Paulo Springer – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 29 Mar 2017 18:50:20 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 O que é imposto e o que é subsídio na previdência social? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2976&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-e-imposto-e-o-que-e-subsidio-na-previdencia-social https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2976#comments Wed, 29 Mar 2017 18:49:24 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2976 A reforma da previdência é, certamente, o principal tema da agenda econômica neste início de 2017. Mas o debate tem se pautado muito mais na sustentabilidade das contas públicas do que nos aspectos atuariais. O foco nas contas públicas é essencialmente uma análise de fluxo de caixa: quanto se arrecada e quanto se gasta com a previdência.

Já o cálculo atuarial foca na formação da poupança individual e permite avaliar se o indivíduo está sendo subsidiado ou se está sendo taxado pelo sistema. O contribuinte estará sendo subsidiado pelo sistema se o valor acumulado de suas contribuições for insuficiente para pagar sua aposentadoria durante o período esperado de sobrevida após sua saída do mercado de trabalho. Simetricamente, se o valor acumulado das contribuições superar o fluxo esperado de aposentadoria, então o contribuinte está sendo tributado pelo sistema previdenciário.

Em 1988, quando da elaboração da Constituição Federal, e nas reformas subsequentes (Emendas Constitucionais nos 20, de 1998, e 41, de 2003), consolidou-se o regime de repartição para a previdência pública, em contraposição ao regime de capitalização. Resumidamente, no sistema de repartição, as contribuições dos trabalhadores em atividade são utilizadas para pagar as aposentadorias e pensões dos atuais beneficiários. Quando os trabalhadores ora em atividade se aposentarem, as aposentadorias e pensões serão pagas pelos futuros trabalhadores, e, dessa forma, espera-se que o sistema se perpetue. Neste blog já tivemos várias discussões sobre a sustentabilidade do financiamento da previdência e da necessidade da reforma em curso1.

O problema do regime de repartição é que ele mistura uma série de contribuintes e coloca todos dentro de um mesmo bolo. Assim, algumas categorias (como professores e militares) se aposentam com menor tempo de contribuição, outras (como trabalhadores rurais, domésticos ou de microempresas) pagam contribuições mais baixas2. Como está tudo em uma mesma conta, o indivíduo perde a capacidade de avaliar se a sua contribuição é excessiva ou não para os benefícios que irá receber. Para esse tipo de avaliação, é necessário fazer o cálculo atuarial. Essa avaliação deveria ser o primeiro passo para a formulação de políticas públicas na previdência: há algum grupo que merece receber subsídios (por exemplo, trabalhadores rurais, pessoas mais pobres, professores, militares, mulheres ou funcionários públicos)? Em caso afirmativo, qual o volume de subsídios a sociedade deveria se dispor a pagar para esses grupos?

O exercício que fizemos busca justamente ajudar a identificar a situação de um contribuinte padrão que estiver entrando agora no mercado de trabalho e virá a se aposentar na forma da atual proposta de reforma da previdência, nos termos do Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 287, de 2016, de autoria do Poder Executivo e ora em tramitação na Câmara dos Deputados. Basicamente, fizemos duas comparações:

a. O valor presente da aposentadoria que um indivíduo receberia se trabalhar por 40 anos (dos 25 aos 65 anos), de acordo com as regras propostas pela PEC, ou seja, 90% da média das contribuições ao longo da vida laboral, corrigidas pela inflação, mas:

i. Com piso de salário mínimo (para simplificar, supusemos salário mínimo de R$ 1.000,00, próximo aos R$ 937,00 atuais); e

ii. Teto da previdência, atualmente de R$ 5.531,00.

b. O valor presente do fundo que o indivíduo constrói ao longo de sua vida laboral, supondo contribuição total de 28% de sua remuneração, sendo 8% do próprio trabalhador (com salário de contribuição limitado ao teto da previdência) e 20% do empregador, sem limite.

Conforme já explicamos, o indivíduo estará recebendo um subsídio da previdência se o valor acumulado ao longo de sua vida for inferior ao valor presente de sua aposentadoria. Nesse caso, a poupança que ele teria acumulado seria insuficiente para bancar sua aposentadoria. Supusemos, com base na tábua de sobrevivência do IBGE de 2015, que a sobrevida após 65 anos é de 18,4 anos. Assim, para um trabalhador que estiver sendo subsidiado, se estivesse em um regime de capitalização3 (e não de repartição), na média, o fundo que ele constituiu enquanto trabalhava acabaria antes de ele falecer.

No caso oposto, em que o fundo acumulado é superior ao valor presente da aposentadoria, o trabalhador estaria, em verdade, pagando um imposto ao governo. Visto de outra forma, na média, esse indivíduo irá falecer antes de esgotar os recursos de seu fundo, e esse excedente irá para o Estado. Para esse caso, na prática, a previdência funcionaria como um tributo. Esse tributo é utilizado para financiar a aposentadoria de outros indivíduos, mais precisamente, aqueles que estão sendo subsidiados.

Denominaremos de regime atuarial pró-governo aquele em que o sistema previdenciário funciona como um tributo, e pró-segurado aquele em que o sistema funciona como um subsídio.

Cabe esclarecer que, nesse exercício, nossos cálculos superestimam o imposto pago (ou seja, nossos resultados tendem a concluir que a previdência tem um caráter atuarial mais pró-governo), pois não incorporamos os chamados benefícios de risco, como pensão para cônjuge e filhos e aposentadoria antecipada por invalidez. Esses benefícios funcionam como seguros e, para uma análise mais acurada, teríamos de incorporar o prêmio desses seguros nos cálculos. Apesar dessa lacuna, acreditamos que o exercício contempla o principal aspecto atuarial de um plano de previdência, qual seja, a relação entre contribuições e aposentadorias.

O valor presente do montante capitalizado e da aposentadoria depende de uma série de fatores. Alguns mantivemos fixos: idade da aposentadoria (65 anos), tempo de sobrevida (18,4 anos) e tempo de contribuição (40 anos). Para outras variáveis relevantes – taxa de juros e taxa de crescimento dos salários – trabalhamos com diferentes cenários.

A relação entre taxa de juros e natureza do sistema previdenciário (se pró-governo ou pró-segurado) é não-linear, dependendo da relação entre o valor da contribuição e dos benefícios. Em princípio, quanto maior a taxa de juros, mais pró-governo será a previdência (o que implica tributação mais elevada sobre o segurado). Uma elevada taxa de juros implica que tanto as contribuições quanto os benefícios (a aposentadoria) serão mais fortemente descontados quando trazidos a valor presente. Entretanto, como as aposentadorias ocorrem em um período mais distante do tempo (afinal, primeiro o indivíduo contribui, para depois usufruir da aposentadoria), seu valor será mais fortemente descontado, o que tende a fazer com que o valor presente das contribuições aumente em relação ao valor presente dos benefícios4.

Utilizamos quatro cenários para a taxa de juros. O primeiro, considerando taxa de 7% ao ano, que foi próximo da taxa Selic real média desde janeiro de 1999, início do regime de metas para a inflação. Trata-se de um valor extremamente alto e insustentável no longo prazo e, por isso, não tenderá a repetir. Ainda assim, julgamos conveniente mostrar esse cenário para ter uma ideia de como o sistema previdenciário é para os atuais segurados, se pró-governo ou pró-segurado.

Para os demais cenários, utilizamos taxas de juros de 4%, 3% e 2% ao ano, valores mais compatíveis com os de outros países.

Além da taxa de juros, tivemos de construir cenários para a taxa de crescimento dos salários. Em princípio, o sistema previdenciário deveria ser neutro para a taxa de crescimento salarial. Como a aposentadoria, pelas regras propostas pela PEC nº 287, de 2016, é função da média salarial, se o salário cresce mais rapidamente, a aposentadoria tenderá a ficar mais distante da última remuneração recebida pelo segurado, porém será bem maior do que a remuneração inicial. Se o salário cresce lentamente, o salário inicial e final da vida laboral do indivíduo serão mais próximos, fazendo com que a aposentadoria também seja mais próxima desses valores.

Entretanto, o sistema previdenciário é não linear. Para quem ganha pouco, digamos, um salário mínimo, quanto mais rapidamente os salários crescerem, mais subsídio receberão do governo. Isso porque, se o salário cresce muito rapidamente, a remuneração de hoje (e, consequentemente, a contribuição) será muito pequena em relação à remuneração futura. Isso faz com que aumente a diferença entre o salário do final de carreira e o salário médio. Ocorre que, ao se aposentar, o segurado não receberá o salário médio, mas, sim, o piso de um salário mínimo (que corresponde ao seu último salário).

Contudo, à medida que o salário de contribuição inicial aumenta, o sistema previdenciário torna-se cada vez menos pró-segurado e passa a ser cada vez mais pró-governo. O que ocorre aqui é que, quanto mais rapidamente cresce o salário, mais aumenta a distância entre o salário de contribuição e o teto da previdência5. Por exemplo, quem ganha hoje R$ 10 mil mensais, aproximadamente o dobro do teto, paga uma contribuição de R$ 2.443 (R$ 443 do trabalhador e R$ 2.000 do empregador). Daqui a 40 anos, com crescimento de 4% ao ano de salário, esse trabalhador receberá R$ 46.000, cerca de nove vezes o teto, e contribuirá com R$ 9.675 (mantém a contribuição de R$ 443 do trabalhador, mas a contribuição patronal aumenta para R$ 9.233).

Já se o salário crescer 2% ao ano, esse mesmo trabalhador terminará sua vida laboral com um salário de R$ 21.647 e contribuição mensal de R$ 4.329, menos da metade do caso anterior. Em ambas situações, contudo, esse trabalhador receberá o teto da previdência, de R$ 5.531. Ou seja, para os trabalhadores de mais alta renda, quando o salário cresce mais rapidamente, a contribuição aumenta, mas o benefício permanece o mesmo (o teto da previdência), tornando o modelo mais fortemente pró-governo.

Para a taxa de crescimento dos salários, trabalhamos com três cenários: crescimento anual de 4% (próximo ao crescimento de 4,3% para o salário médio observado entre janeiro de 2002 e janeiro de 2017), de 3% (próximo ao crescimento real do salário mínimo desde 1995), e de 2%, caso o cenário de estagnação econômica se prolongue indefinidamente.

A tabela a seguir mostra os resultados encontrados. Devido à não linearidade (que, por sua vez, decorre de pisos e tetos para os valores pagos pela previdência), apresentamos doze cenários (quatro taxas de juros por três taxas de crescimento do salário) para diferentes faixas salariais. Valores negativos (em vermelho) implicam que o valor presente da contribuição é inferior ao valor presente da aposentadoria esperada, ou seja, que o sistema é pró-segurado. Valores positivos, por seu turno, implicam que o segurado está sendo tributado pela previdência, ou seja, trata-se de um sistema pró-governo.

Tabela 1: Estimativa do cálculo do imposto (valores positivos) ou subsídio (valores negativos) pagos/recebidos pelo segurado da previdência, por faixa salarial, taxa de crescimento dos salários e taxa de juros.

A tabela confirma os resultados intuitivamente esperados discutidos anteriormente. Para salários próximos ao salário mínimo (onde há maior probabilidade de ocorrer subsídios), o subsídio aumenta à medida que cai a taxa de juros e que aumenta a taxa de crescimento salarial. Já para salários mais altos, cujas aposentadorias estão sujeitas ao teto, a tributação aumenta à medida que cai a taxa de juros e que aumenta a taxa de crescimento dos salários.

Podemos ver que, se os próximos vinte anos replicarem os mais recentes, com taxa de juros de 7% ao ano, todos os trabalhadores perderão6 com a previdência. Em valores presentes, aquele que ganha salário mínimo estará pagando o equivalente a até R$ 38 mil de imposto, e o que ganha dez salários, pagaria, no mínimo, R$ 448 mil. Trata-se, contudo, de um cenário pouco provável, mesmo porque, com a reforma da previdência, a tendência é de a taxa de juros abaixar no longo prazo.

Para cenários mais realistas, a tendência é quem ganhar salário mínimo ser subsidiado pela previdência. Para parâmetros bem factíveis para uma economia em desenvolvimento estabilizada, como taxa real de juros de 3% ao ano e taxa de crescimento dos salários de 4% ao ano, o subsídio se aproxima, em valor presente a R$ 190 mil.

Entretanto, o resultado pode se reverter para faixas salariais pouco mais altas, como, por exemplo, quem ganha dois salários mínimos. Nesse caso, para parâmetros igualmente razoáveis, como taxa de juros de 4% ao ano e taxa de crescimento dos salários de 3%, esses trabalhadores, em vez de receber subsídio da previdência, estariam pagando impostos no montante aproximado de R$ 83 mil reais. Ou seja, mesmo trabalhadores com baixa remuneração serão tributados com a reforma.

Já para a classe média e classe média alta, que não pertence ao funcionalismo público, a previdência representa um encargo, provavelmente acima de meio milhão de reais para quem ganha 10 salários mínimos. Esse resultado deve ser qualificado porque, conforme já mencionamos, não incorpora os benefícios de risco. De acordo com o Anuário Estatístico da Previdência Social, em 2015, cerca de 40% da despesa anual do regime geral foi para pagamento de benefícios de risco, como auxílio doença, pensões e aposentadorias por invalidez. Os valores desses benefícios, contudo, são predominantemente próximos ao salário mínimo. Além disso, tendo em vista que a classe média e média alta tendem a ter expectativa de vida mais elevada, a probabilidade de utilizar o benefício de risco deve ser menor.

Como vimos na Tabela 1, para faixas de renda inferiores, o regime tende a ser pró-segurado e, para rendas mais elevadas, pró-governo. Como há uma continuidade, isso implica que há uma renda em que o sistema é neutro, ou seja, que o valor presente das contribuições é exatamente igual ao valor presente das aposentadorias. A Tabela 2 mostra o salário de contribuição neutro para o segurado submetido às regras propostas pela PEC nº 287, de 2016, supondo, como no exemplo anterior, que trabalhou durante 40 anos e se aposenta aos 65 anos.

Tabela 2: Salário de contribuição inicial neutro para o segurado que trabalha durante 40 anos e se aposenta aos 65 anos de idade, por taxa de juros e taxa de crescimento salarial.

A primeira coluna da Tabela 2 nos mostra que, se a taxa de juros for de 7% ao ano, os salários neutros são muito baixos, inferiores ao salário mínimo. É outra forma de dizer que, a essa taxa de juros, todos os segurados estão sendo tributados, conforme vimos na Tabela 1. Para taxas de juros mais factíveis no longo prazo, como 4% e 3%, o salário neutro continua sendo baixo. Por exemplo, se o salário crescer 4% ao ano e a taxa de juros for de 3% ao ano, quem ganha R$ 2.251 mensais, ou seja, pouco mais do que dois salários mínimos, estará sendo tributado dentro da reforma proposta. Em outros cenários bastante factíveis, o salário neutro se aproxima de 1,5 salário mínimo (R$ 1.500, aproximadamente), indicando que, quem ganha acima desse valor, está sendo tributado.

Sem reforma, as contribuições neutras sobem, como seria de se esperar, e, em casos extremos, passam a incorporar classes mais favorecidas, com rendimento acima de cinco salários mínimos. É o caso de mulheres, que se aposentam aos 55 anos, com 30 anos de contribuição. Com juros de 3% ao ano, o salário neutro varia entre R$ 5,2 mil e R$ 6,2 mil (para taxa de crescimento de salários variando de 4% a 2% ao ano, respectivamente). Se a taxa de juros aumenta para 4% ao ano, o salário de contribuição neutro fica em torno de R$ 4 mil.

Para homens que se aposentam aos 55 anos, após 35 anos de contribuição, o salário neutro situa-se em torno de R$ 4 mil, se a taxa de juros for de 3% ao ano, e cai para cerca de R$ 3 mil, para taxa de juros de 4% ao ano. Ou seja, mesmo nesse caso, segurados pertencentes à classe média baixa já estariam sendo tributados pela previdência.

De acordo com as Projeções Fiscais que Anexo I – Projeções Fiscais da Proposta de Emenda à Constituição nº 287, de 2016, no Regime Geral de Previdência Social7, o principal objetivo da reforma não será obter o equilíbrio de longo prazo, mas, tão somente, estabilizar o déficit, em valores em torno de 2% do PIB (sem a reforma, o déficit encaminharia para 11% do PIB). Vimos que quem paga a contribuição integral e ganha acima do salário neutro estará subsidiando os que ganham menos e aqueles casos que, mesmo após a reforma, receberão tratamento especial. Vimos também que esse salário neutro, para hipóteses razoáveis, pode se aproximar de 1,5 salário mínimo. Ou seja, mesmo tributando segurados com salários relativamente baixos, a previdência continuará precisando tributar os contribuintes de uma forma geral, seja os da geração corrente, seja os das futuras gerações. Nesse contexto, seria interessante saber quem está sendo subsidiado, além daqueles cujo salário de contribuição é inferior ao salário neutro, e qual o valor desse subsídio.

 

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1 Ver, por exemplo: http://www.brasil-economia-governo.org.br/2017/03/08/contra-a-retorica-antirreforma/ e http://www.brasil-economia-governo.org.br/2017/03/06/o-que-te-contaram-errado-sobre-a-reforma-da-previdencia/

2 Estamos considerando aqui a contribuição total, representada pela soma das contribuições do trabalhador e patronal.

3 Em um regime de capitalização puro, o indivíduo acumula um fundo ao longo de sua vida laboral, e usufrui desse fundo ao se aposentar. Em regimes de capitalização é possível contratar seguros para benefícios de risco, por exemplo, se sua sobrevida for excessivamente longa, para deixar pensão para o cônjuge, etc.

4Esse resultado, entretanto, é sensível à relação entre valor da contribuição e valor do benefício. Se a discrepância for muito alta, taxas de juros mais altas implicarão um sistema mais pró-segurado.

Intuitivamente, taxas elevadas de juros fazem com que os valores das contribuições e dos benefícios se aproximem, quando descontados a valor presente. É uma aplicação da velha máxima “de noite, todos os gatos são pardos”. Quando a taxa de juros cai, a discrepância entre contribuições e aposentadoria, quando trazidas a valor presente, torna-se mais realçada. Assim, para quem contribui pouco ao longo da vida laboral, mas tem garantido o piso do salário mínimo, uma queda na taxa de juros realça o subsídio recebido pelo segurado. Simetricamente, para quem contribui muito, mas tem o benefício limitado pelo teto, uma queda na taxa de juros realça o tributo pago pelo segurado.

5 Lembremos que, apesar de a contribuição do trabalhador estar limitada ao teto, a contribuição patronal não está.

6 Para ser mais preciso, todos os trabalhadores que contribuem 8% e cujos patrões contribuem 20%. Ganharão aqueles trabalhadores que continuarão a ter tratamento diferenciado pela reforma da previdência, como trabalhadores rurais e aqueles empregados em setores que pagam contribuições mais baixas.

7 Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/pec-287-16-reforma-da-previdencia/documentos/outros-documentos/Aviso77.pdf

 

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Quem ganha e quem perde com a liberação dos táxis? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2564&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quem-ganha-e-quem-perde-com-a-liberacao-dos-taxis https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2564#comments Wed, 08 Jul 2015 13:54:37 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2564 O mercado de táxis no Brasil sofreu um abalo recentemente, com a entrada da Uber, uma empresa que permite contratar serviços similares, sem possuir autorização específica das prefeituras. As manifestações de repúdio em São Paulo envolveram carreatas, buzinaço, ações na justiça e, segundo relatos informais, intimidação aos motoristas não regulados ou aos seus veículos. Projetos de lei já foram votados em São Paulo e Brasília proibindo táxis alternativos. Essas manifestações não foram exclusivas do Brasil. Em outros países em que a Uber atua, houve protestos ou ações legais para impedir a ação da concorrente.

O serviço de táxi é regulado pela Lei de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587, de 2012). Curiosamente, seus arts. 12 e 12a estabelecem que qualquer interessado poderá explorar os serviços de táxi, desde que atenda aos requisitos mínimos de segurança, conforto, higiene e qualidade de serviços determinados pelo poder público municipal.

