Marcos Köhler – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 08 Nov 2017 13:33:56 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Aperte os cintos: a passagem aérea subiu https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3091&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=aperte-os-cintos-a-passagem-aerea-subiu https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3091#comments Wed, 08 Nov 2017 13:33:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3091 Desde junho deste ano, as empresas de aviação estão cobrando pela primeira bagagem despachada nos voos nacionais, conforme autorização concedida pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC). Além disso, as passagens sem direito a bagagem despachada não dão direito a qualquer reembolso, em caso de não utilização. Assim, quem opta por não pagar a bagagem, abre mão de eventual restituição.

Considerando o modelo de cobrança da tarifa de despacho adotado pelas empresas aéreas e a extinção do reembolso, tudo indica que a medida resulta em aumento da receita média por passageiros e não, como alega a ANAC, a extinção do subsídio cruzado que existiria dos passageiros que não despacham bagagem em benefício dos que despacham.

Segundo a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (ABEAR), a média mensal de passageiros pagantes em 2017 está em 7,4 milhões, até setembro, e dois terços desses passageiros estão adquirindo bilhetes sem direito a bagagem despachada, após a vigência da cobrança. As empresas estão cobrando um valor fixo de R$ 30 por bagagem. A receita anual decorrente desta cobrança será, portanto, de aproximadamente R$ 900 milhões, valor pouco maior que o prejuízo operacional de R$ 700 milhões absorvido pelas companhias nacionais em 2016.

As empresas argumentam que a cobrança não significa um aumento de preços médios, mas apenas a eliminação do subsídio cruzado, em que os passageiros que não despachavam bagagem arcavam com parte dos custos dos que utilizavam o serviço. A ABEAR assim se pronunciou oficialmente: “Defendemos justiça tarifária. (…) A bagagem nunca foi gratuita – sempre esteve diluída no preço dos bilhetes. Não concordamos que esses custos tenham que ser divididos entre todos os passageiros”.

Os preços de passagens são voláteis. Há variações incríveis de preço de acordo com a data do voo, o período do dia, a antecedência da compra, os custos do combustível, a cotação do dólar e a intensidade da atividade econômica. É muito difícil, apenas 4 meses depois da mudança, estimar com grau aceitável de confiança se o valor médio das passagens sem direito a bagagem realmente teve queda suficiente para compensar a cobrança da tarifa nos demais bilhetes. Como alertou Maurício Schwartsman neste blog, o próprio aumento dos preços médios das passagens nacionais apurados nos índices do IBGE e da FGV (de 36% e 17%) entre junho e setembro não pode levar automaticamente à conclusão de que tenha havido elevação sistemática dos ganhos das empresas: o aumento da média pode ter ocorrido por variação sazonal, aumento da atividade econômica ou elevação do preço do combustível – ou uma combinação das três hipóteses.

Há ainda dúvidas sobre se as mudanças no critério de apuração do preço das passagens – que passou a incorporar o custo da remessa de bagagem – não estariam superestimando a elevação de preços médios.

De fato, estudos mais robustos e confiáveis só poderão ser feitos dentro de alguns meses, quando haverá dados suficientes para se avaliar se as variações nos preços das passagens não são decorrentes de outros fatores de oferta e demanda. A expectativa é que, isolados outros efeitos, seja possível estimar com precisão se a nova regra terá efetivamente baixado os preços das passagens sem direito à franquia de bagagem.

Por outro lado, já é possível julgar se o modelo de tarifação da bagagem despachada adotado pelas empresas é consistente com a argumentação de que a medida não tem por finalidade expandir seu lucro, mas apenas eliminar o subsídio cruzado do serviço, imputando os custos incorridos com o serviço apenas aos usuários que o utilizam.

Nessa perspectiva, o que se espera é que o modelo de cobrança de tarifas onere os usuários que despacham bagagens em montante equivalente ao custo do serviço. Isso não está ocorrendo. As maiores empresas estão cobrando uma tarifa fixa de R$ 30, que independe dos custos variáveis, como a distância do voo, o peso da bagagem e o número de conexões previstas. O passageiro que despacha uma mala de 10 quilos de Brasília a Goiânia em um voo direto está pagando o mesmo que um passageiro que despache 23 quilos de Manaus a Porto Alegre, em voo com uma conexão.

Talvez a explicação esteja então nos custos fixos? Também não. Os custos fixos são aqueles necessários à construção e à manutenção da estrutura física de despacho de bagagens (guichês de recepção, balanças, esteiras, espaço na aeronave, estrutura de desembarque e entrega no aeroporto de destino) e à manutenção de uma equipe mínima de funcionários.

Os custos fixos são decorrentes da escala prevista de operação. Se a escala adotada é suficiente para atender, digamos, 60% dos passageiros, o custo dessa infraestrutura irá se manter durante toda a sua vida útil, ainda que nem metade desse percentual demande o serviço após a cobrança. É como o caso do Estádio Mané Garrincha, em Brasília: ainda que não haja um só espectador, as despesas anuais de manutenção e de pagamento do custo financeiro da obra continuarão a ser pagos. Nem se o estádio fosse implodido, os custos do endividamento desapareceriam. Na verdade, é possível demonstrar que, para uma empresa, é racional, no curto prazo, não cobrar ou cobrar apenas parcialmente os custos fixos, se essa for a condição necessária para obter alguma receita líquida de custos variáveis.

Assim, ainda que haja redução imediata do número de bagagens, isso não reduzirá os custos fixos de operação e, portanto, não haverá benefícios para os que não despacham ou deixarem de despachar bagagens.

Se, segundo o modelo adotado, os custos variáveis não estão afetando a tarifa e se os custos fixos não podem afetá-la no curto e no médio prazo, pode-se afirmar com certeza que o modelo de cobrança adotado não se presta a eliminar o subsídio cruzado – o motivo alegado pela ANAC e pela ABEAR para introdução da cobrança.

Aperte os cintos: a passagem aérea subiu.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3091 2
CAESB: saneamento básico, preço de luxo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2384&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=caesb-saneamento-basico-preco-de-luxo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2384#comments Mon, 09 Feb 2015 10:31:41 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2384 Na revisão anual das tarifas de água e esgoto do Distrito Federal para 2015, que acaba de autorizar, a Agência Reguladora de Água, Energia e Saneamento Básico do DF– ADASA – não deixou por menos: 16,2%, quase 10 pontos percentuais acima da inflação. Enquanto isso, a SABESP, concessionária de São Paulo, foi autorizada a reajustar suas tarifas em 6,5%, índice compatível com a inflação do período de referência.

Conceder aumentos muito acima da inflação para esses serviços tem sido a prática da ADASA. Com isso, a agência tem chancelado o descontrole operacional e financeiro que caracteriza a gestão da Companhia de Saneamento do DF (CAESB) nos últimos anos. Exatamente o oposto do que deveria fazer: cobrar eficiência na gestão da concessionária pública, em obediência ao seu mandato de defender os interesses dos consumidores e preservar a viabilidade financeira da prestação dos serviços.

A observação de alguns poucos indicadores de desempenho da CAESB é suficiente para demonstrar que a empresa vem dissipando os generosos aumentos recebidos ao longo do último quinquênio, com visível queda na sua capacidade de geração de caixa livre.

Os dados do Gráfico 1 mostram que a folha de pagamentos da empresa vem crescendo a taxas significativamente maiores que as da receita operacional – que é a soma de todas as contas de consumidores ao longo do ano. Mesmo contando com um crescimento exuberante de 55% no faturamento no período, a CAESB não conseguiu manter estável a relação entre o faturamento e a folha. A despesa com pessoal mais que dobrou – um aumento de 105%, frente a uma inflação de 25,2% (IPCA anual julho a junho – base 2009). Isso significa que a folha teve um crescimento real de 63,6%.

Gráfico 1.

img_2384_1

 

O forte aumento real do faturamento da CAESB não se deu somente pela elevação de tarifas unitárias (por m3 cúbico de água e esgoto) e pela expansão do volume de serviços prestados. Parcela representativa do aumento da tarifa média é decorrente da extinção, na prática, da categoria “residencial popular”, como se vê no Gráfico 2. Os consumidores “residenciais normais”, que, em 2010, representavam 50,2% dos consumidores, agora representam 94,0%! O percentual de consumidores “residenciais populares” caiu de 44,4% para 0,1%. Isso quer dizer que apenas 1 em cada 1000 consumidores do DF é ainda enquadrado nessa categoria, quando em 2010 a proporção era de 444 para mil.

Gráfico 2.

img_2384_2

 

O aumento de preços ao consumidor causado por essa reclassificação é significativo: 33,7%. Para exemplificar, 1.000 litros de água na tarifação inicial da CAESB para as “residências populares” custariam hoje R$1,66 – caso o segmento não tivesse sido extinto; já para os consumidores “residenciais normais” a tarifa é de R$ 2,20. Como se vê, além de avançar nos preços bem acima da inflação, a política de preços do saneamento no DF é ainda mais abusiva contra os mais pobres.

Os subsídios nos sistemas de saneamento básico no Brasil são cruzados. Consumidores de maior poder aquisitivo pagam mais caro, porque níveis maiores de consumo têm tarifas unitárias maiores. Duas variáveis determinam o grau de subsídio: o nível do consumo (quanto menor o consumo, menor o preço unitário) e a classificação sócio-econômica. O subsídio por volume de consumo é bastante eficaz, no sentido em que é autorregulável. Se o consumidor passa a consumir mais, sua tarifa média sobe, sem necessidade de qualquer controle burocrático, pois faixas de consumo mais elevadas têm tarifa mais alta. Se houve redução dos beneficiários do subsídio pelo critério sócio-econômico, deveria ter havido queda concomitante nas tarifas mais altas, mantendo fixa a tarifa média.

Voltando ao Gráfico 1, a tarifa média faturada pela CAESB cresceu 40% no período de 2009 a 2013 – saindo de R$ 2,80 (por mil litros de água e esgoto) para R$ 3,89 – frente a uma inflação de 25,2%.

A disparada das tarifas unitárias explica a forte elevação do faturamento real da CAESB (descontada a inflação) de 23,8%, enquanto a produção cresceu menos da metade desse percentual: apenas 11,7%: saiu de 308 milhões de m3, em 2009, para 344 milhões de m3, em 2013, como mostra o Gráfico 3.

Gráfico 3.

img_2384_3

 

Outra tendência preocupante vista no Gráfico 1 é a compressão dos gastos com insumos de terceiros, que tiveram crescimento de 17,6% entre 2009 e 2013, inferior ao índice de inflação do período (de 25,2%). Isso pode ser um indício de possível canibalização da rede e dos equipamentos da empresa, embora sempre exista a possibilidade de que essa redução de custos esteja relacionada a ganhos de eficiência. Ao mesmo tempo, mostra a desproporção entre o aumento da folha de pagamento e os demais custos de operação. A título de comparação, a Sabesp gerou, em 2013, receita bruta de aproximadamente R$ 12,9 bilhões e gastou com pessoal 1,6 bilhão, uma percentagem de 12,4%. Já a CAESB faturou R$1,3 bilhão e despendeu R$ 556 milhões com folha de pagamento, uma proporção de 42%, o equivalente a 3,5 vezes o gasto relativo com pessoal da SABESP.

Existem outras anomalias flagrantes. O Gráfico 4 demonstra que o lucro líquido vem sendo erodido. A erosão do lucro e o encolhimento dos gastos com terceiros são indícios de que a empresa talvez se torne incapaz de manter e expandir sua rede nos níveis requeridos pelo consumo de uma população crescente. Também grave e anômala é a tendência de crescimento da parcela do lucro distribuída aos empregados, em detrimento do acionista majoritário – o GDF. Em 2011 se deu o caso mais alarmante dessa prática perdulária: apesar da queda expressiva no lucro, os empregados amealharam participação de R$ 9,5 milhões, mais do que o dobro do que restou ao acionista controlador, meros R$ 4 milhões. Em 2012, com aumento no lucro, a participação dos empregados foi de R$ 37,6 milhões, ou 70% do que foi destinado ao GDF. No caso da SABESP, a participação no lucro dos empregados, em 2013, foi de R$ 68,5 milhões, diante de um lucro líquido de R$ 1,9 bilhões, uma proporção de 3,6%.

Gráfico 4.

img_2384_4

 

Diante da atual crise hídrica de São Paulo, poder-se-ia argumentar que, apesar dos bons indicadores financeiros, a Sabesp não é um exemplo a ser seguido. Em relação a essa crítica, há duas réplicas possíveis. A primeira é que a situação no Distrito Federal é confortável somente em função de investimentos pesados feitos antes de 2009 e de uma hidrologia mais favorável que vem atingindo a região. De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, no quadriênio 2010-2013, a Sabesp investiu R$ 9,6 bilhões, ante R$ 600 milhões da Caesb. Como proporção do faturamento, esses gastos correspondem a 26% e 13%, respectivamente. Assim, a crise hídrica de São Paulo se deve, muito provavelmente, a alguma falha de planejamento da estatal, mas não a insuficiência de investimento. Pelo nível dos investimentos da CAESB, se a situação hidrológica fosse igual, talvez os efeitos sobre o Distrito Federal fossem piores.

Em resumo, o que se vê na CAESB é a subordinação do interesse público às demandas salariais das corporações – em prejuízo da eficiência do serviço e dos consumidores e contribuintes, especialmente os mais pobres. O mesmo padrão de captura que levou a administração direta do Distrito Federal à falência. É preocupante que esse modus operandi venha contando com a prestimosa complacência da agência reguladora, que, assim, parece ter perdido a noção de sua finalidade.

É preciso que a ADASA explique seus critérios de tarifação. De outro modo, o saneamento básico no DF acabará se tornando artigo de luxo.

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2384 10
Mortes de policiais no Brasil: por quem os sinos dobram? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2351&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=mortes-de-policiais-no-brasil-por-quem-os-sinos-dobram https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2351#comments Thu, 04 Dec 2014 14:26:41 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2351 Any man’s death diminishes me, because I am involved in Mankind; And therefore never send to know for whom the bell tolls; It tolls for thee.

John Donne

 

A taxa anual de mortalidade de um policial em serviço no Estado de São Paulo no 4º trimestre de 2013 foi de 41,81 por 100 mil policiais 2, praticamente 4 vezes a taxa prevalecente na população em geral, de 11 por 100 mil. Mantida essa taxa, um policial em cada 2.400 será morto por ano. Ao longo de 25 anos de carreira a mortalidade esperada de um policial paulista será de 1,1 para 100.

