Marcos Mendes – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 08 Jun 2022 19:20:21 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Dívidas judiciais: pagamento, parcelamento e exceções ao teto de gastos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3619&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=dividas-judiciais-pagamento-parcelamento-e-excecoes-ao-teto-de-gastos Wed, 08 Jun 2022 19:20:21 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3619 Dívidas judiciais: pagamento, parcelamento e exceções ao teto de gastos

As emendas constitucionais 113 e 114, ambas de 2021, criaram um conjunto complexo de regras para pagamento de dívidas judiciais da União, definindo limites para pagamento ou postergação, e inclusão ou não no teto de gastos. Além da complexidade, vários analistas e técnicos do Congresso apontaram como problema básico dessas regras a tendência ao acúmulo acelerado de precatórios não pagos. Como a regra vale até 2026, tenderia a haver um grande estoque de dívidas judiciais a ser pago em 2027. Isso aponta para provável alteração da regra antes de 2027, que introduza novo parcelamento e postergação.

A presente nota tem dois objetivos. O primeiro é apresentar um esquema que busque simplificar o entendimento das regras em vigor, com o intuito de ser um guia rápido para consultas.

O segundo é utilizar os poucos dados já apresentados pela Secretaria do Tesouro Nacional e pela Secretaria de Orçamentos Federais (SOF) quanto ao pagamento e adiamento de precatórios para checar se a tendência de acúmulo acelerado está, de fato, ocorrendo na prática.

I – Descrição esquemática das regras relativas a precatórios: inclusão ou não no teto de gastos e inclusão ou não no limite de pagamento

A nova redação constitucional trazida pelas ECs 113 e 114 criou nada menos que sete situações distintas para o pagamento de débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado (precatórios e requisições de pequeno valor – RPV) quanto a: 

  1. Parcelamento ou pagamento integral no exercício em que a justiça determina que sejam pagos;
  2. Serem ou não computados no teto de gastos.

A figura abaixo apresenta essas sete situações:

 

  1. Vejamos cada uma dessas situações. Notas de rodapé são inseridas para indicar o dispositivo constitucional que estipula cada regra.As RPVs já tinham prioridade de pagamento sobre as demais dívidas judiciais antes das ECs 113 e 114. A edição destas duas emendas estabeleceu um limite máximo para pagamento de dívidas judiciais em cada exercício (a ser comentado adiante), mas colocou as RPVs em primeiro lugar na fila. Logo, se o montante de RPV for grande, menor será o espaço para pagamento de precatórios. Por isso, o pagamento das RPVs:1) Requisições de pequeno valor (RPV) devidas no exercício
    1. DIMINUEM o espaço disponível para o pagamento das demais despesas judiciais incluídas no limite de pagamento;
    2. SÃO computadas no teto de gastos.

 

 

2) Precatórios devidos no exercício ATÉ o limite imposto para o pagamento de despesas judiciais

A EC 114 criou um limite máximo para pagamento de dívidas judiciais em cada exercício financeiro. Os precatórios pagos dentro desse limite:

  1. Por definição, SÃO afetadas pelo limite de pagamento de despesas judiciais;
  2. SÃO computados no teto de gastos.

 

 

3) Precatórios devidos no exercício e não pagos por estarem ACIMA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais. 

 

Esses precatórios se dividem em dois subgrupos:

3.1) Podem ser pagos à vista se o credor aceitar desconto de 40%. Nesse caso:

  1. a) Estão FORA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais;
  2. b) NÃO são computados no teto de gastos.

3.2) Não havendo o pagamento com desconto, o valor devido fica postergado para os exercícios seguintes. Nesse caso: 

  1. a) Serão afetados pelo limite imposto ao pagamento de despesas judiciais nos exercícios futuros em que vierem a ser pagos;
  2. b) São computados no teto de gastos nos exercícios futuros em que vierem a ser pagos.

 

4) Parcelamentos de precatórios de alto valor:

Antes da edição das ECs 113 e 114 já havia a possibilidade de parcelamento de pagamento de precatórios de alto valor, que continua válida. Os pagamentos desses valores parcelados: 

a) Estão FORA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais;

B) NÃO são computados no teto de gastos.

