Victor Carvalho Pinto – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 13 Dec 2017 19:36:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Princípio da vedação de retrocesso social: o caso da vinculação de recursos para a saúde https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3135&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=principio-da-vedacao-de-retrocesso-social-o-caso-da-vinculacao-de-recursos-para-a-saude https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3135#comments Wed, 13 Dec 2017 14:58:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3135 A judicialização da política e a consequente politização da justiça são fenômenos conhecidos da opinião pública, cujas causas são geralmente procuradas nas disfunções do sistema político ou na cultura compartilhada por juízes e promotores. A essência do problema encontra-se, no entanto, na própria teoria jurídica, que desenvolveu uma série de justificações para a atuação do Poder Judiciário em matérias anteriormente consideradas de competência exclusiva dos Poderes Legislativo e Executivo.

1. O princípio da vedação de retrocesso

Um exemplo desse tipo de justificação é o chamado “princípio da vedação do retrocesso social”, segundo o qual os patamares já alcançados na provisão de direitos sociais não poderiam ser posteriormente reduzidos, mas apenas mantidos ou ampliados. Tal argumento tem sido sistematicamente empregado contra todo tipo de legislação tida por seus defensores como “neoliberal”, por supostamente reduzir algum direito social “conquistado” no passado. Alega-se, por exemplo, que a reforma trabalhista e o Código Florestal seriam inconstitucionais por representarem um “retrocesso” na defesa dos direitos dos trabalhadores e na defesa do meio ambiente.

Uma versão mais atenuada do princípio considera que o retrocesso, por si só, não é necessariamente inconstitucional; apenas cria uma presunção de inconstitucionalidade, que pode ser superada mediante demonstração de que a medida é necessária ao atingimento de outro valor constitucional ou direito fundamental e que a redução operada não foi excessiva1. Admite-se levar em consideração o contexto econômico e político por que passa o país, assim como a chamada “reserva do possível”, ou seja, a disponibilidade de recursos. Tal modulação é excluída, no entanto, do chamado “núcleo essencial” do direito fundamental “atacado”, que, no caso dos direitos sociais, traduz-se em um “mínimo existencial”, que deve prevalecer, inclusive, sobre a “reserva do possível”. Ou seja, admite-se o “retrocesso” apenas no que exceder ao “mínimo existencial” e desde que demonstrada sua necessidade e proporcionalidade com relação a outro valor constitucional.

Em Portugal, um importante marco no reconhecimento do princípio foi o Acórdão 39/84 do Tribunal Constitucional, que considerou inconstitucional a revogação de dispositivos legais instituidores do Serviço Nacional de Saúde. No Brasil, os precedentes mais relevantes são o voto minoritário do Ministro Celso de Melo na ADI 3105/DF, contrário à contribuição previdenciária para inativos e pensionistas instituída pela Emenda Constitucional 41/2003, e o acórdão da Segunda Turma do STF no ARE 639337, relatado pelo mesmo Ministro, relativo à matrícula de crianças em creches próximas a sua residência. Na América Latina, há registro de emprego do princípio também em outros países, podendo ser citada a Sentença T-1318/2015 da Corte Constitucional da Colômbia, relativa a contrato celebrado no âmbito da política habitacional.

Não há na Constituição brasileira qualquer menção expressa ao princípio da vedação de retrocesso. Seus defensores indicam como fundamento os arts. 1º, III, e 3º, III, da Carta Magna, que consagram a dignidade da pessoa humana como fundamento e a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades regionais e sociais como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

2. O princípio da vedação de retrocesso na ADI 5595

Encontra-se na pauta do Plenário do STF a ADI 5595, proposta pela Procuradoria Geral da República, que pede a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da Emenda Constitucional nº 86, de 2015, por violação do “princípio da vedação de retrocesso social”, decorrente da redução dos recursos vinculados à saúde. O relator do caso, Ministro Lewandowski, concedeu liminar acatando o pedido na íntegra.

A ADI 5595 pode ser considerada a mais radical formulação do princípio da vedação de retrocesso já submetida à apreciação do STF. Nela, a PGR pede ao Tribunal que declare a inconstitucionalidade dos arts. 2º e 3º da Emenda Constitucional nº 86, de 2015, que estabeleceram normas sobre a vinculação de recursos da União à política de saúde.

A Constituição de 1988, em sua redação original, não vinculava recursos para a saúde, mas para a seguridade social, conceito mais amplo, que abrange também a previdência e a assistência.

A Emenda Constitucional nº 29, de 2000, instituiu vinculação de recursos para “ações e serviços públicos de saúde” em todos os entes da Federação. No caso da União, atribuiu à lei complementar a fixação dos recursos mínimos a serem aplicados (CF, art. 198, § 2º, I, e § 3º, IV), o que acabou por ser feito pela Lei Complementar nº 141, de 2012. O art. 5º dessa Lei estabeleceu como piso de aplicação o montante empenhado no ano anterior, acrescido do crescimento do PIB, caso este tenha sido positivo. Posteriormente, a Lei nº 13.858, de 2013, destinou à saúde, em acréscimo a esse piso, 25% dos royalties e da participação especial da União oriundos da concessão de campos de petróleo na região do pré-sal (art. 2º, § 3º, e art. 4º).

A Emenda Constitucional nº 86, de 2015, substituiu a remissão à lei complementar pela fixação de um piso de aplicação de recursos na própria Constituição, correspondente a 15% da receita corrente líquida (CF, art. 198, § 2º, I). Estabeleceu, ainda, uma transição de cinco anos para o atingimento desse patamar, partindo de um percentual de 13,2%, e incluiu os recursos dos royalties do petróleo nesse piso (arts. 2º e 3º).

Essa transição foi subsequentemente revogada pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que instituiu o Novo Regime Fiscal. O patamar de 15% foi antecipado para 2017, passando o valor resultante a ser rejustado pela inflação nos vinte anos seguintes.

A ADI 5595 insurge-se contra a transição instituída pela EC 86/2015 e a inclusão dos royalties do petróleo no piso de aplicação de recursos em saúde, sob o argumento de que o novo critério resultaria em patamar inferior de despesa, o que violaria o princípio da vedação de retrocesso. Alega-se, em síntese, que o direito à saúde é um direito fundamental garantido pela vinculação de recursos e protegido por cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, IV). Embora o quadro de recessão econômica seja explicitamente reconhecido, alega-se que esse fato seria irrelevante diante da essencialidade da política de saúde.