Já no Rio de Janeiro, o número de policiais assassinados – em serviço ou em folga – é de 1 para 377 neste ano de 20143, ou de 265 homicídios por 100 mil. No Rio de Janeiro especialmente, os criminosos não têm feito, quando atacam policiais, a sutil diferenciação entre militar em serviço ou de folga. A taxa de homicídios na população em geral no Estado é de 28,9 por cem mil – nove vezes inferior à enfrentada pelos policiais.

Mantida essa taxa, um policial militar do RJ que conseguir sobreviver aos 25 anos de carreira observará que a tropa terá perdido 1 membro para cada 14, o equivalente a uma mortalidade de 7%.

A comparação desse dado com outras causas de mortalidade é alarmante. Entrar para a Polícia Militar do Rio de Janeiro, atualmente, é quase tão perigoso quanto ser acometido por melanoma de pele (8,7% de mortalidade)4 e bem mais perigoso do que desenvolver câncer de tiroide (2,3% de mortalidade). De fato, ser PM do RJ é 6 vezes mais letal do que desenvolver câncer de próstata (mortalidade de 1,1%).

Nos Estados Unidos, entre 2007 e 2013, a média de policiais mortos em enfrentamento com criminosos foi de 50,1 por ano5, para um contingente de aproximadamente 700 mil policiais e uma população de cerca de 300 milhões. A taxa de homicídios dolosos nos EUA é de 4,7 por 100 mil6, enquanto a taxa de policiais assassinados em confronto no período indicado foi de 7,1 por 100 mil, equivalente a 1,5 vez à da população em geral. A taxa de mortes anual por 100 mil entre policiais americanos é, portanto, 1/6 da observada entre a Polícia Militar de São Paulo e 37 vezes menor que a enfrentada pela PM do Rio de Janeiro. Já o número de policiais mortos por milhão de habitantes ficou em 6,8 no RJ; 0,82 em SP; e 0,17 nos Estados Unidos.

Na Alemanha foram mortos 3 policiais em 20127, frente a um efetivo de 2438 mil, o que corresponde a uma taxa de mortalidade de 1,2 por cem mil na tropa e de 0,04 por milhão de habitantes. A taxa de homicídios na Alemanha é de 0,8 por 100 mil habitantes. Assim, a mortalidade dos policiais na Alemanha é de 1,5 vez à da população em geral. Na Inglaterra (e Gales), a taxa de homicídios é de 1,15 por 100 mil (2013) e a mortalidade dos policiais na média dos anos entre 2007 e 20139 foi de 1,0 por 100 mil10 – inferior, portanto, à taxa de homicídios na população em geral. A mortalidade anual de policiais em relação à população nesse período foi em média de 0,02 por milhão.

A comparação internacional é útil para demonstrar o risco inadmissível a que estão expostas as nossas polícias, com taxas de mortalidade muitas vezes superior à da população em geral. No entanto, é menos eficaz para analisar a taxa de letalidade da polícia, por uma razão simples de entender: a letalidade da polícia não guarda relação somente com o número de criminosos na população, mas também com o grau de agressividade e resistência desses criminosos. No Brasil, criminosos têm acesso a armamento exclusivo das forças armadas – incluindo granadas – e passaram a atacar também com o uso de explosivos. Além disso têm nível de organização que lhes dá grande poder de emboscar policiais e atacar até mesmo quartéis.

Nos Estados Unidos, entre 2003 e 2009, 2.931 criminosos foram mortos pela polícia em enfrentamentos11, uma média de 419 por ano. Tomando-se a média de 50,1 policiais mortos em confrontos observada entre 2006 e 2013, a relação entre letalidade policial e letalidade dos criminosos é de 8,4. No caso brasileiro, a letalidade da polícia de São Paulo no 4º trimestre de 2013 foi de 94, contra uma letalidade inversa dos criminosos de 9. A relação entre a letalidade policial e a dos criminosos foi de 10,4 – pouco superior à observada nos Estados Unidos nos períodos indicados. Isso sem contar que a mortalidade dos criminosos decorrente de reações em legítima defesa de cidadãos privados equivale a 64% daquelas resultantes de confrontos com policiais12.

Recapitulando, os policiais militares de São Paulo têm uma taxa de mortalidade de 41,8 por 100 mil e os do Rio de Janeiro, de 265 por 100 mil, o que corresponde, respectivamente, a 4 vezes e a 9 vezes as taxas enfrentadas pela população desses estados. Nos Estados Unidos, o multiplicador é de 1,5; na Alemanha, é de 1,5; e na Inglaterra (e Gales) é de 0,8. Deve-se observar, também, que esses multiplicadores maiores observados no Brasil se aplicam a taxas de homicídio na população em geral extremamente elevadas.

Diante dessa situação, o mais esperado é que a sociedade estivesse mobilizada para a defesa dos seus policiais e suporte das famílias dos que morreram ou se feriram.

Infelizmente não é esta a realidade. No que concerne a mortes por enfrentamento, a proposição legislativa com maior evidência no momento é a que torna mais severo para o policial os procedimentos investigativos relacionados aos chamados autos de resistência. Essa alteração da legislação é bem-vindo, pois toda morte deve ser mesmo minuciosamente investigada pelo Estado, ainda mais se de responsabilidade de seus agentes. Entretanto, o fulcro da proposta está em outro lugar: também modifica o art. 292 do Código de Processo Penal para estabelecer que o uso da força deverá ser “moderado” nas situações de confronto. Mesmo cientes de que a taxa de homicídio contra policiais é 9 vezes superior à da população em geral no Rio de Janeiro, a preocupação mais urgente dos proponentes dessa alteração é impor mais moderação… aos policiais.

É óbvio que tal situação é insustentável e só pode ser alterada se houver inversão dessas prioridades. A vida do policial, se não restar outra alternativa, deve ter precedência sobre a do criminoso. Esse postulado é tão óbvio que nem deveria ser explicitado. A compaixão pela morte de qualquer ser humano deve ser a mesma, mas prioridade absoluta deve ser dada à preservação da vida de quem protege a todos. Além dessa razão de ordem ética e moral, há várias outras que justificam a precedência da preservação do policial, inclusive de ordem econômica. Ao tornar cada vez mais arriscada, penosa e, principalmente, estigmatizada a profissão de policial, a sociedade terá crescente dificuldade em recrutar pessoas adequadas ao serviço policial e, assim, acabará por contribuir para o aumento da violência.

_________________

1 Ver http://www.ssp.sp.gov.br/novaestatistica/Trimestrais.aspx

2 Ver Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 7ª Edição. http://www.forumseguranca.org.br/produtos/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/7a-edicao

3 Ver http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2014/11/mais-de-100-policiais-militares-ja-foram-mortos-este-ano-no-rio-de-janeiro

4 As taxas de mortalidade por câncer citadas foram calculadas considerando as mortes ocorridas até 5 após o diagnóstico. http://seer.cancer.gov/statfacts/html/melan.html

5 Ver http://www.fbi.gov/about-us/cjis/ucr/leoka/2013/tables/table_1_leos_fk_region_geographic_division_and_state_2004-2013.xls

6 As taxas de homicídios dolosos por cem mil habitantes para EUA, Inglaterra e Alemanha foram extraídas da Wikipedia.

7 Ver http://www.reddit.com/r/germany/comments/1mmvzh/2012_german_police_statistics_on_gun_usage_and/

8 Ver http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_number_of_police_officers

9 Ver http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_British_police_officers_killed_in_the_line_of_duty

10 Ver https://www.gov.uk/government/publications/police-workforce-england-and-wales-31-march-2013/police-workforce-england-and-wales-31-march-2013

11 Ver http://www.bjs.gov/content/pub/pdf/ard0309st.pdf

12 Média observada entre 2007 e 2011. Ver http://www.fbi.gov/about-us/cjis/ucr/crime-in-the-u.s/2011/crime-in-the-u.s.-2011/tables/expanded-homicide-data-table-15

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2351 21
Os consumidores seriam beneficiados pelo fim dos impostos sobre remédios? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2340&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=os-consumidores-seriam-beneficiados-pelo-fim-dos-impostos-sobre-remedios https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2340#comments Mon, 24 Nov 2014 14:28:04 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2340 Vem ganhando corpo a reivindicação de redução ou eliminação dos impostos cobrados na venda de remédios. Muitos parlamentares têm formulado iniciativas de lei nessa direção. O argumento para redução dos impostos é o de que a saúde é um bem “essencialíssimo”. Para os que defendem tal isenção tributária, a cobrança de impostos sobre medicamentos elevaria o preço final ao consumidor, reduzindo o bem-estar da população, que, em função dos impostos, acabaria consumindo menos medicamentos do que o necessário.

Nesse artigo procura-se apontar os dois equívocos mais importantes desse raciocínio. O primeiro é acreditar que a redução dos impostos redundará necessariamente na redução significativa dos preços ao consumidor. O segundo está em desconsiderar que a demanda por medicamentos das famílias de menor renda é atendida primordialmente pelo SUS e não pelo mercado.

A ideia de que a redução dos impostos resultaria em redução significativa dos preços ao consumidor não leva em conta que o mercado de medicamentos tem duas características que afetam a reação dos preços a uma eventual alteração nos tributos: patentes e força das marcas.

As patentes – que são instrumentos de garantia da propriedade intelectual da empresa desenvolvedora do princípio ativo – conferem ao fabricante monopólio temporário sobre a produção de certo medicamento. A existência de patentes, ao contrário do que possa parecer, é um fator primordial para o desenvolvimento de novos medicamentos e do aumento no longo prazo do acesso à saúde da população em geral. No curto prazo, enquanto dura a patente, o monopolista pode auferir lucros extraordinários. Qual é esse lucro? Tudo depende da importância do remédio. Uma patente de um medicamento que eliminasse oralmente e sem dor, em uma semana, todos os tipos de câncer teria valor astronômico. Uma patente de um remédio que trouxesse uma abordagem alternativa para o tratamento da azia teria, comparativamente, um valor menor.

A razão está nas diferentes essencialidades dos dois medicamentos hipotéticos. Em outras palavras, ainda que o fabricante do primeiro medicamento praticasse preços ao consumidor muito superiores ao custo de produção, não teria dificuldade em vendê-lo. A procura pelo remédio não seria muito afetada pelo preço. Essa situação, no jargão econômico, é chamada de baixa elasticidade da demanda. O fabricante detentor da segunda patente, do remédio alternativo para azia, não só sofreria a competição dos remédios já existentes como também se defrontaria com o fato de que a azia, apesar de incomodar, não é algo que ameace tão intensamente a saúde e a vida do doente. A demanda pelo segundo medicamento seria, portanto, mais elástica a variações de preços.

Parte significativa dos remédios essenciais para cura ou controle de sintomas de doenças relevantes tem demanda inelástica. Por isso, dão grande poder de mercado aos fabricantes detentores de suas patentes.

O segundo fator relevante a afetar a formação de preços dos medicamentos está no fato de que o consumidor tende a valorizar muito a qualidade – suposta ou real – de um dado medicamento. Como os medicamentos são produtos complexos, apenas especialistas podem, de fato, garantir sua qualidade. Por isso, o consumidor tende a se orientar pelo prestígio da marca do medicamento. O peso da marca confere uma condição próxima à de monopólio a seu fabricante, mesmo depois de vencida a patente e a despeito da concorrência exercida por genéricos e similares. O marketing das farmacêuticas é bastante agressivo e alcança diversas áreas, incluindo o suporte a atividades acadêmicas de corporações médicas e incentivos financeiros a balconistas e farmácias.

Em condições de monopólio ou próximas, uma elevação de preços decorrente de aumentos de impostos ad valorem (aqueles que são cobrados como um percentual do preço) é inferior à que se verificaria se estivesse operando em um mercado de concorrência efetiva, como mostra o gráfico abaixo.

img_2340_1

Desse modo, a imposição de tributos ad valorem – ou a sua eliminação – afetará pouco o preço de venda ao consumidor. A consequência é que, no caso de aumento de tributos ad valorem, a maior parte do imposto adicional é paga pelo fabricante, que não o repassa integralmente ao preço. Inversamente, no caso de retirada de tributos, o preço não cairá significativamente, pois essa redução de custo não será totalmente repassada ao consumidor, já que será em grande medida capturada pelo fabricante. Diversamente, se a estrutura de mercado fosse de concorrência perfeita e a demanda, perfeitamente inelástica, toda a redução de tributo seria repassada ao consumidor (por outro lado, na direção oposta, todo aumento de tributos é 100% repassado para o consumidor).

A Organização Mundial da Saúde, por exemplo, cita evidências de que, no Peru, a eliminação de impostos sobre medicamentos de alta essencialidade – anticancerígenos e antirretrovirais – não levou à queda do preço ao consumidor1.

Pesquisa publicada no jornal The Lancet, em 20082, mostrou que nos países de renda semelhante à do Brasil (renda média alta) a mediana da diferença de preços dos remédios de referência para os genéricos mais baratos é de notáveis 151%. Isso indica que a entrada de opções mais baratas no mercado não foi suficiente para derrubar os preços dos remédios de marca, dado que há pessoas dispostas a pagar mais caro por eles, por suporem – correta ou equivocadamente – que são de melhor qualidade.

Outro aspecto importante é a incidência dos impostos sobre as diversas faixas de renda da população e o perfil de consumo de medicamentos de cada faixa de renda. Estudo do IPEA3 aponta que os preços médios de medicamentos no Brasil subiram de US$ 1,85 para US$ 8,56 entre 1990 e 2009, uma variação muito superior à inflação do dólar. Mais interessante, no entanto, foi o comportamento do gasto médio com medicamentos adquiridos em mercado pela população no mesmo período: variou de US$ 11,34 para US$ 9,24. Para um forte aumento do preço médio dos medicamentos, houve uma queda no gasto total em remédios adquiridos em mercado. Esse dado é indício de  aumento da importância do fornecimento de medicamentos gratuitos pelo governo no total do consumo desses produtos.

O mesmo estudo aponta que, em 2008, das famílias que compõem os 40% mais pobres da população, entre 40% e 48% receberam gratuitamente todos os medicamentos que lhes foram prescritos. Nesse mesmo grupo, entre 56% e 64% receberam todos ou alguns dos medicamentos prescritos. Para os 10% mais ricos, esses percentuais caíram para 10% e 16%.

