leilões e Aplicações: A Teoria dos Jogos volta a roubar a cena no Prêmio Nobel de Economia de 2020 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3346&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=teoria-dos-leiloes-e-aplicacoes-a-teoria-dos-jogos-volta-roubar-a-cena-no-premio-nobel-de-economia-de-2020 Fri, 16 Oct 2020 16:08:25 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3346 […]in the real world – when the chips are down, the payoff is not five dollars but a successful career, and people have time to understand the situation –

the predictions of game theory fare quite well.

Robert Aumann, Prêmio Nobel de Economia (2005).

Prefácio do livro “Two-sided matching”,  Alvin Roth e Marilda Sotomayor, 1990.

 

Teoria dos Jogos e o mundo real

 

O uso de modelos matemáticos foi tradicionalmente visto com certo ceticismo entre muitos economistas, que tendem a vê-los como instrumentos úteis para a descrição e o entendimento teórico de fenômenos, mas de pouca relevância no “mundo real”.

 

A quebra desse paradigma é lenta e progressiva, fortemente conduzida pelo desenvolvimento da Teoria dos Jogos que colonizou a disciplina com seu apelo incontestável, antes de conquistar também outras áreas do conhecimento como a biologia evolutiva, a ciência política, o direito, a história, a sociologia…

 

Até o início da década de 1990, no entanto, a evidência de que a teoria dos jogos tinha muito a contribuir para o lado real da economia encontrava-se restrita, sendo a teoria de pareamento (Matching Theory) talvez o exemplo mais contundente de que, quando o que está em jogo realmente importa, os agentes se comportam de acordo com as previsões desses modelos matemáticos. Em poucas palavras, o livro coautorado por Marilda Sotomayor e Alvin Roth (prêmio Nobel de Economia em  2012) mostra que o mecanismo centralizado de alocação de médicos residentes em hospitais americanos, que havia evoluído por tentativa e erro ao longo de meio século, correspondia precisamente ao algoritmo de pareamento proposto em um artigo teórico publicado por David Gale e Lloyd Shapley em 1962.

 

Se o argumento de Aumann permaneceu restrito a um seleto grupo de especialistas, a importância prática da teoria dos jogos no mundo real se tornou patente nos mesmos anos 1990 com as contribuições de Robert Wilson e Paul Milgrom, dentre outros importantes acadêmicos, no desenho daquele que seria conhecido com “o maior leilão da história” (Safire, 1995).

 

Foi a junção de uma brilhante carreira acadêmica, com contribuições seminais à teoria dos leilões, a uma participação ativa em desenhos práticos de leilões de muito sucesso, que deu aos professores Robert Wilson e Paul Milgrom o Prêmio Nobel de Economia de 2020.

 

Esta nota inicia-se descrevendo uma contribuição teórica de cada um dos pesquisadores à teoria dos leilões para, em seguida, discutir sua contribuição aplicada mais conhecida: o “maior leilão da história” de radiofrequência de 1994.

 

Teoria dos Leilões: Vickrey, Wilson, Milgrom

 

Ainda que o uso de mecanismos de leilões para a venda de todo tipo de objeto (e de seres vivos, inclusive humanos!) remonte à aurora das civilizações, considera-se que o primeiro artigo formal em teoria dos leilões foi Vickrey (1961).

 

Esse artigo analisa quatro desenhos básicos para um leilão. O primeiro é o leilão aberto crescente ou “leilão inglês”, em que os participantes vão fazendo lances cada vez mais elevados até que nenhum participante queira cobrir o último e maior lance, pelo qual o objeto é vendido. O segundo é o leilão aberto descendente ou “leilão holandês”, em que o leiloeiro propõe um preço elevado pelo objeto em vai reduzindo cada vez mais essa proposta até que um dos participantes aceite pagar o último e mais baixo valor proposto, pelo qual o objeto é vendido. O terceiro é o leilão selado de primeiro preço, em que cada participante apresenta seu lance em um envelope lacrado e o leiloeiro, após recolher todos os lances, abre os envelopes e vende o objeto ao participante que fizer o maior lance, pagando por ele seu lance. Finalmente, o quarto é o leilão selado de segundo preço, em que cada participante apresenta seu lance em um envelope lacrado e o leiloeiro, após recolher todos os lances, abre os envelopes e vende o objeto ao participante que fizer o maior lance, mas cobra dele não seu lance, mas sim o segundo maior lance.

 

O artigo mostra que sob certas condições, os quatro formatos de leilões levam à mesma receita esperada para o leiloeiro, sendo, portanto, equivalentes nesse quesito. As condições são que os participantes sejam neutros com relação ao risco; que os valores que atribuem ao objeto sejam independentes, ou seja, o valor que um participante atribui ao objeto seja independente do valor que outro participante atribui a esse objeto; mas que os participantes sejam ex-ante idênticos, ou seja, o valor que cada participante atribui ao objeto é obtido de uma mesma distribuição de probabilidades sobre um mesmo conjunto de possibilidades. Essa equivalência entre os quatro formatos básicos de leilões ficou conhecida como o “Teorema de Equivalência de Receitas”.

 

Não desprezando o fato de que, em presença de assimetrias ou se os participantes forem avessos ao risco, pode haver diferença nesse resultado de equivalência de receitas, o artigo continua a análise do modelo básico, chamado de modelo de valores privados simétricos independentes, ressaltando a equivalência estratégica entre o leilão aberto ascendente e o leilão selado de segundo preço. Também nota a equivalência estratégica entre leilão aberto descendente e leilão fechado de primeiro preço no modelo básico. Nota ainda que a solução do leilão descendente ou do leilão fechado de primeiro preço é bem mais complexa, exigindo que se conheça, por exemplo, a distribuição de probabilidades ex-ante dos tipos dos participantes e que se procedam a sofisticados cálculos de probabilidades. Isso está em grande contraste com a solução dos leilões ascendentes ou selados de segundo preço, em que cada participante possui uma solução dominante, ou seja, seu lance ótimo independe das escolhas e valores que os demais participantes atribuem ao objeto. Defende, portanto, pela simplicidade e robustez, o formato de leilão selado de segundo preço, que passou a ser conhecido desde então como “Leilão de Vickrey”.

