Carlos Alexandre Amorim Rocha – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 31 Aug 2022 13:16:37 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Limitações ao Ajuste Fiscal pelo Lado da Receita https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3674&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=limitacoes-ao-ajuste-fiscal-pelo-lado-da-receita Wed, 31 Aug 2022 13:16:37 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3674 Limitações ao Ajuste Fiscal
pelo Lado da Receita
[1]

Por Carlos Alexandre A. Rocha*

O teto de gastos integra o Novo Regime Fiscal (NRF), introduzido pela Emenda Constitucional 95/2016. Com duração prevista até 2036, o NRF prevê limites máximos para as despesas primárias de cada um dos Poderes e órgãos autônomos da União (a Defensoria Pública, o Executivo e as subdivisões do Judiciário, do Ministério Público e do Legislativo). Os tetos individualizados têm como base os montantes pagos em 2017 corrigidos, anualmente, pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

O NRF tem caráter anticíclico. Acumulam-se recursos (ou diminui-se a pressão por novos passivos) durante a fase favorável do ciclo econômico e preservam-se os gastos, em termos reais, durante a fase desfavorável.O seu pleno funcionamento permitiria que o atual déficit primário estrutural fosse substituído, futuramente, por um superávit capaz de estabilizar ou mesmo reduzir a razão entre a dívida pública e o produto interno bruto (PIB).

Trata-se, portanto, de uma estratégia de ajuste fiscal diferida ao longo do tempo centrada na contenção dos gastos primários. Ou seja, o teto de gastos precisa desempenhar, para que seja efetivo, o papel de uma poupança precaucional. Na ausência da poupança, porém, o teto perde a sua razão de ser. É o que apontam as sucessivas flexibilizações das suas regras aprovadas no último triênio (Emendas Constitucionais 102/2019, 109, 113 e 114/2021 e 123/2022), além de medidas similares implementadas ou tentadas pelo Governo Federal no mesmo período, como apontado pela Instituição Fiscal Independente (IFI) em seu relatório “Considerações sobre o Teto de Gastos da União”.[2]

Em face de tantas alterações, vários especialistas argumentam que o novo regime perdeu a capacidade de balizar as expectativas dos agentes econômicos sobre o comportamento do resultado primário e da dívida do Governo Federal nos próximos exercícios. O ex-ministro Delfim Netto, p. ex., sustentou, ainda em outubro de 2021, que o teto de gastos é um artefato de comprometimento com uma trajetória futura das finanças públicas federais. O seu esvaziamento implicava perder a baliza para avaliar a (in)sustentabilidade da dívida pública.[3]

Mais recentemente, Cecília Machado, professora da FGV-RJ, argumentou que o ativismo fiscal via emendas à Constituição representava o fim da possibilidade de suavizar e diferir temporalmente novos ajustes fiscais que se façam necessários.[4]

Samuel Pessôa, pesquisador da FGV-RJ, por sua vez, alerta que a flexibilização do teto dos gastos precisa ser precedida da construção de uma situação fiscal estruturalmente solvente. O caminho para isso, na falta de um ajuste pelo lado da despesa, seria convencer a sociedade a entregar mais imposto ao Estado.[5]

Com efeito,em termos de ajuste fiscal, observou-se, no passado recente, uma clara preferência por cortes nas despesas futuras, como demonstrado pela reforma da previdência,[6]e por uma corrosão inflacionária do valor nominal das obrigações do setor público. A contenção estrutural dos gastos públicos correntes foi evitada de forma reiterada. Tomando-se isso como um dado da realidade brasileira, é cabível o entendimento de que a reversão do alto nível de endividamento do Governo Federal passa por uma nova elevação da carga tributária, como antecipado por Pessôa.

No entanto, mesmo essa opção está longe de ser trivial, para além do desafio político inerente à construção de um consenso a esse respeito. Um aspecto que não tem recebido, s.m.j., a devida atenção é que eventual aumento na arrecadação precisaria proporcionar recursos líquidos de transferências e vinculações. De outra forma, o Governo Federal continuaria sem contar com os meios necessários para o gerenciamento da sua dívida.O quadro a seguir resume os usos predefinidos de um aumento de R$1.000,00 nos principais tributos ou cestas de receitas (contribuições sociais, impostos em geral e receita corrente líquida – RCL):

 Usos Predefinidos para uma Arrecadação de R$ 1.000,00,
por Tributo ou Cesta de Receitas

 

Vinculação Valor
Compartilhamento com os entes subnacionais1
Imposto sobre produtos industrializados (IPI) 600,00
Imposto sobre a renda (IR) 500,00
Contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE) 290,00
Com a revogação do NRF
Vinculação da receita de impostos à educação 180,00
Vinculação da RCL à saúde 150,00
Vinculação da RCL às emendas parlamentares individuais e de bancada 22,00
Na vigência da Desvinculação de Receitas da União (DRU)2
Vinculação à seguridade social das contribuições sociais 700,00
Vinculação ao objeto da CIDE (após o rateio federativo)
497,00
Fonte: elaboração própria.

Notas:

(1)inclui os programas de financiamento ao setor produtivo das regiões CO, N e NE;

(2)duração até 31/12/2023, conforme a Emenda Constitucional 93/2016.

O acréscimo de R$ 1.000,00, para que represente um ganho para as políticas setoriais favorecidas em relação à regra de correção pelo IPCA, contida no NRF, deve ser entendido como uma elevação da receita em termos reais (ou seja, descontada a variação do nível de preços). No quadro, cada linha representa um uso predefinido para o incremento ora tratado, por tributo ou cesta de receitas– de modo mais simples, dado um aumento real de R$ 1.000,00 na receita x, cada linha aponta quanto caberia ao uso y. Exceto no que tange à CIDE, cada vinculação é tratada isoladamente, sem efeitos cumulativos.