Parece claro que, do ponto de vista fiscal – que analisa de forma agregada receitas e gastos – a cobrança de impostos em remédios é plenamente justificada e contribui para a redução de desigualdades de renda. De um lado, os impostos não afetam substantivamente os preços ao consumidor, fazendo com que o governo se aproprie de uma renda que, sem os impostos, seria capturada majoritariamente pelos fabricantes e pela rede de distribuição. Essa captura, é bom salientar novamente, é decorrente das características peculiares desse mercado e da baixa elasticidade da demanda por medicamentos. De outro, a receita pública gerada pelos impostos sobre medicamentos vendidos em mercado abre espaço fiscal para financiar a distribuição gratuita aos segmentos mais pobres da população na rede pública.

Não é por acaso que esse arranjo fiscal na saúde – e mais especificamente, na área de medicamentos – que combina atendimento pelo mercado e pelo sistema público, se assemelha ao padrão verificado na Europa, onde as sociedades, diferentemente dos Estados Unidos, optaram por sistemas de saúde predominantemente públicos.

Noruega e Dinamarca aplicam aos medicamentos a alíquota genérica do imposto de valor agregado (IVA) de 25%. O mesmo se dá na Suécia, com a exceção de que os remédios com receita são isentos. Na Alemanha e no Reino Unido, o IVA dos medicamentos é idêntico aos dos demais produtos de consumo, de 19% e de 17,5%, respectivamente. Na Itália, o IVA de medicamentos – 10% – é metade do IVA normal. Seguindo esse exemplo, também praticam IVA de metade do normal para medicamentos Letônia, Áustria, República Checa, Eslováquia, Estônia, Finlândia, Eslovênia e Turquia.

Em sentido oposto, os Estados Unidos se caracterizam pela isenção total do imposto sobre vendas para medicamentos prescritos, embora haja alguma diferença entre os diversos estados. Essa prática é compreensível num quadro fiscal em que o Estado participa de maneira insignificante na provisão de serviços de saúde, em especial, na distribuição de medicamentos.

Parece não haver dúvida, em vista do que apontam a teoria econômica, a observação internacional e a comparação entre os diversos sistemas de saúde prevalecentes no mundo, que o Brasil deve continuar cobrando impostos sobre medicamentos, pois essa é a fórmula que melhor se adapta ao nosso modelo de provisão de saúde, ao perfil de distribuição de renda e ao mercado de medicamentos brasileiro. Essa cobrança tem óbvios efeitos redistributivos, especialmente porque, em geral, a receita que advém dos impostos, caso fosse perdida em uma eliminação de sua cobrança, ficaria majoritariamente retida entre fabricantes e a rede de distribuição privada. Por melhor que sejam as intenções dos que propõem a eliminação integral dos impostos sobre remédios, essa medida traria consequências negativas para a população de menor renda.

________________

1 In Peru, sales tax and VAT were waived for a range of cancer medicines and antiretrovirals in 2001, though little change in retail prices was observed to result. (…). But the experience of at least one country – Peru – has shown that removal of taxes does not necessarily mean lower prices to patients unless supporting regulation, for example, on retail mark-ups, is implemented (CREESE, 2011).
2 (CAMERON, EWEN, ROSS-DEGNA, BALL  AND LAING, 2008)
3 (IPEA, 2010)

 

Referências:

CAMERON, A.; EWEN, M.; ROSS-DEGNA, D.; BALL, D.; and LAING, R. Medicine prices, availability, and affordability in 36 developing and middle-income countries: a secondary analysis. The Lancet. 2008.

http://www.who.int/medicines/areas/access/medicine_prices_availability_and_affordability_in_36_developing_
and_middle-income_countries_a_secondary_annalysis.pdf?ua=1

CREESE, A. Review Series on Pharmaceutical Pricing Policies and Interventions. Working paper nº 5: Sales Taxes on Medicines. World Health Organization. 2011.

http://www.haiweb.org/medicineprices/05062011/Taxes%20final%20May2011.pdf

IPEA. Comunicado IPEA nº 74: Programas de assistência farmacêutica do governo federal – evolução recente das compras diretas de medicamentos e primeiras evidências de sua eficiência 2005 a 2008. IPEA. Brasília. 2010. http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/101216_comunicadoipea74.pdf

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2340 7
Quanto custam as milhas que você “ganha” ao usar o cartão de crédito? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2314&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quanto-custam-as-milhas-que-voce-ganha-ao-usar-o-cartao-de-credito https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2314#comments Mon, 20 Oct 2014 13:29:44 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2314 As administradoras de cartão de crédito concedem incentivos para que seus clientes intensifiquem o uso desse meio de pagamento. O mais decisivo são os pontos (ou “milhas”) conversíveis em prêmios, em especial passagens aéreas. Mais recentemente, os esquemas de fidelidade de companhias aéreas têm expandido as opções de utilização das milhas para compra de outros bens e serviços de empresas parceiras. No modelo de negócios da indústria de cartões, o custo dessas milhas é transferido pelas administradoras aos comerciantes – que, por sua vez, os repassam aos preços finais. Os usuários não são onerados diretamente. Por essa razão não percebem que estão pagando por esses bônus. O cliente não saber o preço das milhas é um desses prazeres que não têm preço… para as administradoras.

O intrincado sistema de cobrança e concessão envolvido nos programas de recompensa leva os usuários à ilusão cognitiva de que os bônus são uma benesse. Essa ilusão explica em parte porque a maioria dos usuários tem uma postura desatenta ao custo efetivo dos serviços e bens que adquirem com os pontos. Afinal, aprendemos desde cedo a não perguntar o preço dos presentes. Cavalo dado, não se olham os dentes.

Outra razão para que os usuários se tornem menos exigentes e atentos é a complexidade requerida para calcular os custos de aquisição das milhas e o valor em dinheiro dos bens que se pode adquirir com elas.

Apesar de trabalhosos, os cálculos necessários para achar o custo das milhas e o preço de mercado dos bens vendidos em milhas são conceitualmente simples. As administradoras utilizam índices fixos de recompensa que associam, em cada modalidade de cartão, certo número de pontos a um montante de valor gasto. Uma vez determinados, esses multiplicadores facilitam as conversões e tornam possível comparar os preços em milhas com aqueles praticados em reais no mercado.

O custo de aquisição das milhas é calculado em função dos prêmios que modalidades alternativas concedem aos usuários. Essas modalidades de cartões, menos usuais, concedem reembolsos ou descontos em dinheiro, em vez de milhas, o que permite estabelecer um padrão de comparação. Os cartões da modalidade “Reward”, do Banco Santander, por exemplo, oferecem reembolsos em dinheiro, e os cartões vinculados a montadoras oferecem descontos em dinheiro exclusivamente para a aquisição de veículos da montadora especificamente vinculada ao cartão. Se determinado volume de gasto periódico gera certa retribuição expressa diretamente em dinheiro em algumas modalidades de cartão, é possível comparar esse valor com o número de milhas que o mesmo gasto periódico gera em outras modalidades. A ideia é que o usuário, ao fazer suas compras, teria em tese duas opções: utilizar um cartão que premiasse com milhas ou um que concedesse descontos em dinheiro. Ao optar pelo benefício das milhas, o usuário estaria abrindo mão do desconto que o cartão alternativo concederia. Uma vez obtida essa relação de equivalência – que, em linguagem técnica, vem a ser o custo de oportunidade das milhas –, pode-se determinar o custo unitário em moeda das milhas.

O cartão da modalidade Reward oferece reembolso de 2,0% a 2,5% sobre o valor total da última fatura do usuário – que pode ser integralmente utilizado como desconto na fatura seguinte. Nessa sistemática, os bônus funcionam como dinheiro para todos os fins práticos, o que lhes dá, usando a linguagem técnica, perfeita fungibilidade; já os cartões vinculados à aquisição de veículos oferecem bônus de 5% – limitados a R$ 6.667,00 ao ano – sobre o total dos gastos, o que, na prática, não se constitui em restrição, pois os gastos necessários para obter esse desconto são de R$ 270 mil, aproximadamente o valor médio da renda anual do 0,5% do topo da distribuição de renda. Embora haja nesses cartões a restrição de que o carro deva ser novo e da montadora vinculada ao cartão, o grau de fungibilidade é próximo ao do dinheiro, por três razões: a) o mercado de carros novos tem pouca variabilidade de preços para um mesmo produto em um mesmo período de tempo, em razão de os preços serem transparentes e de fácil acesso, diferentemente do que ocorre no mercado de aviação, em que os preços de uma mesma passagem podem variar sensivelmente em poucos dias ou mesmo em horas; b) os preços dos veículos adquiridos com descontos do cartão não diferem dos praticados em mercado; e c) carros são bens de alta liquidez com custo relativamente baixo de transação.

Feitas essas observações, pode-se passar ao cálculo dos índices de conversão. Um gasto periódico de R$ 24.600 (aproximadamente US$ 10 mil na cotação de 03/10/2014) irá gerar os seguintes bônus:

 

Reward (entre 2,0 e 2,5%)     entre 492,00 e 615,00

Veículos (5,0%)                                                1.230,00

Valor médio (média dos extremos)                   861,00

 

Nas modalidades de cartão mais vantajosas para os clientes, aquelas voltadas para o público de altíssima renda, as administradoras chegam a conceder até 2 pontos (ou milhas) por dólar gasto. Nas faixas de renda logo abaixo, o fator de multiplicação mais frequente é de 1,5 ponto por dólar. Para consumidores da outra ponta do espectro, de menor poder aquisitivo, a taxa de conversão usual é de 1,0. Há também cartões que fazem a conversão diretamente em reais, sem passar pelo valor em dólares. Nesses casos, a taxa de conversão típica é de 1 ponto para cada R$ 3 de gasto. Considerando a atual cotação do dólar – de aproximadamente R$ 2,46 – a conversão de R$ 3 por pontos equivale à conversão de 0,82 pontos por dólar.

Consideradas essas práticas, pode-se tomar como razoável uma taxa de conversão média de 1,2 ponto por dólar de despesa1. Para não correr qualquer risco de superestimação do custo das milhas, será utilizado o fator mais otimista de 1,5 – que é o fator de multiplicação adotado para a clientela de alta renda das administradoras. Com essa opção, desprezam-se custos importantes, como os decorrentes da caducidade das milhas, as perdas impostas por regras de valores mínimos de transferências, o custo decorrente do tempo gasto pelo consumidor para administrar a sua carteira de milhas e, finalmente, pelo custo derivado de juros implícitos derivados do lapso entre a concessão das milhas e sua utilização efetiva. Os custos das mensalidades de cartão não afetam o resultado, pois são comuns às modalidades que concedem milhas e àquelas que concedem descontos e reembolsos. De igual modo, as isenções que costumam ser praticadas para determinados clientes devem incidir de maneira homogênea nesses universos. Se houver maior volume de concessão nas faixas superiores de renda, isso só piora o custo relativo dos usuários de menor renda.

A retribuição de pontos para o volume de gastos do exemplo anterior pode ser assim calculada, com base nos parâmetros estabelecidos:

 

R$ 24.600 = US$ 10.000 = 15.000 pontos (=10.000 * 1,5)

 

Pode-se agora obter a relação de equivalência média entre as milhas obtidas e os descontos em dinheiro concedidos nas diferentes modalidades de cartão. Como já se disse, apura-se aqui o custo de oportunidade das milhas, ou seja, a quantia em dinheiro de que o usuário estará abrindo mão para obter certa quantidade de pontos, considerando um dado volume de gastos. A relação de equivalência nada mais é, portanto, que o preço relativo de aquisição das milhas:

 

R$ 861 = 15.000 pontos (R$ 861 / 15.000 = 5,7 centavos de real por ponto)

 

Então, o custo de oportunidade médio de cada ponto pode é de R$ 0,057.

A precisão desse cálculo pode ser testada por um método alternativo. Os clientes do programa Smiles podem adquirir ou reativar milhas mediante pagamento em dinheiro. Os valores unitários das milhas nessas opções são de R$ 0,07 e R$ 0,04. A reativação significa que as milhas, uma vez “pagas” e perdidas, podem ser readquiridas mediante um pagamento que, obviamente, deve ser menor que o valor de aquisição. Se assim não fosse, não se trataria de reativação, mas de aquisição. Portanto, o valor de R$ 0,057 é, de fato, uma estimativa conservadora do custo de aquisição de uma milha no âmbito dos programas de recompensa.

Obtido o valor de uma milha, pode-se investigar seu efetivo poder aquisitivo. Nessa etapa, a comparação se dá entre os preços de mercado e os preços em milhas dos bens ou serviços a serem adquiridos. O resultado dessa comparação irá dizer em que medida o poder aquisitivo das milhas corresponde ao seu custo de aquisição.

A metodologia de apuração é bastante simples. No caso das passagens aéreas, foram feitos sorteios sucessivos de aeroportos de chegada, aeroportos de partida e datas de partida para a montagem de tabela de voos nacionais de ida e de voos internacionais de ida e volta (nesse último caso com intervalo de 14 dias entre ida e volta). Elaborada a tabela, foram consultados as páginas das empresas Gol e Tam (e as subsidiárias Smiles e Multiplus) para apuração dos preços em reais e em milhas. Onde foi possível, foram apurados os preços de voos idênticos para menores preços de mercado e em milhas. Onde não havia oferta idêntica, optou-se pelas ofertas de menor preço em ambas as modalidades. Nessas situações, foram excluídas as ofertas de percursos iniciados antes das 6 horas da manhã ou depois das 22 horas, no caso dos nacionais, e os percursos muito penosos, como voos com mais de duas paradas ou tempo de conexão muito longo (superior a cinco horas).

No caso de produtos vendidos por parceiros da rede Multiplus Fidelidade, foram tomados os preços de venda por canal próprio, em reais, e pelo canal da Multiplus, expressos em milhas e convertidos para reais segundo a metodologia proposta.

As observações e resultados são apresentados nas tabelas e nos gráficos abaixo.