Ainda assim, a maioria das grandes cidades brasileiras (ou talvez, todas) adota o sistema de permissão, com número limitado de licenças. A prefeitura abre um edital oferecendo determinado número de placas (licenças) e estabelece critérios. Aqueles candidatos que fazem maior pontuação obtêm a placa gratuitamente e, na prática, por tempo indeterminado.

Observe-se que essa não é a única forma de alocar as placas. Poderia ser feito um leilão, onde o vencedor seria aquele que oferecesse o maior valor pela licença ou o menor preço para a corrida. O mercado poderia ser também completamente liberado, como parece ser o comando (não obedecido) da Lei nº 12.587, de 2012. Cidades como a Cidade do Panamá e Lima liberaram os serviços de táxi. Qualquer indivíduo que satisfaça determinados pré-requisitos (como bons antecedentes, dispor de carro com condições de segurança e higiene, etc) paga uma taxa para a prefeitura e obtém a licença para dirigir. É uma situação semelhante à de abrir um restaurante. Qualquer pessoa pode abrir um restaurante, desde que satisfaça determinadas condições (aprovação da Anvisa, do Corpo de Bombeiros, etc).

Liberar o transporte público individual remunerado de passageiros para qualquer empresa é quase que equivalente a permitir que qualquer indivíduo (observados os pré-requisitos) possa ter uma placa de táxi1. Voltamos então à pergunta deste artigo: quem ganharia e quem perderia com tal liberação? Conforme veremos a seguir, consumidores inequivocamente ganham; antigos motoristas de táxi perdem no curto prazo, mas ficam neutros no longo prazo, enquanto novos motoristas ganham no curto prazo, e também ficam neutros no longo prazo. Os únicos que inequivocamente perdem são os detentores das placas de táxi.

Antes de começar a análise, gostaria de registrar a estranheza de os debates focarem nos impactos sobre os motoristas, quando o principal objeto deveria ser, obviamente, os consumidores. Afinal, o objetivo último do serviço de transporte individual remunerado é prestar um serviço público, e não garantir a renda ou o emprego de quem o presta! Se, ao longo da história, a manutenção do emprego e da renda de profissionais afetados por inovações tivesse sido mais importante que a própria inovação, ainda veríamos pelas ruas os acendedores de lampião, e toda ligação telefônica ainda seria intermediada por uma telefonista.

Como dissemos, os consumidores inequivocamente ganham. De imediato, a entrada de novos concorrentes, no mínimo, aumenta a oferta. Não só aumenta o número de carros disponíveis, como também é possível uma maior adaptação do produto a gostos específicos. É possível atender a diferentes nichos de mercado, como carros de melhor padrão, que oferecem DVD, lanches, etc, ou carros mais simples (desde que atendam às condições de segurança). Certamente há pessoas dispostas a pagar mais para ter um produto de luxo, assim como pessoas dispostas a abrir mão de algumas conveniências (como ar condicionado, acabamento sofisticado, etc) e pagar tarifas mais baixas.

Os que defendem a manutenção do status quo argumentam que o sistema de táxis atual garante maior segurança, pois o motorista é obrigado a fazer cursos, é registrado, é obrigado a manter o carro limpo e em condições, etc. Com o mercado liberado, os usuários não teriam como saber se estariam em mãos seguras ou não. Aqui há uma evidente confusão entre liberalização e desregulamentação. Obrigar motoristas e automóveis atenderem a requisitos mínimos de segurança não é incompatível com liberar o número de licenças. Em verdade, não há nenhuma relação entre as duas coisas. Vale lembrar a analogia com restaurantes. Faria sentido dizer que uma cidade só pode ter um número “x” de restaurantes para garantir a higiene de suas cozinhas? É claro que não. O processo de obtenção de alvarás e fiscalizações da vigilância sanitária, em tese, garantem a segurança do estabelecimento. Alguém irá certamente lembrar que há restaurantes devidamente autorizados e com más condições de higiene. É verdade, mas esse é um problema de fiscalização, que ocorreria mesmo se houvesse um limite para o número de licenças.

A propósito, todo mundo tem um caso a contar sobre motorista de táxi que tenha sido rude, que tenha tentado enganá-lo, utilizando uma rota mais longa, ou que o carro estivesse com ar condicionado quebrado ou sujo. Além de casos extremos (esses, felizmente raríssimos e que se tornam manchetes de jornais) de motoristas envolvidos em tráfico de drogas ou estupros. Especificamente em relação à segurança, empresas alternativas costumam registrar o nome do motorista e, em alguns casos, a rota, tornando-as até mais seguras do que o táxi convencional.

Para o resto da análise, é importante distinguir os motoristas dos donos das placas, ainda que, em alguns casos, sejam a mesma pessoa2. Quando alguém adquire a permissão para ter um táxi, essa pessoa não necessariamente irá conduzi-lo. Em verdade, pelas conversas informais que travo com motoristas, fico surpreso em ver que, na grande maioria das vezes, principalmente entre os mais jovens, eles não são os donos do carro (e nem da placa). Há vários arranjos: o dono da placa atua, de fato, como motorista, sendo o único a dirigir seu carro; o dono da placa atua como motorista em alguns dias/horários e aluga seu carro para terceiros no restante do tempo; o dono da placa não atua como motorista e aluga seu carro para alguém, ou o dono da placa contrata motoristas para conduzir seu carro (esse último caso é mais raro).

Para os que são apenas motoristas, é importante distinguir dois grupos. Aqueles que já estão no mercado obviamente perdem no curto prazo. Afinal, para um determinado número de passageiros e uma dada tarifa, haverá mais carros disputando as corridas, caindo a demanda por táxi e, consequentemente, a receita. Para quem ainda não está no mercado, a liberalização é benéfica, pois o sujeito que trabalhava em alguma outra atividade3 ou que estava desempregado pode agora ter um táxi. Com o tempo (e, acredito, nem tanto tempo assim, não mais do que cinco anos, tendo em vista o baixo custo de entrada e o baixo investimento necessário), contudo, a situação do motorista é indiferente, conforme explicarei a seguir.

Motoristas de táxi podem ser considerados como mão de obra de qualificação média. A decisão de ser motorista de táxi compete com outras que requerem habilidades semelhantes, como motoristas particulares ou de empresas, trabalho no comércio, serviços de reparação em geral, entre outros.

Em um mercado de trabalho normal, se o rendimento de determinada ocupação está acima do das demais (que exigem qualificação semelhante), mais pessoas afluem para essa ocupação, aumentando a oferta de trabalho daquele setor e levando à queda nos rendimentos até que o equilíbrio volte a ser restabelecido.

Já o mercado de motoristas de táxi, no marco regulatório atual, é diferente de um mercado de trabalho normal. Se os motoristas de táxi ganham acima do mercado, isso atrairá mão de obra para a ocupação. Ocorre que o número de táxis é limitado. Alguma flexibilidade existe, no sentido que o dono de um carro pode decidir alugar o carro por mais um turno. Mas, de forma geral, dado que o número de permissões é fixo, o número máximo de motoristas de táxi também será fixo. Isso não geraria uma oportunidade de ganhos permanentes? Não, o ganho (ou perda) vai para o dono da placa.

Imagine que há um aumento na demanda por táxis. Isso ocorreu na maioria das cidades brasileiras nos últimos anos, pois a população cresceu, a renda aumentou, e o número de licenças ficou praticamente estagnado. Em Brasília, por exemplo, o número de licenças está estagnado há mais de 30 anos! Com maior número de corridas por dia, e, consequentemente, maior receita, mais pessoas iriam querer ser motoristas de táxi. Digamos que o faturamento líquido de um motorista de táxi (ou seja, as receitas obtidas com as corridas, descontados os custos com gasolina, manutenção de carro, etc) atingisse R$ 7 mil por mês. Se a mão de obra com nível de qualificação equivalente estiver ganhando R$ 3 mil mensais, várias pessoas tentarão migrar para a ocupação.

Ocorre que não haverá táxis para dirigir! O que farão então os candidatos a motorista? Irão oferecer um aluguel para o dono da placa. Pensemos em um candidato. Se ele oferecer R$ 1 mil para o dono da placa, poderá ficar ainda com R$ 6 mil livres no final do mês, enquanto sua capacidade de remuneração, dada pelo mercado, é de R$ 3 mil. Mas outro candidato a motorista, mais esperto, irá oferecer R$ 1,5 mil ao dono da placa, pois, dessa forma, ficaria com um ganho líquido de R$ 5,5 mil, o que ainda seria vantajoso. Não é difícil perceber que haveria uma espécie de leilão, e que, ao final, o dono da placa receberia R$ 4 mil e o motorista de táxi, R$ 3 mil. Ou seja, independentemente de haver Uber, táxi pirata, aumento ou diminuição no número de permissões, o rendimento do motorista de táxi continua determinado pelo mercado de trabalho, considerando pessoas com qualificação equivalente. No exemplo dado, o mercado sempre se equilibraria em R$ 3 mil mensais.

Falta, por fim, analisar o que ocorre com o dono da placa do carro. Com a liberalização do mercado, ou com a entrada de concorrentes como a Uber, conforme dissemos anteriormente, o motorista sofrerá perda de receitas. Diante desse novo cenário, a tendência será que esse motorista de táxi desista de sua ocupação e procure outra. Suponhamos, continuando o exemplo anterior, que, agora, o faturamento líquido caia para R$ 5 mil (observem que isso pode decorrer tanto da entrada de concorrentes como a Uber, quanto por uma iniciativa da prefeitura de aumentar as licenças). Após deduzir os R$ 4 mil pagos ao dono da placa, o rendimento líquido do motorista cairia para R$ 1 mil. Ora, se o salário de um profissional com qualificação semelhante é de R$ 3 mil, o motorista de táxi irá preferir abandonar a profissão. É claro que isso não ocorre imediatamente. Há contratos em andamento com o dono da placa que não podem ser rompidos, pode demorar um tempo para que o motorista encontre outra colocação no mercado ou para que se certifique que a situação do mercado se deteriorou de forma definitiva. Com o tempo, entretanto, a tendência será o esvaziamento da profissão, com consequente queda na demanda pelo direito de dirigir um táxi. O aluguel da placa então cairá, até que atinja o valor de R$ 2 mil, de forma que o rendimento efetivo (ou seja, já descontadas todas as despesas, inclusive o aluguel da placa) do motorista de táxi volte para os R$ 3 mil.

Assim, as variações no mercado de serviços de táxi, no longo prazo, acabam se refletindo no aluguel da placa, e não no rendimento do motorista4. Se o valor do aluguel da placa cai, também cai o valor da placa. Esse é um princípio básico de precificação de ativos: quanto maior o rendimento (dado um nível de risco), maior seu valor. Por exemplo, imóveis que geram alugueis mais altos têm preços mais elevados, e se o valor do aluguel cai, o valor do imóvel também cai; ações de empresas que distribuem mais dividendos são mais caras, e, se o lucro cai, o preço da ação também cai; e assim sucessivamente. No limite, se houver total liberação do mercado de táxis, o valor do aluguel cairia para zero – afinal, por que alguém pagaria para outrem o direito de dirigir um táxi, se pode obter esse direito gratuitamente na prefeitura? Nesse caso, o valor da placa também cairia para zero.

Conforme relatos de motoristas, uma placa de táxi custa, em Brasília, nada menos que R$ 100 mil, e rende ao seu dono um aluguel mensal em torno de R$ 3 mil. Em São Paulo, onde a permissão para táxi está associada a um ponto, a placa para poder atuar em um ponto em um bairro nobre como Moema custa R$ 250 mil. Para ter o direito de pegar passageiros no Aeroporto de Congonhas, são necessários R$ 800 mil. E, se alguém quiser ter uma permissão para pegar passageiros no Aeroporto Internacional de Guarulhos, terá de desembolsar nada menos que R$ 1,2 milhão (confesso que não acreditei nesse número, porém mais de um motorista de táxi em São Paulo me confirmou essa cifra)! Diante disso, não é de se estranhar que haja tanta pressão para proibir a presença de concorrentes ou a liberação do mercado de táxis. O que é de se estranhar é que a sociedade ache natural o Estado transferir gratuitamente para alguns premiados um patrimônio que lhes rende um aluguel equivalente ao de um apartamento de dois ou três quartos em área nobre da cidade, sem trazer nenhum benefício palpável para o consumidor!

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1 Não é exatamente igual porque a marca “taxi” tem algum valor. Dessa forma, mesmo permitindo empresas alternativas, como a Uber, o motorista de táxi convencional tende a ter alguma vantagem de mercado.

2 Em verdade, podemos dividir em três grupos: motoristas, dono do automóvel e dono da placa (permissão para dirigir). Às vezes o motorista é dono do carro, mas aluga a placa de um permissionário. O mais comum, entretanto, é o dono da placa e do carro serem a mesma pessoa. Na análise que se segue, irei supor, para simplificar, que o dono da placa e do carro seja a mesma pessoa. Do ponto de vista analítico, é o fato de haver um dono da placa que torna o mercado de trabalho do motorista de táxi diferente de outros, e é sobre esse aspecto que iremos nos focar.

3 Para o sujeito que abandonou outra atividade e passou a trabalhar como taxista, sua situação, na pior das hipóteses, ficou constante, sendo que, mais provavelmente melhorou. Afinal, se não fosse para melhorar, ele teria se mantido na atividade original.

4 Observe-se que estamos nos referindo a variações específicas no mercado de serviços de táxi. É claro que o rendimento dos motoristas flutua em função das condições gerais do mercado de trabalho. Em períodos recessivos, como o atual, é provável que os motoristas de táxi passem a ganhar menos, tal como ocorre com a maioria dos trabalhadores.

 

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As exportações brasileiras ficaram mais competitivas com a desvalorização do real? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2156&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=as-exportacoes-brasileiras-ficaram-mais-competitivas-com-a-desvalorizacao-do-real Mon, 10 Mar 2014 14:33:31 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2156 No final de 2007, o saldo da balança comercial começou a apresentar uma trajetória declinante, parcialmente interrompida entre o terceiro trimestre de 2010 e o terceiro trimestre de 2011. Desde então, a tendência de queda se acentuou. Para vários analistas e formuladores da política econômica, o vilão desse fraco desempenho foi a taxa de câmbio, que estaria demasiadamente apreciada. A solução para o problema seria, portanto, uma depreciação do real. Com o real mais depreciado, as empresas brasileiras ganhariam maior competitividade e, com isso, exportariam mais.

Em verdade, há um consenso de que a melhor forma de ganhar competitividade é aumentar a produtividade, mas isso só é viável no médio e longo prazos. É igualmente consensual que menor tributação é outra forma de ganho de competitividade. Entretanto, as exportações já são isentas de vários tributos, e alterações na estrutura tributária podem envolver longas discussões no Congresso, de forma que, efetivamente, no curto prazo, o principal instrumento de ganho de competitividade é a depreciação cambial.

A ideia é bastante intuitiva: suponhamos um automóvel que, no mercado internacional, custe US$ 10 mil. Se a taxa de câmbio estiver em R$ 2,00 por dólar, seu preço, em reais, seria de R$ 20 mil. Se o real se desvalorizar, e o dólar passar a valer R$ 3,00, o preço do automóvel, em reais, aumentaria para R$ 30 mil. Suponhamos que o custo de fabricação do carro no Brasil fosse de R$ 25 mil. Na situação inicial, com o dólar valendo R$ 2,00, o fabricante brasileiro teria imensa dificuldade em exportar, pois seu custo de produção estaria acima do preço internacional e, para exportar sem prejuízos, dificilmente encontraria consumidores dispostos a pagar R$ 25 mil (ou US$ 12,5 mil) por um bem que podem adquirir por R$ 20 mil (ou US$ 10 mil). Já com o real depreciado, a R$ 3,00 por dólar, o fabricante de automóveis não teria maiores dificuldades em exportar sua produção. Afinal, se vendesse o carro a US$ 10 mil, receberia, em reais, R$ 30 mil, e teria um lucro de R$ 5 mil.

O problema desse raciocínio é que, se nossa moeda se depreciar, com o dólar norte americano passando de R$ 2,00 para R$ 3,00, o custo da montadora, antes de R$ 25 mil, pode também aumentar. Do ponto de vista de ganho de competitividade, de pouco adiantaria a taxa nominal de câmbio depreciar-se de R$ 2,00 para R$ 3,00 se os custos das empresas brasileiras aumentassem na mesma proporção. Por esse motivo, a medida de nossa competitividade não é dada pelo câmbio nominal, mas, sim, pelo câmbio real que, grosso modo, busca avaliar em que medida o preço internacional dos bens tem evoluído em relação aos custos domésticos.

Apesar de o conceito de câmbio real ser relativamente fácil de entender, sua mensuração não é trivial. Antes de discutirmos diferentes formas de mensuração do câmbio real, cabe esclarecer que, ao contrário do câmbio nominal, onde há algum espaço de manipulação pela autoridade monetária, o câmbio real depende integralmente das forças de mercado, e, em larga medida, de como a absorção doméstica (a soma do consumo e investimento, privados e do governo) se comporta em relação à produção 1. Assim, eventuais intervenções do banco central no mercado de câmbio ou choques externos, como o anúncio do banco central norte-americano de que adotaria uma política monetária mais restritiva, podem alterar o câmbio nominal, mas terão um impacto mínimo sobre a taxa real de câmbio se a política econômica não se alterar.

Feito esse parênteses, voltemos à mensuração do câmbio real. A melhor forma de mensurar a competitividade é comparar a evolução dos preços dos chamados itens comercializáveis com a dos itens não comercializáveis. Bens comercializáveis são aqueles que podem ser facilmente importáveis ou exportáveis. São, em geral, produtos industriais ou commodities. Já os itens não comercializáveis correspondem àqueles produtos que não podem ser facilmente exportáveis ou importáveis. Normalmente estão associados a serviços. Não há divisão inequívoca entre o que é e o que não é comercializável, pois depende dos custos de transação (que inclui o custo de transportes), dos parceiros comerciais e de outros fatores institucionais. Por exemplo, commodities são, quase que por definição, bens comercializáveis. A invenção de navios frigoríficos, no início do século XX, transformou a carne em bem comercializável e permitiu o grande desenvolvimento da Argentina e Uruguai. Já o turismo pode ser um serviço comercializável ou não, dependendo do contexto. Para pequenas ilhas caribenhas, próxima a fortes mercados emissores, como norte-americano e canadense, e com estrutura bem montada, o turismo é um serviço comercializável. Já o turismo no Nordeste brasileiro teria características de item comercializável e não comercializável ao mesmo tempo, pois compete com outras praias no exterior, mas com custos de transação mais elevados (exigência de visto de americanos, longa distância de europeus) e conta com um mercado cativo doméstico (brasileiros que não dispõe de recursos para ir ao exterior ou que não querem enfrentar barreiras de língua, vistos, etc).

Por que a relação preço dos bens comercializáveis/preço dos bens não comercializáveis mensura o câmbio real (e, portanto, a competitividade de um país)? Observem, inicialmente, que, em tese, o preço dos comercializáveis livre de impostos, quando convertidos em uma única moeda, é o mesmo em todos os países. No caso de commodities essa é uma aproximação muito boa. Já para bens diferenciados, como automóveis, certamente há variações de preço em função da marca, modelo, etc, mas, dentro de determinada categoria de qualidade, conforto e tamanho de veículo, a faixa de variação de preços tende a ser pequena. Já o preço dos não comercializáveis pode variar intensamente de país para país, pois esses bens/serviços estão protegidos da concorrência internacional. Mesmo dentro de um país, as diferenças de preço entre bens não comercializáveis é muito maior do que entre bens comercializáveis. Por exemplo, o aluguel de um apartamento em Ipanema (Rio de Janeiro) pode ser dez vezes mais caro do que o aluguel de um apartamento semelhante em Goiânia. Já a diferença entre o preço do automóvel ou do feijão entre as duas localidades é substancialmente menor, se houver.