Ressalte-se, todavia, que as superposições entre as vinculações, como na CIDE, são recorrentes. No IR, p. ex., metade do montante arrecadado é repassado inicialmente para os entes subnacionais e os respectivos setores produtivos por meio dos Fundos de Participação dos Estados e do Distrito (FPE) e dos Municípios (FPM) e dos Fundos Constitucionais de Financiamento do Centro-Oeste (FCO), do Norte (FNO) e do Nordeste (FNE). O restante compõe a cesta geral de impostos e a RCL. Caso o NRF seja extinto, as vinculações em prol da educação, da saúde e das emendas parlamentares individuais e de bancada serão restabelecidas. Com isso, R$ 90,00 irão para a primeira, R$ 75,00 para a segunda e R$ 11,00 para as últimas. Sobrariam R$ 324,00 para usos diversos.

Um novo imposto, a seu tempo, repassaria 20% para os governos estaduais. Com o fim do NRF, o restante sofreria a incidência das três vinculações recém-discriminadas. Do total de R$ 1.000,00 arrecadados, sobrariam R$ 518,40 – eficiência de 51,8% na geração de receita desimpedida.

Eventual recriação da contribuição provisória sobre a movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira (CPMF) teria desempenho semelhante ao do IR, mas dependeria da contínua renovação da DRU. Trata-se de tributo vinculado à seguridade social, mas, com a DRU, 30% da arrecadação poderia ser usada livremente. Ou seja, cada R$ 1.000,00 arrecadado proporcionaria apenas R$ 300,00 para, p. ex., a gestão da dívida.

No entanto, na presença de déficit primário no orçamento da seguridade social, a recriação da CPMF também permitiria o uso do artifício conhecido como “substituição de fontes”. Atualmente, as receitas específicas da seguridade social são insuficientes para custear as despesas correspondentes. Com isso, o Tesouro Nacional emprega recursos ordinários na cobertura do déficit. No exercício em curso, p. ex., estima-se que a diferença entre despesas e receitas da seguridade alcançará R$ 170 bilhões[7](contra um déficit de R$ 292 bilhões, em 2017)[8]. São recursos que poderiam ser liberados para outros usos se a CPMF retornasse.[9]Isso, porém, requereria a persistência do quadro deficitário na ausência da nova contribuição, o que é incerto e até mesmo indesejável em face da recém-aprovada reforma da previdência.Não constitui, por essa razão, uma solução estrutural para a demanda por recursos livres.

Essa miríade de vinculações dificulta não só o gerenciamento do Orçamento Geral da União (OGU), mas também a formatação de qualquer programa de ajuste fiscal. Descartando-se o artifício da substituição de fontes e assumindo-se, à luz das competências e obrigações tributárias do Governo Federal, que a razão entre os seus potenciais de arrecadação livre e de arrecadação total seja igual a 50% (percentual similar ao obtido por um novo imposto),um programa que exigisse uma elevação da receita livre da ordem de R$ 226 bilhões (ou 2,6% do PIB de 2021)[10]requereria que a receita total aumentasse cerca de R$ 452 bilhões (ou 5,2% do PIB de 2021) – uma meta desafiadora mesmo diferida por um prazo longo.

O Brasil é um país complexo e carente, no qual os pleitos da sociedade se multiplicam quase ao infinito. Conciliar meios e fins é o desafio deste, do próximo e de qualquer governo. Este texto assinala que escolhas precisam ser feitas. Se a estratégia de conter os gastos públicos não foi bem-sucedida, será preciso rediscutir a contribuição da sociedade para o funcionamento do Estado. Mesmo isso, contudo, não está isento de problemas – políticos, naturalmente, mas também operacionais, o que é menos evidente. A presente análise permite entender por que um tributo como a CPMF é sempre lembrado quando se buscam alternativas para um ajuste fiscal rápido. A perspectiva de uma “troca de fontes” instantânea é por bastante sedutora. Trocam-se benefícios presentes por custos futuros, mantendo a economia em um nível de baixa eficiência. Resistiremos?

 

[1] Adaptado do documento “Teto de Gastos: Problemas e Alternativas”, disponível em:https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td311.

[2] Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/575583.

[3] Videhttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/antoniodelfim/2021/10/sem-teto-a-casa-cai.shtml.

[4] Videhttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/cecilia-machado/2022/07/sem-mais-promessas.shtml.

[5] Videhttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2022/06/a-esquerda-e-o-teto-de-gastos.shtml.

[6]Emenda Constitucional 103/2019.

[7] Videhttps://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/raio-x-do-orcamento/2022/raio-x-do-orcamento-2022-ploa.

[8] Videhttps://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/planejamento-e-orcamento/orcamento/publicaoes-sobre-orcamento/informacoes-orcamentarias/arquivos/estatisticas-fiscais/2-resultado-primario-da-seguridade-social/2-resultado-da-seguridade-anual.xlsx/view.

[9] A análise dos problemas econômicos introduzidos pela CPMF extrapola os limites do presente trabalho. Discussão sobre esse tema consta do documento “Os Impactos Econômicos da CPMF: Teoria e Evidência”, disponível em: https://www.bcb.gov.br/pec/wps/port/wps21.pdf.

[10] Conforme simulação contida no documento “Evolução das Contas da União: Ajuste, Desajuste, Pandemia e Desafios”, disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td304/view.

 

* Carlos Alexandre A. Rocha é consultor legislativo do Senado Federal e especialista em finanças públicas. As opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade do autor.