 

O artigo seminal de William Vickrey inaugurou a área de teoria dos leilões e foi seguido por incontáveis artigos, tendo esse pesquisador sido agraciado com o Prêmio Nobel de Economia em 1996.

 

O modelo de valores privados, em que cada participante atribui seu próprio valor ao objeto leiloado, é extremamente rico e se aplica bem a situações em que o valor do objeto está intrinsecamente relacionado ao gosto do participante, como uma obra de arte que pode ser muito apreciada por um e nada apreciada por outro participante. Na direção oposta encontra-se o modelo de valores comuns, em que todos os participantes atribuem o mesmo valor ao objeto, mas nenhum sabe ao certo que valor é esse. Considere, por exemplo, o caso de um leilão para a aquisição de direitos de exploração de petróleo em uma região de um país que ainda não foi devidamente explorada. Como o petróleo é uma commodity, tem seu preço ditado pelo mercado internacional, de forma que o retorno da exploração será o mesmo para qualquer agente vencedor do leilão. A questão principal, nesse contexto, é saber que quantidade de petróleo existe no subsolo. Essa informação não é perfeitamente disponível no momento do leilão. O que cada participante tem é uma estimativa aproximada, baseada em seus estudos geológicos, por exemplo, dessa quantidade. Dizemos, nesse caso, que cada jogador recebe um sinal (do ponto de vista estatístico) do verdadeiro valor dessa exploração, sendo que todos os sinais provêm da mesma distribuição de probabilidades. Portanto, a melhor estimativa para o verdadeiro valor desse objeto é a média dos sinais recebidos por todos os participantes. No entanto, cada participante observa apenas seu próprio sinal. Portanto, se os participantes fizerem lances simétricos crescentes em seus sinais e um determinado participante vencer, isso significa que seu sinal estava acima das médias dos demais. Caso os participantes não levem em consideração esse aspecto, farão lances demasiadamente elevados e, ao vencer, se arrependerão de seus lances. Trata-se de um fenômeno conhecido como a “maldição do vencedor”. Robert Wilson contribuiu fortemente para a modelagem teórica dos leilões de valores comuns e o estudo da solução para o problema da maldição do vencedor (Wilson, 1969; 1977; 1992).

 

A maioria das situações de leilões que ocorrem no mundo real, no entanto, tem ao mesmo tempo características de valores privados e de valores comuns. Até mesmo os exemplos sugeridos acima. No caso de obras de arte, o comprador não apenas se preocupa com o prazer pessoal de observar uma obra, mas também, mesmo que possivelmente em menor grau, com o futuro valor de revenda dessa obra, um valor comum a todos os participantes. Analogamente, no caso dos direitos de exploração de petróleo, cada um dos participantes tem uma estrutura de custo de exploração, associada, por exemplo, a sua estrutura própria de capital, o que é uma componente privada de custo. A forma mais geral de se modelar todas essas situações foi introduzida em Milgrom & Weber (1982), formalizando o conceito matemático de “valores afiliados”. Dentre os diferentes resultados encontrados nessa modelagem geral destaca-se a propriedade geral de que quanto maior for a informação à disposição dos participantes, maior será a receita esperada do leiloeiro. Trata-se de resultado importante que contraria a intuição de que o leiloeiro deve escolher estrategicamente o nível de informação a ser divulgado aos participantes de um leilão.

 

Em suma, enquanto Vickers inaugurou a Teoria dos Leilões introduzindo o modelo de valores privados, Robert Wilson foi instrumental na construção do modelo de valores comuns enquanto Milgrom enriqueceu a teoria com o modelo de valores afiliados. No entanto, conforme explicou o professor Tommy Andersson[1], membro do comité do Prêmio Nobel em Economia, é importante ressaltar que os professores Wilson e Milgrom têm uma gama de contribuições à Teoria Econômica muito mais ampla que esses resultados aqui discutidos. Por exemplo, Robert Wilson é um dos formuladores do conceito de equilíbrio sequencial (Kreps & Wilson, 1982) bem como uma das principais referências em modelos de sinalização e reputação (Kreps & Wilson, 1982a). Milgrom, por sua vez, tem extensiva contribuição em Teoria da Firma, tendo inclusive coautorado pesquisas com o Prêmio Nobel de Economia de 2016, Berg Holmström (Holmström & Milgrom, 1994) e até mesmo em Matching Theory (Hartfield & Milgrom, 2005).

 

Aplicação: Desenho de leilões

 

Até o final dos anos 1980, as licenças para o uso das ondas eletromagnéticas para telecomunicações nos Estados Unidos eram atribuídas  por meio de um sistema denominado “beauty contest”, ou “concurso de beleza”, em que os concorrentes apresentavam suas propostas à agência reguladora (o FCC: Federal Communications Commission), que então avaliava qual proposta melhor representava o “interesse público” e a ela outorgava a licença. Naturalmente, esse sistema gerava incentivos perversos ao lobby e à tomada de decisão baseada na influência de poderosos conglomerados de telecomunicações, tendo seus resultados frequentemente questionados na Justiça pelos perdedores. Percebendo esse incentivo adverso, e vendo a demanda por outorgas aumentando significativamente nos anos 1980 com o surgimento da telefonia celular, optou-se, em 1983 pelo mecanismo mais simples das loterias, ou seja, a empresa que receberia o direito de uso de certa faixa de radiofrequência era escolhida de forma totalmente aleatória dentre as concorrentes. Esse novo mecanismo minimizou o problema do lobby e de reclamações judiciais, mas, por outro lado, trouxe consigo grande potencial de ineficiência, uma vez que a empresa selecionada muito provavelmente não seria a mais bem preparada para receber essa licença. Além disso, licenças que geravam imenso volume de receitas recebiam a outorga praticamente gratuitamente[2].

 

Diante dessa realidade, e considerando a crescente pressão da dívida pública americana, em 1993 o Congresso estadunidense autorizou a FCC a vender licenças de telecomunicações por meio de leilões competitivos. Licenças de telecomunicações têm uma característica especial que tomam qualquer mecanismo de venda extremamente complexo: a sinergia. A sinergia se refere ao fato de o valor da licença referente a uma área depende fortemente da rede que uma empresa consegue formar. Por exemplo, considerando os tamanhos e a interligação entre os mercados de São Paulo e do Distrito Federal, uma licença para operar no DF vale muitíssimo mais a uma empresa que consiga também a outorga para operar em São Paulo. Portanto, o mecanismo de leilão a ser implementado, se buscar eficiência e receita para o governo, deve favorecer o aproveitamento das sinergias, que dependem de cada empresa participante.