 

Tabela 1. Custos de aquisição de passagens aéreas (milhas versus mercado) para GOL e TAM

img_2314_1

A tabela 1 organiza os resultados das observações relativas às passagens aéreas. Para cada empresa são apresentadas, por percurso, a) o custo em milhas; b) o custo equivalente em reais das milhas, com uso do fator de conversão de R$ 0,057/milha; c) o preço de mercado do percurso; e d) a relação entre o custo equivalente das milhas e o custo de mercado. Nas duas últimas linhas são apresentadas as médias ponderada (por preço de mercado de cada companhia) e simples das relações EQ/PM dos 20 percursos (40 observações contando as duas empresas). Os valores das EQ/PM em azul são as únicas 4 observações – na amostra de 40 – em que os custos equivalentes das milhas foram inferiores aos preços de mercado. A média ponderada da GOL para as relações EQ/PM foi de 2,25 e a da TAM foi de 2,07. Isso significa que, em média, os custos da aquisição por milhas são superiores ao dobro dos custos incorridos nas aquisições em dinheiro.

Gráfico 1. Relações de equivalência e preço de mercado (EQ/PM) dos percursos indicados

img_2314_2

O Gráfico 1 mostra as relações EQ/PM para cada trecho, por empresa. As relações superiores a 1 indicam que os custos de aquisição por milhas são superiores aos de aquisição em mercado. Como já exposto, em apenas 4 observações a relação EQ/PM foi inferior a 1. Dos 4 casos em que a relação EQ / PM foi inferior a 1 (custo das milhas menor que o preço de mercado), dois se deveram mais a preços de mercado atipicamente altos do que a uma redução importante do preço em milhas, conforme se pode verificar no Gráfico 2, nos trechos Belém-Galeão, no caso da TAM, e no trecho Curitiba-Assunção, no caso da Gol. O Gráfico 2 apresenta os índices de divergência entre os preços de mercado das duas companhias para cada trecho. Quanto maior a disparidade de preços, maior o índice:

 

ID = Ι pmGol – pmTam Ι / (menor (pmGol ; pmTam))

 

Gráfico 2. Divergência relativa entre os preços de mercado TAM e GOL e a média dos preços

img_2314_3

Gráfico 3. Preços de mercado de GOL e TAM nos trechos indicados

img_2314_4

Gráfico 4. Equivalência em reais dos preços em milhas de GOL e TAM para os trechos indicados

img_2314_5

A Tabela 2 e o Gráfico 5 apresentam os resultados relativos aos produtos vendidos por parceiros da rede Multiplus Fidelidade. Como no caso das passagens aéreas, a divergência entre os preços do canal de vendas de mercado e do canal do sistema de pontos é muito significativa. Não houve qualquer caso em que o preço equivalente em milhas fosse inferior ao preço de mercado. A menor relação encontrada foi de preço em milhas igual a 2,31 vezes o preço de mercado. A relação média ponderada foi de 3,25.

Tabela 2. Custos de aquisição de produtos indicados em reais e em milhas na rede Multiplus

img_2314_6

Gráfico 5. Relação entre preços em milhas e preços de mercado na rede Multiplus

img_2314_7

A exemplo do que foi feito com o custo de aquisição, também com relação ao poder aquisitivo das milhas é possível testar a precisão do cálculo por um método alternativo. A empresa Gol oferece sistema misto de aquisição de bilhetes: parte é paga em dinheiro; parte, em milhas. Uma passagem no voo G3-1001 (Santos Dumont/Congonhas) de 04/11 pode ser adquirida por qualquer desses arranjos:

img_2314_8

Esses arranjos resultam em um poder aquisitivo médio das milhas de R$ 0,266. Frente a um custo de aquisição de 0,057, teríamos uma relação de 2,14 (0,057/0,266) entre o custo e o poder aquisitivo, perfeitamente consistente com a média simples das relações EQ/PM apuradas para a empresa Gol, que foi de 2,25.

As discrepâncias observadas entre o custo de aquisição e o poder aquisitivo das milhas são muito elevadas. Só podem ser explicadas pela imensa dificuldade enfrentada pelo consumidor para determinar os preços relativos vigentes na sistemática de recompensa dos cartões de crédito. De fato, não seria concebível que o consumidor, ciente de diferenças tão significativas nos preços, abrisse mão desses valores, como vem fazendo.

Essa dificuldade enfrentada pelo consumidor não ocorre por acaso, mas é meticulosamente construída. A criação de mecanismos opacos de precificação é das estratégias mais importantes e mais utilizadas para reduzir a competição ou para reduzir a influência dos preços sobre a competição. A diversidade de fórmulas de conversão de pontos em valores, as regras de embargo, a extrema variabilidade dos custos dos produtos em milhas, a variação no custo das anuidades dos cartões – que podem inclusive ser baixadas a zero – são elementos que tornam praticamente impenetrável a precificação desse segmento. O usuário comum perde a capacidade de avaliar de modo objetivo – em termos de moeda corrente – os custos e benefícios de suas decisões. Essa situação representa uma importante falha no mercado.

A teoria econômica neoclássica, que conclui pela existência de equilíbrio eficiente em todos os mercados, tem entre suas hipóteses essenciais a vigência de informação perfeita e gratuita sobre preços e qualidade de todos os produtos ofertados em todos os mercados. Trata-se evidentemente de uma hipótese teórica, já que não se cogita de que um consumidor de carne e osso tenha a capacidade de conhecer todos os preços, usos e características de todos os bens ofertados em todos os mercados simultaneamente. Entretanto, a substituição do agente onisciente do modelo teórico por um agente dotado apenas de informações relevantes e racionalidade limitada não traz maiores prejuízos às conclusões da teoria neoclássica. Contrariamente, se essa limitação nas informações ou na possibilidade de computá-las for muito severa, o efeito sobre o funcionamento do mercado passa a ser significativo e o atingimento de equilíbrio eficiente deixa de ser garantido. Restrição severa na capacidade do consumidor de conhecer e comparar preços pode ser razão suficiente para a intervenção regulatória, de modo a se garantir de volta a eficiência no mercado em questão.

A literatura já chegou a razoável consenso sobre os custos e vantagens da utilização do cartão de crédito frente aos demais meios de pagamento. As vantagens estão na redução dos custos de transação em toda a cadeia de comércio e de pagamentos, pois departamentos de crédito de cada comércio singular são substituídos pela estrutura centralizada e de maior escala das administradoras, enquanto as perdas por assaltos ou risco de crédito pelo comerciante são eliminadas e o transporte e a guarda de numerário físico são suprimidos, em favor de transferências eletrônicas. Mesmo a sistemática de incentivos implícitos – como a concessão de milhas – não é necessariamente prejudicial e pode tornar o equilíbrio mais eficiente, conforme demonstra o modelo de “mercado de dois lados”. O problema para os comerciantes e consumidores reside na possibilidade de administradoras (bancos), bandeiras (Visa, Mastercard, por exemplo) e credenciadoras (Cielo, Redecard, GetNet, por exemplo) aproveitarem-se de sua posição de mercado, da complexidade operacional do sistema e das chamadas economias de rede para cobrar tarifas e comissões muito superiores aos benefícios trazidos pela tecnologia dos cartões.

A concessão aos comerciantes da possibilidade de eventualmente praticar preços diferenciados para pagamentos com cartão de crédito em relação aos demais meios de pagamento estabelece uma defesa dos consumidores e comerciantes forte o suficiente contra práticas de sobrepreço por administradoras, bandeiras e credenciadoras. A ideia é que, havendo possibilidade de discriminação de preços à vista ou por cartão, o consumidor pode intuir facilmente se a eventual diferença de preços entre essas opções justifica os benefícios de sua utilização, inclusive levando em conta o valor econômico das recompensas oferecidas pelos cartões.

Diante do grande desequilíbrio entre custos e benefícios nos programas de recompensa, parece recomendável tornar mais simples e direta a aferição, pelo usuário, desses elementos.

Duas medidas são cruciais para atingir esses objetivos: a primeira, permitir a discriminação de preços nas compras à vista e com cartão2; a segunda, estabelecer que as administradoras devam oferecer como opção ao cliente, além de programas baseados na concessão de pontos ou milhas, a alternativa de programas de recompensa baseados em percentual fixo de reembolso, a exemplo da modalidade Reward do Banco Santander. O percentual de reembolso sobre os gastos seria determinado pela livre concorrência.

A difusão de padrões de comparação entre custos e benefícios que essas providências trariam aumentaria a capacidade de avaliação dos usuários, gerando maior eficiência no mercado de cartões, mas não só. Pela participação que as milhas têm na receita das companhias aéreas, essas modificações podem ter importantes repercussões sobre a competição na aviação civil.

___________________

1 A esse respeito, já foi aprovado no Senado e tramita na Câmara o Projeto de Decreto Legislativo nº 31, de 2013, de autoria do Senador Roberto Requião que “susta os efeitos da Resolução nº 34/89 do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, que proíbe ao comerciante estabelecer diferença de preço de venda quando o pagamento ocorrer por meio de cartão de crédito”.

2 Pode-se argumentar que a verdadeira taxa média de conversão de pontos só poderia ser obtida pelo cômputo da média de todos os cartões em uso ponderada pelo grau de utilização de cada um deles em dado período. O argumento está correto teoricamente, embora seja forçoso reconhecer que esse dado é inacessível, pois, entre outras coisas, é informação proprietária e estratégica relevante das administradoras. Assim, sempre será necessário estabelecer alguma estimativa razoável baseada em hipóteses de ponderação, tal como se propõe neste artigo.

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2314 21
Vale a pena fazer o recadastramento biométrico eleitoral? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1939&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=vale-a-pena-fazer-o-recadastramento-biometrico-eleitoral https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1939#comments Mon, 05 Aug 2013 13:08:45 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1939 A decisão do TSE de levar à frente o recadastramento biométrico para “modernizar” nosso processo eleitoral demonstra que nós resistimos a tudo, menos à tentação de um gadget reluzente. Essa iniciativa irá custar pelo menos R$ 6 bilhões, quantia suficiente para fazer investimentos relevantes em transporte coletivo em qualquer das megalópoles brasileiras.

A decisão é completamente injustificável frente à inexistência de riscos relevantes de fraude em nossas eleições e à necessidade de priorizar carências urgentes em outras áreas, como saúde e transporte. Mas é apenas mais um exemplo de irracionalidade no País em que o cálculo de custos e benefícios é uma ideia tão exótica quanto a arte plumária indígena e as aves tropicais pareceram aos europeus do Séc. XVI.

A decisão de levar à frente de modo praticamente irreversível o recadastramento biométrico – coletar eletronicamente as impressões digitais e as assinaturas dos eleitores para uso esporádico, a cada dois anos – foi tomada por meio da Resolução do TSE nº 23.335, de 22 de fevereiro de 20111.

A Resolução, sua justificação e votos anexos têm características que repetem o padrão prevalecente nas decisões de gasto público no País: a) linguagem vaga e genérica quanto aos objetivos a alcançar; b) imprecisão das metas quantitativas e dos prazos – observando que não se determinaram precisamente nem os municípios nem os Estados que deveriam ser objeto da fase de recadastramento biométrico que ela previa como etapa imediata; c) ausência de análise de custo e benefício, o que leva, também seguindo um padrão comum na prática brasileira, a realçar os benefícios, a desconsiderar os custos e, principalmente, a omitir os possíveis usos alternativos que se poderia dar aos recursos que serão gastos; d) imprecisão na estimativa de custos, que é incompleta e não exaustiva para cada fase do programa, especialmente pela não consideração dos custos sociais não orçamentários (o custo de deslocamento do eleitor para recolher a impressão digital no cartório eleitoral e as horas de trabalho perdidas nessa operação exemplificam os custos sociais não orçamentários; tais perdas não serão bancadas pelo Orçamento da União, mas serão, respectivamente, uma despesa para o trabalhador e uma perda de receita para os patrões e os autônomos, sendo conjuntamente um custo social); e) ausência de estimativa dos custos globais do projeto caso venha a ser expandido para o resto do país, apenas a apresentação de cálculos frágeis e potencialmente subestimados de cada etapa, que, posteriormente, já como fatos consumados, servirão como argumento a mais para conclusão do programa: “tudo bem que o programa é ineficiente; mas com os gastos já feitos nas etapas anteriores seria irracional não levá-lo a termo. Essa crítica deveria ter sido feita antes”.

Na página 11 da Resolução, na seção em que constam a justificação e os votos, encontra-se a única referência a custos financeiros da medida. Não são apresentadas ali estimativas elaboradas pelo Tribunal para os custos globais da empreitada, mas tão somente o valor da disponibilidade orçamentária do programa para o ano de referência – 2011. Essa dotação, por sinal, não é assumida como um valor reivindicado, disputado ou negociado pelo TSE, mas como uma espécie de determinação discricionária da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) e tomada passivamente pelo Tribunal. Considerando uma meta física de 10,8 milhões de eleitores, o TSE estimou que o custo do recadastramento seria de R$ 4,00 por eleitor2.

Entretanto, nem mesmo essa meta de eleitores a recadastrar – pouco detalhada e para a qual não havia qualquer compromisso de cumprimento – foi executada, o que tornaria difícil saber quanto efetivamente tem custado o recadastramento, caso a única fonte de informação fossem as estimativas constantes dos documentos oficiais. Segundo o site do TSE (consulta feita no dia 9 de julho de 2013), apenas 7 milhões de eleitores haviam sido recadastrados (com inserção de dados biométricos) até o fim de 20123. Como já haviam sido cadastrados 1 milhão de eleitores antes da projeção, pode-se concluir que apenas 6 milhões foram cadastrados entre 2011 e 2012, o que representa 60% da meta estabelecida para o exercício de 2011, de 10 milhões.

Ainda que a meta tivesse sido cumprida, as despesas diretamente incorridas pelo TSE e pelos TRE com a dotação orçamentária específica para o recadastramento nem de longe correspondem ao efetivo custo total (fiscal e social) da iniciativa. Esses custos vão muito além desse limite, como irá se demonstrar. No mínimo, os vencimentos dos servidores efetivos destacados para a tarefa deveriam ter sido computados.

O custo não orçamentário mais significativo do recadastramento – não previsto nas justificações oficiais – é a perda de horas de trabalho decorrente do comparecimento do eleitor ao cartório eleitoral. A própria legislação reconhece implicitamente esse custo ao conceder abono de a quem for se recadastrar4. No total da iniciativa, o recadastramento irá atingir, em tese, o universo dos hoje 140 milhões de eleitores brasileiros. Evidentemente, nem todos os eleitores fazem parte da População Ocupada (PO), que é um subconjunto da População Economicamente Ativa (PEA). Tomando-se os dados do IBGE da PO das Regiões Metropolitanas, mês-base abril de 2013, o custo desse absenteísmo seria de R$ 1,9 bilhão5.