 

]]>
A pergunta “em quem você votou?” é cabível? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2418&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-pergunta-em-quem-voce-votou-e-cabivel Mon, 09 Mar 2015 14:45:01 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2418 Introdução

Em junho de 2013, as ruas brasileiras foram tomadas pelos maiores protestos populares em duas décadas. O que começara como atos contra aumentos nas passagens dos ônibus, transformou-se em canal para uma insatisfação generalizada com os gastos com a Copa do Mundo de Futebol, com a qualidade dos serviços de transportes urbanos, de saúde e de educação, com várias denúncias de corrupção e com supostos exemplos de impunidade. Tinha-se, portanto, uma pauta de reivindicações diversa e desconexa. Além do mais, diferentemente do que ocorrera nas “Diretas Já”, em 1984, e nas manifestações contra o Presidente Fernando Collor, em 1992, os protestos primaram por passar ao largo de lideranças políticas tradicionais, rejeitando-se a presença de parlamentares e de símbolos partidários. Dessa forma, cristalizou-se entre vários observadores a percepção de que nosso sistema político enfrenta uma crise de representatividade. Em 19 de junho de 2013, p. ex., o site UOL noticiou o que segue:

img_2418_1

Clique na imagem para abrir a matéria.

 

Mais do que uma insatisfação com altos custos de vida ou com episódios de corrupção e impunidade, o que de fato tem turbinado as manifestações populares pelo Brasil afora é um nível crescente de indignação da classe média com a representação política tradicional. Essa é, em síntese, a avaliação de especialistas ouvidos pelo UOL sobre o fenômeno de ocupação das ruas por multidões de estudantes e de trabalhadores – a maioria de estratos sociais chamados de emergentes.1

Impõe-se notar, entretanto, que esses juízos não constituem, em sentido estrito, uma novidade. Com efeito, esse tema guarda relação estreita com discussões recorrentes no âmbito da Ciência Política sobre o exato significado da representação política nas sociedades modernas, passando pelo grau de autonomia dos representantes vis-à-vis o grau de controle exercido pelos representados e pela assimetria informacional entre estes e aqueles.

Interessa-nos, em especial, os juízos, bastantes difundidos, sobre desvirtuamento da proporcionalidade parlamentar e do desligamento do parlamentar com seu partido político. Trata-se de questão basilar relacionada com a qualidade do nosso sistema representativo, que, por ser passível de análise matemática, pode ser confirmada ou refutada de maneira incontrovertida. Com isso, a nossa pergunta-chave é: qual é a taxa de aproveitamento dos votos de todos os brasileiros? Uma taxa reduzida simplesmente mostraria que é inócua a costumeira provocação sobre se lembramos ou não em quem votamos no passado. No intuito de responder a essa questão, analisaremos as últimas eleições para a Câmara dos Deputados, em 2010. Os dados usados foram extraídos do site do TSE.2

Este artigo baseia-se em versão mais ampla publicada recentemente (Rocha, 2015) e divide-se em quatro seções. Primeiramente, exporemos as principais características das eleições de 2010 para a Câmara dos Deputados. Depois, apontaremos aspectos do nosso sistema eleitoral que podem engendrar resultados pouco representativos da vontade geral dos eleitores. Em seguida, analisaremos os resultados efetivamente alcançados. Nessa análise, consideraremos apenas os candidatos eleitos, descartando-se todos os suplentes. Por fim, teremos a conclusão.

 

I. As Eleições para a Câmara dos Deputados de 2010

As eleições de 2010 para deputado federal contaram com 4.887 candidatos, pertencentes a 27 partidos. Havia 135.523.581 brasileiros aptos a votar e 111.038.684 compareceram – abstenção de 18,07%, portanto. Os votos nominais, em legendas, brancos e nulos foram, respectivamente, 89.367.502, 9.022.359, 7.506.834 e 5.141.988. Dessa forma, os votos válidos somaram 98.389.861. Em disputa, 513 vagas na Câmara Baixa.

Ao todo, 657 seções estaduais dos vários partidos apresentaram candidatos: 105 concorreram isoladamente, enquanto as demais organizaram-se em 104 coligações. A maior coligação reuniu 14 seções. Em média, as coligações contaram com 5,3 seções.

A quantidade de candidatos deve ser considerada alta ou baixa vis-à-vis as vagas em disputa? À primeira vista, a relação média de 9,53 candidatos por vaga pode parecer alta. No entanto, considerando-se o disposto no art. 10 da Lei 9.504/1997, que estabelece as normas para as eleições, a conclusão tende a ser diversa. Com efeito, o citado dispositivo estabelece que cada partido pode registrar candidatos até 150% do número de lugares a preencher. Já as coligações podem registrar até 200%. Além do mais, esses percentuais sobem para 200% e 300%, respectivamente, no caso de entes com até vinte lugares a preencher. À luz da quantidade de partidos e coligações que concorreram na eleição de 2010, temos que 16.248 candidaturas poderiam ter sido lançadas naquele pleito. Com isso, as 4.887 candidaturas efetivamente lançadas representaram apenas 30,08% do total legal admitido. Na falta de coligações, se as 657 seções estaduais permanecessem na disputa, o total admitido alcançaria 21.509 candidaturas.

Por esse prisma, temos que as seções partidárias têm sido, em média, moderadas na fixação do tamanho de suas chapas. Isso, porém, evidencia outra questão-chave: nosso marco legal pode estar sendo demasiado permissivo ao tratar desse tema.