 

Foi então que o mundo real se voltou para os acadêmicos de Teoria dos Jogos, tanto o FCC, que contratou o professor John McMillan, como as empresas interessadas, que contrataram um “dream team” de pesquisadores incluindo, dentre outros, Charles Plott, Jeremy Bulow, Barry Nalebuff, Preston McAfee, Robert Weber, David Porte, John Ledyard e, destacadamente, Robert Wilson e Paul Milgrom (McMillan, 1994).

 

Quando Milgrom foi contactado pela concorrente Pacific Bell, sua primeira reação foi: “Eu sou apenas um economista teórico!  Nada sei sobre isso!” (Christopher, 2016). Apesar do choque inicial, Milgrom e Wilson aceitaram o desafio e de suas mentes brilhantes surgiu o desenho do leilão simultâneo ascendente de múltiplas rodadas, o SAA (Simultaneous Ascending Auction: Milgrom, 2000). Nesse leilão, em cada rodada todos os participantes podem dar lances simultâneos para qualquer uma das faixas de radiofrequência sendo leiloada. Existe uma regra de atividade para que um participante ainda continue com o direito de dar lances em um segmento, de forma que, se deixar de dar lances para esse segmento por um número elevado de rodadas, o participante perde o direito de concorrer por esse segmento. Ademais, existe uma regra de aumento mínimo do valor dos lances entre duas rodadas consecutivas. O primeiro leilão nesse formato ocorreu em julho de 1994, teve a duração de 47 rodadas e gerou 617 milhões de dólares à época com a venda das 10 licenças oferecidas.

 

A partir de então, o padrão se consolidou e foi seguido, com devidos ajustes, tanto nos leilões subsequentes nos Estados Unidos como em muitos outros países (Binmore & Klemperer, 2002). Mais recentemente, Milgrom foi novamente convocado para desenhar um leilão ainda mais complexo, o “Leilão de Incentivos” (Incentive Auction) em que o governo comprou frequências de redes de TV e simultaneamente leiloou essas frequências para o uso da telecomunicação móvel (Milgrom, 2019). O leilão, que Milgrom descreveu com “[..]the most excited thing I’ve ever done” (Christopher, 2016) foi realizado 29 de março de 2016 a 30 de março de 2017,  reposicionou 84 mega-hertz de radiofrequência e gerou 19,8 bilhões de dólares em receitas, sendo 7 bilhões para o Tesouro americano (FCC, 2017)[3].

 

A nova revolução tecnológica no mundo das telecomunicações já está colocada: trata-se do uso da tecnologia 5G, que permitirá velocidades de comunicação de dados até pouco impensáveis ao alcance de todos. Segundo o Ministro das Comunicações Fábio Faria, o leilão de frequência para a implantação de 5G no Brasil acontecerá “com certeza” entre abril e maio de 2021[4]. O ensinamento dos mestres Robert Wilson e Paul Milgrom nesses últimos anos será de grande valia e seu aproveitamento fará toda a diferença entre um mecanismo de sucesso que gerará bilhões de reais aos cofres públicos, ou um resultado pífio para o país.

 

Conclusão

 

A teoria dos leilões é uma das construções mais coletivas da teoria econômica, tendo recebido a contribuição de grande número de pesquisadores de primeiríssimo nível tanto no seu desenvolvimento teórico, como nas suas fantásticas aplicações. Por essa razão, pode se dizer que o Prêmio Nobel em Economia de 2020 foi dado a uma grande comunidade de pesquisadores ao redor do mundo. Nessa comunidade, no entanto, poucos conseguiram se fazer fortemente presentes nos primeiros desenvolvimentos da teoria e ao mesmo tempo em algumas de suas mais sofisticadas aplicações. Por encabeçarem essa restrita lista, o comitê do Prêmio Nobel de Economia foi muito feliz em agraciar o professor Robert Wilson e seu outrora orientando, o professor Paul Milgrom, com essa egrégia distinção.

 

 

Mauricio Bugarin é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília

 

 

 

Referências

 

Binmore, K., & Klemperer, P. (2002). The biggest auction ever: The sale of the British 3G telecom licences. The Economic Journal112(478), C74-C96.

 

Carrasco, V. (2020). Nobel 2020: Paul Milgrom e Robert Wilson. Terraço Econômico, 10 de outubro.

 

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Wilson, R. (1992). Strategic analysis of auctions. Handbook of Game Theory with Economic Applications, 1, 227-279.

[1] https://www.youtube.com/watch?v=ZctoTG27Fhw

[2] Um caso Famoso foi do ator Ernest Borgnine, que chegou a ganhar uma licença de telefonia sem ter qualquer experiência prévia na área, tendo posteriormente vendido essa licença com grande lucro (Christopher, 2016).

[3] Veja Carrasco (2020) para maior detalhamento sobre o Leilão de Incentivos.

[4] https://www.tecmundo.com.br/mercado/177591-leilao-5g-brasil-abril-maio-2021-diz-ministro.htm

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Ambiente de Negócios no Brasil e a Regulação do Aproveitamento Econômico da Terra https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3268&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=ambiente-de-negocios-no-brasil-e-a-regulacao-do-aproveitamento-economico-da-terra Mon, 15 Jun 2020 21:08:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3268 São conhecidas as dificuldades do ambiente de negócios no Brasil, cujas deficiências colocam limites nas perspectivas de crescimento econômico. O Brasil continua sendo o penúltimo pior país no índice do Product Market Regulation (PMR) medido para 39 países pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que mede o grau de barreiras à entrada e concorrência dos vários países. No indicador do Doing Business do Banco Mundial, que mede a facilidade para fazer negócios, o Brasil tem uma posição de 124º num total de 190 países. Finalmente, no índice de competitividade do World Economic Forum, o Brasil ficou na posição 71º em 140 países. Para aumentar sua produtividade e incrementar o padrão de vida da população é fundamental que o Brasil prossiga em várias reformas microeconômicas e muitas delas envolvem revisões do arcabouço regulatório que simplifiquem a burocracia e removam os obstáculos à criação de novos negócios e expansão dos antigos. A crise do covid-19 demonstra cabalmente a essencialidade destas reformas, não apenas para facilitar as condições de retomada do crescimento pós-quarentena, mas também para tornar o país mais resiliente a este tipo de crise no futuro.