Essa perda deve ser somada àquela referente aos trabalhadores de regiões urbanas não metropolitanas e regiões rurais. Segundo dados de 2009, últimos disponíveis de série descontinuada, a relação entre a PO das regiões metropolitanas e a das demais regiões era de aproximadamente 50%, enquanto a renda média do último grupo era 20% inferior à da PO das regiões metropolitanas. Supondo-se que essas relações se mantiveram até hoje, o custo total do absenteísmo em todo o País ao final do programa pode ser estimado em R$ 5,0 bilhões.

Uma crítica justa poderia ser feita a esse cálculo: o de que o tempo total para o recadastramento (agendamento, deslocamento ao cartório e efetivação da operação) não toma toda a jornada de trabalho. Se assim é, a legislação não deveria conceder abono integral para quem se recadastra, mas apenas do tempo efetivamente gasto para realizar a tarefa. De todo modo, em razão das crescentes dificuldades de deslocamento nas grandes cidades, muitos dos que participarem do recadastramento perderão, de fato, um dia de trabalho. Pode-se ainda argumentar que, em média, as tarefas que deixariam de ser feitas no dia abonado acabariam por ser realizadas nas jornadas seguintes. Essa recuperação do tempo perdido ocorreria porque trabalhadores e empresas acabam administrando a porosidade das jornadas de trabalho ao longo de uma semana ou de um mês, de modo a realizar um dado quantum de trabalho, independentemente de intercorrências como feriados, atrasos no transporte, consultas médicas, solução de pendências em horário de trabalho, etc.

Com base nesse tipo de argumento, o cálculo da perda não equivaleria exatamente àquele que efetivamente se verificará na economia. Ainda que essa crítica possa estar em parte correta, a administração da porosidade na jornada de trabalho tem limites e, em certas atividades, o argumento simplesmente não vale. Em muitos ramos de atividade, a produção não realizada em determinado momento não pode ser recuperada. Um atendimento médico de emergência, por exemplo, não pode ser feito depois, exceto, em poucos casos, com considerável prejuízo na qualidade. O mesmo vale para as inúmeras atividades em que há produção em série. Ainda assim, a imposição de um fator a mais de perda a ser ajustado na porosidade da jornada é sempre um problema para a produtividade geral. O fato é que a perda é significativa, embora não seja possível estimar com precisão o seu valor. A melhor estimativa deve ser mesmo o valor correspondente ao abono concedido em lei, até em obediência ao princípio contábil do conservadorismo.

Além disso, a página eletrônica computerworld.com.br6 informa que foram compradas 117 mil urnas eletrônicas com dispositivo de leitura biométrica para uso em 2012, ao custo de R$ 143 milhões, o que implica custo unitário de R$ 1.214,00. A compra de novas urnas só foi necessária em função dos dispositivos de leitura biométrica, pois não há notícia de que o modelo anterior de urna teria sofrido qualquer obsolescência para as funções específicas, repetitivas – e bienais – que desempenha. Quando todas as aproximadamente 450 mil urnas do País forem substituídas pelo modelo com leitura biométrica, o custo total será de R$ 546 milhões.

Somente os R$ 5,5 bilhões relativos à soma do custo do absenteísmo e das novas máquinas seriam suficientes para construir e equipar toda a Linha Amarela do metrô de São Paulo, que terá, quando concluída, extensão de 12,8 Km, 11 estações e demanda de mais de um milhão de passageiros por dia7.

A análise de custos e benefícios não deveria parar por aí. Seria necessário incluir ainda os custos da redundância representada pelo TSE estar capturando um dado – características biométricas – que também é recolhido por outros órgãos estatais – como a Polícia Federal, na emissão de passaportes8; e as secretarias de segurança estaduais, na expedição de carteiras de identidade. Aliás, chama a atenção o fato de que dois órgãos federais não tenham procurado eliminar redundâncias – e consequente prejuízo – desobrigando quem já é portador de passaporte do incômodo de comparecer mais uma vez para a coleta do dado.

Voltando ao tema central, outro custo relevante do recadastramento é o custo da campanha publicitária em rádio e televisão – também não orçamentário, mas fiscal, pois leva à renúncia de receita de tributos. O cronograma de divulgação de comerciais em rádio e TV para o ano de 2013 é bastante generoso9 e, pelo critério de tempo de divulgação, não deve ficar atrás de produtos e empresas campeãs de audiência. Sabe-se que a isenção fiscal recebida pelas rádios e TV equivale exatamente ao valor de mercado do tempo cedido.

Restaria ainda incluir os custos de redundância, os salários e diárias dos próprios servidores do TSE envolvidos na tarefa e o custo de eventuais terceirizações. Tampouco se considerou o custo de deslocamento – ida e volta – ao cartório eleitoral, equivalente a duas passagens de ônibus ou metrô. Esse custo é igual ao produto do número de eleitores – 140 milhões – por um custo médio nacional de deslocamento de ida e volta de, provavelmente, R$ 3, o que faria a conta subir mais R$ 420 milhões.

Atualmente há grande preocupação com o potencial vazamento de informações de caráter privado armazenadas em bancos de dados de uso público, estatais ou não. Mesmo nos países com atuação relevante na espionagem e na contraespionagem, têm sido comuns os casos de quebra de confiança e de hierarquia e consequente perda de confidencialidade de documentos. Quando os próprios órgãos estatais – Justiça Eleitoral, Polícia Federal e secretarias de segurança – se acotovelam para colher e armazenar os mesmos dados de identificação em bancos de dados distintos, aparentemente sem coordenação estratégica10 e sem cronograma comum, o risco de vazamento e mau uso da informação só faz crescer, ameaçando a privacidade dos cidadãos, sem qualquer vantagem perceptível.

A tabela a seguir sintetiza os argumentos e estimativas precedentes.

Nesse ponto, à vista dos elevados custos totais incorridos – alguns intangíveis, como o risco aumentado de perda de privacidade – é de se perguntar: que benefícios o TSE estaria procurando alcançar ao introduzir a identificação biométrica nos sistemas eleitorais?

De todas as críticas – e não são poucas – usualmente feitas ao sistema eleitoral brasileiro, não figura a de que seja vulnerável a fraude sistemática de identificação do eleitor. Ao contrário, o País se orgulha do modelo operacional que o TSE implantou no País, de fato muito eficaz – o que não significa eficiente, pois a eficácia não leva em conta os custos necessários para se cumprir uma tarefa. O próprio TSE se preocupou primeiramente em garantir a fidedignidade dos resultados e a rapidez das apurações, o que fez principalmente com a introdução da urna eletrônica. Essa opção se deu, provavelmente, porque não julgou necessário combater antes uma eventual tendência a significativas fraudes de identificação – que seria muito mais grave e cujo combate deveria ter sido prioritário. Garantir a lisura dos pleitos teria sido muito mais importante do que acelerar a divulgação de seus resultados.

Além disso, não são comuns, para não dizer inexistentes, denúncias por atores ou grupos relevantes – de dentro ou de fora do establishment político – de fraudes de identificação em volumes capazes de adulterar o resultado de eleições, mesmo em pequenos municípios. Ao contrário, e até ironicamente, o que se ouve cochichar por aí é a desconfiança, alimentada por teorias conspiratórias, de pequenos grupos que acreditam que os avanços tecnológicos – em especial as urnas eletrônicas – aumentam, em vez de reduzir, as chances de fraude sistemática nas eleições.

A verdade é que não há, de fato, interesse público relevante no recadastramento biométrico eleitoral. Somente a estrutura de incentivos prevalecente no setor público brasileiro pode explicar tal escolha orçamentária. Mas esse tema, bastante complexo, mereceria outro artigo.

_____________

1 O documento pode ser encontrado na página www.tse.jus.br, seguindo as abas legislação e pesquisa à legislação eleitoral.

2 Nos termos da justificação da Resolução: “A SOF informou existir no Projeto de Lei Orçamentária Anual – PLOA 2011, para o presente exercício, dotação de R$ 51.000.000,00 para as ações envolvendo a biometria, dos quais R$ 43.475.324,00 destinados ao custeio administrativo e R$ 7.524.676,00 a investimento. Acrescentou que “a meta física constante do PLOA 2011 para o referido projeto é cadastrar 8% do eleitorado nacional, representando 10,8 milhões de eleitores, o que possibilitaria um dispêndio médio da ordem de R$ 4,00 por eleitor”.

3 Segundo página do TSE: “A biometria garante ainda mais segurança aos eleitores brasileiros na hora de votar. Nas Eleições 2014, mais de 22 milhões serão identificados pelas digitais. Por isso, de 2012 a 2014,  o programa de identificação biométrica da Justiça Eleitoral recadastrará cerca de 14 milhões de eleitores (até o momento, 11,5 milhões de eleitores já foram convocados), que se juntarão a outros 7 milhões já recadastrados”. (http://www.tse.jus.br/eleitor/recadastramento-biometrico/recadastramento-biometrico).

4 Na verdade, tanto a CLT quanto a Lei nº 8112, de 1990 (que regulamenta as relações de trabalho para os funcionários públicos federais), preveem dois dias de abono para o recadastramento eleitoral. Nesse artigo, entretanto, decidiu-se pela hipótese de que apenas um dia será utilizado. A ideia é de que, mesmo tendo o direito legal de usar dois dias de abono, o trabalhador do setor privado teria imensa dificuldade de justificar na prática o uso de período tão longo de abono, podendo, inclusive, sofrer retaliações informais. Embora os servidores públicos nem estejam sujeitos a qualquer sanção no caso de utilização dos dois dias, o seu peso relativo no universo total justifica desconsiderar a possibilidade de uso dos dois dias de abono. Uma observação lateral interessante: a legislação que prevê dois dias de abono para o alistamento eleitoral prevê apenas um dia para a doação de sangue.

5 Esse valor corresponde ao produto da PO metropolitana por seu rendimento médio mensal, dividido pela relação (8 horas / 180 horas de trabalho mensal) = [23,007 milhões * R$ 1.863 / (8 dias/180 dias)].

6 http://computerworld.uol.com.br/tecnologia/2010/12/23/tse-compra-117-mil-urnas-para-eleicoes-municipais-de-2012/ último acesso em 11/07/2013.

7 Ver http://www.metro.sp.gov.br/noticias/acontecendo/governador-geraldo-alckmin-inicia-2a-fase-da-linha-4amarela.fss. Último acesso em 14/07/2013.

8 A esse respeito é interessante observar lateralmente que a prática internacional nos países desenvolvidos mais populosos que adotam passaporte com informação biométrica eletrônica é renovar passaportes com registro biométrico de dez em dez anos e de cinco em cinco para crianças. No Brasil, cuja renda per capita é bem inferior à dos países citados e em que há reclamações de falta de mão-de-obra para a emissão de passaportes, estabeleceu-se o intervalo de apenas cinco anos para adultos, o que dobra os custos sociais e demanda o dobro de servidores da Polícia Federal para o cumprimento da tarefa. O pior caso é o das crianças brasileiras, cujo prazo de renovação é igual à da idade na data de emissão. Desse modo, uma criança de um ano receberá passaporte com validade de apenas um ano!

9 http://www.tse.jus.br/internet/recadastramento-biometrico/Plano-midia-tv-radio-biometria-2013.pdf

10 A impressão de improviso e falta de articulação estratégica é reforçada pelo fato de que, poucos meses após a aprovação da Resolução nº 23.335, em fevereiro de 2011, foi aprovada em junho do mesmo ano a Resolução nº 23.345, que revogou o art. 12 da primeira Resolução. A providência teve de ser tomada, segundo a justificação, porque o matéria coletado até então não atendia às especificações técnicas do convênio assinado: “(…) em recente análise das imagens fornecidas por este Tribunal para composição dos cartões RIC, observando o acordo citado, o Instituto Nacional de Identificação – INI/DPF/MJ rejeitou 99,67% das assinaturas dos eleitores, digitalizadas por ocasião do Acordo de Cooperação Técnica 1212010, celebrado entre este Tribunal e a Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia em Identificação Digital. Essa rejeição ocorreu em uma amostra de 8.988 imagens, ficando demonstrado que o procedimento de digitalização das assinaturas dos eleitores, contidas nos documentos RAE (Requerimento de Alistamento Eleitoral), é inadequado para a emissão do cartão RIC e, portanto, desaconselhado pela STI”.

Download:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=1939 6
Os custos de cartão de crédito poderiam ser reduzidos no Brasil? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1801&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=os-custos-de-cartao-de-credito-poderiam-ser-reduzidos-no-brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1801#comments Thu, 25 Apr 2013 12:54:01 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1801 Um pequeno comerciante, ao finalizar cada venda, sabe que estará entregando em torno de 4,0% do faturamento à credenciadora1 de cartão de crédito. A depender do tamanho de sua empresa, esse percentual pode chegar perto de toda sua carga tributária reunida no Supersimples. Esse custo, evidentemente, é repassado ao consumidor.

Esse mesmo comerciante estaria pagando apenas 0,8% do valor das vendas, se estivesse trabalhando na Austrália. Lá, há dez anos, o Banco Central aboliu a obrigatoriedade de os comerciantes cobrarem o mesmo preço nas vendas à vista ou com cartão, com base na mais moderna teoria microeconômica. As taxas cobradas pelas credenciadoras, que eram então de 1,4% sobre o faturamento, caíram para 0,8%. Os benefícios para os consumidores foram evidentes.

Por aqui, o Ministério da Justiça e os Procons entendem que a obrigatoriedade de preços idênticos para pagamentos com cartão de crédito é uma proteção para o consumidor. Esse entendimento está expresso oficialmente em Nota Técnica do DPDC. É um caso clássico de boas intenções que levam a maus resultados. O consumidor, que deveria se beneficiar dessa suposta proteção, acaba saindo prejudicado; as empresas de cartão, que têm poder de mercado, se beneficiam.

A estrutura do mercado de credenciamento de cartões no Brasil é, para todos os fins práticos, um duopólio partilhado pelas empresas Cielo e Redecard, que controlam 90% do faturamento. Além disso, os maiores bancos emissores de cartão, que formam o outro lado do mercado, são os acionistas controladores dessas mesmas credenciadoras.