3. Os equívocos da ADI 5595

O eventual provimento da ADI 5595 constituiria um precedente de grande impacto, que consagraria definitivamente o princípio da vedação de retrocesso, em sua versão mais radical, no direito constitucional brasileiro. O ineditismo da tese é múltiplo: contesta-se uma Emenda Constitucional em face de uma lei complementar e uma lei ordinária; o critério de aferição do “retrocesso” é puramente financeiro; a versão do princípio defendida é absoluta; e a abrangência da cláusula pétrea relativa aos direitos e garantias individuais (CF, art. 60, § 4º, IV) é estendida não apenas aos direitos sociais, mas aos recursos orçamentários a eles vinculados. Sua aceitação pelo STF representaria um enorme impulso à judicialização das políticas públicas e colocaria em risco não apenas a responsabilidade fiscal, mas o próprio direito à saúde. Sua repercussão não se limitaria a um maior aporte de recursos federais para a saúde, mas se estenderia a todas as eventuais realocações de recursos orçamentários, em todas as esferas da Federação.

3.1. Comprometimento da responsabilidade fiscal

A promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais depende da condição econômica de cada país. Daí porque os documentos internacionais que os consagram se referem sempre aos “recursos disponíveis”2. A progressividade de seu atendimento decorre da expectativa de que o desenvolvimento econômico elevaria as condições de vida da população e a receita dos governos. Ocorre que o desenvolvimento não é linear. Diversos fatores podem levar os países à recessão ou mesmo à depressão econômica: guerras, catástrofes naturais, crises políticas, má gestão da política econômica, etc. Além disso, a economia de mercado apresenta ciclos de crescimento e recessão que atingem mesmo os países desenvolvidos.

A manutenção do patamar de despesas na fase descendente do ciclo econômico, quando há uma redução das receitas, somente pode ser feita mediante endividamento. No atual contexto brasileiro, contudo, a dívida pública já é muito elevada e cresce aceleradamente, em função dos elevados déficits nominais e primários verificados a partir de 2014. Um congelamento de despesas inviabilizaria qualquer tipo de ajuste fiscal capaz de recompor o equilíbrio das contas públicas. No limite, o governo seria obrigado a dar um calote nos credores, fornecedores e servidores públicos, o que comprometeria a continuidade dos serviços públicos e causaria um retrocesso de proporções catastróficas para as políticas sociais, a exemplo do que já ocorre no estado do Rio de Janeiro.

3.2. Prejuízo para os demais direitos sociais e para o próprio direito à saúde

A vinculação de recursos para uma política se dá sempre em prejuízo das demais políticas. O direito à saúde não se limita, no entanto, ao atendimento pelo SUS; abrange também as “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos” (CF, art. 196). No mesmo sentido, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais inclui entre as medidas de promoção do direito à saúde a redução da mortalidade infantil, a higiene do trabalho e do meio ambiente e a prevenção de doenças3. Ocorre que a Lei Complementar nº 141, de 2012, explicitamente exclui essas medidas da aplicação dos recursos vinculados à saúde (art. 4º).

Nesse contexto, o ajuste fiscal recairá desproporcionalmente sobre outras políticas igualmente necessárias à promoção da saúde, o que pode, no limite, inviabilizá-las por completo. Haverá recursos para o tratamento de doenças e o atendimento de acidentados ou vítimas da violência, mas não para o saneamento básico, a segurança alimentar, a fiscalização do trânsito e a segurança pública, políticas capazes atacar os problemas que estão na origem da demanda pelos serviços de saúde.

3.3. Violação da separação dos poderes

As vinculações de recursos são uma exceção à regra geral de livre alocação da receita de impostos pela Lei Orçamentária (CF, art. 167, IV). Ao impedir o Congresso Nacional de revê-las, a ADI 5595 “petrifica” o “congelamento” do orçamento, substituindo o juízo de 3/5 dos deputados e 3/5 dos senadores (quórum de aprovação das Emendas Constitucionais) pelo de 6 ministros do STF (quórum de julgamento das ADI) ou apenas do relator do caso (no caso de liminar).

Nesse contexto, a única alternativa disponível para o atendimento das políticas não vinculadas será a reclassificação de suas despesas, de modo que elas sejam enquadradas no âmbito das vinculadas. Isso obrigará, em um segundo momento, o Tribunal a se pronunciar sobre o que é ou não “saúde”, ou seja, a adentrar cada vez mais o universo da legislação ordinária.

4. Comprometimento da autodeterminação das futuras gerações

Os conceitos de “progresso” e “retrocesso” em matéria de legislação e políticas públicas é bastante subjetivo. O que é progresso para uns pode ser considerado um retrocesso para outros. Além disso, havendo trade-offs entre objetivos legítimos, faz-se necessário estabelecer prioridades, atividade eminentemente política.

É próprio da democracia o conceito de alternância no poder. Quem perdeu as eleições hoje pode vencê-las amanhã e vice-versa. A imposição da vontade do grupo político atual sobre as futuras gerações equivale a uma ditadura cujo dirigente recursa-se a sair do poder quando derrotado nas eleições.

A vedação de retrocesso congela, no entanto, a alocação de recursos feita em algum momento do passado e impede sua revisão pelas gerações subsequentes.

5. Conclusão

A aplicação do princípio da vedação de retrocesso, tal como proposta na ADI 5595, seria catastrófica. É certo que se trata de uma versão extrema do princípio, que desconsidera por completo o contexto econômico do país. Mesmo uma versão atenuada seria, no entanto, igualmente questionável, na medida em que levaria o Tribunal a revisar decisões alocativas de recursos financeiros próprias dos Poderes Executivo e Legislativo, que foram eleitos para isso.

Em realidade, o princípio da vedação de retrocesso, enquanto tal, parece-nos inadmissível, pois pretende impor à administração pública uma concepção linear de progresso, incompatível com a realidade econômica e com o direito das gerações futuras de eleger suas próprias prioridades4.

______________

1 Nesse sentido, SARLET, Ingo Wolfgang, Notas sobre a assim designada proibição de retrocesso social no constitucionalismo latino-americano. Rev. TST, Brasília, vol. 75, nº 3, jul/set 2009.