Um dos pilares fundamentais de uma economia de mercado é a garantia dos “direitos de propriedade”. Quando se utiliza este termo, na realidade, está se falando de uma “cesta de direitos”, direito de usar para quase qualquer fim um bem ou ativo e excluir outros de usá-lo, direito de vender o bem ou ativo, transferindo-o para quem desejar, direito de auferir renda do bem ou ativo, dentre outros. É esta cesta de direitos que provê incentivos para que empresas façam o melhor uso possível dos ativos, de forma a gerar a maior quantidade de riqueza e empregos possível. Quando se limita a “cesta de direitos” dos direitos de propriedade, limita-se naturalmente a capacidade daquele ativo de gerar a riqueza para a sociedade.

O objetivo deste artigo é discutir os obstáculos regulatórios aos direitos de propriedade na terra no Brasil, o que compromete o aproveitamento econômico da terra, minando a competitividade para vários setores da economia do país. Veremos ainda como vários projetos de lei em discussão poderão remover parte destes limites às “cestas de direitos” na terra, condição necessária para um grande salto de produtividade no setor.

Iniciamos com os empecilhos ao investimento na faixa de fronteira do país[4], que representa percentual significativo do território nacional (cerca de 17%), abrangendo 11 Estados, 588 Municípios e 10 milhões de habitantes. De acordo com estudo do IPEA, a região tem renda per capita inferior à do restante do país. Apesar disso, o marco normativo da atividade econômica nesse local impõe restrições e vedações ao investimento, comprometendo as chances de superação do quadro de maior pobreza.

Nascida de preocupações relacionadas à soberania e segurança nacional e promulgada durante o regime militar, a Lei 6.634, de 1979 proíbe que as atividades de mineração em faixa de fronteira sejam desenvolvidas por empresas de maioria de capital estrangeiro, não administradas por brasileiros e que não tenham mais de dois terços dos trabalhadores brasileiros.

O regramento legal vigente é óbice para investimentos econômicos no setor mineral brasileiro, em que mais de 70% das empresas do país são controladas por estrangeiros. Assim, há um potencial enorme a ser explorado nas regiões de fronteira e manter restrições ao usufruto do direito de propriedade pelos agentes de capital majoritariamente estrangeiro é abdicar das possibilidades de melhoria de bem-estar que os referidos recursos permitem.

Estima-se que de cada mil pesquisas minerais apenas uma resulta na exploração comercial de uma mina e poucos empresários estão dispostos a correr esse risco. Países como Canadá e Austrália adotaram mecanismos para incentivar investimentos para a pesquisa mineral e a equação é simples: mais pesquisa, mais exploração, igual a mais riqueza para a sociedade.

Deve-se levar em consideração no caso brasileiro, ainda, a rigidez locacional, caraterística intrínseca à mineração. Ao se flexibilizarem as restrições ao investimento estrangeiro na região de fronteira, a faixa de 150 km em toda a linha divisória terrestre do território (diga-se, uma das maiores do mundo), passa a constituir um campo amplo de oportunidades de investimento.

Outra parcela do território nacional também sub explorada em termos econômicos por questões regulatórias são as terras indígenas. De propriedade da União, uma vez homologadas, passam a constituir usufruto dos silvícolas. As áreas representam cerca de 13% do território do país, o que supera, por exemplo, a soma dos territórios da França e Inglaterra. A realização de atividades econômicas em terras indígenas é possibilidade prevista constitucionalmente, mas não explorada pelos governos que sucederam à edição da Carta Magna de 1988. Ou sejam, trata-se de direito de propriedade para usufruto da terra não realizado por simples falta de regulamentação.

Em que pesem a magnitude e o potencial econômico das terras indígenas, trata-se de mais um caso de recursos não aproveitados que poderiam ser utilizados para elevar o bem-estar social da população, sobretudo, a local. Outra similitude com a situação da faixa de fronteira é que a comunidade local também enfrenta mais problemas de pobreza do que a média do país.

O contexto do parágrafo anterior foi o que motivou o Poder Executivo a enviar o PL 191, de 2020, para o Congresso Nacional. O projeto possibilita a realização de pesquisa e lavra mineral, bem como o desenvolvimento de empreendimentos no setor de energia das terras indígenas. Ao regulamentar o dispositivo constitucional, o projeto ampara as comunidades indígenas, garantindo a elas participação na renda gerada pela atividade de lavra e produção de energia elétrica. Adicionalmente, o projeto atualiza a Lei no 6.001/1973 (Estatuto do Índio) para permitir que as próprias comunidades indígenas desenvolvam atividades produtivas em suas terras, como a agricultura, a pecuária, o extrativismo e o turismo.

Tanto a participação de resultado na lavra como a possiblidade de exercer atividades produtivas em suas terras são mecanismos do projeto de lei que contribuem para a melhoria das condições econômicas das comunidades indígenas, oferecendo-lhes alternativas de renda e empregabilidade. Ou seja, os índios passam a exercer parte do direito de propriedade de auferir renda de um ativo que, de outra forma, seria um “capital morto”, incapaz de gerar riqueza e melhoria de vida aos locais O projeto amplia as possiblidades de renda para as comunidades indígenas, prevendo o pagamento de indenização pela restrição ao usufruto da terra pelas atividades econômicas realizadas nas mesmas.

Outra característica importante do projeto é que os recursos repassados pelo empreendedor são apropriados diretamente pelas comunidades, sem transitar pelos orçamentos da Administração Pública. Importa registrar que os empreendimentos de geração de energia elétrica e mineração serão realizados apenas se autorizados pelo Congresso e as comunidades indígenas serão consultadas necessariamente sobre a questão.