As administradoras de cartões de crédito concedem vários incentivos aos usuários, como o prazo de pagamento (que pode chegar a até 40 dias, a depender da data

da compra), a contagem de pontos para obtenção de vantagens, como milhas para viagens, além da facilidade de parcelamento (ainda que, frequentemente, associado a um custo elevadíssimo). Esses atrativos fazem com que os comerciantes sejam compelidos a participar do sistema, sob pena de perderem clientes. Eles não podem se dar ao luxo de rejeitar cartões de crédito. Para sua sobrevivência, devem aceitar as regras uniformes do credenciamento. Na perspectiva dos usuários, como não pode haver diferença nos preços, torna-se irracional não usar cartão de crédito. Os que insistirem em pagar à vista subsidiarão os prazos e premiações concedidas exclusivamente aos usuários dos cartões. Assim, a regulação reforça o poder de mercado do sistema de cartões de crédito, administradoras e credenciadoras.

O consumidor, por não conhecer essa sistemática de precificação, acredita que está “ganhando” milhas e outros incentivos, quando, na verdade, está pagando em torno de 3% a mais embutidos nos preços de suas compras.

Mas os problemas não param por aí. O poder de mercado amplificado pela regulação deficiente cria outras vantagens para as credenciadoras, como no caso do adiantamento de faturas. Essa é a operação de crédito pela qual o comerciante pode adiantar o recebimento das vendas sem ter que esperar pelo prazo contratual de 30 dias.

A taxa de juros nessa operação varia segundo o porte dos comerciantes. O pequeno comerciante, se optar pelo adiantamento, vai se deparar com juros de 4,35% ao mês, que correspondem à estratosférica taxa de 66,7% ao ano. Como a taxa interbancária está hoje em 7,40% ao ano, o spread dessa operação é de 59%! Segundo dados do Banco Central, o spread médio dessa operação é de menos de 30% ao ano. Isso significa que empresas de maior porte conseguem taxas muito inferiores à média, criando desequilíbrio adicional entre pequenos e grandes comerciantes.

O elevado spread nessa operação é mais uma evidência de um mercado mal regulado. Uma das justificativas sempre alegadas para o elevado spread no Brasil é o risco de crédito. Ocorre que, no caso do adiantamento de faturas de cartão, não existe risco de crédito. A operação é mero adiantamento de uma obrigação da própria credenciadora. Não há como o comerciante inadimplir, pois o dinheiro é dele mesmo, diferentemente de uma operação de desconto de duplicatas, por exemplo, em que há o risco da coobrigação. Então, para essa operação, o spread só se explica pelo poder de mercado das credenciadoras.

Por essas razões, o desempenho em bolsa dessas empresas tem sido espetacular e divergente do resto do mercado acionário. De janeiro de 2011 a ao início de abril deste ano, aCielo teve valorização de 140%, contra queda de 19,5% do Ibovespa. Os controladores da Redecard preferiram fazer oferta publica e fechar o capital da empresa, retirando-se da bolsa. De fato, não faz muito sentido repartir lucros tão garantidos e elevados com acionistas minoritários.

É urgente que as autoridades reguladoras reconheçam que o mercado de cartões, no Brasil, não é competitivo, apesar dos vários esforços já feitos nesse sentido. Para reduzir as ineficiências econômicas, os prejuízos aos consumidores e as perdas dos pequenos lojistas decorrentes da concentração, três providências imediatas deveriam ser adotadas: a) permitir que os comerciantes ofereçam, se desejarem, desconto à vista em relação ao preço com cartão de crédito, a exemplo do que é feito na Austrália e, mais recentemente, nos Estados Unidos; b) impor limite máximo de juros na operação de adiantamento de faturas de cartão de crédito com base em um múltiplo da Selic; c) tornar obrigatória cláusula de concessão de percentual de desconto na fatura como opção do cliente sempre que a administradora conceder vantagens como milhas de viagem ou assemelhadas.

Todas essas providências tornariam transparentes para os usuários os custos embutidos nas operações, inclusive dos benefícios, como milhagens. Com essa transparência e havendo possibilidade de optarem por preços diferenciados, a escolha de pagar com cartão de crédito só se daria se as taxas cobradas por esses agentes – diretamente dos comerciantes e indiretamente dos usuários – se reduzissem a valores compatíveis com os custos operacionais das credenciadoras e administradoras.

________________
1 Credenciadora é a empresa responsável por credenciar o lojista para determinada bandeira. As principais credenciadoras do Brasil são a Cielo e Redecard.

Download:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=1801 14
Aonde nos levará a redução do IPI dos automóveis? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1527&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=aonde-nos-levara-a-reducao-do-ipi-dos-automoveis https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1527#comments Mon, 08 Oct 2012 11:56:22 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1527 Os países têm enfrentado a crise econômica iniciada em 2007 de diferentes maneiras. Cada qual escolhe sua alternativa de acordo com suas circunstâncias políticas, sua situação fiscal, suas vantagens e desvantagens comparativas e – muito obviamente – segundo as crenças econômicas e preferências ideológicas de seus governos. Também não se deve esquecer das intenções, que são sempre as melhores… Mas como lembra Marx – sem muito sucesso entre seus discípulos nesse particular – a estrada do inferno é pavimentada por boas intenções.

Um exemplo de operação de política econômica condicionada por eventos políticos foi a recente solução apresentada pelo presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi – compra ilimitada de títulos dos países do Club Med com prazo de até três anos –, que não seria viável se o Presidente Hollande não tivesse derrotado Nickolas Sarkozy. Sem o apoio da França, que sob Sarkozy se alinhava quase integralmente com a política de austeridade defendida pela Alemanha, o presidente do Banco Central Europeu não conseguiria sequer propor a medida, frente à resistência do Bundesbank. Se Draghi conseguirá executá-la, é outra estória, também condicionada pelas mesmas restrições.

Os americanos e os britânicos vão de quantitativeeasing, política acusada por aqui de ser mera continuação da guerra comercial conduzida por outros meios; no caso, pela diplomacia da desvalorização do dólar. A dúvida entre eles, agora, é se aumentam a dose.

A fórmula do elixir brasileiro, como não poderia deixar de ser, é bem original: bastante crédito, subsídio a gosto, fé em Deus e pé na tábua do carro novo (assim que o motorista da frente começar a andar).

Já a China, talvez inspirada no pragmatismo de Confúcio, em vez de entupir suas ruas e avenidas, considerou mais razoável ampliá-las e investir na mobilidade urbana, em infraestrutura e transportes públicos. Vai implantar ou estender metrôs em 18 cidades, ampliar a oferta de terra urbana e de esgotos e expandir a malha rodoferroviária. Enquanto a preferência brasileira continua sendo pelo indolente keynesianismo que amplia a demanda, a China tem optado pelo seu irmão mais operoso, o keynesianismo que amplia a oferta.

O contraste entre as medidas tomadas pelo Brasil e pela China não poderia ser maior e explica boa parte do desempenho medíocre da economia brasileira nos anos recentes. Em vez de seguir o caminho pedregoso e íngreme de poupar muito, o que permite financiar o aumento do investimento, e de combater as ineficiências, prefere-se o caminho fácil dos subsídios fiscais e creditícios, das barreiras tarifárias e do incentivo ao consumo, sem maior preocupação com os efeitos dessas medidas sobre o investimento, a produtividade e… a inflação. Ah, as boas intenções!

O Governo tem jogado nas costas da crise econômica a culpa pelos índices declinantes de crescimento do PIB, mas os números de países semelhantes mostram que o argumento é retórica vazia. A comparação do Brasil com os países de sua categoria demonstra que são internos os fatores do nosso fraco desempenho. A crise internacional afetaria menos esses países?

A projeção do FMI para 2012 é de crescimento de 3,5% no mundo, sendo de 5,6% para os países emergentes e de 1,4% para os desenvolvidos. Segundo o Relatório Focus de 10 de setembro, o crescimento brasileiro deve ficar em 1,62%, terça parte do previsto para os emergentes e menos da metade do crescimento previsto para o mundo.

Pelo lado da inflação, vamos encerrar mais um ano superando a meta, estabelecida em 4,5%, o que é preocupante, quando se considera que o cenário mundial no primeiro semestre era de inflação reduzida e que os incentivos fiscais influenciaram para baixo os preços de bens de consumo como automóveis e eletrodomésticos.

A continuidade dos incentivos à indústria automobilística é inconsistente não apenas com o ambiente macroeconômico. Também se choca com o atual limite da oferta interna de petróleo e derivados, que a Petrobras tem sido incapaz de elevar, apesar da prodigalidade de suas reservas, da sua posição quase monopolista de mercado e dos aportes financeiros que consegue mobilizar a baixo custo interna e externamente. A demanda adicional de derivados que deverá ser atendida por importações irá piorar o resultado da empresa e pressionará a conta petróleo, situação intrigante em um País que até há pouco batia o bumbo ufanista do Pré-Sal.

Quando se alega, com certo exagero, que os preços da gasolina e do diesel estão defasados no Brasil, deixa-se de considerar que, em termos de óleo bruto, o país é autossuficiente – ou pelo menos deveria ser – e que, portanto, os preços de refinaria não têm, necessariamente, de se igualar à média mundial. Ou seja, uma coisa é dizer que a Petrobras está deixando de ganhar, pois não pode vender o óleo extraído (devidamente transformado em gasolina) pelo preço internacional. Outra coisa é dizer que a Petrobras está tendo prejuízo. A defasagem em relação ao preço internacional não conflita com o fato de o preço do petróleo no mercado doméstico ser ainda substancialmente maior que o custo da produção.  O grande problema da Petrobrás, no momento, é sua incapacidade de expandir a produção de derivados, especialmente gasolina. É por conta dessa deficiência que a distância entre os preços internos e os internacionais vem afetando o balanço da empresa. A expansão subsidiada da frota de automóveis, patrocinada pelo keynesianismo de demanda do governo, só irá piorar a situação. Mais alguns milhares de barris diários deverão ser importados – e subsidiados.

A saturação da nossa malha urbana nos levará a mais ineficiência sistêmica. Nas economias contemporâneas, em que grande parte do PIB é gerado nas grandes cidades e metrópoles, a mobilidade urbana é importante não só para a qualidade de vida de seus habitantes, mas para a produtividade e o custo da mão-de-obra.

A via do Keynesianismo populista é pavimentada de boas intenções. E liga um engarrafamento a outro.

Download:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=1527 4
O governo alterou corretamente a regra de correção da caderneta de poupança? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1198&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-governo-alterou-corretamente-a-regra-de-correcao-da-caderneta-de-poupanca https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1198#comments Mon, 14 May 2012 03:00:27 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1198 A rentabilidade  da caderneta de poupança, fixada em TR mais 6,17%, ao ano representava um obstáculo a novas reduções na taxa Selic.

Para resolver o problema do piso de rentabilidade o governo optou por um sistema híbrido, que manteve a regra antiga para os depósitos existentes, e criou, para os depósitos novos, a regra de 70% do valor da Selic + TR em vez dos atuais 6,17% + TR sempre que a Selic atingir 8,5% ao ano ou menos.

Havia grande temor, por parte das autoridades governamentais, de que se usasse politicamente a alteração, que é tecnicamente justificável, como argumento político. Afinal, ainda está fresca na memória da população o episódio do congelamento dos depósitos no Governo Collor.

A decisão tomada foi, portanto, costurada para que fosse dada a maior garantia possível aos poupadores de que nada mudaria em relação aos depósitos já existentes.

Ainda que se tenha em mente esse contexto político, cabe perguntar: haveria solução técnica melhor? A solução adotada está totalmente livre de causar efeitos colaterais negativos?

A rigidez da rentabilidade líquida da poupança tinha duas causas: a existência de um piso nominal, de 6,17% ao ano, e a isenção da tributação do IR para pessoas físicas.  Ambas elevavam a rentabilidade líquida da poupança. O governo optou por manter a isenção tributária e reduzir o piso nominal de remuneração.

Alternativamente, o governo poderia ter optado por reduzir paulatinamente a anacrônica e injustificada isenção de imposto de renda de que gozam esses depósitos. A segunda opção teria duas importantes vantagens em relação à adotada.

Em primeiro lugar, a nova regra irá criar uma indeterminação sobre o custo de funding entre as várias instituições, gerando incerteza sobre qual será o spread na poupança em cada instituição. Isso ocorrerá porque o custo para cada instituição individual dependerá da proporção em que se dividirá o total dos depósitos entre os antigos (TR + 6,17%) e os novos (70% da Selic + TR). Sendo uma aplicação fortemente regulamentada, com contratos de longo prazo e com subsídio fiscal implícito, essa circunstância poderá dar margem a disputas, inclusive judiciais.

Mutuários e suas associações poderão reivindicar condições de reequilíbrio do spread original, pressionando por redução de juros em seus contratos, e instituições com maior proporção  de depósitos antigos podem passar a demandar compensações. Isso acabará  levando a aumento das já excessivas arbitragens regulatórias existentes no Sistema Brasilieiro de Poupança e Empréstimo (SBPE).

Essa crescente regulação nem sempre consegue resolver todos os problemas que pretende solucionar e sempre corre o risco de criar novas brechas jurídicas e novas situações de conflito não imaginadas inicialmente. No mínimo será acrescentado um maior custo operacional para que as instituições financeiras e o Banco Central obedeçam e operem a nova norma, com impacto deletério sobre a produtividade do setor financeiro e da economia.

Segundo as estatísticas do SFH de fevereiro publicadas pelo Banco Central, 53% dos depósitos em poupança estão em instituições públicas e 47% em instituições privadas. Já os financiamentos a mutuários finais concedidos por essas instituições se dividem na proporção de 72% (com grande concentração na Caixa Econômica Federal) e 28%. Ou seja, bancos públicos e privados captam poupança quase que na mesma proporção, mas bancos públicos (em especial a CEF) têm empréstimos imobiliários em valor 172% superior ao dos bancos privados.

Os financiamentos habitacionais de instituições privadas a mutuários pessoas físicas representam apenas R$ 51,3 bilhões, enquanto os financiamentos à produção e os eufemisticamente chamados “desembolsos futuros”[1] correspondem a R$ 43,4 bilhões. Os financiamentos a compradores finais com recursos da poupança correspondem a somente 32,7% dos depósitos das instituições privadas.

Os percentuais de aplicação de recursos da poupança em financiamento habitacional devem ser comparados com o percentual de 65% que, em tese, seria o determinado na norma de direcionamento do SFH. As instituições privadas estão ofertando muito menos crédito subsidiado do que deveriam, capturando, portanto, a isenção fiscal. Já as públicas estão com excesso de aplicação, elevando o risco governamental implícito.