2 O artigo 2º do Pacto Internacional sobre Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, por exemplo, assim dispõe: “Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”. A mesma abordagem foi adotada nos demais documentos internacionais de proteção dos direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos e seu Protocolo Adicional em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

3 “Art. 12. 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental. 2. As medidas que os Estados Partes do presente Pacto deverão adotar com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento das crianças; b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente; c) A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças; d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.

4 Vale registra que, em seus escritos mais recentes, Canotilho, um dos principais defensores do princípio, revisou seu entendimento e considerou a vedação de retrocesso insustentável em face na realidade econômica. No mesmo sentido, o Tribunal Constitucional de Portugal deixou de aplicá-lo no julgamento de diversas medidas de ajuste fiscal adotadas naquele país.

 

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Qual é o valor jurídico das metas fiscais? O caso da LDO 2014 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2380&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=qual-e-o-valor-juridico-das-metas-fiscais-o-caso-da-ldo-2014 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2380#comments Mon, 02 Feb 2015 11:48:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2380 1. Introdução

A Lei de Responsabilidade Fiscal exige que as Leis de Diretrizes Orçamentárias contenham um anexo com uma série de metas de natureza fiscal para os três anos subsequentes.

No final de 2014, a constatação de que a meta de resultado primário não seria cumprida gerou grande controvérsia no meio político e na sociedade quanto à caracterização ou não de crime de responsabilidade da Presidente de República na hipótese de descumprimento da meta. Isso levou o Poder Executivo a propor e o Congresso Nacional a aprovar a Lei nº 13.053, 15 de dezembro de 2014, que altera a LDO 2014, para eliminar o limite de abatimento da meta de superávit primário originalmente previsto.

A LDO 2014 (Lei nº 12.919, de 24 de dezembro de 2013) fixara a meta de superávit primário em R$ 116,07 bilhões, admitindo um abatimento de até R$ 67 bilhões para despesas relacionadas ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e a desonerações de tributos. A Lei 13.053 limita-se a suprimir a referência aos R$ 67 bilhões, permitindo o abatimento de despesas sem limite de valor.

Segundo a justificação do projeto que resultou na Lei, a medida seria necessária em virtude de a economia brasileira ter crescido em 2014 em ritmo inferior ao previsto no início de 2013, quando foi elaborado o projeto da LDO 2014, o que teria afetado as receitas previstas. Transcorrido o ano de 2014, constatou-se que não houve superávit, mas déficit primário de R$ 17,24 bilhões.

Um adequado esclarecimento do tema não pode prescindir de uma análise jurídica das metas macroeconômicas constantes das LDOs.

2. As finanças públicas na Constituição Federal

A lei de diretrizes orçamentárias (LDO) foi instituída pela Constituição de 1988 e compõe, ao lado do plano plurianual (PPA) e da lei orçamentária anual (LOA), o sistema orçamentário. A estruturação do sistema orçamentário obedece a uma hierarquia e a um calendário. A LOA deve ser compatível com a LDO, que deve ser compatível com o PPA. O PPA deve ser aprovado no 1º ano de mandato e tem prazo de vigência de quatro anos; a LDO deve ser aprovada no primeiro semestre de cada ano, para orientar a elaboração do orçamento relativo ao ano subsequente. Para assegurar que esse calendário seja cumprido, a Constituição proíbe a interrupção da sessão legislativa para o recesso de meio de ano enquanto a LDO não for aprovada (art. 57, § 2º).

Segundo a Carta Magna, “a lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento” (art. 165, § 2º). A lei orçamentária, por sua vez, “não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa” (§ 8º).

A disciplina das finanças públicas foi reservada a lei complementar (art. 163, I), que deverá “dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual” e “estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos” (art. 165, § 9º).

Os atos do Presidente da República que atentem contra a lei orçamentária são considerados crimes de responsabilidade (art. 85, VI), dispositivo regulamentado pelo art. 10 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1960, (que define os crimes de responsabilidade), alterada pela Lei nº 10.028, de 2000.

3. A instituição das metas fiscais pela Lei de Responsabilidade Fiscal

Em atendimento à determinação constitucional, foi editada a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, que “estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal”, conhecida como “Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)”. Em conjunto com a Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, que “estatui normas gerais de direito financeiro”, recepcionada como lei complementar, a LRF contém a disciplina básica das finanças públicas.

As metas fiscais compõem o conteúdo obrigatório da LDO determinado pela LRF:

“Integrará o projeto de lei de diretrizes orçamentárias Anexo de Metas Fiscais, em que serão estabelecidas metas anuais, em valores correntes e constantes, relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário e montante da dívida pública, para o exercício a que se referirem e para os dois seguintes” (art. 4º, § 1º).

“O Anexo conterá, ainda:

I – avaliação do cumprimento das metas relativas ao ano anterior;

II – demonstrativo das metas anuais, instruído com memória e metodologia de cálculo que justifiquem os resultados pretendidos, comparando-as com as fixadas nos três exercícios anteriores, e evidenciando a consistência delas com as premissas e os objetivos da política econômica nacional; (…)” (art. 4º, § 2º)

A metodologia de elaboração dos anexos da LDO consta do Manual de Demonstrativos Fiscais, em 6ª edição, aprovado pela Portaria nº 553, de 22 de dezembro de 2014, da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) do Ministério da Fazenda (MF), que é o órgão central do Sistema de Contabilidade Federal, instituído pela Lei nº 10.180, de 6 de fevereiro de 2001.

Não integram a LDO, mas devem compor a mensagem do Executivo que encaminhe seu projeto os “objetivos das políticas monetária, creditícia e cambial, bem como os parâmetros e as projeções para seus principais agregados e variáveis, a ainda as metas de inflação para o exercício subsequente” (art. 4º, § 4º).

O projeto de lei orçamentária, por sua vez, deve conter anexo com “demonstrativo da compatibilidade da programação dos orçamentos com os objetivos e metas” da LDO (art. 5º, I).

Ao exigir que a LDO contenha um Anexo de Metas Fiscais, a LRF pretende induzir os entes públicos a adotarem um planejamento financeiro de longo prazo, a ser apresentado e monitorado perante a opinião pública e o Congresso Nacional. Tão importante quando as metas em si, é a sua fundamentação, que deve avaliar o cumprimento das metas no ano anterior e apresentar memória de cálculo que evidencie sua consistência com os objetivos da política econômica nacional.