Na produção de qualquer bem, há insumos comercializáveis e não comercializáveis. Assim, para produzir automóveis, é necessário aço, tinta e outros insumos cujos custos devem ser aproximadamente os mesmos (uma vez convertidos na mesma moeda) no Brasil ou em qualquer país. Assim, um aumento no preço dos insumos comercializáveis, por afetar da mesma forma todos os produtores, não prejudica a competitividade da indústria nacional.

Já o transporte dos insumos do porto para a fábrica e, posteriormente, o transporte do automóvel da fábrica para o porto, a tarifa de energia, o aluguel e a mão-de-obra, todos esses insumos são não comercializáveis e, portanto, um aumento de seu custo afeta somente a competitividade da indústria nacional. Por esse motivo, quando o preço dos comercializáveis sobe em relação aos não comercializáveis, o câmbio real se deprecia e estamos ganhando competitividade. Simetricamente, se o preço dos não comercializáveis aumenta em relação ao dos comercializáveis, estamos perdendo competitividade, e o câmbio real se aprecia.

Podemos analisar agora como mensurar os preços relativos. A fórmula tradicionalmente utilizada na literatura é:

formula

Em que q é a taxa real de câmbio; e é a taxa nominal de câmbio (expressa em moeda doméstica por moeda externa, como R$ por US$); p* e o nível de preços internacional; e p, o nível de preços domésticos.

Quanto maior o valor de q, mais desvalorizada está a moeda do país. Olhando para os termos, o numerador corresponde ao preço internacional convertido na moeda doméstica. No exemplo do automóvel, era o preço de US$ 10 mil, multiplicado pela taxa de câmbio nominal, para chegarmos aos R$ 20 mil. Assim, o numerador corresponde ao preço dos bens comercializáveis.

O denominador é o nível de preços domésticos. Pela discussão acima, vemos que p não deve ser escolhido aleatoriamente, mas deve refletir o preço dos bens não comercializáveis.

Com base na fórmula acima, o Banco Central (Bacen) estima diversas taxas de câmbio real. Como podemos estimar a taxa de câmbio real em relação a cada moeda diferente, haverá tantas taxas de câmbio real quantos forem as moedas. O Bacen estima uma taxa de câmbio que chama de efetiva, em que pondera as diferentes moedas pela participação do país emissor nas exportações brasileiras. Assim, a taxa de câmbio real efetiva corresponde ao comportamento do real brasileiro frente a uma cesta de moedas que incluem o dólar norte-americano, o yuan chinês, o euro, o iene japonês, o peso argentino, entre outras. Além disso, o Bacen calcula as taxas de câmbio real bilaterais, por exemplo, real x dólar, real x euro, etc.

Em relação aos índices de preços, o Bacen utiliza quatro índices domésticos (IPCA, IPC-Fipe, INPC e IPA-DI) e, para os preços internacionais, dois (o correspondente ao Índice de Preços no Atacado – IPA, quando utiliza o IPA-DI para os preços domésticos, e o correspondente ao Índice de Preços ao Consumidor – IPC, quando utiliza os demais índices para os preços domésticos). Pela discussão anterior, o IPA-DI, por ser um índice de preços no atacado, e, como tal, fortemente influenciado pelo preço dos bens comercializáveis, é inadequado para o cálculo da taxa real de câmbio. Na prática, entretanto, como veremos a seguir, a diferença não é muito grande em termos qualitativos (embora possa ser, do ponto de vista quantitativo).

Outra forma de calcular a taxa real de câmbio é dividir diretamente o índice de preços de bens comercializáveis pelo de bens não comercializáveis. O Bacen calcula esses índices para o IPCA. O Gráfico 1 mostra a evolução das diferentes medidas de câmbio real desde dezembro de 2005. Para suavizar as séries, apresentamos os valores médios dos últimos doze meses, tendo como base dezembro de 2006 = 100. Apresentamos também o índice referente à taxa de câmbio nominal.

grafico_1

(Clique no gráfico para ampliar)

Observamos, em primeiro lugar, que todos os métodos de calcular a taxa real de câmbio de acordo com a Equação 1 fornecem resultados qualitativamente semelhantes. Em termos quantitativos, a diferença entre utilizar como base de comparação o dólar ou uma cesta de moedas pode ser substancial, podendo superar 10 pontos percentuais. Já o uso do IPCA ou IPA como deflator não altera muito os resultados. Na maior parte do tempo, as séries são muito próximas, apresentando diferença média de 1 ponto percentual. Em alguns períodos, contudo, como no fim do primeiro semestre de 2008, a diferença entre as séries chegou a 6 pontos percentuais.

Em segundo lugar, vemos que as séries de câmbio real calculadas de acordo com a Equação (1) são qualitativamente semelhantes à evolução da taxa de câmbio nominal. Os movimentos, contudo, tendem a ser mais suaves. Por exemplo, no recente ciclo de depreciação do real, desde o segundo semestre de 2011, a depreciação do câmbio nominal foi mais intensa do que a do câmbio real, refletindo o fato de a inflação brasileira ser mais alta do que a inflação de nossos parceiros comerciais.

Finalmente, mas não menos importante, o comportamento da série que mensura somente a relação preço comercializáveis/não comercializáveis é bem diferente das demais. Observe-se, inclusive, que, de acordo com esse índice, a forte depreciação do câmbio nominal observada nos últimos dois anos não se transformou em depreciação do câmbio real: o forte aumento do preço dos serviços no Brasil teria minado eventuais ganhos de competitividade.

Qual das metodologias é mais correta? Não há resposta inequívoca para essa pergunta. A Equação 1 utiliza o índice de preços (no atacado ou ao consumidor) de nossos parceiros comerciais. Mas os itens que compõem esses índices, bem como sua ponderação, podem guardar pouca relação com os itens comercializáveis que competem com nossa produção. Em relação ao denominador, já explicamos que o IPA é um índice inadequado. Em tese, o IPCA restrito aos bens e serviços não comercializáveis seria mais adequado. Ainda assim, o IPCA é um índice ao consumidor. Se queremos ter uma noção dos custos de nossas empresas, deveríamos utilizar um índice de não comercializáveis de insumos, e não de bens de consumo final. Por motivos similares, a taxa de câmbio real calculada pelo índice IPCA comercializáveis/IPCA não comercializáveis tem problemas por não tratar diretamente dos insumos na produção. Uma alternativa seria utilizar somente um índice de salários como proxy para os preços dos bens não comercializáveis, mas essa proxy também teria problemas, pois deixaria de considerar vários insumos importantes que não são comercializáveis, como aluguel, tarifas de água, luz e transportes. Por fim, mesmo o índice do IPCA comercializáveis é contaminado por itens não comercializáveis: quando compramos uma garrafa de vinho ou um automóvel, estamos pagando também pelo transporte até a loja, pelo salário do vendedor, aluguéis, etc.

Mesmo com todas as limitações, as taxas reais de câmbio apresentam boa correlação com o saldo da balança comercial. Os Gráficos 2 e 3 mostram a relação do saldo da balança comercial e dos serviços não fatores; o primeiro com a taxa real de câmbio mensurada pela relação preço comercializáveis/preço não comercializáveis; o segundo, com a taxa mensurada em relação ao dólar e utilizando o IPA como deflator (dentre as séries calculadas de acordo com a Equação 1, foi a que apresentou a melhor correlação). Para o período analisado, a taxa de câmbio estimada pela variação dos preços relativos apresentou melhor aderência à série do saldo da balança comercial, e maior correlação (0,96 versus 0,79). Esse resultado, contudo, deve ser visto somente como um fato estilizado. Um trabalho econométrico mais profundo, utilizando outras variáveis, é necessário para que se possa chegar a conclusões mais robustas. De qualquer forma, não deixa de ser interessante verificar que, a despeito da forte depreciação no câmbio nominal observada desde o primeiro trimestre de 2013 até o início de 2014, quando o dólar passou (em valores aproximados) de R$ 2,00 para R$ 2,35, uma depreciação nominal muito acima da inflação do período, o câmbio real medido pela relação preço comercializáveis/não comercializáveis continua se apreciando, comportamento mais consistente com a contínua deterioração de nossa balança comercial.

Em suma, para que a competitividade das exportações brasileiras aumente, e o déficit comercial seja revertido, não basta desvalorizar o câmbio nominal. É preciso que os preços dos bens não comercializáveis parem de subir a taxas superiores às dos comercializáveis.

grafico_2

(Clique no gráfico para ampliar)

grafico_3

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1 Sobre a determinação da taxa real de câmbio, ver outro artigo deste blog, intitulado “Por que o real se valoriza em relação ao dólar desde 2002?

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Quem poupa mais gasta menos? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1753&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quem-poupa-mais-gasta-menos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1753#comments Mon, 11 Mar 2013 16:44:55 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1753 A resposta à pergunta título deste texto parece ser um inquestionável sim. É claro que indivíduos mais ricos podem gastar mais e, ainda assim, pouparem mais que indivíduos mais pobres. Mas estamos, implicitamente, supondo uma renda dada. Assim, intuitivamente, quanto mais a família (ou o governo, ou o indivíduo) gasta, menos sobra para poupança. Neste artigo, pretendemos mais do que esclarecer alguns conceitos econômicos, queremos mostrar a falácia de se acreditar que um aumento na taxa de poupança pode desestimular a economia, por levar a uma queda na demanda agregada.

Em economia, poupança tem um significado diferente daquele utilizado corriqueiramente pela população. Poupança não se contrapõe a gastos, mas, sim, a consumo. Gastos incluem, além do consumo, gastos com investimento1. Em tese, gastos com consumo são aqueles que geram somente satisfação. Já gastos com investimento são aqueles que geram algum tipo de rendimento. Assim, se saio para comer em um restaurante ou se pego um ônibus, o retorno que tenho é o prazer da comida ou a satisfação de ter sido transportado (por mais desconfortável que seja o ônibus!). Já se adquiro um bem de capital ou uma residência, tenho por objetivo obter o rendimento que o capital ou o aluguel que o imóvel me proporciona. Assim, gastos de aluguel (que proporcionam o prazer dos serviços de moradia) são gastos de consumo, já gastos com compra ou reforma de imóvel (que proporcionam alugueis) são gastos de investimento.

Há casos em que a classificação do gasto como de consumo ou investimento não é muito óbvia. Por exemplo, quem compra um carro de passeio (ou qualquer bem de consumo durável), tecnicamente, estaria fazendo um investimento. O que ele consome não é o veículo, mas os serviços que esse veículo proporciona ao longo de sua vida útil. Talvez devido ao fato de esses serviços, via de regra, não serem pagos (não é comum pessoas físicas alugarem automóveis), talvez devido à vida útil do automóvel não ser tão longa (comparativamente, digamos, à de uma casa) ou pela dificuldade de mensuração do valor dos serviços proporcionados pelo veículo, as contas nacionais computam os gastos com aquisição de veículos (e dos demais bens de consumo duráveis e semi-duráveis) como gastos de consumo.

A questão da educação é ainda mais controversa. Mesmo com uma vasta literatura sobre capital humano, as contas nacionais ainda consideram educação como gasto de consumo.  Assim, um país que investe proporcionalmente mais em capital humano do que em capital físico aparece, na comparação internacional, como um país que investe pouco e que consome muito.

Poupança não é a diferença entre a renda e gastos, mas a diferença entre renda disponível (isto é, líquida de impostos) e o que foi consumido. Dessa forma, não há uma relação biunívoca entre gastos e poupança ou entre gastos e consumo. Suponha um indivíduo que gaste todo o seu salário, mas que, desse total, 70% seja destinado a serviços e bens utilizados no dia a dia, e os 30% restantes, para a reforma de sua casa. Nesse caso, o seu consumo será de 70% da renda e sua poupança será de 30%. Esses 30% corresponderá também ao investimento feito pelo indivíduo – o capital que ele acumulou no período.

Mas o indivíduo pode consumir os mesmos 70% da renda e aplicar o restante no sistema financeiro, adquirindo algum título (como caderneta de poupança, CDB ou fundo de renda fixa ou mesmo deixando em conta corrente). Nesse caso, ele estaria gastando 70% de sua renda, pouparia30%. Diretamente, esse indivíduo não estaria investindo. Indiretamente, contudo, é possível que sim. Afinal, os recursos que foram para o sistema financeiro retornam para a economia na forma de empréstimos. Se o tomador utilizar os recursos para investir, o valor poupado pelo aplicador será exatamente igual ao valor investido pelo tomador do empréstimo. Mas se a tomador utilizar os recursos para o consumo (por exemplo, para comprar um carro, ou o governo, para pagar funcionalismo), a poupança agregada da sociedade seria nula, pois a poupança daquele indivíduo que poupou e aplicou no sistema financeiro seria exatamente igual à despoupança do tomador de empréstimo.

Dessa discussão pode-se concluir que um aumento da taxa de poupança não implica redução da demanda por gastos, somente altera sua composição. Em uma economia fechada (que não transaciona com o exterior), isso significa maior produção de bens de investimento e residências, e menor produção de bens de consumo. Para uma economia aberta, maior poupança pode significar também maior exportação. Não é por menos que países do leste asiático, com altas taxas de poupança, não enfrentam problemas de falta de demanda agregada. Pelo contrário, são países cujas taxas de crescimento estão entre as mais altas do mundo.

Essa conclusão parece contradizer a ideia de inspiração keynesiana, de que,se pouparmos mais, as empresas não terão para quem vender e irão produzir menos, gerando desemprego, o que, por sua vez, irá gerar menor demanda, desestimulando ainda mais a produção. Qual das duas está correta?

Em primeiro lugar, não se pode confundir gastos com consumo. Como vimos, podemos aumentar os gastos e até reduzir o consumo, basta que se aumente a taxa de investimento. Para sustentar a demanda agregada no curto prazo, é indiferentes e os gastos ocorrem sob a forma de consumo ou de investimento. No longo prazo, é claro, maiores gastos com investimento implicarão uma sociedade mais rica, pois aumenta a sua capacidade produtiva.

Mas, haveria investimento se o consumo fosse baixo? Em outras palavras, porque alguém investiria se soubesse que não iria vender seus produtos? Em primeiro lugar, o investimento pode ser feito para atender o consumo externo, como ocorre no citado exemplo do leste asiático. Entretanto, mesmo em economias fechadas, pode-se alterar a composição do PIB, aumentando a participação da indústria de bens de capital. Ou seja, os empresários investiriam para produzir máquinas, e não bens de consumo. Parece estranho dizer que a economia produziria máquinas para produzir mais máquinas. Mas isso faz sentido porque se o investimento é maior, sabe-se que a economia estará mais rica no futuro e as pessoas consumirão mais. Mesmo que o consumo como proporção da renda seja baixo, com a renda crescendo, o montante consumido aumenta. Novamente, o exemplo chinês ajuda a entender: os chineses poupam cerca da metade de sua renda, mas o consumo aumentou exponencialmente nos últimos anos, com o maior enriquecimento da sociedade.

Apesar de haver controvérsias quanto ao diagnóstico, muitas crises são vistas como decorrentes de falta de demanda agregada, ou seja, o gasto agregado (e não somente o gasto com consumo) cai, desestimulando a produção e fazendo a economia entrar no círculo vicioso de menor produção, aumento do desemprego, queda na demanda agregada, menor produção, etc. A solução para esse problema é estimular o aumento do consumo e a redução da poupança?

A resposta depende do diagnóstico (enfatizando que mesmo o diagnóstico de crise por insuficiência de demanda agregada é controverso). Se a causa do problema for entendida como uma rigidez de preços, de salários, de bens de consumo e de ativos em geral, não é muito claro se um aumento do consumo, comparativamente a um estímulo maior para investimentos, poderia fazer o país sair mais rapidamente da crise. Tendo em vista os benefícios do investimento para o longo prazo, seria mais adequado focar em uma política de aumento de investimentos.

Mas se o diagnóstico for de que, por algum motivo, os empresários não querem investir (como diria Keynes, quando os “espíritos animais” dos empresários estão adormecidos)? Nesse caso, é possível que um aumento no consumo (e consequente redução da poupança) tenha um impacto mais imediato sobre os gastos e, com isso, amenize a crise. Nessas situações específicas, de fato, pode fazer sentido políticas de desestímulo à poupança.

Mas, via de regra, uma política de estímulo à poupança deve ter como norte uma perspectiva de longo prazo, e não de ciclo econômico. Poupança nada mais é do que abrir mão do consumo presente para se consumir no futuro. Assim, políticas econômicas que visem o aumento ou redução da poupança devem ter em mente o dilema entre consumir mais hoje ou consumir (bem) mais no futuro.

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1 Em economias abertas e com governo, os gastos incluem também os gastos governamentais e as exportações líquidas. Os gastos do governo, contudo, também podem ser decompostos entre consumo do governo e investimento do governo.

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A interferência no preço da gasolina é um bom instrumento para se controlar a inflação? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1723&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-interferencia-no-preco-da-gasolina-e-um-bom-instrumento-para-se-controlar-a-inflacao https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1723#comments Mon, 18 Feb 2013 12:37:29 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1723 Após meses de discussões, de notícias desencontradas e especulações, finalmente, no final de janeiro deste ano, foi anunciado o reajuste de 6,4% para o preço da gasolina e de 5,5% para o diesel. Trata-se de um reajuste que vinha sendo pleiteado pela Petrobras já há bastante tempo. No mínimo, desde 2011, os jornais publicam declarações do Ministro de Minas e Energia dizendo que não haverá reajuste no preço da gasolina. Em junho de 2012, o preço cobrado pela refinaria aumentou em 7,8% para a gasolina e em 3,9% no diesel, mas esse reajuste não chegou ao consumidor final porque, simultaneamente, o governo zerou a alíquota da CIDE que incidia sobre os combustíveis.

De acordo com especialistas, o reajuste foi insuficiente diante do aumento do preço internacional do petróleo e da depreciação do real que ocorreu no segundo semestre de 2012. Tanto é que, após seu anúncio, o valor das ações da Petrobras caiu quase 5%. Claramente, o objetivo do governo em postergar o aumento do preço da gasolina e em fazê-lo em nível insuficiente para equiparar os preços domésticos ao preço internacional é tentar segurar a inflação. Há aqui certamente uma mistura de pragmatismo – politicamente, é melhor represar a inflação controlando os preços do que via instrumentos convencionais de contenção de demanda agregada, como aumento da taxa de juros – com uma ideologia que defende maior intervenção sobre os preços. Também pode pesar o temor de vivenciarmos novamente os duros anos dos choques do petróleo.

Após o primeiro choque (embora não necessariamente ele tenha sido responsável por tudo que ocorreu a partir daí), em 1973, a inflação mudou de patamar e a taxa de crescimento caiu pela metade (felizmente, na época, o crescimento vinha entre 8% e 10% ao ano, de forma que cair pela metade não era assim tão trágico). Após o segundo choque do petróleo, em 1979, (novamente, sem responsabilizá-lo integralmente pelo que se sucedeu), a inflação disparou, ultrapassando pela primeira vez os 100% anuais, e o Brasil mergulhou em forte recessão.

Tal preocupação, contudo, não se justifica mais. Em primeiro lugar, porque a magnitude do reajuste do preço internacional do petróleo (ou mesmo do preço doméstico, em reais) é muito inferior à observada na época dos choques do petróleo. Em 1973, o preço do barril quase triplicou em um espaço de três meses. No segundo choque, o aumento foi da ordem de 2,5 vezes. Os reajustes agora têm sido bem menos intensos. Em 2010, por exemplo, o barril do óleo cru flutuou entre US$ 70 e US$ 80. Em 2012, o preço flutuou, na maior parte do tempo, entre US$ 90 e US$ 105.

Mais importante do que a menor intensidade de reajuste, é o fato de haver instrumentos de política monetária capazes de lidar com fortes mudanças de preços relativos. Desde 1999, com a introdução do regime de metas para inflação no Brasil, foi possível derrubar mitos de que alguns preços, simplesmente, não poderiam subir muito. Por exemplo, uma forte depreciação cambial (da ordem, digamos, de 30%) era vista como um catalisador de um surto inflacionário.