Outro marco legal antigo que merece ser revisto trata da exploração econômica de terras por empresas brasileiras controladas por estrangeiros. A Lei nº 5.709, de 1971, que trata do tema, por ser anterior à Constituição Federal de 1988, sofreu interpretações distintas. As interpretações têm ocasionado insegurança jurídica nas atividades que envolvem transações com imóveis rurais realizadas por empresas brasileiras controladas por estrangeiros. Se uma empresa com capital majoritariamente nacional possui uma terra para cujo uso ela tem uma capacidade de exploração inferior a de outra empresa brasileira, que tem a particularidade de ser controlada por estrangeiro, aquele não poderá exercer o direito de propriedade usual de alienar o ativo para este. Deixa-se de gerar riqueza pelo que seria o diferencial de produtividade entre o agente que vende e o que compra o ativo, ambos pessoas jurídicas brasileiras e que diferem no fato de um deles ser controlado por estrangeiro e o outro não.

O problema ocorre particularmente no dispositivo legal que equipara empresa brasileira, com controle acionário estrangeiro (pessoa física ou jurídica estrangeira não residente ou não sediada no Brasil), à empresa estrangeira. Desde a edição do Parecer AGU LA-01/2010, a interpretação do Poder Executivo é de que permanece a distinção entre as empresas brasileiras de capital nacional e estrangeiro. Essa interpretação tem criado incertezas em setores diversos da economia brasileira. Por exemplo, nas indústrias de papel e celulose, mineração e agronegócio, as companhias brasileiras controladas por estrangeiros passaram a enfrentar a insegurança jurídica sobre a propriedade dos imóveis rurais onde se localizam seus empreendimentos, pois não podem registrar a propriedade plena desses imóveis.

No setor de energia, foi levantado que a compra da CPFL Energia pela chinesa State Grid, concluída em 2017, provocou problemas no que tange à questão das propriedades rurais. A empresa tinha dezenas de arrendamentos de terras e eles tiveram que ser alterados para contratos que permitem o uso da terra sem que a empresa tenha a propriedade ou a alugue. Já no setor mineral, podem-se citar as dificuldades que as mineradoras encontram na realização de operações imobiliárias, tão frequentes na rotina desse segmento, cujos grandes investidores são em sua maioria estrangeiros. Muito embora o Estado Brasileiro conceda a lavra ao estrangeiro, para atender à compensação ambiental exigida no momento do licenciamento da operação, é comum que o investidor necessite adquirir áreas para reflorestamento. Essa aquisição, feita pelo estrangeiro, fica impossibilitada pela restrição de aquisição de terras do contexto regulatório atual, impedindo, em última análise, a execução do projeto.

A importância de o proprietário da terra ser o mesmo daquele que tem a posse tem a ver com os custos de transação que emergem da possibilidade de comportamentos oportunistas entre proprietário e arrendatário. Como os investimentos em energia elétrica, mineração, dentre outros, são afundados, ou seja, não podem ser realocados em outras atividades, o investidor arrendatário pode acabar sofrendo comportamento oportunista do proprietário quando houver necessidade de alterações na implementação do projeto, por exemplo. Ou seja, só a posse pode não ser suficiente para uma exploração eficiente da terra em várias circunstâncias, cabendo viabilizar o direito pleno de propriedade de usufruir do ativo também.

Desde 2011, a Câmara dos Deputados vem debatendo o tema. Inicialmente, a subcomissão da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, criada para analisar o assunto, aprovou o Relatório 04/2012 que propôs projeto de lei para considerar como brasileira qualquer empresa constituída no Brasil, ainda que controlada direta ou indiretamente por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras. Tramitam diversos projetos a respeito do tema, que propõem a adoção do entendimento do Relatório 04/2012. O PL 2.963, de 2019, é o que se encontra em estágio mais avançado de discussão.

Outra oportunidade de avanço regulatório também em trâmite na Câmara dos Deputados diz respeito à revisão do marco legal das desapropriações por utilidade pública (PL 11.277/2018). São recorrentes os obstáculos enfrentados para a desapropriação de terrenos necessários à execução de investimentos em infraestrutura do governo federal. Independente da modalidade de implementação dos projetos, via regime diferenciado de contratação, contratos por desempenho, parcerias público-privadas ou contratações integradas, os gestores deparam-se com empecilhos significativos ao longo do requerido processo de expropriação de imóveis.

O volume de ações judiciais promovidas pela Advocacia Geral da União, desde 2009, para permitir a continuidade das obras de infraestrutura prioritárias do governo federal motivadas por problemas relativos ao processo de desapropriação das áreas abrangidas no perímetro das obras atinge 60% dos processos tratam do tema. Esses empecilhos impactam negativamente o desenvolvimento da infraestrutura e postergam investimentos necessários ao crescimento do país.

O contexto geral do projeto revisa o arcabouço legal da desapropriação por utilidade pública que é da década de 1940. A expectativa é a adequação da legislação aos atuais modelos de execução de obras, que evoluíram para uma nova formatação de contratos públicos, garantindo maior celeridade aos processos. O projeto de lei propõe avanços significativos no marco regulatório dos setores de infraestrutura, somando-se a outros incentivos do governo federal ao investimento nessas atividades.

A atividade de mineração nuclear é mais um caso que se soma aos anteriores e é igualmente emblemático do descompasso entre a regulação econômica do uso da terra e a dinâmica atual da economia. O Brasil, apesar de possuir uma das maiores reservas de urânio do mundo, com apenas 30% do território prospectado e dominar todo o ciclo da energia nuclear, ainda depende de importações para o desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro. Um dos motivos para isto é o fato do marco legal datar das décadas de 60 e 70, conferindo insegurança jurídica aos agentes do setor, uma vez que persistem dúvidas sobre se os dispositivos presentes no marco legal foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988, a qual versa sobre o monopólio da União na pesquisa e lavra de minérios nucleares.