 

II. Riscos para a Representatividade das Eleições para Deputado

Qualquer exame dos resultados das eleições proporcionais no Brasil precisa começar pela definição do quociente eleitoral. Para obtê-lo, divide-se a quantidade de votos válidos pela quantidade de cadeiras em disputa, arredondando-se para o inteiro mais próximo. No caso em tela, a votação relevante é aquela obtida pelos candidatos e pelas legendas em cada estado. Dividindo-se as votações obtidas pelos quocientes eleitorais, temos frações desses coeficientes. Somadas, essas frações totalizam as vagas em disputa: 513.

Se todos os votos dados fossem considerados na composição da Câmara Baixa e se os votos nominais e de legenda fossem computados separadamente, as frações dos 4.887 candidatos e das 209 legendas somariam 467,78 e 45,22 cadeiras, respectivamente. Evidentemente, não é o que acontece. Primeiro, os votos de legenda são combinados com os nominais no intuito de determinar a votação total de cada coligação ou partido que esteja concorrendo isoladamente. Depois, compara-se o total obtido com o quociente eleitoral para determinar quais legendas contarão com representantes na legislatura subsequente.

Dessa forma, temos que os citados quocientes representam autênticas cláusulas de barreiras, pois os candidatos de legendas cujas votações sejam menores do que os quocientes correspondentes simplesmente são desconsiderados. Apenas aqueles pertencentes a legendas com votações superiores serão listados, em ordem decrescente das suas votações nominais. O rol final de eleitos e de suplentes será ditado pelo Método d’Hondt, que aloca as vagas em disputa entre as legendas habilitadas.

Note-se que, em um cenário no qual os eleitos tivessem de alcançar, sem exceção, o quociente eleitoral, esses candidatos precisariam receber 100% dos votos, bem como ser, em cada estado, igualmente votados. Semelhante disputa não teria, naturalmente, sentido. Na prática, somente 35 candidatos obtiveram votações maiores do que os respectivos quocientes eleitorais.

O sistema eleitoral brasileiro, no caso de pleitos proporcionais, combina circunscrições geográficas amplas (os estados, no caso de eleições para as assembleias legislativas e a Câmara dos Deputados, ou os municípios, no caso das câmaras de vereadores), com cláusulas de barreira e muitos candidatos. Nesse contexto, qual será o piso para a representação popular? No modelo distrital com 2º turno, p. ex., o piso sempre será “50% + 1” dos votos válidos.

Podemos imaginar pelo menos duas situações-limite que resultariam em baixo aproveitamento dos votos dados, resultantes de disputas intra legendas e entre legendas. Na primeira, imaginemos uma legenda com dez candidatos e 100.001 votos que seja contemplada com uma única vaga pelo Método d’Hondt. Se nove obtiverem 10.000 votos cada e um, 10.001 votos, este último será eleito embora tenha sido votado por apenas 10% dos eleitores da legenda em questão. Estendendo-se esse exercício para as demais coligações, temos que o grau de representatividade daqueles eleitos pode ser muito reduzido, especialmente no caso de coligações inconsistentes do ponto de vista ideológico.

Na segunda, imaginemos uma disputa com dez legendas, 100.010 votos válidos e dez vagas. O quociente eleitoral, portanto, é igual a 10.001. Se nove obtiverem 10.000 votos cada e uma, 10.010, todas as vagas serão preenchidas por essa última, supondo que esta conte com pelo menos dez candidatos.

Sempre que a quantidade de legendas for igual ou menor ao de vagas, o cenário anterior pertencerá, in totum, ao campo do possível: todas as legendas, com uma única exceção, obteriam o “quociente eleitoral – 1”, enquanto a restante capturaria os votos remanescentes e ocuparia todas as vagas em disputa. Caso haja mais legendas do que vagas, uma poderia atingir o quociente eleitoral enquanto as demais ficariam abaixo. A tabela a seguir mostra o que aconteceria no caso brasileiro:

img_2418_2

O simples somatório dos quocientes eleitorais é uma boa aproximação da menor representação admitida quando há mais legendas do que vagas. Neste caso, apenas 4,48% dos votos seriam aproveitados. Concretamente, porém, uma vez que isto ocorreu somente no Distrito Federal, a menor representação exigida alcançaria 66,34% dos votos válidos. Trata-se de um resultado especialmente relevante, pois indica que, na prática, uma menor quantidade de coligações aumenta o grau mínimo de representatividade do nosso sistema eleitoral, embora inexistam restrições legais nesse sentido.

 

III. Os Resultados das Eleições para a Câmara dos Deputados de 2010

E o que podemos afirmar acerca da quantidade de candidaturas? Lembremos, primeiro, que os votos dos 4.887 candidatos, expressos na forma de frações dos quocientes eleitorais, somam 467,78 cadeiras. Ordenando-se e acumulando-se essas frações, temos que 710 candidatos responderam por 80% dos votos dados, como ilustrado pelo próximo gráfico. Esse conjunto restrito concentrou 96,49% dos eleitos. Apenas 18 deputados saíram do rol de 4.177 candidatos com votações reduzidas.

Gráfico 1

img_2418_3

A quantidade de candidatos competitivos é um subconjunto diminuto do universo de candidatos, o que reforça a ideia de qu]e nosso marco legal é demasiado permissivo ao tratar do tamanho máximo de cada chapa. E quem são os candidatos? Análise quantitativa recente apontou, para os níveis federal e estadual, forte correlação entre o desempenho do partido e a quantidade de candidatos não migrantes (i.e., aqueles que, no período analisado, disputaram um cargo específico pelo mesmo partido), diferentemente do ocorre com os migrantes, que concorreram por partidos diferentes, e dos novatos, que disputaram pela primeira vez (Barbosa-Filho et al., 2014, p. 5). Assim, a estratégia eleitoral dominante parece ser o simples reconhecimento nominal. Os seus exemplos mais conhecidos e comentados advêm dos mundos artístico e esportivo, mas estão inseridos em um fenômeno muito mais amplo, que favorece os políticos tradicionais. O DIAP,3 p. ex., calculou que quase 80% dos deputados buscaram a reeleição em 2010 e que a proporção entre candidatos à reeleição e reeleitos alcançou 70,76% naquele pleito.