Na seção denominada “Da Execução Orçamentária e do Cumprimento das Metas”, a LRF determina ao Poder Executivo que demonstre e avalie quadrimestralmente perante o Congresso Nacional o cumprimento das metas fiscais (art. 9º, § 4º). Além disso, determina a fiscalização do atingimento das metas fiscais pelos sistemas de controle interno de cada Poder e pelo Poder Legislativo, diretamente ou com o auxílio do Tribunal de Contas (art. 59, I), que deverá emitir um alerta sempre que constatar a possibilidade de insuficiência da receita que coloque em risco o cumprimento das metas (§ 1º, I).

A vinculação entre as metas fiscais e a gestão financeira do dia-a-dia é feita por dois mecanismos.

Preventivamente, exige-se a demonstração de compatibilidade com as metas fiscais como condição de validade dos atos que importem em renúncia de receita (art. 14, I); criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa (art. 16, § 1º, II); ou criação ou aumento de despesa obrigatória de caráter continuado (art. 17, § 2º).

Na hipótese de se constatar ao final de um bimestre que a receita poderá “não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal” deve ser promovida a “limitação de empenho e movimentação financeira (contingenciamento), segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias” (art. 9º, caput).

Na sequência da LRF, editou-se a Lei nº 10.028, de 19 de outubro de 2000, que tipificou diversos crimes comuns e de responsabilidade e infrações administrativas contra as finanças públicas. Foi tipificada como infração administrativa contra as leis de finanças públicas “propor lei de diretrizes orçamentárias anual que não contenha as metas fiscais na forma da lei”, a ser processada e julgada pelo Tribunal de Contas e punida com “multa de trinta por cento dos vencimentos anuais do agente que lhe der causa” (art. 5º, II).

4. As metas como instrumento de responsabilidade fiscal

As metas fiscais têm uma estreita relação com o conceito de responsabilidade fiscal, que é o valor maior perseguido pela LRF:

“A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar” (art. 1º, § 1º, da LRF).

O objetivo último da responsabilidade fiscal é alcançar o “equilíbrio das contas públicas”, por meio da prevenção de riscos e da correção de desvios.

A LRF estabelece dois instrumentos paralelos de promoção da responsabilidade fiscal: os limites e as metas. Os limites são parâmetros estruturais, que não devem ser desrespeitados em nenhuma hipótese. Sua violação indica comprometimento direto da responsabilidade fiscal. As metas, em contraposição, apontam níveis ótimos a serem perseguidos de acordo com a conjuntura. Seu não cumprimento sinaliza um risco de comprometimento da responsabilidade fiscal, a ser considerado na execução do orçamento vigente e na elaboração da lei orçamentária para o ano subsequente. Por serem conjunturais, as metas são revistas anualmente e constam da LDO, enquanto os limites são fixados diretamente pela LRF ou por leis ordinárias e resoluções do Senado Federal, que vigoram por prazo indeterminado.

A LRF prevê limites para despesa total com pessoal (art. 19); dívidas consolidada e mobiliária (art. 30); operações de crédito (art. 32) e concessão de garantias (art. 40).

No que diz respeito ao endividamento, a Constituição prevê a existência de limites para os montantes da dívida consolidada de todos os entes federados (art. 52, VI), para a dívida dos entes subnacionais (art. 52, IX) e para a dívida federal (art. 48, XIV), estipulação reiterada pela LRF (art. 30, I e II). A Resolução nº 40, de 2001, do Senado Federal estabeleceu os limites de 200% da receita corrente líquida para o Distrito Federal e os Estados e de 120% para os municípios, a serem gradualmente atingidos ao longo dos quinze anos subsequentes. Complementarmente, a Resolução nº 43, de 2001, estabeleceu outras restrições adicionais ao endividamento subnacional.

Para a dívida federal, no entanto, ainda não foram fixados limites. A matéria é objeto do Projeto de Resolução do Senado nº 84, de 2007, e do Projeto de Lei nº 3.431, de 2000, que tramita no Senado Federal como Projeto de Lei da Câmara nº 54, de 2009. Na ausência de limites para o endividamento federal o sistema de metas torna-se ainda mais relevante, pois ele passa a ser o único mecanismo de controle da responsabilidade fiscal da União.

Há diversos indicadores de equilíbrio fiscal adotados internacionalmente. Os principais procuram avaliar a capacidade do ente público de pagar sua dívida. A relação dívida/PIB é o índice que vem sendo adotado pelo Poder Executivo na definição das metas fiscais. Quanto maior for esse indicador, maior será o risco de não pagamento incorrido pelos investidores nos títulos públicos e consequentemente maior será a taxa de juros que terá que ser oferecida. A taxa de juros dos títulos públicos, por sua vez, influencia a taxa de juros cobrada pelos bancos nos empréstimos para o setor privado. Quanto menor for a relação dívida/PIB, portanto, menor será a taxa de juros da economia e maior será o investimento privado, que é o principal fator de crescimento da economia. É fundamental, portanto, que o País tenha sempre uma meta de relação dívida/PIB de longo prazo, que deve orientar a fixação das metas anuais de superávit primário.

O nível desejado de relação dívida/PIB pode ser considerado um dos “objetivos da política econômica nacional” a que se refere a LRF. Embora não seja fixado pela LDO, ele deve constar da memória de cálculo das metas fiscais, que integra o anexo da lei.

No sistema de metas adotado pela LRF, meta de “montante da dívida pública” corresponde ao valor absoluto da dívida a ser perseguido a cada ano, que deve indicar uma trajetória tendente a alcançar a relação dívida/PIB desejada.

A meta de resultado primário, por sua vez, representa os recursos a serem reservados para o pagamento da dívida. Segundo o Manual de Demonstrativos Fiscais da STN,

“O resultado primário representa a diferença entre as receitas e as despesas primárias (não financeiras). Sua apuração fornece uma melhor avaliação do impacto da política fiscal em execução pelo ente da Federação. Superávits primários, que são direcionados para o pagamento de serviços da dívida, contribuem para a redução do estoque total da dívida líquida. Em contrapartida, déficits primários indicam a parcela do aumento da dívida, resultante do financiamento de gastos não financeiros que ultrapassam as receitas não financeiras.” (p. 218)

A memória de cálculo da meta de resultado primário deve indicar, portanto, o patamar de endividamento que se pretende alcançar e em que prazo. Esse patamar, por sua vez, deve ser compatível como a capacidade de pagamento do País, que é medida pelo tamanho do PIB.