Um dos impactos decorrentes dessa insegurança é não haver interesse das mineradoras privadas de comunicarem ao Ministério de Minas e Energia a existência de minérios nucleares em jazidas nas quais exploram outros tipos de minério. Embora a estatal que detém o monopólio constitucional para explorar os referidos minérios, a Indústrias Nucleares do Brasil (INB), possa formar parcerias com agentes privados para captar recursos e absorver novas tecnologias, o marco regulatório vigente também não confere segurança jurídica para explorar todas essas possiblidades. Outro problema decorrente do marco legal é a governança do setor, uma vez que o Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro (CDPNB), órgão de assessoramento do Presidente e composto por diversos ministérios envolvidos com o tema, não figura como o órgão superior de orientação e planejamento da atividade nuclear no país. Ademais, os dispositivos impõem restrições à exportação de minério nuclear, em especial urânio, pela INB.

Assim, para reduzir custos de transação e amparar outros incentivos ao investimento no setor nuclear, a atualização do marco legal faz-se necessária. A alteração pode proporcionar racionalização das competências das instituições envolvidas na regulação do setor nuclear, redução da burocracia para exportações e captação de recursos do setor privado para investimentos. São mudanças que possibilitariam ao Brasil ser um player relevante no mercado internacional dos minérios nucleares, bem como a realização de investimentos para desenvolvimento tecnológico e da economia onde estão localizadas as jazidas, o que se traduziria na geração de emprego e renda no interior do país.

As várias restrições ao uso da terra no Brasil aqui discutidas reduzem o alcance da cesta de direitos de propriedade do ativo “terra” no Brasil. É fundamental que se reduza a burocracia e se eliminem as barreiras à entrada para a exploração da terra no Brasil.

A crise do coronavirus nos lembra mais uma vez quais são os custos de não se ter uma economia mais livre de amarras. Os graus de liberdade que o país tem para minimizar o sofrimento da população são menores quanto menor a produtividade. Direitos de propriedade amplos criam incentivos para a maior produtividade, maior renda, emprego e produto. Se o país já vivia uma fase de recuperação de uma crise recessiva entre 2014 e 2017 em que não podia rejeitar as às vezes difíceis reformas microeconômicas que vão criar o arcabouço institucional e incentivos para a produtividade, isto ficou ainda mais verdade na crise do Covid-19. A revisão dos constrangimentos às atividades econômicas na terra constitui reforma a qual o Brasil não pode se dar ao luxo de abrir mão, sob pena de adiar ainda mais a imensa geração de riquezas potenciais.

 

César Mattos é Doutor em Economia e ex-Secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia SEAE/ME.

Claudio Evangelista de Carvalho é subsecretário de Competitividade e Melhorias Regulatórias da Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia SEAE/ME.

Maurício Marins Machado é coordenador-Geral de Desregulamentação e Competitividade da Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia SEAE/ME.

[4] A faixa de até cento e cinquenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres conforme § 2º do art. 20 da Constituição Federal.

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A tolerância hibernou https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3267&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-tolerancia-hibernou Mon, 08 Jun 2020 16:39:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3267 Além de preferir o confronto e governar de forma, no mínimo, caótica, sem entender como funcionam as instituições, o presidente Jair Bolsonaro tem demonstrado um alto grau de intolerância. Costuma tratar agressivamente quem não comunga com suas visões de mundo e comumente se refere a líderes de esquerda, governadores e jornalistas como inimigos. Para piorar, sob seu comando funciona um gabinete do ódio, estrutura especialista em disseminar fake news contra supostos opositores em redes sociais.

É um terreno perigoso. A intolerância motivou a fatwa do aiatolá Khomeini, recomendando matar Salmon Rushdie por seu livro Versos Satânicos. Também suscitou os ataques terroristas contra escritores e jornalistas na Dinamarca e, na França, determinou o brutal assassínio de cartunistas e funcionários do jornal satírico Charlie Hebdo.

Essas são ações antagônicas ao que acontece consistentemente nos últimos quatro séculos, quando a tolerância cresceu em todo o mundo. Ficaram para trás posições religiosas intransigentes, que originaram perseguições e guerras sangrentas na Europa. No massacre da Noite de São Bartolomeu (1572), por exemplo, cerca de 30 000 protestantes foram mortos sob a repressão comandada por reis católicos franceses. Até mesmo numa época mais longínqua, da Grécia antiga à República de Veneza, há registros de tolerância.

Segundo o cientista político francês Denis Lacorne, tolerar significava, então, condicionar diferentes religiões a se “aturarem” em favor da paz. Em sentido moderno, assinala ele, “tolerância é entendida como a aceitação de crenças e pontos de vista, permitindo que distintos grupos respeitem uns aos outros e ajam coletivamente em prol do bem comum”. Sua origem está nos séculos XVII e XVIII com o Iluminismo, associada a valores como liberdade de expressão e de religião, separação Igreja-­Estado e igualdade perante a lei.

No livro The Limits of Tolerance (2019), Lacorne mostrou a evolução rumo a essa atitude, inicialmente sob a penetrante influência de filósofos iluministas como John Locke e Voltaire, e depois por ativistas políticos americanos como Thomas Paine e Thomas Jefferson. No século XX, a tolerância abrigou grupos antes marginalizados em razão de raça, etnia, identidade cultural e gênero. Em seguida, a mudança envolveu também o casamento homoafetivo.

Para Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, na obra Como as Democracias Morrem, a tolerância é uma das regras informais da política americana. A mútua tolerância — que se consolidou após a Guerra Civil (1861-1865) — incorpora a ideia de que, “se nossos rivais agem de acordo com as regras constitucionais, aceitamos que tenham direitos iguais de existir, competir pelo poder e governar”. Nessa concepção, os opositores são definidos como adversários, não como inimigos. Como bem resume o escritor inglês Sir Arthur Helps (1813-1875), “a tolerância é o único teste real da civilização”.

Se adotassem essa simples visão, Bolsonaro e seus fanáticos seguidores contribuiriam para a convivência civilizada. Crises políticas não ocorreriam com tanta frequência e se poderia reverter a hibernação da tolerância.

Publicado em VEJA de 3 de junho de 2020, edição nº 2689 e aqui reproduzido com anuência do autor.