O novo modelo da poupança pode tornar esse cenário pior, caso as novas regras levem os bancos privados a demandar mais benefícios regulatórios sob a forma de não aplicação dos recursos da poupança em crédito habitacional. Tal situação é inconsistente com o objetivo governamental de reduzir  o spread bancário.

Por outro lado, a redução do incentivo tributário da poupança reduziria o grau de subsídio mal direcionado no SFH, poderia gerar receita pública imediatamente e caminhar na direção de reduzir a excessiva regulação do SBPE. Tornaria desnecessário o estranho privilégio que se concedeu aos depósitos antigos, que, além de continuar capturando rentabilidade superior àquela que seria determinada pelas novas condições da política monetária, continuarão gozando de incentivo fiscal para tanto!

Se, no momento atual, fosse imposta uma tributação de 5% sobre os rendimentos, a rentabilidade efetiva da poupança cairia, para o poupador pessoa física, de 6,17% ao ano para 5,86%, liberando igualmente a política monetária, sem discriminar novos e antigos poupadores e sem criar heterogeneidade no funding da modalidade. Do ponto de vista da receita pública, haveria uma expansão de aproximadamente 1,3 bilhão por ano, dos quais praticamente R$ 600 milhões seriam repartidos entre Estados e municípios, de acordo com as regras do FPE e do FPM.

Assim, a solução adotada pelo Governo faz pouco sentido, pois cria um modelo híbrido, complexo e que, principalmente, mantém uma isenção fiscal que não chega, na prática, aos que deveriam ser os principais beneficiários, continuando a vazar pelas brechas da arbitragem regulatória. Piora o quadro o fato de que os fortes subsídios tributários e creditícios concedidos à habitação parecem ter contribuído mais para a espiral de preços e valorização de terrenos do que para a redução do custo final aos adquirentes. . Além disso, parte significativa dos empréstimos (estoque de R$ 57 bilhões de créditos em dezembro de 2011) é feita na modalidade de taxas livres, destinada ao financiamento de imóveis de maior valor para as classe média e média alta.

Por fim, quando se considera o valor das operações (em contraposição ao número), observa-se que, em sua grande maioria, os poupadores pertencem à classe média. Para se ter uma ideia da distribuição, em dezembro de 2011, cerca de 85% das contas tinham saldo inferior a R$ 5 mil. Isso representava algo em torno de 10% do valor total dos depósitos. No outro extremo da distribuição, cerca de 0,5% das contas tinham valores acima de R$ 100 mil, que representavam mais de 30% do valor dos depósitos. Do ponto de vista distributivo, portanto, seria mais eficaz tributar os depósitos de poupança, isentando somente os de baixo valor (para maiores detalhes acerca da tributação da poupança ver, neste site, o texto A isenção do Imposto de Renda na poupança é um subsídio justo e eficiente?).

A introdução paulatina de imposto de renda sobre a poupança não só evitaria o problema da indeterminação do custo da poupança entre as várias instituições – o que, insisto, poderá, no médio prazo, suscitar conflitos jurídicos e regulatórios – como reduziria o grau de subsídio em um sistema que, patentemente, não tem dirigido recursos públicos da isenção fiscal para o público que  pretendia beneficiar.

Tal solução, tecnicamente superior, não poderia ser improvisada. Em vista da incidência do princípio da anterioridade sobre o imposto de renda, deveria ter sido, necessariamente, prevista em lei ainda em 2011.

Downloads:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).

[1] Desembolsos futuros são as tranches de financiamento à produção já contratadas mas ainda não desembolsadas para as construtoras.

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=1198 3
Quanto custa ao Brasil manter um elevado nível de reservas internacionais? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=418&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quanto-custa-ao-brasil-manter-um-elevado-nivel-de-reservas-internacionais https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=418#comments Mon, 04 Apr 2011 16:51:38 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=418 O governo brasileiro dispõe atualmente de aproximadamente US$ 300 bilhões de dólares registrados como reservas internacionais no balanço do Banco Central. O acúmulo desse valor se deu pelos sucessivos superávits no comércio internacional (exportações em valores maiores que as importações) e pela entrada de investimentos externos no país.

Quando os dólares entram no país em função das exportações, eles são da propriedade das firmas exportadoras. Quando entram por investimentos em ações, por exemplo, eles pertencem a quem vendeu as ações a investidores internacionais. Quando entram por investimentos em títulos bancários, pertencem aos bancos que venderam tais títulos. Como, então, esses dólares vão parar nas mãos do governo, mais especificamente do Banco Central?

Vão para o Banco Central porque ele compra tais dólares das mãos de seus detentores privados. Em um primeiro momento, essa compra significaria o Banco Central recolher dólares no mercado, e entregar reais. Mas isso implicaria aumentar substancialmente o volume de reais em circulação na economia. Para que esse imenso volume de compras não gere efeitos inflacionários, o próprio Banco Central utiliza títulos de sua carteira para fazer o que se chama tecnicamente de “esterilizar” os efeitos dessa compra de divisas externas. Em resumo, troca títulos por dinheiro. Para levantar os reais necessários à compra dos dólares, o governo aumenta a sua dívida dentro do país.

Se o governo tivesse superávit nas suas contas fiscais (receitas maiores que os gastos públicos) ele até poderia usar esse dinheiro poupado para comprar as reservas. Mas como o governo brasileiro é deficitário, a única forma de comprar dólares é expandindo o seu endividamento.

O governo tem diferentes motivos para acumular reservas em moeda estrangeira. O principal é garantir uma espécie de seguro contra crises internacionais. Quando uma crise interrompe o fluxo de empréstimos em dólares no mercado internacional, os países que não têm uma reserva dessa moeda não podem fazer importações (no caso do Brasil, por exemplo, ninguém aceitaria pagamentos em Reais, pois esta não é uma moeda de circulação internacional). Nos anos 80 e 90 do século passado, por exemplo, por diversas vezes o Brasil viu-se sem dólares e precisou pedir auxílio ao FMI e adotar medidas para lidar com o problema. Tais medidas são sempre custosas: elevação das taxas de juros internas (para atrair investidores internacionais), redução do ritmo de crescimento da economia (para reduzir a demanda por importações e gerar excedentes não consumidos no país a serem exportados), ajuste das contas públicas (para reduzir a necessidade de financiamento externo à dívida do governo).

A importância de dispor de grandes reservas internacionais pode ser vista no impacto da crise de 2009 sobre a economia brasileira. Tendo em vista que não sofremos escassez de dólares, devido ao alto volume de reservas, não foi necessário elevar os juros. Foi possível, inclusive, reduzi-los, para estimular a atividade econômica. A abundância de recursos externos também permitiu ampliar o déficit público, como forma adicional de alavancar a atividade econômica. A própria dívida pública caiu como proporção do PIB, devido à combinação de dois fatores: i) o País, àquela altura, já tinha se tornado um credor líquido em dólares; ii) houve desvalorização do real em relação ao dólar, o que significa que as reservas disponíveis, depositadas em dólares, passaram a valer mais quando avaliadas em reais. Como o valor das reservas (um ativo público) aumentou em reais (mesmo mantendo-se constante em dólares) e é deduzido da dívida pública bruta para se apurar a dívida pública líquida, o resultado final foi uma queda da dívida líquida[1].

Há, portanto, o benefício de não ter sido necessário gastar recursos públicos pagando-se juros mais altos, além do benefício de não ter havido uma redução drástica da atividade econômica (com perda de empregos e renda). Como não houve um choque de juros sobre a dívida pública, o prêmio de risco pago pelas empresas brasileiras que tomam empréstimo no exterior também não cresceu.

Não obstante esses benefícios, é preciso ficar claro que há um custo em se manter elevadas (e crescentes) reservas internacionais no Banco Central.

Deve existir, assim, um ponto em que os custos de carregamento das reservas passem a superar seus benefícios e que determinaria o volume ótimo de reservas. Saber com exatidão os custos das reservas, portanto, é crucial para que o País possa avaliar os custos e benefícios envolvidos na acumulação de reservas. São duas as fontes de custos:

(a) a diferença entre os juros que o governo paga sobre os recursos que tomou emprestados para comprar as reservas (juros sobre a dívida interna) e os juros que rendem as reservas internacionais;

(b) quando o real se valoriza em relação ao dólar, isso significa que as reservas em dólares passaram a valer menos reais, representando uma perda para o Banco Central e para o governo.

Não há estatísticas oficiais regularmente publicadas que apresentem o custo de manutenção das reservas. Aparecem na imprensa, esporadicamente, valores estimados pelo governo e pelas entidades de mercado, que nem sempre têm coincidido.

Em março de 2011 os dirigentes do Banco Central afirmaram[2] que o custo fiscal das reservas internacionais no ano de 2010 teria sido de R$ 26 bilhões.

Tal valor diverge daquele calculado pelo Departamento Econômico do Bradesco, por exemplo, que avaliou esse custo em aproximadamente R$ 46 bilhões[3].

A diferença poderia decorrer do fato de o Banco Central ter estimado apenas os custos descritos no item (a) acima (diferença de juros), não considerando os do item (b) (variações na cotação do real frente ao dólar).  Pode-se justificar esse método de cálculo argumentando que a perda decorrente de valorização do real só seria efetiva se o Banco Central vendesse os dólares. Já que o BC não vendeu dólares no período,  ele não teria realizado o “prejuízo”. No futuro, na ocorrência de apreciação do dólar, essa perda seria revertida.

Mas a diferença de estimativas não decorre desse tipo de procedimento, até porque a citada estimativa do Banco Bradesco também não computa a depreciação do dólar.

A origem da discrepância parece estar no fato de o Banco Central ter utilizado em seu cálculo um custo de financiamento da dívida interna muito baixo, de 7,8% ao ano.

No ano de 2010, a taxa Selic média, segundo dados do próprio Banco Central, foi de 9,8%, o que, por si só, levaria a uma diferença no custo de 2 pontos percentuais ao ano em relação aos 7,8% utilizados no cálculo do custo da reserva.

A posição do BC sobre o custo das reservas foi exposta em matéria da repórter Martha Beck, de O Globo, em 24 de fevereiro:

Segundo o diretor de administração do BC, Anthero Meirelles, o custo de captação de recursos no ano passado foi de 7,76%, enquanto a rentabilidade das reservas ficou em 1,88%. Isso resultou numa diferença de 5,86% que quando aplicada sobre o saldo médio das reservas – de R$ 455 bilhões – resulta num gasto de R$ 26,6 bilhões[4].

Tomando como referência a própria base de cálculo do Banco Central, de R$ 455 bilhões, o custo fiscal adicional decorrente da diferença de 2 pontos percentuais na taxa incidente sobre a dívida interna seria de R$ 9,1 bilhões, o que elevaria o custo total dos R$ 26,6 bilhões para R$ 35,7 bilhões.

Ocorre, entretanto, que esse cálculo pode ainda ser considerado subestimado. O custo da dívida para o Tesouro foi superior à taxa Selic, como demonstra o Anexo 4.2. do Relatório Mensal da Dívida Pública Federal divulgado pela Secretaria do Tesouro Nacional. Para o mês de dezembro de 2010, o custo da Dívida Pública Mobiliária Federal Interna (DPFMi) acumulado nos últimos doze meses foi de 11,83%.

Tabela 1. Custo da DPMFi em 2010

Fonte: STN

Com base nesse custo efetivo de captação do Tesouro Nacional, de 11,83%, tomando-se os valores diários das reservas internacionais, e, ainda, considerando-se a rentabilidade das reservas assumida pelo Bacen – 1,9% ao ano – a estimativa de custo fiscal do carregamento das reservas foi de R$ 42,5 bilhões. Muito próximo, portanto, dos R$ 46 bilhões estimados pelo Banco Bradesco.

Assim, o custo fiscal das reservas, sem computar o impacto da desvalorização do dólar ao longo de 2010, ficou no intervalo entre R$ 35,7 bilhões e R$ 42,5 bilhões. No primeiro caso, o custo de captação equivale à taxa Selic; no segundo caso, equivale à taxa média apontada pelo Tesouro Nacional para a DPMFi.

O custo relativo à desvalorização do dólar também pode ser calculado aproximadamente como o somatório das perdas ou ganhos diários decorrentes da desvalorização/valorização do dólar em relação ao saldo de reservas da véspera[5]. Usando essa metodologia, o custo da desvalorização das reservas em 2010 pode ser calculado em R$ 16,9 bilhões.

Desse modo, o custo total – o de diferença de taxas de juros  e o relativo à depreciação do dólar – pode ser estimado entre R$ 52,8 bilhões e R$ 59,4 bilhões.

Seria importante que o Banco Central estabelecesse com clareza a sua metodologia de cálculo do custo fiscal das reservas internacionais e, especialmente, justificasse o uso da taxa de dívida interna utilizada. A publicação regular desses valores, acompanhada da respectiva metodologia de cálculo, seria importante medida de transparência das contas públicas. Todos reconhecem os benefícios das reservas internacionais detidas pelo País. Não faz sentido que haja dúvidas quanto aos seus custos.

Downloads:

  • veja este artigo também em versã o pdf (clique aqui).

Para ler mais sobre o tema:

Saraiva, B. e Canuto, O. (2009) Vulnerability, exchange rate and international reserves: whither Brazil? Disponível em http://www.roubini.com/latam-monitor/257719/vulnerability_exchange_rate_and_international_reserves_whither_brazil.


[1] A rigor, a queda na taxa internacional de juros que se seguiu à crise fez com que os títulos internacionais aumentaram seu valor, em dólar, o que também contribuiu para o aumento de nossas reservas. Mas esse fator teve impacto secundário na melhora da relação dívida líquida/PIB comparativamente à desvalorização do real.

[2] Declarações prestadas em audiência na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado  no dia 22 de março de 2011.

[3] http://oglobo.globo.com/economia/mat/2011/02/24/custo-de-carregamento-das-reservas-internacionais-foi-de-26-6-bi-em-2010-923874889.asp.

[4] Ver fls. 43 e 44 do Balanço do Bacen  em:

http://www.bcb.gov.br/htms/inffina/be201012/Demonstra%E7%F5es%20Financeiras%20Bacen%2031.12.2010.pdf

[5] As reservas não estão totalmente aplicadas em dólar norte-americano, apesar de contabilizadas, na posição diária, nessa moeda. Assim, o estoque considerado para fazer o cálculo da valorização/desvalorização tem uma pequena margem de erro. Como a desvalorização do dólar foi maior do que as demais moedas, a estimativa do custo derivado da desvalorização das reservas – que não é objeto principal de discussão nesse texto – pode estar ligeiramente superestimada.