5. As metas fiscais na LDO 2014

Apesar de a LRF exigir que as metas fiscais constem do Anexo respectivo da LDO, criou-se ao longo dos anos a praxe de se repetir no texto da lei a meta de superávit primário. No caso da LDO 2014, o art. 2º estabeleceu as metas de R$ 116,072 bilhões para o resultado primário e de R$ 167,36 bilhões para o resultado do setor público consolidado não financeiro. O art. 3º autorizou o já citado abatimento da meta de superávit em até R$ 67 bilhões. O Anexo IV apresenta, sob a forma de tabela, as metas de receita primária, despesa primária, resultado primário, resultado nominal e dívida líquida para os anos de 2014 a 2016.

Há, no entanto, uma contradição interna ao texto original da LDO, uma vez que, subtraindo-se o abatimento autorizado, ter-se-ia como meta de superávit propriamente dita o valor de R$ 49,072 bilhões. Apesar disso, a meta constante do Anexo é de R$ 116, 072 bilhões, revelando desconsideração, portanto, do abatimento.

A memória de cálculo constante do Anexo indica que a meta de superávit para o setor público consolidado não financeiro (que abrange União e entes subnacionais), de R$ 167,36 bilhões, corresponde a 3,1% do PIB, percentual a ser mantido nos dois anos subsequentes, o que permitiria alcançar uma relação dívida/PIB de 26,4% ao final de 2016, e permitiria gerar “déficit próximo a zero no resultado nominal de 2016”. Isso significa que o objetivo maior buscado pelo governo seria o de estabilizar a relação dívida/PIB em 26,4% no ano de 2016.

Percebe-se, no entanto, que essa fundamentação é insatisfatória, pois não levou em consideração o abatimento de R$ 67 bilhões, que resultaria em uma meta de R$ 100,36 bilhões, correspondente a 1,86 % do PIB. Nesse patamar de superávit, não se alcançaria o citado déficit zero em 2016. Além disso, o “resultado do setor público consolidado não financeiro” não integra o Anexo da lei; apenas o resultado primário do governo federal.

Além dessas inconsistências, é preciso registrar que a LDO 2014 foi aprovada em 24 de dezembro de 2013, quando a Constituição determina o prazo de 17 de julho. O Projeto de Lei Orçamentária para 2014, foi apresentado em 29 de agosto de 2013, antes, portanto, da lei que deveria orientar a sua elaboração. O orçamento para 2014, que deveria ter sido aprovado até 31 de dezembro de 2013, veio a ser aprovado em 20 de janeiro de 2014, por meio da Lei nº 12.952. Tais atrasos tornaram-se rotineiros nos últimos anos e revelam a fragilidade institucional ainda presente na gestão financeira do País.

6. A alteração da meta de resultado primário da LDO 2014

Se a LDO 2014 já apresentava as impropriedades citadas, a Lei 13.053, de 2014, conseguiu torná-la ainda pior, descumprindo praticamente todas as exigências do Anexo de Metas Fiscais constantes da LRF. Ao eliminar o limite de abatimento da meta, na prática ela deixa de fixar qualquer meta de resultado primário.

Esse fato é agravado pela não alteração do Anexo de Metas Fiscais, que permanece com os números da LDO original. O mínimo que se poderia esperar de uma alteração dessa natureza seria uma revisão global do Anexo, contemplando novos valores para as metas de receita, despesa, resultados primário e nominal e dívida líquida. Essa revisão certamente teria que abarcar também os valores previstos para 2015 e 2016, que se supõe tenham sido afetados pelos mesmos fatos que justificariam a alteração da meta de superávit primário para 2014.

O desrespeito pela LRF e pela cidadania é evidenciado, ainda, pela ausência de qualquer memória de cálculo que fundamente a alteração realizada e esclareça quais são os atuais “objetivos da política econômica nacional”. Mais precisamente, fica a questão: qual é o novo objetivo da política fiscal da União, em substituição ao de estabilização do endividamento em 26,4 % do PIB no ano de 2016, que consta da LDO original?

7. Consequências jurídicas do descumprimento das metas fiscais

As metas fiscais não são regras jurídicas propriamente ditas, a serem cumpridas em quaisquer circunstâncias. São parâmetros de planejamento e transparência, a serem observados na elaboração da lei orçamentária anual e na execução orçamentária.

Esse entendimento fica evidenciado quando a LRF determina que o Anexo da LDO contenha avaliação do cumprimento das metas relativas ao ano anterior e a demonstração e avaliação do cumprimento das metas de cada quadrimestre perante o Congresso Nacional. Se seu cumprimento deve ser avaliado, presume-se aceitável que a meta não seja alcançada.

Tanto é assim que nem a Constituição (art. 85, VI) nem a Lei 10.028 tipificaram como crime comum ou de responsabilidade o descumprimento das metas fiscais da LDO. Todos os crimes dizem respeito exclusivamente à violação da lei orçamentária.

Outro não pode ser o raciocínio quando se considera a natureza das metas a serem fixadas: “receitas, despesas, resultados nominal e primário e montante da dívida pública”. Desses itens, apenas as despesas estão sob o controle do poder público. Ainda assim, não se trata de um controle absoluto, pois há despesas obrigatórias (art. 17 da LRF), cuja não realização seria ilegal. As receitas dependem da conjuntura econômica, que é influenciada por fatores alheios ao controle do Estado, como o desempenho da economia mundial e intempéries climáticas. O mais adequado seria falar-se em “previsão de receita”, como faz a Constituição Federal (art. 165, § 8º), em lugar de meta de receitas, como consta da LRF. Os resultados nominal e primário, por sua vez, dependem das receitas e despesas e o montante da dívida pública depende do resultado nominal.

O alcance das metas é influenciado, portanto, apenas parcialmente pelo governo, não se podendo responsabilizá-lo automaticamente por eventual descumprimento. O que se exige é que o cumprimento das metas seja avaliado no Anexo de Metas Fiscais da LDO subsequente, mediante indicação dos fatores que impediram seu atingimento e a fixação de novas metas compatíveis com a nova conjuntura econômica. Conclui-se daí que a alteração da LDO 2014 era desnecessária, bastando ao Poder Executivo apresentar perante o Congresso Nacional os motivos que levaram ao não atingimento da meta de superávit primário.