Em uma perspectiva de mais longo prazo, as taxas de renovação parlamentar caíram de cerca de 60% em 1990 para menos de 50% nos pleitos realizados após 1998. Uma possível explicação para esse comportamento são os ajustes feitos na legislação eleitoral nas duas últimas décadas, frequentemente no sentido de disciplinar de maneira mais estrita o período e os espaços dedicados à propaganda eleitoral. A consequência disso pode ser o favorecimento dos incumbentes em detrimento dos novatos. Esses ajustes podem, inclusive, refletir um processo de aprendizado do próprio sistema político, em busca de contextos menos propícios a altas taxas de renovação parlamentar.

Outro exemplo de aprendizagem pode ser encontrado, p. ex., na relação entre votação obtida e representação parlamentar. O que os dados mostram sobre a recorrente preocupação com o desvirtuamento da proporcionalidade parlamentar? Agregando-se as bancadas eleitas pelas seções estaduais, o resultado é o mostrado pelo gráfico a seguir.

Gráfico 2

img_2418_4

 

Com efeito, as bancadas de cada partido são muito próximas das que seriam obtidas considerando-se as suas participações nos votos válidos apurados nacionalmente. Como isso será possível? Aqui convém retomar a hipótese de aprendizagem. Fixadas as regras da disputa, é razoável que os atores envolvidos busquem otimizar os resultados alcançados. Após sucessivas interações, esses resultados devem se aproximar do equilibro relativo entre os vários contendores. Afinal, trata-se de um exercício de “tentativa e erro”, com cada participante sempre buscando os melhores desenlaces.

Essa última constatação, entretanto, não desqualifica, por si só, o debate acerca da qualidade do nosso sistema representativo. Ainda há o problema do afastamento do parlamentar em relação ao seu partido. Em outras palavras, ainda que os partidos estejam sendo, ao menos aparentemente, eficientes na montagem de suas bancadas, em que medida são eles próprios relevantes para explicar a ação individual dos parlamentares no exercício dos seus mandatos? Aqui, em que pesem os problemas de fluidez e de multiplicidade das fronteiras partidárias, há evidências de que os parlamentares são sim pautados por suas lideranças, em detrimento, p. ex., de afinidades regionais ou estaduais (Oliveira et al., 2014, p. 1). Dessa forma, em um contexto no qual os partidos desempenham um papel relevante na delineação da ação congressual e no qual estes têm a possibilidade de moldar e de se moldar, de modo dinâmico, ao processo eleitoral, quais são os seus resultados em termos de participação nos votos dados?

Vimos que o comedimento na formação de coligações assegura um grau elevado de representatividade para os eleitos e que são poucos os candidatos efetivamente competitivos. São indícios que antecipam a resposta buscada: o sistema eleitoral brasileiro tem demonstrado ser capaz de representar parcela bastante expressiva dos eleitores.

Em termos dos votos válidos, as votações nominais dos eleitos e dos não eleitos de legendas eleitas4 e as votações em legendas eleitas alcançaram, respectivamente, 59,93%, 23,03% e 7,90% do total, somando 90,86%. O somatório é, inegavelmente, muito alto. As votações nominais dos não eleitos de legendas não eleitas e as votações em legendas não eleitas, por sua vez, atingiram minúsculos 7,86% e 1,27% do total. Quase todos os votos válidos estão, portanto, representados, em alguma medida.

Já, em termos de eleitores aptos, as votações nominais dos eleitos e dos não eleitos de legendas eleitas e as votações em legendas eleitas alcançaram, respectivamente, 43,51%, 16,72% e 5,74% do total, somando 65,97%. As votações nominais dos não eleitos de legendas não eleitas e as votações em legendas não eleitas, a seu tempo, atingiram minúsculos 5,71% e 0,92% do total. Os 27,40% restantes são as abstenções e os votos brancos e nulos. Consequentemente, mais de um eleitor a cada dois está formalmente representado na Câmara Baixa.

 

Conclusão

As evidências contidas no presente trabalho contrapõem-se às visões de que estejamos vivenciando uma crise do nosso sistema representativo, capitaneadas pelo desvirtuamento da proporcionalidade parlamentar e pelo desligamento do parlamentar com seu partido político. Essas assertivas não foram corroboradas pelos dados obtidos juntamente ao TSE e por estudos quantitativos recentes. Isso serve como alerta para que se evitem juízos demasiado categóricos sobre cenários dinâmicos, no qual os participantes têm a possibilidade de moldar e de se moldar às regras do jogo. Há, em curso, um processo de aprendizado, no qual os contendores procuram continuamente otimizar os seus resultados.

Claro que o tema da crise, real ou suposta, não se esgota nas duas colocações anteriores. Ele pode guardar relação com o distanciamento entre representantes e representados. A própria legislação eleitoral, ao limitar de modo talvez draconiano o período e os espaços para debates políticos, pode estar contribuindo para esse hipotético mal-estar.