O regime de metas (no Brasil e em vários outros países) mostrou que uma depreciação cambial nada mais é do que uma mudança de preços relativos, em que opreços dos bens comercializáveis (aquilo que pode ser exportado ou importado) aumenta em relação ao preço dos bens não comercializáveis (aqueles que são muito difíceis de serem exportados ou importados, como serviços).  Uma política monetária bem conduzida é capaz de fazer com que haja forte realinhamento desses preços relativos com impacto relativamente moderado na inflação. Basta, para tanto, controlar a demanda agregada de forma a evitar, ou pelo menos, moderar substancialmente, o reajuste dos preços dos não comercializáveis.Com a gasolina não é diferente. Um reajuste do preço da gasolina pode ser contrabalançado por um reajuste menor dos demais preços, com impacto relativamente pequeno sobre a inflação.

O problema, portanto, não é o risco inflacionário que eventual reajuste da gasolina provocaria. O que existe é uma decisão de não deixar para a política monetária a tarefa de garantir a mudança de preços relativos com inflação baixa e estável (leia-se, eventual aumento de taxa de juros1). Ocorre que, como tudo em economia, a opção de manter o preço da gasolina constante (ou reajustá-lo abaixo do que deveria) tem seus custos, e esses custos são mais altos do que um eventual aumento da taxa de juros.

Ao impedir a mudança de preços relativos, o governo está fazendo com que o mercado emita sinais incorretos para os consumidores. As pessoas e firmas tomam suas decisões baseando-se nos preços, que, em última análise, refletem os custos de produção do bem. Se o preço do bem aumenta, significa que é necessário mais recursos da sociedade (capital, trabalho, terra, etc.) para produzi-lo. É salutar, portanto, que as pessoas e firmas passem a substituir esse bem por outros mais baratos. Quando o preço não reage ao aumento de custos, cessa o movimento de substituição, gerando ineficiência e perda de bem estar.

No caso do petróleo, especificamente, foi o aumento do preço internacional do barril que estimulou a exploração de novas áreas (como o Mar do Norte), novas descobertas (como o pré-sal brasileiro) e o uso de energias alternativas (como o nosso programa de álcool). O que teria ocorrido, em nível mundial, se houvesse um órgão regulador que tivesse impedido o aumento do preço do petróleo nos últimos 40 anos2? O uso do petróleo teria sido bem mais intenso e, provavelmente, as reservas já teriam se exaurido ou estariam próximas a isso. O pior, não teríamos desenvolvido nenhuma tecnologia capaz de utilizar alguma energia alternativa (se, com todo o estímulo decorrente do aumento do preço do petróleo, ainda não dispomos de energia alternativa, sem esse estímulo, certamente, a situação estaria ainda pior). Adicionalmente, o meio ambiente estaria mais deteriorado, tendo em vista que o preço mais baixo intensificaria o uso do hidrocarboneto.

A forma como a indústria petrolífera no Brasil vem se organizando torna ainda mais grave a limitação ao reajuste do preço da gasolina. A Petrobras adquire petróleo ao preço internacional (ou pode vender o petróleo que produz ao preço internacional) e é obrigada a vender a gasolina no mercado doméstico a um custo mais baixo. De acordo com especialistas, o não reajuste do preço da gasolina levou a um prejuízo de R$ 34 bilhões na área do abastecimento 3. Se a Petrobras fosse uma empresa privada, isso já seria ruim, por reduzir a arrecadação de impostos. Em sendo empresa estatal, além de menores impostos, o lucro distribuído para a União (seu acionista majoritário) tende a reduzir.

O problema, entretanto, é ainda mais grave. A Lei nº 12.351, de 2010, praticamente reestatizou a exploração de petróleo no Brasil para as áreas do pré-sal e para aquelas que vierem a ser consideradas estratégicas (que, provavelmente, serão todos os campos com alto potencial de produção que vierem a ser descobertos). No regime de partilha, instituído por aquela Lei, o Ministério de Minas e Energia poderá contratar a exploração diretamente com a Petrobras, sem licitação. E, onde houver licitação, a Petrobras participará com, no mínimo, 30% do consórcio. Adicionalmente, a Lei nº 12.276, de 2010, autorizou à União a ceder onerosamente (e sem licitação) o direito de exploração de 5 bilhões de barris para a Petrobras.

Ora, o petróleo não jorra de graça do subsolo. Estimativas feitas no final de 2012 mostravam necessidades de investimento da ordem de US$ 90 bilhões somente em quatro anos. Até 2020, estimativas da Petrobras apontam para uma necessidade total de US$ 1,2 trilhão. Ao segurar o preço do petróleo, o governo está limitando a capacidade de a Petrobras se capitalizar e, com isso, explorar em sua plenitude a riqueza do pré-sal. É claro que uma maior abertura do mercado, permitindo participação maior de outras empresas poderia amenizar substancialmente o problema. Mas limitar as receitas da Petrobras no marco regulatório atual é reduzir dramaticamente a probabilidade de pleno aproveitamento do pré-sal.

Certamente, não explorar plenamente o pré-sal e, com isso, deixar de arrecadar impostos e participações governamentais (somente em royalties e participação especial, estima-se que o pré-sal poderá gerar cerca de R$ 50 bilhões por ano, até o final da década) será muito mais prejudicial para nossa economia e bem-estar do que um eventual – e, enfatize-se aqui o eventual – aumento da taxa de juros para impedir que o impacto inflacionário do reajuste da gasolina e óleo diesel se propague para outros setores da economia.

Em resumo, utilizar o preço da gasolina como instrumento de controle de preços já é desaconselhável em situações normais. No Brasil, com as prerrogativas dadas à Petrobras na exploração do petróleo, torna-se temerário.

_____________

1 O reajuste da gasolina, per si, provavelmente seria insuficiente para obrigar o Banco Central a aumentar a taxa de juros. O problema é a situação atual, em que se vive um ambiente de maior inflação e deterioração das expectativas. Nesse cenário, um reajuste da gasolina pode desestabilizar as expectativas de forma mais intensa do que ocorreria, digamos, há cinco anos.

2 Ainda que parte do aumento tenha se devido à cartelização do setor, com a criação da OPEC, a maior parte da evolução dos preços do petróleo no longo prazo pode ser explicada pelos movimentos usuais de oferta e demanda em um mercado concorrencial.

3 Vide matéria disponível no link abaixo: http://www.brasil247.com/pt/247/portfolio/93391/Especialista-lamenta-aumento-pequeno-da-gasolina.htm

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Como o salário mínimo influencia o mercado de trabalho? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1553&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-o-salario-minimo-influencia-o-mercado-de-trabalho https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1553#comments Mon, 22 Oct 2012 11:12:00 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1553 No Brasil, o salário mínimo cumpre duas funções principais. Serve como piso salarial, pelo menos para os empregados no setor formal da economia, e como piso para aposentadorias e outros benefícios sociais. A decisão do reajuste do mínimo vem sempre acompanhada de debates, que enfatizam o seu impacto sobre a distribuição de renda e redução da pobreza; sobre as finanças públicas, em decorrência do reajuste das aposentadorias e outros benefícios sociais vinculados ao mínimo; e sobre o mercado de trabalho. Neste texto pretendemos apresentar os principais debates sobre a relação entre salário mínimo e mercado de trabalho.

A análise do impacto do salário mínimo sobre o mercado de trabalho é, em princípio, equivalente à análise do impacto de fixação de qualquer preço sobre qualquer mercado. Parte-se, assim, de um salário que equilibraria oferta e demanda por trabalho em uma economia competitiva que não está sujeita a nenhum tipo de restrição.

Se o salário mínimo for fixado em um nível abaixo do salário de equilíbrio, o salário mínimo não terá, então, qualquer influência nesta economia. Esse é um dos motivos que justificam o fato de reajustes de salário mínimo terem, em geral, um impacto negligenciável no mercado de trabalho dos países desenvolvidos[1].

Entretanto, em países em desenvolvimento como o Brasil, o mais comum é haver parcela não desprezível da população ganhando em torno do piso salarial. Nesse caso, a teoria prevê que reajustes do salário mínimo acima do crescimento da produtividade do trabalhador têm consequências sobre o nível de emprego. Como ocorre com qualquer insumo, se seu preço sobe, o empregador tende a utilizá-lo menos. No caso do mercado de trabalho, um grau mais baixo de utilização de insumo significa aumento do desemprego.

Nos países em desenvolvimento é comum a existência de um mercado de trabalho informal, em que nem todos os direitos dos trabalhadores (incluindo o salário mínimo) são respeitados. Um trabalhador demitido do setor formal pode ingressar no

setor informal. Isso aumenta a oferta de trabalhadores informais, o que pressiona para baixo o seu preço.

Dessa forma, reajustes do salário mínimo terão efeitos diferenciados sobre o mercado de trabalho, conforme a situação do empregado:

i) os trabalhadores que já ganhavam acima do novo piso estabelecido não são diretamente afetados[2];

ii) os trabalhadores cujo salário era inferior ao novo mínimo e que conseguiram manter seus empregos no setor formal têm um ganho de bem estar, pois passam a ter maior remuneração;

iii) os trabalhadores cujo salário era inferior ao novo mínimo e que perderam seus empregos no setor formal tornam-se desempregados ou se reempregam no setor informal.

Deve-se destacar que, devido ao item (iii), a maior oferta de trabalho faz com que o salário do setor informal tenda a se reduzir.

Uma avaliação de bem-estar requer[3], em primeiro lugar, comparar o número de beneficiados com o número de prejudicados. Em segundo lugar, deve-se avaliar quão grande foram os respectivos benefícios e prejuízos. Por exemplo, para os que conseguem se manter empregados, um aumento de salário mínimo pode aumentar a renda em, digamos, R$ 50,00 por mês. Por outro lado, pode levar outros trabalhadores ao desemprego ou à informalidade, impingindo-lhes uma perda de, digamos, R$ 620,00 por mês.

O impacto do salário mínimo sobre o desemprego depende de uma série de fatores. Do ponto de vista tecnológico, quanto mais facilmente for substituível a mão-de-obra que recebe próximo ao salário mínimo (normalmente, de menor qualificação), maior será o impacto de reajustes salariais sobre o desemprego. Há também fatores institucionais que podem influenciar o resultado final. Por exemplo, a atuação sindical pode obrigar as empresas a não demitirem os trabalhadores que seriam beneficiados pelo salário mínimo. Por fim, o impacto dependerá também da situação da economia: um reajuste do salário mínimo deve impactar mais fortemente o mercado de trabalho quanto mais próximo o salário mínimo estiver do rendimento médio dos empregados[4].

A teoria convencional prevê um dilema claro entre reajuste salarial e desemprego ou inchaço do setor informal da economia. Mas há modelos alternativos, que adotam hipóteses diferentes das empregadas pelo modelo convencional, que chegam a outros resultados.

Uma hipótese presente nos modelos tradicionais que merece ser discutida é que o setor informal pode pagar qualquer salário, abaixo ou acima do mínimo. Em verdade, o setor informal é um conjunto de diferentes formas de inserção no mercado de trabalho, compreendendo trabalhadores sem carteira, trabalhadores por conta própria, empregados não remunerados, etc. Apesar de concentrar as ocupações associadas à menor produtividade da economia, observa-se uma grande variedade dentro do setor informal no que diz respeito à tecnologia, as relações de trabalho, àinteração com o mercado formal e, consequentemente, à remuneração.

Diante da grande diversidade do setor informal, pode-se observar desde aquelas empresas que não garantem qualquer direito trabalhista, até aquelas que cumprem com alguns direitos (dentro dos quais se inclui o salário mínimo), mas deixam de cumprir com algumas obrigações, sobretudo as relacionadas com tributações e encargos sobre a folha de pagamentos. Pode-se justificar o fato de empresas do setor informal pagarem o salário mínimo por quatro motivos principais:

i) resultado das forças de mercado. Essa explicação pode não parecer convincente, tendo em vista o excesso de mão-de-obra pouco qualificada no Brasil (ou nos países emergentes, em geral) e seu baixo poder de barganha. Nesse cenário,as firmas dificilmente aceitariam pagar o mínimo, exceto se forçadas a fazê-lo. Mas é uma explicação plausível. Basta observar que, em junho de 2010, de acordo com a PME, o salário médio dos homens com ensino fundamental incompleto era de R$ 630,00, ante um salário mínimo de R$ 510,00. No caso das mulheres, apesar de o salário médio (R$430,00) ser inferior ao mínimo, observa-se uma proporção razoável que também ganha acima do mínimo;

ii) coerção da legislação trabalhista. Os trabalhadores do setor informal também são protegidos pela legislação trabalhista. Assim, uma empresa do setor informal pode decidir remunerar seus funcionários obedecendo a legislação do salário mínimo (mas sem pagar outros encargos ou contribuições) acreditando que, dessa forma, seus empregados não as processariam. É um comportamento racional, se considerarmos que a probabilidade de um empregado entrar com uma ação contra uma empresa é substancialmente menor se a firma deixa de pagar algum encargo social do que se remunerar abaixo do mínimo.

iii) o salário mínimo serviria como referência para toda a economia. É o que alguns autores (vide Neri et al, 2001) denominam de efeito farol. Não há exatamente uma explicação teórica justificando a existência desse efeito. O que existem são evidências empíricas mostrando que há uma concentração grande de empregados (no setor formal e informal) ganhando exatamente o mínimo. Assim, o valor do mínimo serviria como referência para as negociações salariais. O mínimo teria então a função de orientar firmas e empregados na negociação salarial. A sinalização oferecida pelo salário mínimo vai além do efeito farol. De acordo com os autores, há ainda o chamado efeito numerário, segundo o qual alguns salários são fixados como múltiplos “redondos” do salário mínimo (duas vezes, três vezes, ou metade). Uma possível explicação para o efeito farol seria a ausência de informação completa no mercado de trabalho. Nem firmas nem trabalhadores saberiam exatamente o valor que as demais empresas estão aceitando pagar, nem tampouco o valor pelo qual os demais trabalhadores estão aceitando trabalhar. O salário mínimo cumpriria esse papel.

iv) o quarto motivo, em verdade, está fortemente ligado ao primeiro. Boeri et al (2010) mostram que o setor informal tende a acompanhar os reajustes do salário mínimo porque há uma recomposição da mão-de-obra empregada. Quando o salário mínimo é reajustado acima do crescimento da produtividade, o setor informal passa a absorver uma mão-de-obra mais qualificada (o que implica mais produtiva), fazendo com que os salários aumentem naquele setor.

Mesmo aceitando que o salário mínimo traz um impacto positivo sobre a remuneração média do setor formal e informal, deve-se entender que esse impacto refere-se somente a aumentos marginais. Para o Brasil, por exemplo, o salário mínimo de 2012 é de R$ 620,00. Pode-se até discutir se esse valor não poderia ser maior. Mas, talvez com exceções muito localizadas, ninguém advoga o aumento do salário mínimo para, digamos, R$ 2.000,00. Isso porque, diante da situação econômica do País, um mínimo dessa magnitude ou teria parte significativa de seu poder de compra corroído por um processo inflacionário, ou o custo social, decorrente do desemprego gerado, não compensaria os benefícios auferidos pelos poucos empregados que conseguissem manter seus empregos.

Texto baseado em Freitas (2011).

______________

[1] Isso não significa, entretanto, que o salário mínimo não possa ter influência sobre mercados específicos desses países, como o de jovens com pouca qualificação.

[2] Pode haver impactos indiretos, decorrentes de uma recomposição da mão-de-obra empregada, com demissão de trabalhadores não qualificados e contratação de trabalhadores mais qualificados. Esse impacto indireto, contudo, é difícil de ser estabelecido a priori, pois depende do grau de substitutibilidade entre capital, trabalho qualificado e trabalho não qualificado.

[3] Estamos supondo que a análise de bem-estar contempla apenas as situações pré e pós aumento do mínimo. Certamente há mecanismos de transferências entre a população afetada (positiva ou negativamente) pelo reajuste que trará maior ganho de bem-estar.

[4] Para ser mais preciso, a comparação deve ser feita para aquele segmento do mercado de trabalho que é mais provável de ser afetado pelo salário mínimo, como os trabalhadores com baixa qualificação.

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REFERÊNCIAS

BOERI, Tito, Pietro Garibaldi e Marta Ribeiro. Behind the lighthouse effect. Institut zur Zukunft der Arbeit (IZA – Centro de Estudos sobre o Futuro do Trabalho). Bonn, Alemanha. Discussion Paper nº 4890. Abril de 2010.

FREITAS, Paulo Springer de. Salário mínimo e mercado de trabalho no Brasil. In: Meneguin, F. B. Agenda Legislativa para o Desenvolvimento Nacional. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2011.

NERI, Marcelo, Gustavo Gonzaga e José Márcio Camargo. “Salário mínimo, ‘efeito farol’ e pobreza”. Revista de Economia Política. São Paulo, SP. vol. 21, nº 2 (82). abril-junho de 2001.

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A Grécia deve abandonar o euro? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1118&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-grecia-deve-abandonar-o-euro https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1118#comments Mon, 12 Mar 2012 13:40:46 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1118 O elevado endividamento do governo grego não é exatamente uma novidade. A expressão “PIGS” (acrônimo dos nomes em inglês de Portugal, Itália, Grécia e Espanha), utilizada para denominar países com finanças públicas desorganizadas do sul da Europa, foi cunhada já nos anos 90. Neste artigo farei uma breve exposição do problema grego e discutirei as duas alternativas que se colocam: a Grécia deve fazer um programa de ajuste sob a supervisão da troika (FMI, União Europeia e Banco Central Europeu), ou deve abandonar o euro e tentar um caminho sozinha?

De 2000 a 2008, o endividamento grego cresceu sem maiores problemas. Havia grande liquidez no mundo, decorrente, entre outros fatores, de um maior desenvolvimento e integração do sistema financeiro e de um forte aumento da poupança asiática (em especial, da China), que disponibilizou mais recursos para empréstimos.

A introdução do euro, em 2002, também contribuiu para o endividamento. Em primeiro lugar porque a perspectiva de maior integração europeia significava maior perspectiva de crescimento. Além disso, a moeda única reduzia custos de transação e, sobretudo, o risco cambial, permitindo reduzir as taxas cobradas. Por fim, também contribuiu uma euforia do mercado financeiro, que não enxergou corretamente os riscos que estavam incorrendo, ou conheciam bem os riscos, mas acreditavam que os demais governos da eurozona não deixariam um país quebrar.

A crise financeira internacional já apresentou alguns sinais em 2007, mas se tornou evidente com a falência do Lehman Brothers em setembro de 2008. A recessão global que se seguiu atingiu fortemente a Grécia, entre outros motivos, porque uma de suas principais indústrias, a do turismo, é particularmente sensível a variações do PIB. O governo grego, assim como o de diversos outros países, tentou amenizar os impactos da crise fazendo uma política fiscal expansionista, seja gastando mais, seja reduzindo os impostos. Isso fez com que a dívida grega se acelerasse, passando de cerca de 105% do PIB em 2008 para 145% em 2010. Para se ter uma base de comparação, a relação dívida/PIB dos países da Zona do Euro passou de 70% para 85% no período.

Diante da forte deterioração fiscal, a Grécia fez um plano de austeridade e, em maio de 2010, fechou o primeiro acordo com o FMI e União Europeia, no valor de € 110 bilhões. Isso, entretanto, não foi suficiente para equilibrar suas finanças. Em verdade, a política de austeridade posta em vigor pode ter até deteriorado as finanças gregas, pois fez cair a arrecadação de tributos e não foi suficiente para restabelecer a confiança do setor privado na economia.

Ao longo de 2011 foram feitas várias negociações, que culminaram, em fevereiro de 2012, com um acordo em que a Grécia se comprometeria a cumprir um novo programa de ajustamento. Em troca, receberia empréstimos de € 130 bilhões, e os credores privados aceitariam um desconto de 53% no valor dos títulos. Esse acordo permitirá que a relação dívida/PIB grega convirja dos atuais 160% para 120% em 2020.

Está longe de haver um consenso de qual é a melhor opção para a Grécia. As principais posições antagônicas são entre a Grécia abandonar o euro e dar um calote generalizado ou fazer o programa de ajuste imposto pela troika.