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Por um diretor-geral da Polícia Federal com mandato fixo e intercalado com o mandato presidencial https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3266&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-um-diretor-geral-da-policia-federal-com-mandato-fixo-e-intercalado-com-o-mandato-presidencial Mon, 08 Jun 2020 16:35:06 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3266 Na madrugada de sexta-feira 24 de abril de 2020 o Presidente Jair Bolsonaro exonerou o diretor-geral da Polícia Federal (PF), Maurício Valeixo. No mesmo dia o Ministro da Justiça Sérgio Moro apresentou seu pedido de demissão, alegando ingerência política na PF. No dia 28/4 o presidente nomeou o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem para o cargo vago de diretor-geral da PF; no entanto, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes decidiu na manhã do dia 29/4 anular essa nomeação. Em decisão-relâmpago, o presidente Bolsonaro nomeou e empossou na segunda-feira 4/5 o secretário de Planejamento e Gestão da Abin como diretor-geral da PF, que teve como uma das primeiras decisões a substituição do superintendente da PF no Rio de Janeiro.

A pergunta que se impõe é: Essa crise institucional poderia ter sido evitada se o desenho institucional de nossa PF fosse outro? E a resposta é imediata: Sim, se o diretor-geral da PF tivesse um mandato com prazo fixo, após aprovação pelo Congresso Nacional, blindando assim a PF de ingerências políticas uma vez nomeado seu diretor-geral. Existe, atualmente, uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 412/2009) em discussão na Câmara dos Deputados (CCJC) que propõe justamente a autonomia da PF, de forma a ser explicitada em lei ordinária. Ademais, no próprio dia 24/4 o deputado federal Celso Sabino (PSDB-PA) começou a coleta das assinaturas necessárias para iniciar a tramitação de uma PEC de sua autoria com o mesmo objetivo.

Uma questão menos evidente, mas extremamente pertinente é a seguinte: Caso seja aprovada a autonomia da PF e ao diretor-geral seja atribuído mandato com prazo fixo, quando deve ser esse mandato iniciado?

A literatura econômica pode contribuir para responder s essa questão. Em artigo recente aceito para publicação na Revista Brasileira de Economia[1], este autor e sua coautora Fábia Carvalho se valem de um modelo de política monetária, baseado na teoria dos jogos, para afirmar a importância não só de termos um banco central (BC) independente em que o presidente do BC tem mandato fixo, mas também de que o mandato do presidente do BC seja intercalado com o do presidente da república. Ou seja, ao assumir seu mandato, o presidente da república “herda” por mais dois anos o presidente do BC nomeado anteriormente e apenas passados esses dois anos poderá nomear um novo dirigente para o BC por um período de quatro anos.

Essa proposta –que é adotada alhures, como nos Estados Unidos e no Chile[2]– tem uma simples justificativa: a informação é uma variável fundamental na formação das expectativas de inflação da sociedade. Em período eleitoral é natural haver incerteza quanto à futura condução da administração pública, em geral associada à eleição de um novo presidente. Quando o presidente estreante tem a autonomia de nomear o responsável pelo BC no início de seu mandato, adiciona-se a insegurança quanto à condução da política monetária do país. Isso explica os piques inflacionários e de taxas de juros em períodos próximos a uma troca de presidente no Brasil, o que parece não ocorrer nos Estados Unidos ou no Chile, por exemplo. Se um presidente do BC já conhecido da sociedade for mantido por mais dois anos, reduz-se a incerteza eleitoral, limitando-se assim o impacto econômico de uma troca do executivo federal.

Esse argumento desenvolvido para o BC estende-se facilmente para outros órgãos governamentais que têm a característica de serem órgãos de Estado, e não de um governo particular, com uma missão que extrapola os interesses de um presidente específico.

A Polícia Federal (PF) se encaixa naturalmente nessa categoria. De fato, “Cabe à PF apurar infrações que envolvam danos ao patrimônio e aos interesses da União, contra a ordem política e social ou que tenham repercussão em mais de um Estado ou país.”[3] Por essa razão, com frequência a PF é levada a investigar integrantes do governo federal, como no caso da “Operação Lava-Jato” ou do inquérito sigiloso conduzido pelo Supremo Tribunal Federal sobre as “fake news”[4]. Portanto, quando um novo presidente é eleito, e ele tem a autonomia de indicar imediatamente o novo diretor-geral da Polícia Federal, a sociedade não sabe exatamente como será conduzida pela PF a investigação dos atos da administração. Se, por outro lado, o diretor-geral já estiver na condução da PF há dois anos, já há informação revelada por sua atuação pregressa e, portanto, há menor incerteza pelo menos quanto a esse aspecto do novo governo. Esse aumento de informação disponível à sociedade quanto à futura condução da PF constitui a grande vantagem de se ter o mandato do diretor-geral da PF intercalado com o do presidente da república.

Em suma, se o requerimento de um mandato fixo para o diretor-geral da PF evita que um presidente substitua integrantes dessa força pública por razões pessoais injustificáveis, é a exigência de mandatos intercalados que reduz a incerteza que naturalmente se forma em período eleitoral, diminuindo os custos econômicos e sociais associados a esse processo fundamental em uma nação democrática moderna.

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https://bugarinmauricio.files.wordpress.com/2020/05/bugarincarvalho-20200429-rbe.pdf

Colon, Leandro (2020). PF identifica Carlos Bolsonaro como articulador em esquema criminoso de fake news. Jornal Folha de São Paulo, 25/04/2020. Link para a matéria:

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/pf-identifica-carlos-bolsonaro-como-articulador-em-esquema-criminoso-de-fake-news.shtml

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Lupion, Bruno (2017). Como funciona a autonomia da Polícia Federal e qual a chance de um governo interferir em investigações. Nexo Jornal, 17/02/2017. Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/02/19/Como-funciona-a-autonomia-da-Pol%C3% ADcia-Federal-e-qual-a-chance-de-um-governo-interferir-em-investiga%C3%A7

[1] Bugarin e Carvalho (2020).

[2] Jácome (2001).

[3] Lupion (2017).

[4] Colon (2020).

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Por que desprezamos as crianças brasileiras na Constituição? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3064&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-desprezamos-as-criancas-brasileiras-na-constituicao https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3064#comments Thu, 12 Oct 2017 15:28:13 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3064 12 de outubro é o dia das crianças no Brasil, exatamente 1 semana depois do aniversário da Constituição (que completou 29 anos neste 5 de outubro). A proximidade das datas no calendário contrasta com o fato da juventude ser a grande perdedora do pacto social de 1988. A reforma constitucional da Previdência é um dos caminhos para redimir o problema.