As metas são indispensáveis, por outro lado, para dar racionalidade ao orçamento, vinculando-o a um planejamento fiscal de longo prazo. Elas evidenciam a análise que deve orientar a elaboração da lei orçamentária, que “fixa a despesa” (art. 165, § 8º, da Constituição), ou seja, autoriza o gasto público. Essa é a regra jurídica propriamente dita, cuja violação caracteriza crime de responsabilidade (art. 85, VI, da Constituição Federal). Na ausência dessa vinculação, a dívida pública pode sair do controle, o que comprometeria não apenas a credibilidade do País no mercado financeiro internacional, mas principalmente a capacidade de manutenção dos serviços e investimentos públicos nos anos subsequentes.

A inexistência de Anexo de Metas Fiscais na forma da LRF é indício de pelo menos uma entre duas condutas inadmissíveis: ou não há planejamento fiscal ou ele existe, mas está sendo ocultado da opinião pública. No primeiro caso, viola-se o princípio da responsabilidade fiscal; no segundo, o da publicidade da administração pública.

É por esse motivo que a Lei 10.028, de 2000, tipifica como infração administrativa a apresentação de lei de diretrizes orçamentárias anual que não contenha as metas fiscais na forma da lei (art. 5º, II). Não basta meramente preencher uma tabela de metas com números quaisquer.  É preciso fundamentá-los com todos os elementos tornados obrigatórios pela LRF.

O mero encaminhamento ao Congresso Nacional do Projeto de Lei nº 36, de 2014, que resultou na Lei nº 13.053, de 2014, já caracterizou, portanto, a infração administrativa apontada. É importante que o TCU processe e julgue os responsáveis pela apresentação do projeto e que o STF declare a inconstitucionalidade da lei, a fim de que esse triste episódio não se transforme em um precedente capaz de comprometer o sistema de responsabilidade fiscal em todas as esferas da federação.

Mais grave que descumprir uma meta fiscal é não ter metas ou escondê-las da sociedade, situação que representa um risco não apenas para a estabilidade da economia, mas para a própria a democracia.

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Como promover a renovação das cidades? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1950&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-promover-a-renovacao-das-cidades https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1950#comments Mon, 12 Aug 2013 12:24:26 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1950 As grandes cidades brasileiras apresentam um padrão de desenvolvimento urbano bastante conhecido: de um lado, expansão horizontal excessiva, de baixa densidade e com pouca infraestrutura; de outro, degradação e decadência das áreas centrais, que perdem população apesar de estarem dotadas de infraestrutura.

Praticamente todos os estudiosos de questão urbana e planejadores urbanos afirmam que esse quadro deve ser revertido, procurando-se fazer com que as cidades cresçam “para dentro”, de modo a reduzir os custos de urbanização, tornar os centros históricos menos perigosos e aumentar a densidade demográfica da cidade, condição indispensável para viabilizar economicamente o transporte coletivo e o deslocamento a pé ou de bicicleta.

Políticas voltadas para a revitalização de áreas degradadas têm sido adotadas em diversos municípios pelo menos desde a década de 1980 e diretrizes nesse sentido constam de todos os planos diretores, cuja adoção foi tornada obrigatória a partir da Constituição.

A fim de viabilizar esse tipo de intervenção, o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), principal lei federal disciplinadora da política urbana, criou a figura da “operação urbana consorciada”, definida como “conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental” (art. 32, § 1º).

Instituída a operação, proprietários podem se beneficiar de alterações nas normas de uso do solo, em troca de contrapartidas a serem pagas ao Poder Público. A lei criou uma forma inovadora de contrapartida, que é o certificado de potencial adicional de construção (CEPAC), título emitido pela prefeitura e que tem que ser adquirido pelo proprietário interessado em aumentar o aproveitamento de seu lote. Os recursos arrecadados têm que ser obrigatoriamente investidos na área da operação.

Os Municípios de São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba já fizeram uso do CEPAC, cuja emissão tem que ser registrada perante a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e arrecadaram acima de R$ 5 bilhões de reais, o que demonstra a adesão do mercado a esse mecanismo.

Apesar de todos esses esforços, o fato é que os resultados ficam sempre muito aquém do necessário. As cidades apresentam extensas áreas devidamente urbanizadas, mas com densidades muito baixas e esse quadro não se altera mesmo quando se oferecem incentivos urbanísticos, tributários e financeiros aos proprietários e empreendedores. Ao contrário do que muitos imaginam, essa baixa densidade não se deve majoritariamente aos chamados “vazios urbanos”, ou seja, glebas e lotes ociosos, mas a um padrão de ocupação de lotes por casas isoladas ou “unifamiliares” ou por prédios sem adequada conservação.

A explicação para essa permanência do status quo reside na dificuldade que tem o mercado de reunir os lotes necessários para fazer uso de índices construtivos mais elevados. Via de regra, a construção de um prédio depende da formação de um novo lote a partir do remembramento de diversos lotes unifamiliares, pois quanto maior a altura da edificação, maiores devem ser os recuos desta com relação às divisas do lote. Esse tipo de exigência decorre da necessidade de assegurar adequada ventilação e insolação aos apartamentos, aos vizinhos e à rua.

Nessas situações, cada proprietário de imóvel a ser remembrado tem poder de veto sobre todo o empreendimento, o que aumenta seu poder de barganha perante possíveis incorporadores, que precisam adquirir um conjunto de imóveis contíguos como condição para o remembramento. Ante a dificuldade de concluir negociações tão complexas, eles preferem buscar terrenos maiores, ainda que mais distantes, o que explica, em grande medida, a prevalência do crescimento urbano horizontal sobre o vertical.

Os economistas estudam esse tipo de situação como um “problema de retenção” (holdout problem), cuja solução mais comum é a desapropriação. Para promover operações de urbanização ou reurbanização, o Poder Público teria que desapropriar amplas áreas a serem renovadas, para remembrar e relotear seus terrenos e em seguida revender os novos lotes a empreendedores interessados em construir as edificações previstas no planejamento urbanístico da região.

Um caso conhecido de reurbanização, realizado pela Empresa Municipal de Urbanização (EMURB), empresa pública do Município de São Paulo, ocorreu na década de 1970, no entorno das estações Santana e Jabaquara do Metrô. Na época, houve polêmica quanto ao emprego da desapropriação como instrumento para a produção de imóveis que não são incorporados ao patrimônio público, mas revendidos a terceiros (denominada de “desapropriação urbanística”). Em apertada votação (6 a 5), o Supremo Tribunal Federal acabou por confirmar sua constitucionalidade (RE 82.300).