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=418 24
A isenção do imposto de renda na poupança é um subsídio justo e eficiente? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=179&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-isencao-do-imposto-de-renda-na-poupanca-e-um-subsidio-justo-e-eficiente https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=179#comments Wed, 23 Feb 2011 00:30:54 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=179 Existe a idéia consolidada na sociedade brasileira de que a caderneta de poupança é um mecanismo que favorece as classes populares, tanto por oferecer um investimento simplificado, seguro e de boa rentabilidade, quanto por lastrear financiamentos habitacionais de caráter social. Talvez por isso se aceite como meritória a isenção do imposto de renda concedida aos seus rendimentos.

Essas crenças não resistem à análise, mesmo superficial. A avaliação mais atenta sobre a poupança, sua regulamentação e o modo como são aplicados seus recursos demonstram que:

a) a caderneta de poupança não é prioritariamente um “investimento dos pobres e da baixa classe média”, sendo uma opção a mais de investimento altamente competitiva em relação a outros instrumentos financeiros mais complexos (como os fundos de investimentos) e na qual, inclusive, se observou incremento recente[1] das aplicações de maior valor;

b) a isenção de Imposto de Renda concedida à poupança gera um subsídio bilionário que, ao contrário da crença geral, não beneficia somente a população de baixa renda, pois é também apropriado pelos construtores e vendedores de imóveis e pelas instituições financeiras que intermedeiam esses recursos;

c) os recursos efetivamente aplicados em habitação são a minoria dos recursos disponíveis, pois há uma série de canais previstos na regulamentação que permitem que as instituições financeiras façam aplicações alternativas com esses depósitos; além disso, mais de 70% dos recursos aplicados em habitação são destinados à compra de imóveis usados e, assim, pressionam a demanda sem aumentar diretamente a oferta de novos imóveis;

d) os valores que se deixa de arrecadar com a isenção do Imposto de Renda afetam não só a arrecadação da União, mas também a de Estados e Municípios, pois esses entes subnacionais têm direito à receita deste imposto por meio dos Fundos de Participação. Essa receita subtraída dos governos locais poderia ser mais bem aplicada em programas de expansão da oferta de terrenos e de moradias efetivamente voltados para os pobres. Essa focalização se mostra necessária especialmente em face dos graves riscos que a precariedade das moradias populares nas megalópoles impõe aos seus habitantes.

A caderneta é mesmo um investimento dos pobres?

A poupança é hoje um ativo financeiro com saldo total de R$ 368 bilhões[2], correspondente a 10% do PIB[3], resultado de expressiva expansão recente, que se deu em função de sua alta rentabilidade em comparação às demais opções de aplicação financeira disponíveis no mercado.

Embora cercados de uma aura quase mística, os depósitos de poupança são um ativo financeiro como outro qualquer. O investidor procura rentabilidade líquida máxima, ajustada pelo risco da aplicação.

Em uma aplicação financeira típica, para calcular a rentabilidade líquida, o investidor deve considerar como abatimentos da remuneração bruta: i) a taxa de administração – que costuma variar de 0,3% a 4% ao ano; ii) os custos de tributação, que podem variar de 15% a 22,5% sobre os juros brutos, a depender do prazo, além de eventual IOF; e iii) todos os chamados “custos de transação”, como, por exemplo, o custo de aprender as regras de tributação e eventuais perdas devidas à não observância de períodos de carência.

Os depósitos de poupança estão desonerados de boa parte desses custos. Em primeiro lugar, não sofrem tributação. Tampouco têm taxa de administração. Adicionalmente, não têm qualquer penalidade em caso de movimentação fora das datas de aniversário, além de apresentarem um conjunto de regras bastante limitado e simples no que diz respeito à sua movimentação, o que reduz o custo de transação.

Disso decorre que, à medida que caem as taxas de juros na economia em geral (um fenômeno observado na economia brasileira nos últimos anos), os depósitos de poupança vão se tornando muito competitivos em relação às demais opções de investimento, mesmo que sua remuneração bruta se mantenha em relativa desvantagem.

A rentabilidade bruta da poupança é bastante inferior, por exemplo, à dos Certificados de Depósito Bancários – CDB, mas a rentabilidade líquida (rentabilidade após a dedução dos custos e impostos) dos dois ativos é muito similar. Entre junho de 2006 e junho de 2010, a poupança rendeu 7,6% ao ano e os CDBs, 11,4% ao ano: uma diferença de 3,7% ao ano, certamente considerável. Porém, basta descontar o Imposto de Renda incidente sobre o rendimento dos CDBs para que as rentabilidades líquidas se equiparem. Supondo uma alíquota de IR de 22,5% (os CDBs da amostra são de curto prazo), o diferencial de rentabilidade cai para 1,2% ao ano, distância praticamente desprezível, quando se consideram os custos administrativos, tributários e de transação envolvidos nos CDBs.

Não surpreende, portanto, que os depósitos de poupança tenham crescido sua participação no PIB, de 8,5% para 10%, enquanto as cotas de fundos de renda fixa, com toda a crescente complexidade dessa indústria e a proliferação de alternativas de aplicação, viram sua participação declinar, ainda que marginalmente, de 30,6% para 29,5% do PIB.

Tem sido freqüente afirmar que o vigor renovado dos depósitos de poupança se explicaria fundamentalmente pela entrada da chamada nova classe média no mercado e sua conseqüente bancarização. Essa interpretação não parece a mais correta frente ao comportamento dos saldos. Quanto maior a faixa de valor por cliente, maior foi o aumento da participação relativa da respectiva faixa no saldo total de depósitos de poupança nos últimos 4 anos. O mesmo ocorreu com relação número de depositantes. Quanto maior o valor do saldo, maior o crescimento relativo da participação dos depositantes da respectiva faixa no total de depositantes da poupança.

Nas faixas de depositantes que possuem entre R$ 50 mil e R$ 200 mil reais, a poupança tem mais depositantes que os CDBs[4]. Além disso, um milhão e meio de depositantes da poupança têm saldo superior a R$ 50 mil, sendo que, desses, quase seis mil possuem mais de R$ 1 milhão em depósitos.

Quanto custa o subsídio à poupança?

Uma forma simples de calcular o subsídio dado à poupança é calcular qual deveria ser a rentabilidade bruta paga ao poupador para que sua rentabilidade líquida se mantivesse inalterada após a cobrança do imposto. Com base nos dados de junho de 2006 a junho de 2010, o custo do subsídio é de 1,9% sobre o saldo total. Seu custo financeiro é demonstrado na tabela abaixo.

Saldos e renúncia fiscal dos depósitos de poupança 06/06 a 06/10


O benefício fiscal da poupança, como se vê, está crescendo de maneira rápida. Na soma dos dois últimos semestres chegou a R$ 6 bilhões.

A política de isenção do IR na caderneta de poupança ainda tem o inconveniente de retirar recursos dos Estados e Municípios, pois parte da arrecadação daquele imposto é redistribuída a esse entes por meio dos fundos de participação. Este dinheiro retirado das receitas das autoridades locais poderia ser empregado em programas de regularização fundiária que abrissem espaço para a construção de novas unidades habitacionais. Isso é ainda mais importante quando se percebe que um dos fatores críticos na elevação dos preços de imóveis tem sido a escassez de terrenos.

Com base nos dados da Tabela 1 é possível estimar que os Estados e Municípios deixaram de receber R$ 8,5 bilhões (que equivale a 45% da renúncia fiscal) entre junho de 2006 e junho de 2010.

A magnitude em si do subsídio não é razão para condenar sua concessão. O que importa é avaliar a sua destinação, quem dele se apropria e quais são os efetivos benefícios econômicos e sociais de sua concessão. É o que se procura analisar a seguir.

Quem se beneficia do subsídio à poupança?

O critério mais importante para verificar a justiça de um subsídio é averiguar a quem, de fato, ele está beneficiando.

A princípio imagina-se que o pagamento de uma taxa de juros bruta menor ao poupador (pela isenção do Imposto de Renda) gera recursos mais baratos para emprestar a quem toma um financiamento habitacional. Supondo-se que o típico mutuário do Sistema Financeiro da Habitação – SFH – seja um indivíduo de baixa renda, então o subsídio decorrente da isenção do IR constituiria uma política de distribuição de renda em favor dos mais pobres, por meio da oferta de crédito habitacional a juros baixos.

Ocorre que o aumento da demanda por imóveis gerada pelos financiamentos a juros subsidiados pode redundar em elevação dos preços desses imóveis. Ao final, o ganho recebido pelos mutuários na redução dos juros é anulado pela elevação dos preços dos imóveis que irão comprar. Nesse caso, o beneficiário final do subsídio tende a ser o vendedor do imóvel.

Embora não haja dados oficiais disponíveis sobre a evolução do preço do m2 quadrado de imóveis de vários padrões e em várias regiões do País, dados disponíveis para algumas regiões corroboram essa hipótese, como as pesquisas do Secovi/SP e de vários sindicatos de corretores de imóveis do País.

Para os imóveis financiados no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação, cujo valor máximo de avaliação é R$ 500 mil, o valor real médio de financiamento de imóveis novos elevou-se em 46%. No caso dos imóveis usados, pelo mesmo critério, a elevação foi de 62%.

Na chamada Carteira Hipotecária, voltada para imóveis com valor de avaliação superior a R$ 500 mil, a evolução real nos preços foi de 32% para imóveis novos e de 44% para os usados.

Há, portanto, evidências de que os subsídios aos financiamentos imobiliários estão, em parte, sendo apropriados pelos vendedores de imóveis, via elevação de preços.

Outro critério relevante para avaliar a eficácia do subsídio é mensurar que percentual dos saldos de depósitos é efetivamente usado em crédito para moradia popular.

A regulamentação da matéria pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) determina que 65% devem ser aplicados em empréstimos imobiliários (sendo 80% no SFH, voltado a imóveis mais baratos), 20% em depósitos compulsórios e 15% de forma livre. Portanto, 52% dos recursos da poupança deveriam ser aplicados em financiamentos imobiliários do SFH, aqueles supostamente de maior alcance social. Ainda assim, cabe lembrar que o SFH financia imóveis até R$ 500 mil, valor que, mesmo nas cidades mais caras, é mais que suficiente para adquirir um imóvel de classe média.

Uma observação mais cuidadosa, entretanto, mostra que a regulamentação do CMN permite que os recursos efetivamente aplicados em habitação sejam inferiores ao mínimo estabelecido de 52%.

Algumas formas de subestimar a exigibilidade são:

i)                   a base de cálculo considera a média dos depósitos dos últimos 12 meses ou o saldo mais recente, o que for menor. Em períodos de crescimento do volume de depósitos, a média dos saldos dos últimos 12 meses pode ser bem menor do que o último saldo registrado, o que faz com que o volume dos financiamentos concedidos, como percentual do saldo mais recente, fique abaixo dos 52%;

ii)                 permitir que sejam considerados financiamentos os chamados “desembolsos futuros”, que não necessariamente se transformarão em financiamentos efetivos. Em 2010 o saldo dos desembolsos futuros equivaliam a R$ 22,4 bilhões, quantia 13,7% superior aos financiamentos efetivamente concedidos às construtoras;

iii) o mecanismo conhecido como “multiplicador de exigibilidades”, previsto no art. 13 da Resolução nº 3.347 do CMN. Por esse mecanismo, a concessão de financiamentos a taxas de juros inferiores a 12% a.a. dá às instituições financeiras direitos de lançar o saldo do financiamento correspondente acrescido de um multiplicador. Com isso, a instituição financeira consegue liberar mais recursos da poupança para aplicações não-habitacionais, mais rentáveis.

Conclusão

Os subsídios concedidos por meio da não-tributação do IR nos depósitos de poupança não são capturados pela camada mais baixa da população ou dão suporte a operações que não têm qualquer ligação com financiamentos habitacionais.

A partir dessas constatações não parece ser justificada a manutenção da concessão de subsídios à poupança pelo mecanismo atual – por meio da isenção de imposto de renda sobre os rendimentos, cujo custo para o setor público entre julho de 2009 e junho de 2010 pode ser estimado em R$ 6,1 bilhões.

O argumento de que o fim do benefício prejudicaria os poupadores deve ser visto com cautela. O mercado financeiro brasileiro oferece um amplo conjunto de alternativas de aplicação. O pior cenário é a manutenção do status quo, que vem ajudando a inflar os preços dos imóveis por meio da concessão de taxas de juros artificialmente reduzidas, diminuindo a capacidade de o Estado prover melhores condições de habitação para a população de baixa renda por meio de programas mais focados nesse segmento.

Pior, a magnitude atual dos subsídios da poupança pode também estar associada à espiral de preços que hoje se verifica no mercado imobiliário, em razão da falta de foco dos subsídios, marcadamente pela ênfase na concessão de financiamentos a imóveis usados, que representam mais de 70% dos financiamentos à aquisição.

Essas distorções são bastante graves e já mereceriam, em condições normais, um amplo debate nacional no sentido de alterar o marco institucional que rege os depósitos de poupança e a aplicação de seus recursos. O agravamento das recorrentes tragédias que assolam as megalópoles brasileiras em período de chuvas, em boa medida decorrentes das péssimas condições de moradia da população mais pobre, só torna esse debate imperioso e inadiável.

Downloads:

  • veja este artigo também em versã o pdf (clique aqui).

[1] Entre junho de 2006 e junho de 2010 as faixas de aplicação de maior valor tiveram crescimento na sua participação no total de depósitos bem maior que as faixas de menor valor. Esse deslocamento, por sua magnitude, não pode ser explicado simplesmente pelo aumento do valor nominal das aplicações.

[2] Posição de novembro de 2010.

[3] Exceto pela utilização do IPCA, cuja fonte é o IBGE, os demais dados utilizados neste artigo, quando não houver indicação em contrário, têm como fonte os quadros anexos às Notas à Imprensa sobre Política Monetária e as Estatísticas do Sistema Financeiro da Habitação, ambos publicados mensalmente pelo Banco Central do Brasil e disponíveis na página eletrônica da instituição.

[4] Segundo o Relatório do FGC de junho de 2010, disponível em http://www.bcb.gov.br/fis/fgc/estat/arquivos/InfoConsolidadas/FGC-062010.pdf

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=179 14