 

 

5) Correção monetária de precatórios inscritos no exercício:

É usual que a Justiça determine o pagamento de complementação de precatórios, por conta de correção monetária dos valores devidos. Esses pagamentos:

a) Estão FORA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais;

b) São computados no teto de gastos.

 

 

6) Precatórios devidos aos estados e municípios relacionados ao Fundef, que serão pagos em 3 parcelas anuais:

Há precatórios de alto valor devidos aos estados e municípios, por pagamentos a menor da União ao Fundef. Esses valores foram parcelados em 3 anos e:

  1. Estão FORA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais;
  2. NÃO são computados no teto de gastos.

 

7) Precatórios a serem quitados mediante acerto de contas (quitação de dívidas e obrigações diversas com a União):

Para outros precatórios da União devidos a estados e municípios, que não os relacionados ao Fundef, ou precatórios detidos por pessoas físicas ou jurídicas no setor privado, foi prevista a possibilidade de encontro de contas, cancelando-se valores devidos à União ou utilizando-se para transações futuras com a União. Os registros das despesas referentes a essas transações:

c) Estão FORA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais;

d) NÃO são computados no teto de gastos.

 

 

II – A tendência ao acúmulo acelerado de precatórios não pagos

As sete possibilidades acima apontam o risco de haver, a cada ano, o aumento do estoque de precatórios não pagos. Esse estoque será tão maior quanto:

a) maior for o crescimento de RPV, que têm precedência sobre os precatórios no uso do limite de pagamentos (seção 1, acima)

b) maior o descasamento entre a taxa de correção do limite de pagamentos de dívidas judiciais (que é dada pelo IPCA do ano anterior) e a taxa de crescimento dos pagamentos de precatórios determinados pela justiça;

c) menor for o uso da opção de pagamento à vista com desconto (seção 3.1, acima) ou da opção de fazer transações com a União usando precatórios (seção 7, acima).

A presente seção faz uma avaliação quantitativa do crescimento do estoque de precatórios não pagos, a partir dos poucos números que a STN e a SOF já divulgaram a respeito. Para tanto, não se faz aqui qualquer consideração sobre o teto de gastos. O único objetivo é avaliar a tendência de acúmulo de precatórios não pagos. 

A Tabela 1 apresenta esse exercício e mostra que, mesmo com hipóteses bastante otimistas em relação aos fatores (a), (b) e (c) que influenciam a trajetória de acúmulo dos precatórios, haveria um crescimento de 54% no estoque devido e não pago em apenas um ano. Isso claramente prenuncia um acúmulo insustentável de obrigações.

Tabela 1 – Grandes números dos limites e pagamentos de precatórios em 2022 e simulações para 2023 (R$ bilhões)

Fonte: 2º Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias e simulações do autor.

 

Começando a descrição pelos dados referentes a 2022 temos, na linha (A), que o limite total para pagamento de dívidas judiciais no exercício é de R$ 40,5 bilhões. A linha (B) mostra que há R$ 19,9 bilhões em RPV a pagar, que têm precedência na fila de pagamento (seção 1, acima). Logo, restaria como limite para pagar os demais precatórios apenas R$ 20,6 bilhões (linha C).

O estoque de precatórios sujeitos ao limite é de R$ 42,8 bilhões (linha D). Esse montante já exclui todos aqueles que, conforme descritos na seção I, não se submetem ao limite (seções 4,5 e 6, acima).

A linha (E) contém os precatórios que, em decorrência do limite de pagamento constitucional, não foram pagos em anos anteriores (seção 3.2, acima). Como 2022 é o primeiro ano de vigência do limite, o valor é zero.

A linha (F) registra os precatórios devidos que foram usados pelos credores para acertos de dívidas ou pagamentos à União (seções 3.1 e 7, acima). Como 2022 é o primeiro ano, supõe-se que não tenha havido tempo para essas negociações e, portanto, nada se abateu com esses instrumentos.

A linha (G) registra o saldo líquido de precatórios a pagar e que estão sujeitos ao limite. Seu valor é dado pela soma dos precatórios inscritos, menos os que foram abatidos por transações com a União, mais os que não foram pagos em anos anteriores. 