Sob qualquer hipótese, não podemos considerar politicamente saudável que os brasileiros, embora maciçamente representados na Câmara Baixa, mantenham uma relação tão distante com os seus representantes. A resposta para a pergunta sobre se cabe ou não lembrar em quem votamos nas eleições passadas é afirmativa, pois a taxa de aproveitamento dos votos dados é sim bem alta. O que falta é dar consequência prática a isso:

Os caminhos a seguir são vários. O voto distrital, p. ex., teria o condão de limitar as circunscrições eleitorais ao mesmo tempo em que restringiria a quantidade de candidatos, explicitando melhor as opções colocadas para os eleitores. A simples diminuição do número de possíveis pleiteantes já representaria um avanço nesse último sentido. E os dados mostram de maneira cabal que poucos votos teriam de ser redistribuídos, pois poucos são os candidatos efetivamente competitivos.

O fim das coligações, por sua vez, em que pesem os problemas de inconsistência programática, precisa ser analisado com cuidado. No caso em tela, se todos os partidos tivessem de concorrer isoladamente, 99 cadeiras precisariam ser redistribuídas e seis partidos perderiam todos os seus deputados. Em um ambiente propício à fundação de novos partidos,2 todavia, isso aumentaria o risco de que alguns poucos partidos superem o quociente eleitoral, em detrimento do aproveitamento dos votos dados.

Por fim, impõe-se notar que número não é qualidade. O nosso sistema representativo tem sido bem sucedido em capturar a maior parte dos votos válidos, mas não em motivar parte importante do eleitorado apto a participar do processo eleitoral ou em estimular o acompanhamento dos representantes pelos representados. Um sistema que valorizasse a disputa entre os contendores, explicitando clivagens e compromissos, poderia alcançar resultados qualitativamente superiores em termos de engajamento do eleitorado, ainda que ao custo de uma menor taxa de aproveitamento dos votos dados.

 

O autor agradece os comentários de Benjamin Miranda Tabak, Caetano E. Pereira de Araujo, Marcos Antonio Kohler e Pedro Fernando de Almeida Nery Ferreira. Naturalmente, os erros e omissões remanescentes permanecem sendo de sua inteira responsabilidade.

 

Bibliografia

BARBOSA-FILHO, Hugo; FAUSTINO, Josemar; MARTINS, Rafael R.; MENEZES, Ronaldo. Strategies, Political Position, and Electoral Performance of Brazilian Political Parties. 2013 BRICS Congress on Computational Intelligence and 11th Brazilian Congress on Computational Intelligence, set. 2014.

OLIVEIRA, Marcos; BASTOS-FILHO, Carmelo; MENEZES, Ronaldo. Political Social Networks Reveal Strong Party Loyalty in Brazil and Weak Regionalism. Stanford University Conference of the Academy of Science and Engineering, mai. 2014. (disponível em: http://www.ase360.org/bitstream/handle/123456789/69/submission84.pdf?sequence=1&isAllowed=y).

ROCHA, C. Alexandre A. A Pergunta “Em Quem Você Votou?” É Cabível?: Aproveitamento do Voto na Eleição de 2010 para a Câmara dos Deputados. In: Pereira, Gabrielle T.; Silva, Rafael; Meneguin, Fernando (Orgs.). Resgate da Reforma Política: Diversidade e Pluralismo no Legislativo. Brasília : Senado Federal, 2015, pp. 206-27.

 

_______________

1Vide: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/19/especialistas-veem-inicio-de-crise-de-representacao-entre-sociedade-e-politica.htm.
[1] Apenas os votos dados aos não eleitos nos estados dos eleitos foram considerados.

2Vide: http://www.tse.jus.br/eleicoes/.

3 Vide: http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunistas/renovacao-da-camara-tende-a-ser-recorde-em-2014/.

4 Decisão do TSE, p. ex., sujeita os parlamentares ao risco de perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa, sendo que a criação de novo partido é uma delas (vide o art. 1º, § 1º, II, da Resolução TSE 22.610/2007, alterada pela Resolução TSE 22.733/2008).

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
A partilha interestadual do FPM é constitucional? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1810&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-partilha-interestadual-do-fpm-e-constitucional https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1810#comments Mon, 29 Apr 2013 18:41:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1810 1. Históricos e Objetivos

O Fundo de Participação dos Municípios (FPM) está previsto no art. 159, I, b e d, da Constituição Federal. Esses dispositivos estipulam que 23,5% da arrecadação do IR e IPI seja destinada ao fundo em questão. No nível infraconstitucional, a Lei 5.172/1966 (Código Tributário Nacional – CTN), o Decreto-Lei 1.881/1981 e a Lei Complementar 91/1997 determinam que os recursos do FPM sejam assim repartidos:

a) FPM – Capital: 10% para os municípios das capitais dos estados, distribuídos conforme o coeficiente de participação obtido a partir do produto dos fatores representativos da população e do inverso da renda per capita de cada estado;

b) FPM – Interior: 86,4% para os demais municípios, distribuídos conforme o coeficiente de participação ditado pela quantidade de habitantes de cada município;

c) Reserva do FPM: 3,6% para os municípios interioranos mais populosos, distribuídos conforme os critérios do FPM – Capital.

Em 2008, com base em dados de 2007, os universos contemplados por cada fundo foram os seguintes:

a) FPM – Capital: 27 capitais e 44,2 milhões de habitantes (24% do total);

b) FPM – Interior: 5.536 municípios e 139,8 milhões de habitantes (76% do total);

c) Reserva do FPM: 147 municípios e 45,2 milhões de habitantes (24,5% do total).

A exemplo de outros fundos voltados para o desenvolvimento regional, o FPM tem como objetivo promover o equilíbrio socioeconômico entre os entes subnacionais.1 Essa declaração pode ser decomposta em dois níveis, articulados por duas palavras-chave:

a)promover (objetivo intermediário): ser dinâmico (ou seja, variar ao longo do tempo conforme as mudanças na realidade local);

b)equilíbrio (objetivo final): beneficiar os entes menos desenvolvidos.