Mais comuns que as reurbanizações são as urbanizações. Um tipo comum de urbanização promovida pelo Poder Público são os chamados “distritos industriais”, que nada mais são que loteamentos projetados para o uso industrial. Para realizá-los, os municípios desapropriam glebas e posteriormente alienam os lotes para empresas interessadas em instalar fábricas no local.

Uma dificuldade inicial desse tipo de iniciativa, especialmente quando realizada em áreas já urbanizadas, reside na maneira como se pratica a desapropriação no Brasil. Apesar de a Constituição condicionar a transferência do imóvel ao pagamento de uma indenização “prévia e justa”, o Decreto-Lei 3.365, de 1941, que disciplina a desapropriação por utilidade pública, admite a “imissão provisória na posse”, mediante o depósito de um valor avaliado unilateralmente pelo Poder Público, para que só depois se discuta em contraditório entre as partes a avaliação do bem, que acaba sendo invariavelmente mais alta. Os proprietários desapropriados não só correm o risco de não receber o valor correto por seus imóveis, como ainda incorrem no custo de transação envolvido na disputa com o Poder Público. Some-se a isso o fato de que o recebimento da diferença entre o depósito inicial e a avaliação final depende não apenas do trânsito em julgado do acórdão, mas também da disposição do Estado em pagar o chamado “precatório”, que é o título resultante do trânsito em julgado, o que pode levar décadas.

Para compensar o prejuízo em que incorre o desapropriado, a jurisprudência criou os conceitos de “juros compensatórios” e de “juros moratórios”, que são calculados sobre a diferença entre o depósito inicial e a avaliação final e aplicados retroativamente ao momento da imissão provisória na posse. Na prática, a desapropriação dá origem a um “esqueleto”, ou seja, uma dívida não contabilizada, de valor impreciso, que terá que ser paga em um futuro distante.

Em razão dessas distorções, projetos que envolvam desapropriações costumam ser intensamente combatidos pelos proprietários de imóveis, tanto política quanto judicialmente, o que muitas vezes os inviabiliza.

A ironia desse quadro reside no fato de que, na maioria dos casos, empreendimentos desse tipo são lucrativos, pois os novos lotes são muito mais valiosos que os antigos. Haveria condições financeiras, portanto, para pagar aos proprietários indenizações atrativas, que poderiam ser aceitas amigavelmente, economizando os vultosos recursos necessários ao pagamento de juros compensatórios e moratórios. Isso desafogaria o Judiciário e aumentaria a aceitação política e a segurança jurídica dos empreendimentos.

Note-se, ainda, que, por serem auto-sustentáveis financeiramente, esses empreendimentos não dependem de recursos públicos, mas de um modelo institucional que viabilize seu financiamento pelo mercado financeiro e de capitais. Sua viabilidade econômica é ainda maior quando associados a projetos de infraestrutura capazes de gerar valorização imobiliária para o seu entorno, como as estações de Metrô. A incorporação do reparcelamento do solo a projetos de infraestrutura urbana permitiria ao Poder Público recuperar grande parte dos recursos públicos despendidos, além de viabilizar um melhor aproveitamento urbanístico dos equipamentos construídos. No Japão e em Hong Kong, por exemplo, grande parte dos custos do transporte ferroviário de passageiros é financiada dessa maneira.

Em muitos países, operações desse tipo, denominadas “land readjustment” ou “reparcelamento” são realizadas por meio da permuta consensual de imóveis antigos por outros novos, a serem produzidos no âmbito do empreendimento. Ainda que estes possam ser menores que aqueles, serão mais valiosos, o que torna o empreendimento atrativo para os proprietários. Em geral, a legislação exige a adesão de uma maioria qualificada de proprietários, que é obtida no decorrer de extensas negociações, como condição para o prosseguimento da operação. Obtida essa maioria, os que se recusarem a aderir serão desapropriados.

O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 2001) prevê um instituto jurídico semelhante, denominado “consórcio imobiliário”, que é definido como “forma de viabilização de planos de urbanização ou edificação por meio da qual o proprietário transfere ao Poder Público municipal seu imóvel e, após a realização das obras, recebe, como pagamento, unidades imobiliárias devidamente urbanizadas ou edificadas” (art. 46, § 1º). Exige-se, no entanto, que o imóvel original seja avaliado segundo seu valor venal para efeito de IPTU, que tende a ser subestimado, o que torna o instrumento completamente ineficaz.

Alguns países oferecem aos proprietários, alternativamente à permuta de imóveis, uma sociedade no empreendimento, valendo a entrega do imóvel como aporte de capital. Observe-se que sociedades de propósito específico (SPE) são muito empregadas no financiamento de projetos de infraestrutura, pois permitem uma clara segregação dos riscos e da contabilidade do negócio,  sendo sua constituição facultada no caso de concessões (art. 20 da Lei nº 8.987, de 1995) e exigida no caso de PPPs (art. 9º da Lei nº 11.079, de 2004).

Nada impede que modelo semelhante seja adotado na área do desenvolvimento urbano, sob a forma de sociedade anônima ou de fundo de investimento imobiliário, facultando-se aos os proprietários a participação no seu capital mediante entrega dos imóveis necessários à operação.

Além dos proprietários, também poderiam participar do capital dessas entidades o Poder Público, por meio de logradouros desafetados, dinheiro, CEPACs e títulos públicos, e investidores externos, inclusive mediante abertura de capital em bolsa de valores. Outros meios de financiamento seriam a venda ou locação de imóveis futuros “na planta” e a securitização de recebíveis, técnicas de financiamento de projetos amplamente praticadas no mercado.

Essas entidades devem ter o poder de desapropriar os imóveis de que necessitem, condição indispensável à resolução do problema da retenção. Para isso, deverão assumir a condição de sociedade de economia mista, criada por lei, ou de concessionária, selecionada por licitação. O importante é a desapropriação, inerentemente conflituosa, seja utilizada apenas em último caso, preferindo-se sempre soluções consensuais.