A linha (H) mostra a diferença entre o limite de pagamentos e o valor de precatórios a pagar, registrando, assim, o saldo que fica para ser pago em exercícios anteriores. A estimativa do Tesouro e da SOF para 2022 está em torno de R$ 22 bilhões.

Passemos, agora, a fazer projeções para o que ocorreria em 2023. Em primeiro lugar é preciso estimar qual será o limite para pagamento de precatórios em 2023. Foi feita aqui uma hipótese de que o IPCA de 2022 será de 9,5% e, portanto, essa será a correção do limite. Com isso, a linha (A) registra um limite de pagamento para 2023 de R$ 44,3 bilhões.

De forma otimista, supõe-se que tanto as RPVs (linha B) quanto os precatórios inscritos no ano (linha D) cresçam apenas 6%: abaixo, portanto, do limite, o que abre espaço para mais pagamentos e trabalha contra a tese de acúmulo excessivo de precatórios não pagos.

Supõe-se que 15% do total de precatórios devidos em 2023 seja objeto de acordo para pagamento com desconto ou usado em transações com a União (linha F). Esse valor, de R$ 10,1 bilhões passa a ser pago fora do limite. Tal hipótese também é otimista, pois as simulações de Tesouro e SOF costumam usar o percentual de 10%. 

Porém, mesmo com esse abatimento, ainda restarão R$ 57,5 bilhões a pagar (linha G), valor que extrapola o limite de pagamentos em R$ 34,3 bilhões.

Ou seja, ao final do segundo ano de vigência dos limites de pagamento de precatórios, o saldo de débitos a pagar terá crescido 54% em relação ao saldo deixado em 2022 (linha I). Isso ocorre a despeito das hipóteses otimistas aqui assumidas. Além disso, a EC 103 estabeleceu como fator de correção das dívidas judiciais a taxa Selic. Tendo em vista o forte aumento dessa taxa ao longo de 2022, e a perspectiva de sua permanência em nível elevado em 2023, temos outro fator de crescimento acelerado do estoque de precatórios não pagos.

Logo, parece caracterizada uma trajetória de crescimento acelerado do saldo de precatórios não pagos. Em 2027, quando acabar a regra atual, possivelmente haverá nova prorrogação, pois não será possível quitar todo o estoque de uma só vez. Isso será similar ao que ocorre com estados e municípios, cujos precatórios são seguidas vezes parcelados ou prorrogados.

]]>
Uma questão absorvente https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3534&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=uma-questao-absorvente Mon, 06 Dec 2021 19:25:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3534 Uma questão absorvente[1]

 

 Por Marcos Mendes*, Henrique Moreira Rizzolli, Herly Xiao, Laura Guarnier, Leonardo Baran, Lucas Dalto Pizarro, Octávio Ferro Indio da Costa, Roberto Felize e Thiago Souza de Oliveira[2]

 

 Introdução

O presente texto utiliza a proposta de distribuição gratuita de absorventes íntimos a mulheres de baixa renda como estudo de caso de política pública. O intuito é mostrar a importância de se ter um diagnóstico adequado, definindo-se exatamente qual é o problema que se deseja resolver, as diferentes restrições, os impactos colaterais e as diferentes possíveis soluções.

Houve intenso debate na sociedade brasileira sobre a aprovação e veto parcial do Projeto de Lei 4.968/19, transformado na Lei 14.214/21. Seu objetivo principal era instituir o Programa de Proteção e Promoção de Saúde Menstrual (PPSM), que consistiria na entrega gratuita de absorventes ao seguinte público:

a) estudantes de baixa renda matriculadas em escolas da rede pública de ensino;

b) mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema;

c) mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal; e

d) mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa.

Também propunha a inclusão de absorventes como itens da cesta básica entregues no âmbito do já existente Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

O Programa seria implementado de forma integrada pela União, estados e municípios, mediante atuação, em especial, das áreas de saúde, de assistência social, de educação e de segurança pública.