Há algumas vantagens em participar do programa de ajuste. Em primeiro lugar, institucionaliza-se o default parcial sobre os títulos (a redução de 53% no valor de face da dívida), reduzindo a probabilidade de contestações judiciais. Em segundo lugar, os empréstimos darão ao país um colchão de liquidez, reduzindo a probabilidade de insolvência no curto e médio prazos.

Por outro lado, manter-se na Zona do Euro traz todos os problemas associados à regimes de câmbio fixo em países em situação de desequilíbrio fiscal e de balanço de pagamentos. A Grécia vem apresentando constantes déficits em transações correntes. No início dos anos 2000, esse déficit já era da ordem de 7% do PIB. Com a crise de 2008, o déficit aumentou, superando 14% do PIB em 2009 e, mesmo tendo se reduzido, situou-se acima de 10% do PIB em 2011.

O déficit em transações correntes corresponde à poupança externa que está sendo injetada no país. Não há país em crise que consiga financiamento de 10% de seu PIB, principalmente após o calote parcial que impôs ao setor privado. Daí a importância do empréstimo coordenado pela troika no curto prazo. No médio prazo, entretanto, a Grécia terá de reverter esse déficit em conta corrente, o que necessariamente passa pelo aumento das exportações de bens e serviços, vis a vis as importações.

O aumento da competitividade de um país implica mudança de preços relativos, tornando caros os bens e serviços comercializáveis (ou seja, os bens e serviços que podem ser vendidos para ou comprados do exterior) em relação aos serviços não comercializáveis. Essa mudança de preços relativos reduz a demanda doméstica dos produtos comercializáveis, estimulando as exportações e reduzindo as importações.

Quando o país dispõe de autonomia monetária, pode desvalorizar a moeda e, com isso, conseguir facilmente a mudança de preços relativos (pode haver problemas não desprezíveis nessa transição, que serão discutidos a seguir). Mantendo-se atrelada ao euro, a Grécia não dispõe dessa opção. Na ausência de choques exógenos positivos (por exemplo, recuperação surpreendente da economia europeia, aumentando o fluxo de turistas para o país), há duas formas mais óbvias de se conseguir a mudança de preços relativos.

A primeira é instituir reformas que aumentem a produtividade do país (mais rapidamente do que a dos outros países da área do euro). Um aumento de produtividade permite abaixar os custos. No caso de bens e serviços não comercializáveis, a concorrência deve fazer com que seus preços caiam. Já para os bens e serviços comercializáveis, o preço (em euros) tende a ficar inalterado, pois é formado no mercado internacional.

A outra forma de alterar os preços relativos é por meio de uma forte redução da demanda agregada, ou seja, por meio de uma recessão. Isso reduz a demanda por todos os bens e serviços, comercializáveis ou não. Entretanto, como o preço dos comercializáveis é estabelecido no mercado internacional, ele permanece inalterado. Já o preço dos não comercializáveis tende a cair, gerando a mudança de preços relativos necessária para aumentar a competitividade da economia.

Além dos impactos negativos de uma recessão sobre o bem estar da população decorrentes do aumento do desemprego e/ou da queda de renda, há ainda os impactos fiscais, associados à queda da arrecadação tributária. Ou seja, corre-se o risco de a Grécia entrar em um círculo vicioso, em que um programa de ajuste levaria a uma recessão, que deterioraria a situação fiscal, tornando necessário um ajuste ainda maior. O Brasil viveu situação similar no período 1980-83, quando precisou ajustar-se ao segundo choque do petróleo, ocorrido em 1979.

Apesar do descrito acima, tal programa de ajuste não está fadado ao fracasso. O setor privado poderá voltar a investir se perceber que as medidas de austeridade e que as reformas econômicas serão de fato implementadas  e se estiver ciente de que não haverá crise de liquidez (afinal, a Grécia receberá créditos de centenas de bilhões de euros). Os ganhos de produtividade poderão ser sentidos já no médio prazo (digamos, em três ou quatro anos) e o país pode entrar em um círculo virtuoso, voltando a crescer.

Se, em vez de fazer o programa de ajuste, a Grécia optar por sair do euro, poderá fazer o ajuste de preços relativos com muito mais rapidez, em tese, sem necessidade de recessão bastando, para isso, deixar a sua “nova” moeda se desvalorizar. Mas essa opção não está livre de riscos. O cenário mais provável é de uma forte recessão no curto prazo.

Em primeiro lugar, o abandono do euro sem um programa de apoio obrigaria o país a dar um desconto ainda maior na dívida do que o 53% que está sendo proposto. Afinal, se o governo grego está sem caixa, e se não houver empréstimos de regularização, simplesmente não haverá como pagar os credores. Ademais, a dívida grega continuará a ter o euro como moeda de referência. Com uma moeda nova desvalorizada em relação ao euro, a capacidade de pagamento do país diminui.

O não pagamento da dívida implica o isolamento do governo grego do sistema financeiro (pelo menos no curto prazo), requerendo, a partir daí, que o setor público não incorra mais em déficits. É claro que, caso se recuse a pagar a dívida, as despesas com juros cairiam a zero. Mas há outras despesas governamentais (pessoal, aposentadoria, transferências, etc), e, para não depender de financiamento, a Grécia teria de apresentar resultado primário (isto é, receitas governamentais menos despesas, desconsiderando o pagamento de juros) positivo ou neutro. O resultado primário já melhorou muito, mas, ainda assim, foi deficitário em 2,5% do PIB em 2011. Ou seja, mesmo se sair da Zona do Euro, o governo grego terá de promover ajustes para, no mínimo, zerar o déficit primário.

No curto prazo, a política de desvalorização com default provavelmente terá um impacto mais forte sobre o setor privado. Em primeiro lugar, cerca de 40% da dívida do governo grego está em mãos de investidores domésticos. O não pagamento dessa dívida reduzirá a riqueza do setor privado do país, reduzindo a demanda agregada. Em segundo lugar, porque as empresas gregas que estiverem endividadas em euros (ou em outra divisa) sofrerão um forte desequilíbrio patrimonial: suas dívidas serão aumentadas na proporção da desvalorização da moeda, enquanto que suas receitas (exceto no caso de empresas exportadoras) serão corrigidos pela inflação doméstica, supostamente, mais branda que a desvalorização cambial (se a inflação for maior que a desvalorização do câmbio, o câmbio real não terá se desvalorizado e os desequilíbrios externos do país permanecerão).

Teme-se ainda que a desvalorização da “nova” moeda leve a um aumento da inflação, eventualmente, a uma hiperinflação. Conforme colocado anteriormente, para que o país se torne mais competitivo, é necessária uma mudança de preços relativos, com encarecimento dos bens e serviços comercializáveis. Em tese, é possível que uma desvalorização nominal da moeda seja suficiente para garantir esse ajuste. Considerando, entretanto, haver rigidez salarial e, talvez, alguns mecanismos de indexação (formais ou informais) ao câmbio ou à inflação, o mais comum é a desvalorização cambial trazer um impacto inflacionário. Se houver descontrole fiscal, a probabilidade de explosão inflacionária aumenta consideravelmente.

A hiperinflação não é um cenário a ser descartado nesse caso, embora a experiência brasileira de 1999[1] mostre que é possível desvalorizar a moeda mantendo a inflação sob controle. É necessário, contudo, manter uma postura firme do Banco Central, mantendo os juros altos, e do Tesouro, garantindo, pelo menos, superávit primário. No nosso caso, o acordo em vigor com o FMI e acordos informais, que garantiram a manutenção do fluxo de capitais externos, ajudaram a impedir que o PIB caísse naquele ano, tornando nossa transição relativamente suave. Já na Argentina e México, a transição do regime de câmbio fixo para de câmbio flutuante foi mais traumática, com quedas do PIB da ordem de 6%.

O abandono do euro traz ainda dificuldades de implementação, pois não pode  ser anunciado com antecedência. Do contrário, haverá uma corrida bancária (todos tentarão sacar o máximo possível de euros), com prováveis riscos sistêmicos. Observe-se que a frágil situação fiscal grega dificulta que o governo se envolva em operações de resgate de bancos.

Em um cenário mais catastrófico, uma crise bancária combinada com hiperinflação pode desestruturar o país, levando, inclusive, a convulsões sociais. Já em um cenário benigno, o setor público faria as reformas necessárias e  as exportações gregas rapidamente ganhariam competitividade. Livre de dívidas passadas e com forte (e crível) compromisso de estabilidade financeira, a Grécia voltaria a ter acesso ao crédito e encontraria mais rapidamente (comparativamente à opção do ajuste proposto pela troika) o caminho do crescimento sustentável.

Resumidamente, não há fórmula mágica para a saída da crise grega, assim como não houve solução indolor para as crises cambiais e da dívida dos países latino-americanos. Parece inevitável que a Grécia sofra uma recessão no curto prazo. Também parece inevitável o default, mesmo que parcial. Independentemente da escolha entre ficar ou sair do euro, para recuperar a estabilidade fiscal e  voltar a crescer, o governo grego deverá dar mostras de que é capaz de fazer um ajuste em suas contas e de que está fortemente comprometido com esse ajuste.

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[1] Argentina e México também são exemplos de que é possível abandonar o câmbio fixo sem haver hiperinflação. No caso do México, a inflação subiu para cerca de 50% logo após a desvalorização do peso, em 1995, mas caiu nos anos seguintes.

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Quem deve pagar a conta dos subsídios nos serviços de utilidade pública? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1028&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quem-deve-pagar-a-conta-dos-subsidios-nos-servicos-de-utilidade-publica https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1028#comments Tue, 07 Feb 2012 13:18:22 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1028 Muito mais corriqueiramente do que se imagina, alguns consumidores ajudam a pagar a conta de outros. São os chamados subsídios cruzados. Muitas vezes esses subsídios são difíceis de serem percebidos. Por exemplo, quem pede para embalar um presente está sendo subsidiado por quem não solicita esse serviço (afinal, o custo do papel e da mão-de-obra que irá embalar está embutido no preço final do bem); quem come pouco ajuda a pagar a conta de quem come muito em um rodízio; um paciente que demanda menos tempo do médico subsidia o que demora mais; quem parcela o pagamento de passagens aéreas sem pagar juros está sendo financiado por aqueles que pagam à vista.

Em todos os exemplos acima, o subsídio cruzado surge como uma solução de mercado, pois diferenciar o preço traria custos além dos benefícios. Pode também ser uma estratégia de marketing: cobrar por certos serviços pode parecer antipático aos olhos do consumidor. Apesar disso, ao longo dos últimos anos, vimos que a sociedade tem cada vez mais aceitado pagar valores diferentes, de acordo com os serviços adquiridos. Dessa forma, é cada vez mais comum shopping centers cobrarem pelo estacionamento, companhias aéreas cobrarem pelo despacho de malas ou pela comida servida a bordo, e lojas cobrarem para embalar produtos.

O que explica o fato de, em alguns casos, as empresas preferirem manter os subsídios cruzados e em outros casos optarem por diferenciar os preços conforme o serviço ou bem consumido é o custo que se incorre para fazer a diferenciação dos preços. Manter alguém vigiando a entrada de um banheiro restrito a pagantes pode ser mais caro do que liberar o acesso; cobrar um preço diferente para cada tipo de alimento em um restaurante a quilo é praticamente inviável; pode ser mais barato contratar um empacotador do que perder tempo com o próprio cliente empacotando as compras em um supermercado.

Preços uniformes também reduzem o custo de informação. A decisão de um consumidor fica mais fácil se ele sabe, de antemão, o preço dos ingressos nos cinemas X e Y, sem se preocupar com a duração ou com o custo de produção do filme. A informação de uma vitrine é mais clara se o preço de um modelo não depender do tamanho da roupa.

Por fim (e lembrando que essas explicações não formam uma lista exaustiva), pode haver assimetrias de informação e conflitos de interesse que tornam a diferenciação de preços ineficiente. Por exemplo, se o preço de um bem depender do tempo de negociação ou da duração do serviço (o tempo gasto em uma consulta médica ou em um corte de cabelo), pode ser gerado um incentivo perverso de as transações se estenderem além do tempo necessário. Um caso clássico é o do jornal Pravda, editado na antiga União Soviética, no qual os jornalistas eram remunerados pelo tamanho das reportagens escritas, o que resultava em textos enormes.

Em princípio, quando o preço pago é diferente do custo de produção, gera-se uma ineficiência na economia, com perda de bem-estar. Nos casos acima, entretanto, o subsídio cruzado pode aumentar a satisfação da sociedade se a cobrança de preços diferenciados gerar custos maiores do que a ineficiência decorrente da uniformização de preços.

Há situações, entretanto, em que o subsídio cruzado decorre de restrições institucionais. Um exemplo é a proibição de cobrança de preços diferenciados para compras à vista e com cartões de crédito (sobre esse tema, ver o artigo Deve-se proibir a diferenciação de preços entre compras à vista e com cartão de crédito?, neste site). Mas é na prestação de serviços de utilidade pública que ocorrem com maior frequência os subsídios cruzados.

Talvez a principal justificativa para o uso desses subsídios seja política. Em primeiro lugar, por não serem transparentes, são mais fáceis de serem cobrados. É mais provável que o usuário culpe a concessionária pelo alto preço da tarifa do que o governo, que está lhe tributando.

Em segundo lugar, porque a sociedade parece aceitar com certa facilidade a ideia de solidariedade entre grupos, ainda que artificialmente construídos e que não façam sentido econômico. Os consumidores passam a ser agregados em grupos como passageiros de ônibus, consumidores de energia, de água, etc, e tornam-se (compulsoriamente) solidários, com os mais abastados subsidiando os mais pobres.

Um exemplo está no transporte urbano, no qual os idosos têm direito a passagens gratuitas. Quem paga por isso? Normalmente são os demais usuários do transporte. Se não houvesse problemas de assimetria de informação, esse subsídio cruzado seria claramente indesejável do ponto de vista social.

Em primeiro lugar, porque a discrepância entre preço e custo (os passageiros pagantes pagam acima do custo, e os passageiros não pagantes ou com direito a desconto pagam abaixo do custo de produção), per si, gera ineficiências na alocação de recursos: os passageiros não subsidiados vão fazer menos viagens do que fariam se não precisassem subsidiar os mais velhos. Em segundo lugar, porque é injusto. Por que é o passageiro de ônibus (frequentemente, pertencente às classes menos favorecidas) quem deve pagar pelo transporte do idoso e não, digamos, quem anda de carro, quem vai ao cinema, quem faz compras no supermercado?

Não se trata aqui de discutir o mérito de os idosos poderem ou não viajar de graça. A questão é quem deve pagar por isso. Se a sociedade entende que a gratuidade (ou qualquer desconto) é justa, então deve ser o contribuinte, via pagamento de impostos – e não o usuário do ônibus – quem deve pagar pelo serviço.

Pode haver, entretanto, problemas de assimetria de informação que justifiquem o subsídio cruzado. A empresa de ônibus pode ter incentivos para inflar o número de idosos transportados e, com isso, arrecadar mais subsídios (pagos pelo orçamento público) do que teria direito. Se o custo de fiscalização for alto e/ou se o número de idosos usuários do sistema público de transporte for baixo (o que implica baixo impacto sobre os custos totais) pode ser socialmente preferível manter o sistema de subsídios cruzados.

Subsídios cruzados estão também presentes nas tarifas de energia e saneamento. Nos dois casos, as tarifas são definidas de forma a garantir a viabilidade financeira das respectivas concessionárias. Via de regra, as tarifas aumentam de acordo com a faixa de consumo e são calculadas de forma a viabilizar o provimento do serviço para as populações mais pobres e a expansão da rede. No caso da energia elétrica, a tarifa final embute ainda encargos destinados a financiar o fornecimento de energia para usuários que residem em algumas áreas da Região Norte[1].

É difícil encontrar justificativas econômicas para o subsídio aos consumidores dos estados nortistas por meio da tarifa de energia dos demais usuários. Assim como no exemplo da passagem de ônibus. Se a sociedade entende que deve haver o subsídio, é o contribuinte, via imposto, quem deve financiar o usuário de energia da Região Norte. Como se trata de uma transferência de recursos entre concessionárias, não se pode argumentar aqui que o subsídio cruzado pode ser justificado com base em redução de custos de informação, de transação ou para resolver problemas de assimetria de informações.

É igualmente difícil de justificar os usuários pagarem pela expansão da rede. Do ponto de vista distributivo, não faz sentido quem consome hoje subsidiar o consumidor de amanhã[2]. Para haver eficiência alocativa, é necessário que a tarifa reflita o custo de produção do serviço, que deve incluir o custo do financiamento para a infraestrutura já realizada. Se a tarifa passa a incluir também o financiamento para as concessionárias, seu valor passará a superar o custo de produção, fazendo com que o consumo de energia/saneamento fique abaixo do socialmente ótimo. Isso se torna ainda mais grave quando se considera que esses serviços trazem importantes benefícios à sociedade (externalidades positivas) (sobre as externalidades de água e saneamento, ver, neste site, o texto Por que é tão elevada a carga tributária sobre os serviços de saneamento básico?; e sobre o conceito de externalidades ver, também neste site, o texto Por que o governo deve intervir na economia?).

Por fim, é também discutível se a tarifa por Kwh consumido de quem consome mais deve ser maior do que a de quem consome menos. Se o objetivo é fazer justiça distributiva, não é esse o caminho mais adequado. Em primeiro lugar, porque a distribuição de renda quando feita pelo orçamento (ou seja, via impostos) não distorce o preço da energia/água em relação aos outros bens (uma vez que seriam igualmente tributados), reduzindo os impactos deletérios sobre a eficiência alocativa de recursos.

Em segundo lugar, porque não necessariamente está se fazendo justiça distributiva, pois a relação entre consumo de água/energia e riqueza não é direta. Famílias grandes tendem a consumir mais, mesmo não sendo mais ricas. Quem tem mais capital pode investir em um sistema de aquecimento solar, bem como trocar os aparelhos eletrodomésticos, reduzindo o seu consumo de energia. Pessoas que têm o hábito de comer fora e lavar a roupa em lavanderias também tendem a apresentar consumo mais baixo de água e energia. Casas de praia e de campo têm baixo consumo, pois são usadas apenas no final de semana. Enfim, o melhor indicador de riqueza de um indivíduo é sua renda e seu patrimônio, e não seu consumo de água e energia. A tributação da renda e do patrimônio é, dessa forma, um instrumento mais eficiente para se fazer justiça social do que a tributação sobre água e energia.

O subsídio cruzado nas contas de energia e água poderia ser justificado com base na redução de custos de transação. Esses custos, entretanto, devem ser relativamente baixos, pois não deve ser difícil para os órgãos reguladores (ou quem quer que venha a ser responsável pelo pagamento de subsídios) ter acesso ao consumo de cada domicílio, a partir do qual seria calculado o subsídio a que a concessionária teria direito.

Em síntese, mesmo reconhecendo que há justificativas para que serviços de utilidade pública sejam subsidiados, o financiamento desses subsídios deveria se feito através do orçamento público. A prática de se cobrar tarifas mais altas dos usuários que consomem mais, além de não garantir justiça social, pode reduzir o bem-estar da população devido à ineficiência gerada na alocação de recursos.

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[1] Sobre uma abrangente revisão dos encargos embutidos nas tarifas de energia elétirca, vide: Montalvão, Edmundo: “Impacto de tributos, encargos e subsídios setoriais sobre as contas de luz dos consumidores”, disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD62-EdmundoMontalvao.pdf.

[2] Assim como nos casos anteriores, faz sentido, se a sociedade assim o entender, que o contribuinte hoje financie o contribuinte de amanhã.

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Por que o real se valoriza em relação ao dólar desde 2002? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=620&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-o-real-se-valoriza-em-relacao-ao-dolar-desde-2002 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=620#comments Mon, 20 Jun 2011 12:15:05 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=620 Este texto é uma resenha do estudo “O câmbio no Brasil: perguntas e respostas”, de autoria de Affonso Celso Pastore e Maria Cristina Pinotti, apresentado no XXIII Fórum Nacional, promovido pelo Instituto Nacional de Altos Estudos – INAE. O texto resenhado pode ser obtido na íntegra, em versão pdf,  no endereço: http://www.forumnacional.org.br/sec.php?s=400&i=pt . A publicação da presente resenha em www.brasil-economia-governo.org.br foi autorizada pelos autores e pelo INAE.