No caso do objetivo final, o FPM – Capital e a Reserva do FPM claramente beneficiam os municípios com mais população e menos renda, em que pesem as distorções geradas pelos pisos e tetos usados na fixação dos coeficientes individuais de participação. O FPM – Interior, entretanto, como ressaltado pelo Tribunal de Contas União (TCU) privilegia os municípios menores, devido ao pressuposto de que município pequeno é município pobre. Mas este pressuposto é equivocado, pois existem tanto municípios pequenos pobres quanto municípios pequenos ricos … (Relatório do Acórdão de Plenário 1.120/2009). Consequentemente, este é um primeiro foco de tensão na análise da constitucionalidade do FPM. Basta notar que os coeficientes per capita do FPM – Interior declinam à medida que aumenta o tamanho da população, havendo picos a cada mudança de faixa populacional.

Em termos per capita, as diferenças observadas são dramáticas. A razão entre os coeficientes por habitante de Borá e Guarulhos, por exemplo, é igual a 230,63. Como ambos integram o Estado de São Paulo, é imediata a conclusão de que o FPM – Interior destina, por habitante, 230,63 vezes mais recursos para o primeiro do que para o segundo. Essa diferença é apenas parcialmente compensada pela Reserva do FPM. Se os beneficiários da aludida reserva fossem excluídos da presente análise (ou seja, se os municípios com mais de 142.633 habitantes não fossem considerados), a maior diferença entre coeficientes per capita ainda seria de cerca de trinta vezes.2

Ademais, os picos observados na distribuição do FPM – Interior têm sido uma permanente fonte de reclamações, pois a perda de um único habitante nas revisões anuais do tamanho da população pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística pode gerar quedas expressivas nos montantes recebidos. E, como se isso não bastasse, podem estar estimulando o uso, pelos governos municipais, de estratégias de manipulação dos levantamentos populacionais. Monastério (2013), por exemplo, ao analisar os dados do censo demográfico de 2010 para 3.565 prefeituras, estima que 192 municípios parecem ter sido classificados erroneamente, provocando distorções de cerca de R$ 200 milhões anuais no rateio do FPM – Interior (o que equivale a uma distorção de 0,46% em relação ao montante rateado naquele ano)3.

A discussão anterior também vale para o objetivo intermediário. No caso do FPM – Capital e da Reserva do FPM, tem-se que os coeficientes individuais de participação mudam conforme o tamanho da população e o PIB per capita. Portanto, os coeficientes se ajustam às mudanças observadas na realidade socioeconômica. Em relação ao FPM – Interior, todavia, a análise precisa ser desdobrada em dois níveis: o intraestadual e o interestadual. No âmbito do primeiro, os coeficientes efetivamente mudam conforme o tamanho da população, em que pesem as distorções geradas pelos pisos e tetos usados. É no âmbito do segundo que aparece o aspecto mais problemático do rateio em questão, analisado a seguir.

2. Partilha Interestadual

Como assinalado, os coeficientes atribuídos aos municípios interioranos estão estruturados em degraus e não crescem na mesma proporção do tamanho da população. Dessa forma, é vantajoso para um município com, p. ex., 10.188 habitantes, ao qual cabe um coeficiente 0,6, dividir-se em duas prefeituras, às quais caberiam o mesmo coeficiente. Tudo o mais constante, um simples rearranjo administrativo permitiria dobrar o aporte de recursos do FPM para uma dada população.4 Os dois quadros que seguem ilustram o fenômeno estudado. O primeiro contém o cenário base: dois estados (A e B) com dois municípios (A1, A2, B1 e B2) com 30.564 habitantes, aos quais cabem o coeficiente 1,4. Dessa forma, cada ente recebe 25% do montante.

Quadro 1: Cenário Base

O segundo mostra o que ocorre quando o estado B transforma os seus dois municípios em seis (B1.1 a B1.3 e B2.1 a B2.3), todos com 10.188 habitantes. Os seus coeficientes diminuem para 0,6, mas o seu somatório passa de 2,8 para 3,6. De modo agregado, os aportes para esses últimos aumentam 12,5%, em prejuízo de A1 e A2, cujo estado não perseguiu estratégia semelhante.

Quadro 2: Efeito emancipação

Essa situação representaria um evidente estímulo para a fragmentação dos municípios brasileiros. E foi o que aconteceu com a promulgação da Constituição de 1988, que delegou inteiramente às assembleias estaduais a competência para criar novas prefeituras. A combinação do novo comando constitucional com os degraus do rateio do FPM resultou, no primeiro instante, em uma expressiva transferência de recursos para os estados mais agressivos na criação de novos municípios. Somente em 1989 houve 222 emancipações5 – um acréscimo de 5% em relação às 4.424 prefeituras preexistentes. Os que mais recorreram à essa estratégia foram RS, GO, CE, PA, MT e ES. Ao mesmo tempo, AC, AL, MA, PB, PE, RR, SE e SP, que não promoveram emancipações, e outros entes menos agressivos no uso da estratégia em comento tiveram, proporcionalmente, reduções nos aportes para os seus municípios.

Foi nesse contexto que o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar 62/1989, que estabelece normas sobre o cálculo, a entrega e o controle das liberações dos recursos dos Fundos de Participação e dá outras providências. Provisoriamente,

novas perdas foram evitadas congelando-se, até que lei específica fosse editada, os coeficientes individuais de participação (vide art. 3º). Adicionalmente, de maneira permanente, introduziu-se, no parágrafo único do art. 5º, previsão para que, no caso de criação de novo município, o TCU revise os coeficientes individuais de participação dos demais municípios do mesmo estado, com redução proporcional das suas parcelas. Em outras palavras, atrelou-se o somatório, por estado, dos coeficientes do FPM – Interior aos coeficientes fixados no exercício de 1989 no intuito de evitar que a criação de novos municípios por uma assembleia legislativa afetasse as cotas-parte de entes de outros estados. Isso está consubstanciado na Resolução do TCU 242/1990, cujo Anexo II fixa o percentual a ser destinado aos municípios interioranos de cada estado.