Os recursos viriam do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) e do Sistema Único de Saúde (SUS). No primeiro caso, seriam recursos inteiramente do Governo Federal, que é o responsável pelo financiamento do FUNPEN. No segundo caso, o financiamento seria realizado pelos três níveis de governo, que custeiam solidariamente o SUS.

De forma adicional, propunha-se que os absorventes higiênicos femininos feitos com materiais sustentáveis teriam preferência de aquisição, em igualdade de condições, como critério de desempate, pelos órgãos e pelas entidades responsáveis pelo certame licitatório.

Os vetos por parte da Presidência da República atingiram os artigos 1º (que assegurava a distribuição gratuita), 3 º (que definia o público alvo), 5º (tratamento preferencial aos absorventes produzidos com material sustentável), 6º (financiamento pelo SUS) e 7º (inclusão dos preservativos na cesta básica). Somente os artigos 2º (que institui o PPSM) e 4º (implementação pelos 3 níveis de governo) foram mantidos, os quais declaram apenas intenções.

Após os vetos instaurou-se choque de opiniões na imprensa e nas redes sociais que reproduz a polarização política vigente no país. Quem é contra o Governo Bolsonaro passou a criticar os vetos e propor sua derrubada. Os defensores do Presidente passaram a desqualificar o mérito da proposta.

Políticas públicas decididas por embates ideológicos ou eleitorais correm sérios riscos de levarem a maus resultados. Elas devem ser desenhadas a partir de uma identificação clara do problema a ser resolvido, da análise da experiência nacional e internacional em lidar com o problema, explorando-se diferentes possibilidades que possam ser adotadas conjuntamente. Custos e benefícios precisam ser adequadamente mensurados.

Por que intervir?

O ponto de partida para a discussão de uma política pública deve ser sempre a pergunta: por que o governo tem que intervir? O setor privado e os mecanismos de mercado não são capazes de resolver o problema sozinhos? No jargão econômico a pergunta é: qual a falha de mercado que se quer solucionar?

Isso porque toda intervenção estatal tem custos para a sociedade, pelo aumento de tributos e pelos custos administrativos e regulatórios que a ação estatal gera.

A principal falha de mercado, no caso, parece ser a existência de pessoas sem renda suficiente para adquirir um bem de primeira necessidade. Não há igualdade de oportunidade às mulheres pobres no acesso à saúde, educação e mercado de trabalho. Em sendo uma questão de política redistributiva há, a princípio, espaço para a entrada do governo visando facilitar o acesso da população em situação desfavorecida ao bem essencial.

Seria essa falha de mercado relevante? A julgar pela mobilização das agências internacionais voltadas a questões de equidade, o tema parece ser, de fato, relevante. A UNICEF desenvolve em uma das vertentes de sua campanha mundial “Water, Sanitation and Hygiene” (WASH), a conscientização e a distribuição de itens de higiene menstrual para regiões de baixa e média renda, além de localidades em estado de emergência. O tema também é abordado nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, com o recorte de reivindicação para o acesso de serviços de saúde.

Há diversas políticas públicas voltadas ao acesso a absorventes ao redor do mundo. O exemplo mais significativo é o da Escócia, a qual após um período praticando parcerias locais para o fornecimento de absorventes em instituições de ensino, começou em novembro de 2020 distribuir esse item gratuitamente para “quem precisar deles”, além de 500 mil libras (valores de 2020) destinados à instituição de caridade FareShare para a distribuição de produtos de higiene menstrual para famílias de baixa renda. Essa é uma experiência relevante porque se baseou em cuidadosa avaliação ex-ante das diferentes opções para a provisão do serviço público, de custos e de benefícios.[3]

Outra falha de mercado pode estar na estrutura de produção e oferta de absorventes. Havendo concentração da oferta em poucas empresas, não haveria concorrência perfeita e, com isso, surgiria a possibilidade de lucros extraordinários e oferta do bem inferior ao ótimo social. De fato, mais de 50% do mercado é atendido por três grandes empresas: Johnson & Johnson, Kimberly-Clark e Procter & Gamble[4]. Trata-se, portanto, de um mercado oligopolizado.