Por que o câmbio no Brasil se valoriza continuamente desde 2002? Não há uma causa única, mas uma explicação muito importante está associada a uma característica dominante da economia brasileira, que é o nível baixo das poupanças domésticas – pública e privada. Isto torna o crescimento econômico dependente da absorção de poupanças externas, na forma de importações líquidas, cujo aumento ocorre através da valorização do câmbio real. Se todas as demais causas apontadas para a valorização do real não existissem, essa dependência com relação às poupanças externas já seria suficiente para transformar o real em uma moeda forte.

O propósito deste trabalho é enfatizar a importância desse efeito, bem como indicar caminhos para superar a limitação que ele impõe ao crescimento econômico. Mas antes de atingir esse ponto é preciso avaliar as outras forças por trás do comportamento da taxa cambial. Para fazê-lo há que se responder a cinco perguntas.

i)                    qual é o verdadeiro regime cambial brasileiro?

ii)                  o que está por trás da contínua valorização do real desde 2002?

iii)                por que cresceram as pressões para a valorização do real a partir de 2010?

iv)                por que mesmo diante das intervenções e de controles aos ingressos de capitais o câmbio real se valoriza?

v)                  como os ganhos de relações de troca afetam as exportações de commodities e de produtos manufaturados, e que consequências isto acarreta sobre as importações?

Após responder a essas cinco questões, na última seção o trabalho discute as sugestões sobre como reagir à nova realidade externa. Não há controvérsias sobre as reações aos movimentos de curto prazo, que temporariamente valorizam o real: usam-se os instrumentos das intervenções e de taxações sobre os ingressos de alguns tipos de capitais. A controvérsia está no que fazer para evitar forças que a longo prazo tornam o real uma moeda mais forte. A primeira ação deveria ser a promoção de reformas que levem à elevação das poupanças domésticas, tornando o crescimento econômico menos dependente da absorção de poupanças externas.

I – QUAL É O REGIME CAMBIAL BRASILEIRO?

O Brasil aderiu à flutuação cambial no início de 1999. Mas se caracterizarmos o regime cambial brasileiro não pelo comportamento da taxa cambial, e sim pela intensidade das intervenções, desde janeiro de 2006 o Brasil vem praticando um regime cambial muito distante do câmbio flutuante puro.

Quando a trajetória do câmbio é pré-fixada (assim como no regime de câmbio fixo), o Banco Central tem que estar pronto a comprar ou a vender quaisquer que sejam os fluxos cambiais de entrada e de saída para manter o câmbio preso àquela trajetória. Já no regime puro de câmbio flutuante, o Banco Central nem compra, nem vende: o aumento de fluxos de entrada leva à valorização do câmbio, e o aumento dos fluxos de saída leva à sua desvalorização.

Desde a implementação do Plano Real, podemos identificar três períodos no que diz respeito ao comportamento do Banco Central no mercado de câmbio. Durante o período de câmbio com trajetória pré-fixada (1994-1999), eram frequentes as intervenções de compra e venda. Já no regime de câmbio flutuante, após 1999, há dois períodos distintos. No primeiro, entre 1999 e o final de 2005, as intervenções eram muito pequenas. Havia nesse período uma flutuação cambial quase pura. Já a partir de 2006, as intervenções são mais intensas do que no período entre 1994 e 1999. Por esse critério, o regime cambial recente se assemelha ao que existia quando o real seguia uma trajetória pré-fixada. Entretanto, contrariamente ao que ocorria entre 1994 e 1999, apesar da intensidade das intervenções, o câmbio não deixou de se valorizar. Também contrariamente ao que ocorria entre 1994 e 1999, quando havia uma alternância de compras e vendas, neste período mais recente, em quase todos os meses (a exceção são os quatro meses mais agudos da crise mundial de 2008), somente ocorreram compras. Foram compras tão intensas que, de janeiro de 2006 até o presente, o Brasil acumulou um adicional de mais US$ 274 bilhões de reservas.

Qual o motivo dessas intervenções intensas? A explicação oficial é que com isso buscava-se a acumulação de reservas. Esse é, de fato, um objetivo de política econômica, mas não era o único. O outro, não declarado, é a busca de, pelo menos, evitar uma valorização mais intensa do real.

II – O QUE ESTÁ POR TRÁS DA CONTÍNUA VALORIZAÇÃO CAMBIAL DESDE 2002?

Não há uma única causa por trás da contínua valorização cambial desde 2002, mas uma delas, muito importante, é o aumento progressivo da demanda por ativos brasileiros a partir de 2002, derivada da adesão do país à disciplina macroeconômica, junto com a melhora do cenário internacional.

A grande queda da percepção de riscos macroeconômicos ocorreu quando o governo Lula, logo no seu início, se comprometeu a manter o mesmo tripé implantado no governo anterior: superávits fiscais primários; metas de inflação; e flutuação cambial. Buscava, com isso, a redução da dívida publica; a sua desdolarização; o controle da inflação; e o aumento da liquidez externa do país. A percepção da seriedade do compromisso com esses objetivos reduziu drasticamente a percepção de riscos, elevando a demanda por ativos brasileiros.

O aumento da demanda no mercado financeiro internacional eleva os preços dos bônus brasileiros no mercado secundário, o que reduz seus rendimentos (yelds) e, consequentemente, o prêmio de risco[1]; e o aumento da demanda no mercado financeiro por parte de estrangeiros eleva o ingresso de dólares para permitir as compras, valorizando o real. Ou seja, a queda na percepção de riscos macroeconômicos produz, ao mesmo tempo, uma baixa dos prêmios de risco e uma valorização cambial: é a melhoria da percepção de riscos, por sua vez decorrente de uma maior disciplina macroeconômica, que permite queda no prêmio de risco e apreciação da taxa de câmbio.

Há quem argumente que a forte demanda por ativos brasileiros decorre das altas taxas de juros. É verdade que em todo este período há ingressos de capitais de curto prazo, mas há, também, um forte ingresso de capitais de longo prazo, que não são diretamente estimulados pelo diferencial de taxa de juros. Por exemplo, nos doze meses encerrados em maio de 2011, a entrada de investimentos estrangeiros diretos e em portfólios, que não é induzida pelo diferencial de juros, atingiu em torno de US$ 100 bilhões. São capitais atraídos pelas boas perspectivas econômicas do Brasil, em um contexto de abundante liquidez no mercado financeiro internacional.

III – POR QUE A PARTIR DE 2010 CRESCEU A PREOCUPAÇÃO COM A VALORIZAÇÃO?

Em 2010 o Federal Reserve iniciou Quantitative Easing 2 – QE2, um programa de recompra de títulos de longo prazo do Tesouro dos Estados Unidos que aumentou a quantidade de dólares em circulação. Isso acentuou a desvalorização do dólar com relação a praticamente todas as moedas, inclusive o real.

Uma primeira reação do governo brasileiro a essa valorização foi retomar os controles nos ingressos de capitais, elevando para 6% o IOF para os ingressos em portfólio de renda fixa. Em segundo lugar, intensificaram-se as intervenções no mercado à vista, tendo as compras no primeiro quadrimestre de 2011 atingido a média de US$ 7,3 bilhões por mês.

IV – POR QUE APESAR DO ESFORÇO CONTRÁRIO O CÂMBIO REAL SE VALORIZA?

Essa valorização é uma consequência de duas forças. A primeira são os ganhos de relações de troca. A segunda é o fato de que o Brasil é um país no qual o aumento dos investimentos depende da complementação de poupanças externas, porque as poupanças domésticas são baixas. A absorção de poupanças externas se faz com o aumento das importações líquidas, mas, para tanto, é necessário que se tornem mais baratas, o que exige a valorização do câmbio real.

Olhemos primeiramente para as relações de troca, mas antes de analisar o caso brasileiro, concentremo-nos por um momento no comportamento do dólar australiano, que foi a moeda que mais se valorizou depois de implantado o QE2. Não se pode atribuir a apreciação do dólar australiano ao diferencial de juros, simplesmente porque a taxa de juros daquele país é muito próxima da dos Estados Unidos. O canal de transmissão relevante, no caso da Austrália, foi a elevação dos preços de commodities.

Os ganhos de relação de troca, ao estimular as exportações e ampliar a oferta de divisas, tendem a valorizar o câmbio real em países cujas exportações de commodities são elevadas. No caso brasileiro, tanto quanto no caso da Austrália, ganhos de relações de troca ocorrem quando os preços das commodities se elevam. A partir de 2009, o Brasil teve ganhos de relações de troca da ordem de 30%.

Olhemos agora para o fato de que no Brasil as poupanças domésticas são baixas, e que os investimentos dependem da absorção de poupanças externas, na forma de aumento das importações líquidas. Contabilmente um déficit nas contas correntes (exportações líquidas negativas) é o excesso de importações sobre exportações de bens e serviços, mas economicamente ela pode ser vista: ou como o excesso da absorção (a soma da formação bruta de capital fixo e dos consumos das famílias e do governo) sobre a renda; ou como a escassez das poupanças totais domésticas para financiar os investimentos[2]. Outra forma de entender a dependência de nossa economia pela poupança externa é constatar que o aumento dos investimentos provoca o crescimento da absorção acima do PIB, porque não ocorre nem uma queda suficientemente grande do consumo das famílias, nem do consumo do governo, que provocariam a elevação das poupanças domésticas. É necessária então a poupança externa para completar o financiamento do investimento doméstico. Com isso fica estabelecido o fato empírico de que no Brasil o aumento dos investimentos requer a complementação de poupanças externas. Mas por que isso levaria á valorização do câmbio real?

O câmbio real é um preço relativo, entre bens tradables e non-tradables[3], e o aumento da absorção relativamente à renda provoca a sua apreciação. Para mostrar esse ponto partimos de uma situação inicial na qual os investimentos são iguais às poupanças domésticas (a absorção é igual à renda), com importações líquidas nulas. Admitamos que a partir desse ponto a absorção doméstica se eleva acima da renda (os investimentos crescem acima das poupanças domésticas), levando a um aumento nas importações líquidas. Expansão da demanda doméstica significa um aumento quer da demanda por bens tradables, quer da demanda por bens non-tradables. Mas com um dado valor do câmbio nominal o preço nominal dos bens tradables não se altera (ele é o produto do câmbio nominal pelo preço internacional, e lembremos que este último não se altera, porque o Brasil é um “tomador de preços” no mercado internacional). Em contrapartida, o aumento da demanda de bens non-tradables leva a um aumento de seu preço relativo (os salários, por exemplo), e, como o câmbio real é o preço relativo entre bens tradables e non-tradables, este se valoriza. A valorização do câmbio real é necessária para levar ao aumento das importações líquidas, que conduzem ao aumento da taxa de investimentos.

Por que canais essa valorização ocorre? Ela pode ser tanto decorrente de uma apreciação do câmbio nominal sem que os preços dos bens non-tradables se alterem no mercado doméstico; quanto de uma elevação dos preços dos bens non-tradables, isto é, através de uma inflação. Observem que em ambos os casos os bens non-tradables tornam-se mais caros em relação aos bens tradables.

Desde 2002 tem ocorrido apreciação do câmbio real. Em grande parte, essa apreciação é explicada pela apreciação do câmbio nominal. Mas a inflação (de bens non-tradables) também teve a sua parte, especialmente depois de 2010, quando se intensificaram as intervenções do Banco Central no mercado à vista, buscando evitar uma apreciação do real com relação ao dólar. Ou seja, nesse período mais recente, a tentativa de impedir uma apreciação do câmbio nominal tem feito com que a apreciação do câmbio real necessária para equilibrar o excesso de absorção doméstica em relação ao produto tenha de ser obtida por meio de maior inflação de non-tradables, como os serviços.

V – COMO AS RELAÇÕES DE TROCA AFETAM AS EXPORTAÇÕES E IMPORTAÇÕES?

Para as exportações como um todo, a valorização do câmbio real com relação à cesta de moedas é compensada pela elevação dos preços das exportações medidos em dólares. Mas os preços dos produtos manufaturados cresceram menos do que os preços dos produtos básicos. Quanto isso representa em termos de perdas de competitividade?

A resposta obviamente não pode ser dada olhando apenas para o câmbio real. Uma medida mais precisa é dada computando-se o produto do câmbio real pelos preços em dólares de manufaturados, semimanufaturados e básicos. Em relação ao câmbio real, podemos tomar como referência o dólar, se considerarmos que as exportações são predominantemente direcionadas para os Estados Unidos ou para países com moedas presas ao dólar (como a China), ou ter como referência uma cesta de moedas, se houver maior diversificação no destino de nossas exportações.

Em relação aos produtos básicos, verificamos que nos últimos anos suas exportações tornaram-se extremamente mais competitivas, pois a elevação de preços de commodities mais do que compensou a valorização das duas medidas de câmbio real. Já para os exportadores de produtos manufaturados para os Estados Unidos e para países com moedas atreladas ao dólar norte americano, a perda de competitividade vem ocorrendo continuamente. Mas ela é bem menor do que a estimada pela valorização do real, e é ainda menor caso se exporte para países cujas moedas também estão em processo de valorização.

O caso das importações é semelhante ao das exportações de produtos manufaturados. Importações provenientes dos Estados Unidos ou de produtos cotados em dólares têm seus preços convertidos em reais mostrando uma queda contínua.

QUAIS SÃO OS CAMINHOS?

Em situações de valorizações transitórias excessivas, como a que vem ocorrendo em resposta à crise internacional, o governo reage intervindo mais pesadamente e/ou “colocando areia nas rodas” dos ingressos de capitais, evitando uma sobrevalorização. A grande maioria dos países lança mão desses instrumentos. O que nos interessa mais de perto, diante da análise exposta neste trabalho, é como reagir ao movimento permanente de valorização do real.

A primeira providência é elevar as poupanças totais domésticas, de forma a tornar o crescimento econômico menos dependente da absorção de poupanças externas. Para isso é necessário redefinir completamente os objetivos da política fiscal. Há alguns anos, quando o Brasil sofria do problema da não sustentabilidade da dívida pública, tinha que gerar superávits primários suficientemente grandes para, dadas a taxa real de juros e a taxa de crescimento econômico, produzir o declínio da relação dívida/PIB. Agora teria que dar um passo além, cortando gastos de custeio em relação às receitas de forma a elevar simultaneamente suas poupanças e os seus investimentos.

A segunda providência é tomar medidas no campo tributário para elevar a competitividade das exportações. É preciso, primeiro, que os impostos sobre o valor adicionado permitam a total isenção nas exportações, o que não existe atualmente com o ICMS. É necessário reformar completamente o ICMS, mantendo as receitas nos Estados, mas com legislação federal, de forma a tolher o poder dos Estados na concessão de incentivos e isenções. O ICMS também teria que ser recolhido de acordo com o princípio do destino, e não da origem, de forma a eliminar o problema da não utilização dos créditos tributários. Também são necessárias uma desoneração da tributação sobre a folha de pagamento e uma queda drástica de impostos sobre energia elétrica e bens de capital.

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[1] O yield corresponde ao rendimento de um título, que pode ser expresso pela soma do rendimento de um título sem risco (o que usualmente é aproximado pela taxa de juros de títulos do governo norte-americano para títulos com características semelhantes aos nossos) com o prêmio de risco. Se o rendimento cai e a taxa de juros sem risco não se altera, isso implica redução do prêmio de risco.

[2] Para simplificar admitimos nula a renda líquida enviada ao exterior. A oferta total de bens e serviços é obtida somando o produto, Y, às importações, M, e a demanda agregada de bens e serviços é  obtida somando o consumo das famílias, C, aos investimentos, I, ao consumo do governo, G, e às exportações, X (a demanda externa). O equilíbrio impõe a igualdade Y+M=C+I+G+X, ou (X-M)=Y-(C+I+G), onde as exportações líquidas, (X-M), são iguais ao saldo nas contas correntes (a renda enviada ao exterior é nula), e (C+I+G) é a absorção. Somando e subtraindo a arrecadação tributária, T, obtemos (Y-T)-C – I+(T-G)=(X-M), onde (Y-T) é a renda disponível. A diferença entre a renda disponível e o consumo é a poupança das famílias, e a diferença entre a arrecadação tributária e o consumo do governo é a poupança do setor público. Ou seja a poupança das famílias é St =(Y-T)-C, e a poupança pública é (T-G)=Sp, e fazendo S=St+Sp obtemos S-I=X-M, ou seja, as exportações líquidas (o superávit nas contas correntes) é o excesso das poupanças sobre os investimentos.

[3] Bens tradables, ou comercializáveis, são bens que são fáceis de serem exportados ou importados. Já bens non tradables são bens que apresentam maior dificuldade de comercialização no mercado internacional (seja para exportação ou para exportação). Podemos aproximar, grosseiramente, bens tradables como commodities e manufaturados, e non-tradables como serviços. Câmbio real depreciado significa, portanto, que os bens comercializáveis estão relativamente caros. Quando o câmbio real se aprecia, o preço dos serviços e outros bens não comercializáveis tende a ficar relativamente mais caro.

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Deve-se proibir a diferenciação de preços entre compras à vista e com cartão de crédito? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=611&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=deve-se-proibir-a-diferenciacao-de-precos-entre-compras-a-vista-e-com-cartao-de-credito https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=611#comments Wed, 15 Jun 2011 12:35:16 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=611 De tempos em tempos a sociedade debate se deve ser permitida a diferenciação de preços entre compras à vista e com cartão de crédito. Sabemos que, na prática, pequenos estabelecimentos concedem descontos para pagamentos em dinheiro ou cheque, mas, formalmente, tais descontos são irregulares.

Os contratos entre as empresas de cartão de crédito e o lojista proíbem diferenciação de preços. Adicionalmente, a Nota nº 103 CGAJ/DNPC/2004, do Departamento Nacional do Ministério da Justiça, esclarece que a diferenciação de preços é considerada abusiva, nos termos do art. 39 do Código de Defesa do Consumidor, por exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva e por significar recusa de venda a quem se disponha a adquirir bens mediante pronto pagamento.

Dois argumentos favoráveis à diferenciação de preços são mais diretos e independem do conhecimento da indústria de cartões. O primeiro é que proibir preços diferenciados fere a liberdade de mercado. Para o lojista, o custo para venda com cartões é diferente do custo para venda à vista ou com cheques. Isso porque, para cada venda com cartão, o lojista é obrigado a pagar uma tarifa, denominada taxa de desconto, que pode ultrapassar 5% do valor da compra, no caso de estabelecimentos pequenos. Além da taxa de desconto, ao vender com cartão, o lojista tem de aguardar trinta dias para receber o valor da venda. Diante das altas taxas de juros no Brasil, essa espera representa um custo adicional não desprezível.

É verdade que outros meios de pagamento também impõem custos ao comerciante: o cheque pode ser devolvido por insuficiência de fundos, e o dinheiro em espécie pode ser roubado. Ainda assim, exceto em situações extremas (como postos de gasolina em regiões onde há muitos assaltos), o mais comum é o lojista arcar com custos mais elevados quando vende com cartão.

Se os custos são diferentes, não há porque obrigar que se cobre o mesmo preço. Do ponto de vista econômico, um bem vendido à vista se diferencia do mesmo bem vendido com cartão, assim como um bem vendido em uma loja de grife é diferente do mesmo bem vendido em uma loja simples.

O segundo argumento favorável à diferenciação de preços é o subsídio cruzado existente quando o preço é único. Como dissemos, o pagamento com cartão embute um custo para o lojista, e esse custo necessariamente é repassado para os consumidores (se não houver o repasse, no longo prazo, a loja terá prejuízo e irá à falência). Se o preço tem de ser o mesmo, o custo será igualmente dividido entre aqueles que pagam com cartão e aqueles que utilizam outros meios de pagamento. A questão que se coloca é: por que quem paga com dinheiro ou cheque deve subsidiar aquele que compra com cartão? Seria tão absurdo quanto exigir, por exemplo, que quem compra arroz tivesse de pagar um pouco mais, para baratear o preço daqueles que compram carne. O subsídio cruzado torna-se ainda mais criticável quando se considera que, em geral, os indivíduos que não têm cartão têm menor poder aquisitivo.