Em tese, as crianças pobres estão abarcadas na Constituição. São mencionadas, por exemplo, no capítulo da Seguridade. Na prática, a Seguridade Social não apenas pouco lhes abraça como gera escassez de recursos nas políticas públicas que podiam lhes atender. Vejamos.

O que é um seguro social?

Um seguro é proteção contra uma perda financeira. Um seguro social – como os previstos na nossa Constituição e que batizam o nosso INSS (o Instituto Nacional do Seguro Social) – é um seguro contra a perda de capacidade de trabalho. Analogamente, um seguro de carro protege contra a perda financeira por acidentes com um veículo, e um plano de saúde contra a perda com despesas médicas.

A aposentadoria é o principal seguro social. Protege contra a impossibilidade de trabalhar por idade avançada. Diante do aumento da expectativa de vida, muitos países tem mudado este seguro. Não é o caso do Brasil, onde sequer existe idade mínima no seguro contra a idade avançada.  Apenas outros 12 países do mundo dispensam este requisito, como Síria, Iêmen e Iraque.

Na verdade, existe idade mínima para os pobres: ela só é dispensada para os que alcançam mais de 30 anos de carteira assinada. Isto é, uma minoria mais escolarizada e rica da população (a idade mínima do pobre por sua vez chega a 65 anos).

Esta previsão constitucional custa caro. A aposentadoria por tempo de contribuição sozinha custou mais de R$ 130 bilhões em 2016, valor que cresce aceleradamente. É mais do que a União gasta com educação.

Outro seguro social importante é a pensão por morte, recebida em um dos piores momentos da vida familiar. Este seguro protege a família contra a perda financeira decorrente do falecimento do provedor. Teoricamente este seguro deveria repor a renda.

Excepcionalmente no Brasil, ele amplia a renda familiar. Na linguagem fria dos seguros, é como se um plano de saúde pagasse ao segurado mais do que o valor que pagou por um serviço médico.

Em outros países, este seguro é desenhado para proteger membros da família que não podem gerar renda, como crianças ou idosos. Por isso, paga-se menos a famílias sem filhos ou em que o cônjuge é novo e tem condições de trabalhar. No Brasil, paga-se o mesmo para uma família com muitas crianças e uma família sem dependentes em que o cônjuge trabalha e tem renda própria.

Além de desafiar o compromisso de um seguro, este benefício também tem valor bem acima da renda média nacional – de onde são extraídos tributos para custeá-los, sequer contribuindo portanto para a redução da desigualdade.

Em 2016, a União também gastou com pensão por morte mais de R$ 130 bilhões, ou mais de 2 vezes o que gastou com o Bolsa Família. Parte deste gasto também é ordenado pela Constituição.

Haverá uma dificuldade cada vez maior de financiar esses benefícios pelo envelhecimento da população, que diminui a arrecadação e simultaneamente aumenta os gastos.  Este processo é muito mais veloz no Brasil do que foi em países desenvolvidos: a transição demográfica que o país está fazendo em 20 anos foi feita durante 115 anos na França.

E as crianças?

Enquanto gastamos muito com seguros constitucionais como as aposentadorias por tempo de contribuição ou as pensões, outros riscos sociais mal são protegidos. O risco de nascer em uma família extremamente pobre sequer é lembrado na Constituição. Os perdedores da “loteria do nascimento” são amparados pelo programa Bolsa Família, infraconstitucional, com benefícios de apenas R$ 39 para cada criança.

O governo já gasta 57% de sua despesa primária com benefícios de natureza previdenciária, seja os operados pelo INSS ou os dos servidores públicos. Nos próximos 10 anos, se nada mudar, esta despesa chegará a 80% deste orçamento, comprimindo todas as demais, como a educação – que já leva só 3% – e o próprio Bolsa Família – que hoje só responde por 2%.

Isso não seria tanto um problema para as crianças e jovens se eles morassem em famílias beneficiadas pela Previdência. Não é o caso: quase 90% dos idosos que recebem aposentadoria ou pensão não moram com jovens de até 15 anos em suas casas. (Tafner et al., 2015)

O quadro é dramático: entre os 20% mais pobres do país, 1/3 são crianças e adolescentes de até 14 anos. Idosos são apenas 6% (Camarano et al., 2014). A situação tende a melhorar com reforma trabalhista, que derruba barreiras à entrada de pais e mães jovens pouco qualificados no mercado de trabalho formal. Mas a reforma constitucional da Previdência continua essencial para reverter as distorções do pacto social de 88 conjugado com o envelhecimento populacional veloz.

As crianças pobres são as mais afetadas pela falta de recursos no saneamento básico (a mortalidade infantil ainda é 5 vezes maior do que em Portugal, o dobro da do Chile) e na educação (gasto por aluno 3 vezes menor no ensino fundamental que superior). Quando estiverem um pouco mais velhas, serão a parcela da população que mais morre violentamente. Isso não vai melhorar com o crescimento desenfreado dos gastos previdenciários.

Os benefícios da Seguridade previstos na Constituição desafiam a lógica de seguro, como preconizada pela OIT e praticada em outros países (pior no caso de servidores públicos). Boa parte desses benefícios são voltados aos mais ricos, especialmente porque os pobres no Brasil são principalmente crianças que não moram em famílias beneficiárias da Previdência. Estes benefícios custam caro em um país endividado e com juros altos, com carga tributária regressiva, e com serviços públicos carentes de recursos. Até quando poderemos chamar de Carta Cidadã um documento que não protege, ou até pretere, os mais pobres do país, justamente suas crianças?

Referências:

CAMARANO, A, A; KANSO, S.; BARBOSA, P.; ALCÂNTARA, V. S. Desigualdades na Dinâmica Demográfica e as suas Implicações na Distribuição de Renda no Brasil. In: CAMARANO, A. A. (Org.).
Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view
=article&id=23975.

TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. Debates sobre Previdência: Confusões, Polêmicas Iniciais e Mitos. In: TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. (Org.). Reforma da Previdência: A Visita da
Velha Senhora. Brasília: Gestão Pública, 2015.

https://data.worldbank.org/indicator/SP.DYN.IMRT.IN

https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td219/view

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