A fim de que essas soluções sejam alcançadas, é preciso romper com o preconceito que qualifica qualquer forma de favorecimento aos proprietários de imóveis como “especulação imobiliária”. Acordos têm que ser benéficos para todas as partes. A proibição de que se pague, permute ou indenize um imóvel por valor superior ao de mercado resulta na impossibilidade de uma solução amigável. Nos países em que se pratica o “land readjustment”, as pessoas ficam felizes quando recebem a notícia de que haverá um projeto de renovação urbana nos bairros em que moram. No Brasil, essa mesma notícia seria recebida como tragédia.

Já avançamos muito na concessão de infraestruturas à iniciativa privada. É chegada a hora de fazer o mesmo na área do desenvolvimento urbano.

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Empresa aérea é concessionária de serviço público? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1853&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=empresa-aerea-e-concessionaria-de-servico-publico https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1853#comments Mon, 20 May 2013 12:54:30 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1853 O Plenário do Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 571969, em que se discute indenização à Viação Aérea Rio-Grandense (Varig), pela União, por danos sofridos pela empresa em consequência da política de congelamento de tarifas vigente de outubro de 1985 a janeiro de 1992, instituída pelo Plano Cruzado.

A Varig alega que, tendo sido uma concessionária de serviço público, o congelamento violou seu direito ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato, pois a obrigou a operar com prejuízos. A União, por sua vez, sustenta que o princípio do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, previsto no art. 37, XXI, não é absoluto, devendo ser interpretado em harmonia com a “política tarifária” prevista no art. 175, parágrafo único, III, da Constituição.

A relatora, Ministra Carmen Lúcia, deu razão à Varig, por considerar que “toda a sociedade brasileira se viu submetida àquelas disposições decorrentes da adoção das medidas e normas referentes ao plano econômico, e não somente a autora, ora recorrida, mas na condição de concessionária de serviço público, não poderia ela adotar qualquer providência para se esquivar dos danos, não tem liberdade para atuar segundo a sua conveniência, não tem como evitá-los ou conduzir-se de outra que não a forma pré-determinada pelo próprio ente concedente, que, no caso, é exatamente o autor daquelas medidas que compõem a política questionada.” Após o voto da relatora, o julgamento foi suspenso pelo pedido de vista do Ministro Joaquim Barbosa.

Em julgamento anterior sobre a mesma matéria (RE 183180-4), de 1997, em que foram partes a Transbrasil e a União, o STF julgou favoravelmente à empresa: “Prejuízo julgado comprovado pelas instâncias ordinárias e decorrente de atos omissivos e comissivos do Poder concedente, causadores da ruptura do equilíbrio financeiro da concessão, não abstratamente atribuível a política econômica, normativamente editada para toda a população (“Plano Cruzado”)”.

Independentemente da divergência entre as partes do julgamento em curso, nenhuma delas contesta o “fato” de que a Varig foi uma concessionária de serviço público. A partir desse consenso, o que se discute é a extensão do princípio do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

A realidade, no entanto, é que, apesar das aparências, nem a Varig, nem as demais empresas aéreas foram ou são concessionárias de serviço público, embora esta seja a terminologia adotada. Os institutos jurídicos são identificados a partir do regime jurídico praticado e não da terminologia adotada pelas partes. Para saber se a Varig era uma prestadora de serviço público, é preciso, portanto, identificar a natureza jurídica de sua relação com o Estado.

A chamada “concessão de serviços aéreos” não apresenta nenhum dos elementos definidores de uma concessão de serviço público. Na época do Plano Cruzado (1986), a Varig operava com fundamento no Decreto nº 72.898, de 1973, que lhe concedera o direito de executar o serviço aéreo de transporte regular de passageiro, carga e mala postal. Nesse sistema, que vigora até hoje, não há contrato propriamente dito, pois não há relação de contraprestação entre as partes, mas a regulação de um serviço prestado por uma das partes ao público em geral. A outorga do serviço independe de licitação, o que seria inconstitucional caso se tratasse de uma concessão de serviço público, uma vez que o art. 175 exige licitação para todas as concessões e permissões de serviço público. As aeronaves, embora essenciais à prestação do serviço, não são bens reversíveis e em geral sequer pertencem às próprias empresas aéreas, que as utilizam em regime de leasing.

Mais importante, no que diz respeito ao tema do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, é que a chamada concessão de serviços aéreos não confere à empresa o direito ou a obrigação de voar entre quaisquer localidades. O direito de voar somente existe após a outorga de uma autorização específica para cada linha a ser explorada. Essa autorização, denominada Horário de Transporte (HOTRAN), estabelece horários, frequências, tipos de aeronaves e oferta de assentos para cada linha.  As empresas aéreas não têm, nem nunca tiveram, portanto, qualquer obrigação de operar em condições deficitárias. Podem, a qualquer tempo, comunicar ao poder público que não mais operarão determinada linha e solicitar o cancelamento do respectivo HOTRAN.

Muita coisa mudou entre 1986 e 2013. A Lei nº 11.182, de 2005, instituiu o regime de liberdade tarifária. A Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) não pode, portanto, tabelar os preços das passagens aéreas, como fez o antigo Departamento de Aviação Civil (DAC) ao longo de quase toda sua existência. A mesma lei também assegura às empresas a exploração de quaisquer linhas aéreas, observada exclusivamente a capacidade operacional de cada aeroporto e as normas regulamentares de prestação de serviço adequado, o que desautoriza a política de contenção do “excesso de oferta” praticada pelo DAC, que vedava a entrada de uma empresa em mercados já atendidos por outra.

Ao contrário dos dias de hoje, em que prevalece a livre iniciativa na exploração dos serviços aéreos, em 1986 as empresas estabelecidas eram protegidas contra novas entrantes e os preços das passagens aéreas eram controlados. Isso não autoriza a conclusão, no entanto, de que no regime anterior se tenha praticado uma concessão de serviço público propriamente dita.

A situação das empresas aéreas aproximava-se do regime pelo qual o serviço de táxi é prestado na maior parte das cidades. O poder público tabela o preço cobrado do passageiro, mas não obriga ninguém a ser taxista. Caso o preço tabelado se mostre insuficiente, o taxista pode descontinuar a prestação do serviço, sem qualquer penalidade. Também pode contestar a legalidade do valor tabelado e buscar sua alteração junto ao Poder Judiciário. O que não se pode admitir é que, tendo continuado a operar, solicite depois uma indenização, a título de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro de um contrato que, em realidade, nunca existiu.

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