Tratando agora de argumentos contrários, começamos pelo estímulo ao uso de cheques que a diferenciação de preços provocaria. Poucas pessoas andam com dinheiro vivo na carteira, especialmente por questões de segurança. A alternativa mais viável para aproveitarem preços mais baixos para pagamentos à vista seria o pagamento com cheques. Ocorre que, apesar de o cliente não pagar, o custo do cheque é muito elevado: de acordo com o Banco Central, o custo médio de uma transação por meio eletrônico é cerca da metade do custo de transação por outros meios. Do ponto de vista social, portanto, o maior uso de cheques implica desperdício de recursos: a mão-de-obra, os recursos computacionais, o espaço físico e todos os insumos necessários para proceder a confecção, preenchimento e compensação de cheques poderiam ser utilizados em outras atividades, aumentando a eficiência da economia.

Esse argumento é procedente. Mas o problema do uso excessivo de cheques que adviria da diferenciação de preços não decorre da diferenciação de preços, mas do fato de que o preço pago pelo portador pelo uso do cheque é inferior ao custo do serviço. A solução, portanto, não seria proibir a diferenciação de preços entre compras à vista e com cartão, mas instituir uma cobrança para cada meio de pagamento, de acordo com seu custo.

Antes de explicar os demais argumentos contrários e favoráveis, farei uma necessária exposição sobre algumas características da indústria de cartões. Quando pensamos em cartões, vêm logo à cabeça os nomes das bandeiras (Visa, Mastercard, etc), mas, em verdade, a indústria de cartões é composta pelos seguintes participantes:

i)                   portador: é o consumidor final, o indivíduo que utiliza o cartão para fazer compras. O portador paga ao emissor a anuidade do cartão e eventuais juros incidentes sobre saldo devedor não pago. Por motivos que ficarão claros adiante, a anuidade do cartão chega mesmo a ser negativa, nos casos em que o cartão oferece programas de recompensas, como passagens aéreas, acesso a salas VIP, seguros, etc.

ii)                 emissor: normalmente representado por um banco, que se relaciona diretamente com o portador. É o emissor quem analisa a proposta de adesão, determina o limite de crédito, as taxas cobradas do consumidor final e faz o lançamento da fatura. O número de emissores no Brasil é relativamente elevado, cerca de 20 no sistema Mastercard e de 40 no sistema Visa. Os emissores são remunerados pelas tarifas que cobram dos portadores, pelos juros (caso o portador não quite toda a fatura na data de vencimento) e pela tarifa de intercâmbio, a ser explicada a seguir. É importante observar que, como o emissor recebe a tarifa de intercâmbio, pode ser interessante não cobrar (ou até pagar) para o portador ter o cartão, afinal, uma condição necessária para que o banco receba a tarifa de intercâmbio é que ocorram compras.

iii)               credenciador (ou adquirente): é o responsável pelo relacionamento com o estabelecimento comercial. Como o nome sugere, é o credenciador quem credencia o lojista no sistema. Também é responsabilidade do credenciador fazer a captura, transmissão, processamento e liquidação das transações com os cartões da respectiva bandeira. A principal fonte de receita do credenciador é a taxa de desconto, usualmente uma proporção do valor da venda, cobrada do comerciante. A principal despesa do credenciador é a tarifa de intercâmbio, também uma proporção do valor transacionado, pago ao banco emissor. O mercado de credenciamento é muito concentrado no Brasil. Até 2010, havia somente um credenciador para a bandeira Visa – a então Visanet, posteriormente transformada em Cielo – e um credenciador para a bandeira Mastercard – a Redecard. Atualmente, Cielo e Redecard credenciam ambas as bandeiras, e entraram novos concorrentes, como o Banco Santander.

iv)               lojista: ou estabelecimento comercial. É quem aceita o pagamento com cartão. O principal custo em que o lojista incorre é a já mencionada taxa de desconto, paga ao credenciador.

v)                 bandeira: É a marca do cartão, como Visa, Mastercard, Hipercard ou American Express. A bandeira atua como uma espécie de franqueadora da marca, sendo também responsável por estabelecer normas, fornecer infraestrutura básica e realizar atividades de pesquisa e desenvolvimento para o aperfeiçoamento do sistema. Em alguns esquemas, como American Express e Hipercard, a bandeira, emissor e credenciador são unificadas. Já os esquemas Visa e Mastercard, que respondem por mais de 90% das transações, possuem um sistema aberto, com diferentes emissores e credenciadores.

O cartão de crédito é, assim, uma plataforma, conectando o portador ao lojista. Uma característica importante do mercado de cartões é a de ser aquilo que se denomina mercado de dois lados. Em um mercado normal (ou de um só lado), a demanda depende do preço do produto: se o preço do bem ou serviço aumenta, a demanda cai e vice-versa. Já em mercados de dois lados, além do preço do produto, a demanda depende também de como o custo é repartido entre os consumidores finais.

Para entender melhor o contraste entre os dois tipos de mercado, pensemos no caso da tributação. Quando o governo aumenta a tributação, é irrelevante saber se será o consumidor ou o vendedor quem irá pagar o tributo. A demanda dependerá somente do preço final (incluindo impostos) do bem. Mas isso não ocorre em mercados de dois lados. Por exemplo, uma boate, que pode ser vista como uma plataforma de encontro entre homens e mulheres, deverá ter maior clientela se cobrar menos das mulheres. Assim, comparando duas boates com o mesmo preço médio de ingresso, aquela que cobra menos das mulheres deverá ser mais bem sucedida em atrair clientes.

No início da telefonia celular no Brasil, quem recebia a chamada também pagava pela ligação. Isso fazia com que o proprietário do aparelho somente divulgasse seu número para determinadas pessoas, o que reduzia o potencial de ligações. Quando a cobrança passou a recair somente sobre quem fazia a chamada, ampliou-se a divulgação dos números, aumentando o volume das transações. Outro exemplo são os jornais de bairro, usualmente gratuitos para os leitores, mas pagos pelos anunciantes. Se a forma de divisão dos custos fosse diferente, por exemplo, com os leitores passando a arcar com a maior parte dos custos, é provável que a demanda pelo jornal caísse substancialmente.

Na indústria de cartões, ocorre a mesma coisa. Parte importante do sucesso da indústria de cartões é explicada pelo fato de o custo recair quase que exclusivamente sobre o lojista, e pouquíssimo (exceto no que diz respeito aos juros pagos) sobre o portador.

Outra característica importante na indústria de cartões é a presença da chamada externalidade de rede. Um indivíduo só se interessa em adquirir um cartão se souber que haverá um número suficiente de lojas dispostas a aceitá-lo. Já um lojista só irá se interessar em se credenciar para determinada bandeira se souber que há um número suficiente de portadores de cartão daquela bandeira. Portanto, quando um consumidor decide adquirir um cartão, além do benefício próprio, ele está beneficiando toda a rede associada àquele cartão. Da mesma forma, quando um lojista adere ao sistema, ele beneficia indiretamente todos os demais lojistas pois, ainda que marginalmente, o fato de ter uma loja a mais afiliada ao sistema, estimula novos consumidores a adquirir o cartão daquela bandeira, o que, por sua vez, estimula novos lojistas a se credenciarem. O benefício não precificado que um agente causa a outro é denominado externalidade positiva[1]. Como um consumidor, ao adquirir um cartão, gera externalidade positiva, o preço que ela paga pelo serviço deveria ser menor do que o custo que acarreta. Do contrário, ele tenderia a utilizar o serviço menos do que seria considerado socialmente ótimo.

Uma vez feitas as explicações sobre as principais características da indústria de cartões, apresentaremos a seguir outros argumentos contrários e favoráveis à diferenciação de preços.

O mercado de cartões cresceu aceleradamente porque foi possível transferir a maior parte do custo para os lojistas. Isso estimulou a entrada de consumidores no mercado, o que atraiu novos lojistas, o que estimulou mais consumidores a adquirir cartões, etc. Pode-se demonstrar que essa repartição de custos, onde o lojista paga a maior parte, somente é possível se o preço pago à vista for o mesmo pago com o cartão. Em outras palavras, se for possível para o lojista repassar integralmente o custo do cartão para o consumidor, então cada ponta do mercado (consumidores e lojistas) arcarão igualmente com os custos do cartão. E, quando o consumidor passa a pagar mais caro pelo uso do cartão, ele tende a utilizá-lo menos. Mas, ao fazer isso, devido às externalidades de rede, o consumidor prejudica todo o sistema. No limite, a diferenciação perfeita de preços torna o uso de cartão de crédito menos atrativo para os consumidores. Com menos consumidores, menos lojistas se interessarão em se manter no sistema. Esse círculo vicioso se perpetuaria, de forma que a conseqüência da diferenciação de preços seria um encolhimento da indústria, com prejuízos para todos seus participantes.

Pode-se contra-argumentar de duas formas. Em primeiro lugar, o sistema atual, em que os consumidores são desproporcionalmente incentivados a utilizar o cartão, pode levar a um inchamento ineficiente da indústria. Um exemplo dessa ineficiência pode ser observado em padarias, quando clientes utilizam o cartão para pagar pequenas contas com o objetivo de acumular pontos em programas de benefícios. Além do custo direto associado ao processamento dos dados para se fazer o pagamento, existe a externalidade negativa provocada pela fila que se forma. Se o pagamento fosse feito em dinheiro, a transação seria muito mais rápida, economizando tempo dos demais clientes e funcionários, que, em vez de ficar no caixa, poderiam realizar outras tarefas.

Assim, é verdade que a diferenciação de preços possa desestimular o uso do cartão. Mas, se partimos de uma situação em que o uso do cartão é excessivo, pode ser desejável, do ponto de vista de bem-estar social, reduzir o tamanho da indústria.

A segunda contra-argumentação é de ordem prática. É pouco provável que as comerciantes venham a repassar integralmente os custos do cartão para seus clientes. Em primeiro lugar, porque os lojistas auferem benefícios em receber com cartão, como maior segurança. Em segundo lugar, porque, por uma questão de marketing, é comum os estabelecimentos oferecerem serviços adicionais, sem cobrarem a mais por eles. Por exemplo, muitas lojas não cobram para fazer embrulhos de presente, outras oferecem estacionamento gratuito, outras não cobram adicional para entregar em casa. Oferecer a possibilidade de pagamento com cartão sem cobrança adicional seria uma comodidade adicional que a loja ofereceria. Destaca-se que, de acordo com a experiência internacional, nos países onde passou a ser permitida a diferenciação de preços, o repasse da taxa de desconto para os clientes foi baixo.

Finalmente, outro argumento a favor da diferenciação de preços está relacionado com a estrutura de mercado. Conforme dito anteriormente, o mercado de credenciadores é muito concentrado no Brasil. Apesar da maior abertura recente, o mercado de credenciamento continua muito concentrado. Se um lojista quiser aceitar Visa ou Mastercard (as duas principais bandeiras), será praticamente forçado a negociar com a Cielo ou com a Redecard, pois a participação dos demais credenciadores é mínima. Isso faz com que a taxa de desconto (relembrando, a porcentagem das vendas que os comerciantes pagam aos credenciadores) é muito acima da média internacional. Para pequenos lojistas, a taxa chega a exceder 5% do valor da venda.

Em uma estrutura de mercado tão concentrada como essa, a permissão para cobrança de preços diferenciados permite um aumento da concorrência – no caso, não com outros credenciadores, mas com outros meios de pagamento. Por isso, um resultado provável de se permitir a diferenciação de preços será os estabelecimentos continuarem a cobrar o mesmo preço para pagamento com dinheiro ou com cartão, porém incorrendo em um custo mais baixo, devido à redução da taxa de desconto cobrada pelo credenciador.

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Para ler mais sobre o tema:

Freitas, Paulo Springer de: “Mercado de Cartões de Crédito no Brasil: problemas de regulação e oportunidades de aperfeiçoamento da legislação.” Texto para Discussão nº 37, Senado Federal, Brasília. 2007. Texto disponível em:

http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD37-PauloSpringer.pdf

Banco Central do Brasil;Secretaria de Acompanhamento Econômico – Ministério da Fazenda e Secretaria de Direito Econômico – Ministério da Justiça. Relatório sobre a Indústria de Cartões de Pagamento. Banco Central do Brasil, Brasília. 1º Edição. Maio de 2010. Texto disponível em:

http://www.bcb.gov.br/htms/spb/Relatorio_Cartoes.pdf


[1] Sobre o conceito de externalidade, vide o texto “Por que o governo deve interferir na economia?”, publicado neste site.

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https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=611 23
A taxa de juros é a principal causa dos desequilíbrios macroeconômicos do Brasil (e ainda, o Copom pode ser substituído por um computador)? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=474&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-taxa-de-juros-e-a-principal-causa-dos-desequilibrios-macroeconomicos-do-brasil-e-ainda-o-copom-pode-ser-substituido-por-um-computador https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=474#comments Mon, 18 Apr 2011 10:00:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=474 Quando se discutem os problemas macroeconômicos do Brasil, frequentemente surge o diagnóstico de que a causa de nossos males é a alta taxa de juros. Basicamente, há quatro canais pelos quais os juros altos prejudicariam a economia:

i)                   os juros altos desestimulam o investimento, o que, por sua vez, reduz a aumento da capacidade produtiva. Ao final do processo, a economia não cresce e cria-se um círculo vicioso: a baixa oferta provoca mais inflação, que faz os juros subirem mais, que inibe novos investimentos, o que, ao final, leva a taxas de investimento mais baixas;

ii)                 os juros altos também desestimulam o consumo, porque tornam o consumo presente (em contraposição ao consumo futuro) muito caro. O indivíduo passa a considerar mais seriamente a hipótese de consumir menos hoje e utilizar os recursos poupados (acrescidos dos juros) para consumir mais no futuro. Sem ter consumidores, os empresários decidem reduzir sua produção, e diminuem as contratações. Mais gente sem emprego significa menos consumo, e o círculo vicioso se perpetuaria;

iii)               em situações favoráveis no mercado internacional, os juros altos apreciam a taxa de câmbio porque tornam aplicações em títulos brasileiros mais atraentes. A taxa de câmbio apreciada reduziria a competitividade da indústria nacional, prejudicando nossas exportações e emprego;

iv)               os juros altos aumentam o custo da dívida. O governo tem então de desviar cada vez mais recursos do orçamento para pagar a dívida, deixando de realizar gastos considerados mais produtivos, seja investindo em infraestrutura, educação ou em programas sociais.

Pretendo argumentar neste artigo que a taxa de juros não é causa, mas conseqüência de outros desequilíbrios de nossa economia. Para tanto, explicarei como funciona o regime de metas para a inflação. Por falta de espaço, não discutirei a importância de se manter a inflação baixa e estável. Mas, para citar somente um dos problemas com inflação alta, basta lembrar que, quanto mais alta e volátil a inflação, mais difícil se torna fazer previsões sobre inflações futuras. Assim, quanto mais alta a inflação, maior o desestímulo para contratos de longo prazo, com sérios prejuízos para o desenvolvimento econômico.

Explicaremos então por que o regime de metas para a inflação pode contribuir para que a inflação seja mantida em níveis baixos e estáveis. Aproveitaremos a oportunidade para responder a segunda pergunta do título: o Copom (Comitê de Política Monetária, órgão colegiado do Banco Central que decide a taxa de juros) pode ser substituído por um computador? A resposta para essa pergunta é um claro não.

Sinteticamente, um regime de metas para a inflação é um regime em que o banco central utiliza os instrumentos de que dispõe para fazer com que a inflação atinja uma meta pré-estabelecida.

Uma característica fundamental do regime de metas é que a inflação é o único objetivo da política monetária. Ao descartar outros objetivos, como câmbio ou taxa de crescimento do PIB, o regime de metas ajuda a ancorar as expectativas dos agentes, aumentando a previsibilidade da inflação. Não é que câmbio e PIB não interessem para o banco central. Indiretamente, como essas variáveis afetam a inflação, elas influenciam as decisões sobre política monetária.

Há várias críticas no sentido de que o banco central não se importa com o crescimento do PIB. Em primeiro lugar, já vimos que isso é incorreto porque o nível de atividade influencia a inflação. Em segundo lugar, conforme será discutido mais adiante, há situações em que o banco central deve optar por deixar a inflação subir, para não prejudicar o crescimento econômico. Mas, por que o banco central não deve ter o PIB como meta? Trata-se da escolha do instrumento correto para cada tipo de problema. O crescimento do produto é uma variável real, que depende de fatores estruturais da economia, como disponibilidade de capital (físico e humano), de recursos naturais, produtividade, garantia do direito de propriedade e ambiente institucional. A política monetária consegue influenciar o PIB, se muito, no curto e médio prazo. No longo prazo, a política monetária influencia somente o nível de preços. É mais eficiente, portanto, que a política monetária cuide somente dos preços, utilizando os instrumentos de forma a conduzir a expectativa dos agentes econômicos em direção à meta, e deixar que outros instrumentos sejam utilizados para garantir a estabilidade do produto.

No Brasil, a meta é estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e, atualmente, está fixada em 4,5% para o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo, divulgado pelo IGBE), com intervalo de tolerância de 2 pontos percentuais. A meta é estabelecida para o ano calendário. Assim, o Banco Central do Brasil (Bacen) terá cumprido a meta se a inflação acumulada no ano até dezembro ficar entre 2,5% e 6,5%. Se não tiver cumprido, terá de redigir uma carta aberta ao Ministro da Fazenda explicando por que não cumpriu, o que fará para que a inflação retorne à meta e em quanto tempo espera que esse retorno se verifique. Observe que, se ao longo do ano, a inflação acumulada nos doze meses anteriores superar 6,5%, não há problemas: a meta só é aferida em dezembro.

O Bacen dispõe de alguns instrumentos para conter a inflação. O principal deles é o controle da taxa de juros básica da economia, chamada de taxa Selic. A meta para a taxa Selic é decidida nas reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom), que se reúne oito vezes por ano. O Comitê é formado pela diretoria do Banco Central, e a decisão sobre a Selic é tomada pela maioria dos membros, não havendo (e, frequentemente, não ocorrendo) necessidade de unanimidade. Um aumento da taxa de juros ajuda a combater a inflação por meio de dois canais principais: demanda agregada e câmbio.

Um aumento da taxa de juros desestimula o investimento e o consumo, conforme explicado nos primeiros parágrafos deste texto. Diante de uma menor demanda, os preços tendem a cair, o que reduz a inflação. Há também o canal do câmbio, descrito no início do texto: um aumento da taxa de juros estimula a entrada de capital externo no país. Isso aumenta a oferta de divisas, o que faz com que seu preço caia. Visto de outra forma, a queda do preço das divisas corresponde a uma apreciação do real. Isso torna os produtos importados mais baratos, e limita a capacidade de reajuste de preços em reais dos produtos exportáveis. Assim, pelo canal de câmbio, um aumento da taxa de juros também tem o impacto de reduzir a inflação.

Destaca-se que há várias outras taxas de juros na economia: as taxas variam conforme o prazo do empréstimo, conforme o tomador (pessoa física ou jurídica, governo ou setor privado), conforme a modalidade do crédito (cartão de crédito, cheque especial, crédito para aquisição de veículos, financiamento imobiliário, hot money, etc). Ainda assim, as demais taxas tendem a acompanhar a Selic, de forma que, quando a Selic varia, as demais taxas tendem a variar na mesma direção. Dessa forma, ao ter o poder de fixar a Selic, o Bacen consegue influenciar (o que é diferente de determinar) as demais taxas de juros da economia.