Nesse caso, haveria espaço para medidas diferentes e não cobertas pelo projeto de lei em análise: ações regulatórias tais como a redução de imposto de importação ou a verificação de eventuais práticas anticompetitivas das empresas do setor, visando melhorar a eficiência de mercado para que houvesse maior oferta e menor preço.

Os absorventes estão classificados na Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) no código “96.19.00.00 – Absorventes e tampões higiênicos, cueiros e fraldas para bebês e artigos higiênicos semelhantes, de qualquer matéria”.

A alíquota da Tarifa Externa Comum do Mercosul é de 16%, mas a classificação está na lista de exceções com alíquota de 12%. Em decorrência de todo o debate sobre a questão dos custos dos absorventes, a Câmara de Comércio Exterior decidiu, em 19/11/21, reduzir a alíquota de importação de 12% para 10%. Também foi reduzida de 8% para 7% a alíquota incidente sobre produtos químicos essenciais à produção de absorventes[5]. Pode-se dizer que, embora tenha vetado o projeto de lei, o Governo Federal está se movendo em outra frente, visando o objetivo de tornar os absorventes mais acessíveis.

Uma consulta à base de dados da Organização Mundial do Comércio permite verificar as tarifas de importação impostas pelo Brasil em comparação com o restante do mundo. A figura abaixo mostra que o movimento recente colocou nossa tarifa de importação abaixo da média mundial e da América Latina. Mas ainda é alta em relação à dos países desenvolvidos e dos emergentes asiáticos.

Haveria, portanto, mais espaço para avançar nessa liberalização. O Brasil, contudo, tem limitações decorrentes do acordo do Mercosul. Em geral, nossa política externa está atada a princípios protecionistas que impedem que as importações elevem a concorrência e permitam que bens de consumo cheguem à população mais pobre a preços mais acessíveis. Pode-se dizer que, em parte, a necessidade de subsidiar produtos aos mais pobres vem de outra política pública, voltada a preservar a margem de lucro das empresas que atuam no País.

Absorventes e similares: tarifa preferencial média para grupos de países: 2020 ou 2021 (%)

 

Fonte: OMC (http://tariffdata.wto.org/ReportersAndProducts.aspx)

Nota: classificação de produtos = “Sanitary towels (pads) and tampons, napkins
 and napkin liners for babies, and similar articles, of any material”)

Fenômeno similar se dá no caso da chamada “margem de preferência” em compras públicas. Reproduzindo regra existente na antiga Lei de Licitações (Lei 8.666/93), a nova Lei de Licitações (Lei 14.133/21), em seu art. 26, prevê que bens manufaturados nacionais possam ser adquiridos por preços mais altos que seus concorrentes estrangeiros. Ou seja, o intuito de proteger a produção no país – como no caso das alíquotas de importação – pode levar ao aumento de custos na aquisição dos absorventes, caso venha a ser ativada, na licitação pública, a cláusula de “margem de preferência”.

Quais as possíveis falhas de governo?

Toda política pública está sujeita a “falhas de governo”. A compra e distribuição de absorventes em grande escala, pelo Governo Federal, teria grandes desafios de logística de armazenamento e distribuição, o que poderia elevar os custos totais. Licitações públicas também são frequentemente assoladas por atrasos e casos de corrupção.

Uma forma de evitar esses custos é buscar canais alternativos de provisão e distribuição. O Brasil já dispõe do Programa Farmácia Popular, que utiliza a rede privada de farmácias para ofertar medicamentos e produtos de higiene a preços subsidiados. Nesse sentido, parece mais eficiente e lógico atender parte do público alvo por meio de programa já existente, em vez de criar uma nova estrutura de distribuição pela aprovação de uma nova lei. Note-se que o Farmácia Popular já oferta bens similares a absorventes, como fraldas geriátricas.

O Programa já foi objeto de avaliações[6] e, já tendo um histórico de execução, pode ser objeto de melhorias marginais, o que parece mais eficiente que a instituição de um programa totalmente novo. Uma possibilidade seria o novo programa se restringir a públicos específicos que não têm acesso às farmácias, como as presidiárias, ou ter distribuição suplementar nas escolas públicas (como, por exemplo, absorventes disponíveis para casos de emergência, em vez de distribuição ampla para todas as alunas).