Como continuaram ocorrendo emancipações,6 municípios em tudo similares passaram a receber do FPM – Interior montantes diferentes por não pertencerem ao mesmo estado, incorrendo em desvantagem os entes pertencentes aos estados mais agressivos. Com isso, o FPM – Interior deixou de refletir as variações populacionais em nível estadual. Retomando a simulação anterior, suponha-se que a população de A permaneça constante, enquanto a de B passe de 60.128 para 61.134 habitantes, igualmente divididos entre B1 e B2. Assim, os coeficientes dos dois últimos passariam de 1,4 para 1,6:

Quadro 3: Efeito População

Neste caso, os aportes para A1 e A2 cairiam 6,7%, enquanto aqueles para B1 e B2 subiriam na mesma medida – variações decorrentes de diferenças nos padrões demográficos dos dois conjuntos de municípios em vez de uma estratégia deliberada de obtenção de recursos públicos adicionais por qualquer governo estadual. É razoável que este efeito fosse

efetivamente captado pelo rateio do FPM – Interior. Como alertado, entretanto, não é o que acontece, pois o dispositivo legal pertinente não permite diferenciar o efeito emancipação do efeito população.

O resultado é uma enorme distorção entre os somatórios observados e aqueles requeridos legalmente. Enquanto o somatório pernambucano em 2008 precisou, por exemplo, aumentar 11% para alcançar o patamar observado em 1990, o roraimense precisou diminuir 53%, com impacto equivalente sobre os coeficientes individuais de participação nas duas situações. O próximo quadro mostra os coeficientes efetivos de três municípios com populações semelhantes. Embora a todos caiba, teoricamente, o coeficiente 1,4, os municípios de Pernambuco recebem, na prática, 2,4 vezes mais que o de Roraima:

Quadro 4: Diferenças nos coeficientes interestaduais

É uma situação incompatível com o nosso ordenamento constitucional, uma vez que a Carta Magna estabelece que os fundos regionais de desenvolvimento devem ser pautados por critérios dinâmicos, como atestado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em relação ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal. Como salientado pelo Ministro Gilmar Mendes, deve haver a possibilidade de revisões periódicas dos coeficientes envolvidos, de modo a se avaliar criticamente se os até então adotados ainda estão em consonância com a realidade econômica dos entes federativos e se a política empregada na distribuição dos recursos produziu o efeito desejado.

Conclusão

Um questionamento da constitucionalidade do FPM restrito ao teor do parágrafo único do art. 5º da Lei Complementar 62/1989 (ou seja, que tratasse apenas do objetivo intermediário desse fundo) poderia suscitar uma intervenção pontual da parte do STF, diferentemente do que aconteceu com o FPE. Declarada a nulidade do dispositivo em questão, o rateio do fundo poderia prosseguir normalmente, pois as suas regras gerais não seriam afetadas. Apenas a partilha interestadual precisaria ser redimensionada, com ganhos e perdas variando de +110,8%, no caso de Roraima, a
–10,3%, no caso de Pernambuco.

O redimensionamento requerido implicaria incorporar ao rateio do FPM – Interior tanto as mudanças demográficas como as emancipações municipais ocorridas após 1989. Com isso, as prefeituras de dezesseis estados ganhariam, enquanto as de catorze perderiam. No entanto, ainda que esse ônus inicial fosse julgado aceitável, haveria a questão das futuras emancipações. Como a norma federal requerida pela EMC 15/1996 permanece pendente, as assembleias legislativas acham-se impedidas de criar novos municípios. Isso, porém, pode mudar, reabrindo a possibilidade de uma competição viciosa entre os governos estaduais por recursos públicos escassos.

O questionamento da constitucionalidade do FPM poderia, contudo, ganhar contornos dramáticos caso tivesse como alvo o objetivo final desse fundo. Como ressaltado pelo TCU, o tratamento preferencial dado pelo FPM – Interior aos municípios pouco populosos pode não estar sintonizado com a busca do equilíbrio entre os entes subnacionais, como requerido pela Carta Magna. Se esse argumento fosse acolhido pelo STF, toda a partilha precisaria ser redefinida.7

_____________

1Conforme o art. 161, II, da Constituição Federal.

2 O Município de Parnaíba é o mais populoso entre aqueles que não participam do rateio da Reserva do FPM.

3Não foram considerados os aportes em favor do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação.

4Se cada município tivesse exatamente a metade da população original, os recursos públicos disponíveis para cada habitante, isoladamente, dobraria.

5Não computados os 79 municípios do novo Estado do Tocantins, que integravam o Estado de Goiás.

6Até a edição das Emendas Constitucionais (EMCs) 15/1996 e 57/2008.

7Vide Rocha (2013, p. 26) para uma análise preliminar dos problemas envolvidos.

Bibliografia

MONASTERIO, Leonardo (2013). O FPM e a Estranha Distribuição da População dos Pequenos Municípios Brasileiros. Brasília : Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Texto para Discussão 1.818 (disponível em: http://tinyurl.com/c22gldd).

ROCHA, C. Alexandre A. (2013). O FPM é Constitucional? Brasília : Consultoria Legislativa do Senado Federal, Texto para Discussão 124 (disponível em: http://tinyurl.com/bmwzomm).

Download:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=1810 1