Há outros instrumentos à disposição do Banco Central, como alíquota de depósitos compulsórios, requerimento de capital ou a taxa de assistência financeira de liquidez. Mas, para o argumento que se segue, é indiferente discutir qual o instrumento utilizado, de forma que podemos simplificar a exposição nos referindo somente à taxa Selic, ou taxa de juros.

A regra geral para a atuação do banco central em um regime de metas seria aumentar os juros (ou usar outros instrumentos com o objetivo de reduzir a inflação) quando projetar uma inflação acima da meta, e reduzir os juros (ou usar devidamente os demais instrumentos) quando a inflação projetada for inferior à meta.

Mas as decisões do Copom são bem mais complexas do que o descrito acima. Em primeiro lugar, não existe a projeção de inflação. Haverá tantas projeções quantos modelos existentes. Haverá modelos projetando inflação acima da meta, outros abaixo da meta. Haverá ainda modelos projetando inflação acima da meta para o ano corrente, e abaixo da meta para o ano seguinte.

Em segundo lugar, há também incertezas sobre como a inflação reagirá a variações nos juros. Não somente as estimativas oferecem diferentes respostas, como essa reação dependerá de circunstâncias específicas do momento em que a decisão for tomada. Por exemplo, o anúncio de um aumento da taxa de juros terá um impacto mais forte sobre a inflação se a diretoria do banco central gozar de maior credibilidade junto à sociedade.

Em terceiro lugar, a melhor resposta do banco central depende dos choques que atingem a economia: se o choque é de demanda ou de custos.

Choques de demanda são choques associados a aumentos inesperados de componentes da demanda agregada, como consumo, investimento, gastos do governo ou exportações. Por exemplo, um aumento de gastos do governo; um estado de maior euforia da população, que estimula o consumo (digamos, em decorrência de ganhar a Copa do Mundo); ou um aumento da demanda externa por nossas exportações.

Já choques de custos estão normalmente associados a fatores que aumentam os custos de produção, ou a variações na oferta. É o caso de quebras de safra, de uma mudança no estado de confiança dos mercados internacionais (que afetam diretamente a taxa de câmbio), de aumentos salariais acima da produtividade do trabalho (por exemplo, em decorrência da fixação de um novo salário mínimo) ou de tragédias naturais.

A reação dos juros também depende da duração esperada do choque. O problema é que só sabemos a duração do choque quando ele termina. Quando o Copom se reúne, tem de definir a taxa Selic sem saber qual será a duração desse choque (por exemplo, quanto tempo durará a crise financeira internacional).

De acordo com a teoria econômica, o banco central deve tentar neutralizar integralmente o impacto inflacionário de choques de demanda. Intuitivamente, choques de demanda tendem a aumentar a inflação e deixar a economia superaquecida (produzindo acima daquilo que é capaz de produzir em condições normais). Um aumento da taxa de juros teria o efeito simultâneo de pressionar a inflação para baixo e permitir que a economia volte a operar em um ritmo normal.

Já choques de custos tendem a pressionar a inflação e a levar a economia para uma situação de desemprego porque desestimulam a produção. Se o banco central tentar neutralizar totalmente o impacto inflacionário de um choque de oferta, aumentando os juros, poderá ser bem sucedido em fazer a inflação voltar para a meta, mas agravará o problema do desemprego. Por esse motivo, a teoria recomenda que o banco central acomode parcialmente um choque de oferta, deixando a inflação subir um pouco, para preservar o produto no curto prazo.

Observe que isso não é contraditório com o fato de o banco central ter como único objetivo controlar a inflação. Está-se apenas sacrificando um pouco da inflação para evitar uma queda forte do produto no curto prazo, o que é diferente de dizer que a política monetária está orientada para garantir que o crescimento do PIB atinja determinado nível. Por outro lado, se o custo a ser pago pela manutenção do crescimento do PIB for uma forte aceleração da inflação, o banco central poderá optará por elevar os juros e manter a inflação na meta.

Novamente, a teoria é bem mais fácil que a prática. Muitas vezes, o mesmo fenômeno traz impactos semelhantes a choques de demanda e de oferta, simultaneamente, e em sentidos opostos. Por exemplo, no início da crise financeira internacional, no segundo semestre de 2008, o aumento da aversão ao risco fez com que houvesse uma tendência de desvalorização do real. Isso corresponderia a um choque de custos. Mas, ao mesmo tempo, a crise financeira empurrou o mundo para uma recessão, o que provocou queda no preço das commodities e na demanda por nossas exportações. Isso corresponde a um choque negativo de demanda. Coube ao Banco Central avaliar qual desses impactos seria o mais relevante para a nossa trajetória de inflação.

Outro exemplo de evento com conseqüências em direções opostas é o terremoto acompanhado de tsunami que atingiu o Japão em março. Por um lado, há um claro choque de oferta: perda de capital físico, problemas para geração de energia, e os estragos em geral diminuíram a capacidade produtiva da economia e, portanto, tem um impacto inflacionário em todos os países que têm vínculos econômicos relevantes com o Japão. Mas a tragédia natural trouxe também uma forte deterioração nas expectativas dos agentes acerca do ritmo da atividade econômica, o que pode ser interpretado como um choque de demanda negativo, com impacto deflacionário.

Todas as incertezas colocadas acima mostram o quão difícil e subjetivo deve ser a decisão a respeito da taxa de juros. Ao contrário do que muitos supõem, a decisão sobre taxa de juros pode ser tudo, menos mecanicista. Modelos econômicos podem ajudar a orientar o Copom, mas a decisão é, antes de tudo, subjetiva: a opção entre diferentes modelos de previsão; a interpretação da natureza do choque; e o quanto o Banco Central está disposto a tolerar de inflação para reduzir o sacrifício em termos de produto; tudo isso depende da interpretação e das preferências de cada membro do Comitê.

Tendo respondido a segunda pergunta (o Copom pode ser substituído por um computador), retornemos à primeira pergunta: os juros são a causa de nossos problemas?

Ora, se os juros constituem uma ferramenta para conter as pressões inflacionárias, as causas de nossos problemas não podem ser os juros. O problema está nos fatores que causam as pressões inflacionárias. Nos últimos anos vimos que, dificilmente, conseguimos sustentar taxas anualizadas de crescimento de 4,5% a.a. por vários semestres seguidos, sem pressionar a inflação. O Banco Central é então obrigado a reagir, aumentando a taxa de juros. Mas, e se o Bacen não reagisse? A economia continuaria crescendo indefinidamente a 5% a.a.? A resposta é não!

A inflação é resultado de um excesso de demanda em relação à oferta (seja porque a demanda aumentou ou porque a oferta diminuiu). Quando o Banco Central aumenta os juros, o desequilíbrio entre demanda e oferta é solucionado, principalmente, via redução da demanda (embora não se possa ignorar que a apreciação cambial permite um aumento da oferta de bens, via importações).

Se o Banco Central não reagir, o equilíbrio, a solução de mercado é um aumento da inflação, pois o aumento de preços reduz a renda real e desestimula a demanda (também é possível um impacto favorável sobre a oferta, pois aumentos de preços estimulam as empresas a produzir e vender mais, mas esse impacto tende a se reduzir à medida que a inflação se torna mais alta e menos previsível).

É possível também uma solução extra-mercado, por exemplo, um racionamento. O racionamento faz justamente o papel do aumento de preços para conter a demanda, porém, de forma mais ineficiente e insustentável no longo prazo. Ou seja, em todas as opções, a economia retornará para um novo equilíbrio, com demanda (e, consequentemente, renda) menor. A diferença é que, com o Banco Central atuando de forma correta, esse equilíbrio é atingido com inflação mais baixa.

E por que não aumentar a oferta? Em primeiro lugar, isso é muito difícil no curto prazo (a não ser via aumento de importações). No médio e longo prazos, é possível, aumentando a produtividade da economia e os investimentos. Mas, para tanto, são necessárias diversas reformas, frequentemente divulgadas na imprensa: redução do tamanho do Estado na economia; maior eficiência dos gastos públicos, com aumento da proporção de investimentos em relação aos gastos correntes; maior investimento (público e privado) em educação e qualificação de mão-de-obra; melhoria do ambiente institucional, com maior garantia para cumprimento de contratos; e aumento da poupança pública e privada, necessário para financiar o aumento de investimentos[1]. Para tanto, devem-se aprovar reformas que reduzam os gastos públicos e o consumo privado. Desvinculação do uso de receitas governamentais, redução de gastos obrigatórios, uma política mais realista para o salário mínimo e uma reforma da previdência que migrasse para o regime de capitalização individual poderiam contribuir para o aumento da poupança doméstica.

Em suma, a taxa de juros Selic é um instrumento para conter a inflação no curto prazo. Garantir as condições para crescimento mais acelerado e inflação mais baixa no longo prazo depende de políticas e instrumentos que estão fora do controle do Banco Central, e que devem ser da responsabilidade de todo o governo, em especial dos Ministérios da Fazenda e do Planejamento.

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Leituras sugeridas

CLARIDA, Richard,  Jordi Gali e Mark Getler: “The Science of Monetary Policy: A New Keynesian Perspective.” Journal of Economic Literature. Vol. XXXVII (December, 1999), p. 1661-1707.

FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL. “Does Inflation Targeting Works in Emerging Markets?” in World Economic Outlook September 2005. IMF Graphics Section. Washington, DC, Estados Unidos, 2005. Texto disponível em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2005/02/pdf/chapter4.pdf


[1] Há uma identidade básica em economia que diz que poupança é igual a investimento. Em situações normais, se a poupança doméstica é menor do que o investimento, a diferença pode ser suprida via poupança externa, que corresponde ao déficit em transações correntes. O Brasil tem hoje uma poupança doméstica de 16% do PIB. Se quisermos atingir níveis de investimento da ordem de 25% do PIB, será necessária poupança externa, ou déficit em transações correntes, de 9% do PIB. Trata-se de um fluxo extremamente alto e improvável – usualmente, déficits em transações correntes permanentemente acima de 5% já levam um país à crise cambial –, o que aponta para a necessidade de aumento de nossa poupança doméstica.

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https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=474 32
Qual a diferença entre regime de partilha e regime de concessão na exploração do petróleo? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=348&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=qual-a-diferenca-entre-regime-de-partilha-e-regime-de-concessao-na-exploracao-do-petroleo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=348#comments Mon, 14 Mar 2011 23:20:30 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=348 No final de 2009, o Poder Executivo enviou ao Congresso Nacional quatro projetos de lei que tinham por objetivo instituir um novo marco regulatório para a exploração do petróleo no País. A principal alteração proposta foi a introdução do regime de partilha, que passará a substituir o atual regime, de concessão. Em 22/12/2010 o Poder Executivo sancionou a Lei no 12.351, de 2010, que instituiu o regime de partilha.

O objetivo desta Nota é explicar a diferença entre os regimes de concessão e de partilha, realçando alguns argumentos utilizados durante o debate do projeto de lei.

O regime de partilha e de concessão

Mesmo reconhecendo a diversidade de arranjos institucionais entre os diferentes países, a característica comum entre os diferentes regimes de concessão é que o concessionário é dono de todo o petróleo que produz. Já no regime de partilha, o Estado é o dono do petróleo produzido.

A diferença de titularidade entre os diferentes regimes leva à falsa impressão –extensivamente utilizada pelos defensores do regime de partilha – de que, na concessão, a empresa ganha mais, enquanto que, na partilha, é o Estado (e, consequentemente, a sociedade) é quem sai ganhando. Nada mais equivocado!

Receitas do governo em cada regime

Ambos os regimes implicam remunerações para o Estado. No caso da concessão, a empresa concessionária é, de fato, dona do petróleo. Mas é obrigada a pagar diferentes participações governamentais. No caso do Brasil, as principais obrigações da concessionária são o pagamento do bônus de assinatura, dos royalties e da participação especial.

O bônus de assinatura é um pagamento que a empresa faz quando assina o contrato de exploração, para ter direito de explorar determinado campo. O valor do bônus de assinatura é definido em leilão, sendo vencedora a empresa que oferecer o maior valor (além de outros critérios, como participação de equipamentos produzidos no país e plano de exploração). Usualmente, o bônus de assinatura não chega a representar 10% da arrecadação governamental. Em 2010, por exemplo, o governo arrecadou R$ 170 milhões com bônus de assinatura, menos de 1% dos R$ 21 bilhões arrecadados com todas as rendas advindas da exploração de petróleo.

Os royalties correspondem a uma alíquota incidente sobre o valor de produção do campo. Assemelha-se, assim, a uma espécie de imposto sobre faturamento. Atualmente, a alíquota mínima é de 5%, e a máxima, de 10%. Na prática, quase todos os campos pagam 10% de royalties.

A participação especial está regulamentada pelo Decreto no 2.705, de 1998. Ela é devida somente em campos de alta produtividade e suas alíquotas, progressivas de acordo com a produtividade do campo, incidem sobre uma espécie de lucro do campo, podendo chegar a 40%. A participação especial assemelha-se, assim, a um imposto sobre lucro. Em valores, royalties e participação especial vêm arrecadando, cada rubrica, cerca de R$ 10 bilhões ao ano. A tendência, contudo, é da participação especial crescer com a descoberta de campos (já leiloados sob o regime de concessão) de maior produtividade, na área do pré-sal.

No regime de partilha, conforme dito anteriormente, a União é dona do petróleo extraído. Obviamente, nenhuma empresa extrairia petróleo se não fosse remunerada para tal. O que ocorre é que a parceira tem direito à restituição, em óleo, do custo de exploração – essa parcela é chamada de custo em óleo – e de uma parcela do lucro do campo – essa parcela é chamada de óleo excedente, ou seja, a parcela de óleo que excede os custos de exploração. O nome partilha deriva justamente do fato de as empresas partilharem com o governo o óleo excedente. Ao final do processo de exploração, a parceira será dona do custo em óleo e de sua parcela de óleo excedente. Já o governo não receberá todo o petróleo produzido, mas somente sua parcela de óleo excedente.

Observem a semelhança entre a parcela do óleo excedente que fica com a União e a participação especial: ambas equivalem a uma alíquota incidente sobre o lucro obtido com a exploração do campo. Há, entretanto, uma diferença importante entre as duas formas de arrecadação, na forma como o regime brasileiro foi instituído. No Brasil, as alíquotas de participação especial são definidas por decreto. Já a parcela de óleo excedente pertencente à União é definida em leilão, sendo o direito de exploração outorgado à empresa que oferecer a maior alíquota. O negrito colocado há pouco é importante para lembrar que nada impede que, no regime de concessão, o critério de outorga seja baseado na empresa que ofereça maior alíquota para participação especial.

Além da participação do óleo excedente, o regime brasileiro de partilha também prevê a cobrança de royalties e de bônus de assinatura. Dessa forma, é óbvio que não há motivos para acreditar que um regime permite maior arrecadação do que outro. Tudo dependerá das alíquotas estabelecidas e dos resultados dos leilões.

É falsa, portanto, a afirmativa de que, em um regime de concessão, o Estado arrecada pouco. No Brasil, o montante que o Estado arrecada é uma decisão do Chefe do Poder Executivo. Afinal, as alíquotas da participação especial são definidas por decreto, sem necessidade de aprovação por parte do Congresso.

O debate entre partilha e concessão, entretanto, não se restringe à suposta diferença de arrecadação. Os que defendem o regime de partilha também realçam o fato de o Estado, por ser o dono do petróleo, consegue utilizá-lo de melhor forma. Novamente, trata-se de um argumento equivocado.

Há vantagens em o Estado ser o dono do petróleo?

Para os que defendem o regime de partilha, há as seguintes vantagens em o Estado ser dono do petróleo:

i)                    Pode controlar melhor o ritmo de produção;

ii)                  Pode controlar melhor a venda do petróleo para o exterior;

iii)                Pode fazer política industrial.

Sobre o item i, é importante entender que o regime de partilha, per si, não tem nenhuma relação com o ritmo de produção. Afinal, a partilha somente diz respeito ao quinhão a que o Estado tem direito após a produção já realizada. Ocorre que, no regime brasileiro, foi criada uma empresa estatal – a PetroSal – que tem por atribuição gerir os contratos de partilha. A PetroSal deverá também indicar metade dos assentos nos comitês operacionais, que são comitês responsáveis por importantes decisões relativas às operações dos campos, inclusive relativas ao ritmo de produção.

Sendo assim, de fato, no regime brasileiro de partilha, o governo terá maior controle sobre o ritmo de produção. Isso não necessariamente significa melhor controle. Os que defendem esse controle argumentam que, sem ele, corremos o risco de explorarmos e vendermos nosso petróleo quando o preço estiver ruim, e, quando a situação melhorar, nos virmos obrigados a importar a um preço maior. Um exemplo muito citado na literatura é o da Indonésia, que teria exportado quase todo o seu petróleo quando seu preço estava baixo e hoje, com os preços altos, não consegue sequer ser autossuficiente.

Há duas formas de entender o controle de produção. Uma é a sintonia fina: ao longo de um contrato de partilha (ou de concessão), o preço do petróleo flutua. Corre-se o risco, de fato, de a empresa, ao longo desse contrato, produzir (e vender) muito quando o petróleo estiver barato, e tiver exaurido seu campo quando o petróleo tiver caro. Ocorre que é mais provável que a própria empresa consiga acertar nas previsões (afinal, ela é a mais diretamente interessada nisso), do que um burocrata do governo encarregado disso. Certamente, não é a maior intervenção estatal que conseguirá melhorar o timing da exploração, para que sejam melhor aproveitados os períodos de alta do preço do petróleo.

Outra forma de entender o controle de produção é sob o ponto de estratégico. Independentemente do que ocorrer, pode ser importante para o País dispor de reservas no futuro, por exemplo, para garantir uma produção mínima de derivados, permitindo-nos enfrentar situações com fortes limitações para importação, como em guerras. Se o objetivo é garantir que tenhamos reservas no futuro, só há uma solução: postergar a licitação para quando se julgar conveniente iniciar a exploração. Isso, claramente, independe do regime de outorga, se de licitação ou de partilha.

O controle sobre a quantidade de petróleo que se exporta está muito associado com o que foi discutido anteriormente. Se há um objetivo estratégico de manter as reservas para garantir o abastecimento interno no futuro, a solução é não explorar, e isso independe do regime de outorga. Para a sintonia fina, o governo dispõe de outros instrumentos, como impostos sobre exportação ou quotas.

Resumidamente, se o governo quer garantir o suprimento futuro de petróleo, a solução é adiar a sua exploração. Isso independe do regime de outorga.

Por fim, no regime de partilha, o governo, por ser dono do óleo, pode utilizá-lo para outros fins, como firmar posições geopolíticas ou fazer política industrial. O governo poderia vender o petróleo a um preço abaixo do praticado no exterior para nações amigas, a exemplo do que faz atualmente a Venezuela. Similarmente, o governo pode vender o petróleo a um preço abaixo do mercado para determinados setores que tem interesse em desenvolver, por exemplo, para a indústria petroquímica.

Quando o governo vende petróleo abaixo do mercado, está, de fato, subsidiando o comprador. Com isso, pode favorecer determinado setor de atividade que, de outra forma, não teria competitividade. Não cabe aqui discutir os méritos de uma política industrial, mas somente a necessidade da partilha para implementá-la.

Em um regime de partilha, o subsídio implícito corresponde à diferença entre o preço pago pelo comprador e o preço que ele pagaria se tivesse de comprar no mercado. Esse mesmo subsídio pode ser dado em um regime de concessão: o governo destinaria parte da receita arrecadada para a empresa que quer beneficiar. A diferença é que esse processo, no caso brasileiro, teria de ser feito via orçamento e sujeito, portanto, à discussão com o Parlamento. Em particular, surgiria naturalmente o debate se os recursos deveriam ser realmente transferidos para as empresas que se pretende beneficiar, ou se haveria outras prioridades, como infraestrutura, educação ou saúde.

Ou seja, o governo também pode fazer política industrial em um regime de concessão, e de forma mais transparente do que no regime de partilha. Esse talvez seja o ponto em que, claramente, o regime de concessão é superior ao de partilha. Nos demais, os dois regimes parecem ser equivalentes, sendo que um será melhor ou pior que o outro dependendo das especificidades de cada país.

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