A questão federativa

O art. 4º do Projeto de Lei, que não foi vetado, estabelece que o programa “será implementado de forma integrada entre todos os entes federados”. Trata-se, portanto, de uma legislação federal criando obrigação para todos os estados e municípios.

Do ponto de vista da organização federativa do País, não parece uma medida adequada. Uma das grandes vantagens de se ter uma federação é que cada governo local pode dar atenção às prioridades locais. Uma vez que o legislador federal toma uma decisão unificada para todo o país, perde-se essa flexibilidade.

É certo que em todos os lugares do país há mulheres de baixa renda necessitando de absorventes. Mas não necessariamente essa é a primeira ou uma das primeiras prioridades locais. Por exemplo, em um estado estudantes que recebam absorventes podem continuar faltando aulas por não terem transporte adequado ou porque não há professores na escola. Em um estado o foco da política pode estar mais na população carcerária, em outro, na população escolar e, em outro, nas mulheres que têm dificuldade de buscar emprego ou comparecer ao trabalho por falta de absorventes. Ao gestor local, que conhece melhor a realidade da sua comunidade, deve ser dada flexibilidade de escolha e ação.

Nesse sentido, em vez de uma lei unificadora nacional, medidas infralegais de inclusão de fornecimento de absorventes e outros produtos de higiene via SUS, poderiam ser oferecidos de forma voluntária aos estados e municípios. Uma forma de fazê-lo seria, por exemplo, mediante o compartilhamento de custos, por meio de transferência vinculada com contrapartida: a cada R$ 1 destinado pelo estado ou município para a provisão de absorventes, dentro de programa desenhado no âmbito do SUS, a União custearia, digamos, R$ 0,50. Isso equivaleria a um subsídio ou redução do custo da política para o governo local, induzindo, porém não obrigando, a participação no programa.

Um aspecto interessante da autonomia local é que os diferentes programas e diferentes abordagens poderiam ser submetidos a avaliações, de modo a se verificar qual das políticas locais se mostrou mais efetiva, constituindo caso de sucesso a ser copiado e adaptado por outros estados e municípios. Isso ampliaria a eficácia da política pública ao longo dos anos.

As formas alternativas ou adicionais de atingir o mesmo objetivo

O projeto de lei em análise escolheu o caminho da distribuição direta de absorventes. Quais seriam os caminhos alternativos para se atingir o objetivo final de tornar o produto acessível a mulheres de baixa renda? Obviamente as diferentes opções não são mutuamente excludentes. Juntas podem levar a efeito mais intenso que a simples distribuição. Mas, ao mesmo tempo, é preciso avaliar benefícios e custos.

Já se mencionou, acima, os mecanismos regulatórios de averiguação e prevenção de eventuais práticas anticompetitivas de mercado e de redução do custo de importação do produto acabado e de seus insumos. Também já foi apresentada a opção de venda na rede privada de farmácias, a custos subsidiados, no âmbito do Programa Farmácia Popular. A seguir, avaliam-se outras opções. 

Transferência de dinheiro

Outra possibilidade é simplesmente dar o dinheiro à família. De fato, um questionamento muito frequente à distribuição de absorventes foi o de que já existe o Programa Bolsa Família (PBF). E que esse Programa é elogiado justamente por deixar a opção de consumo nas mãos das famílias, não impondo um padrão único de consumo a partir de uma decisão do legislador ou da burocracia.

Um contra-argumento seria o de que as adolescentes não controlam o orçamento da família. São os pais e responsáveis que decidem por elas. E estes podem ter outro conjunto de preferências e prioridades. Esse argumento, usualmente utilizado para justificar a obrigação de matricular crianças na escola, também pode ser usado para justificar a distribuição direta dos absorventes.

Mas há os que apontam que o Bolsa Família tem entre as suas condicionalidades a presença na escola. Se uma adolescente está faltando por não dispor de absorvente, a família pode ser punida com a perda do benefício, o que faria os pais privilegiarem o atendimento da necessidade da adolescente. Somente o reconhecimento da ineficácia dos condicionantes do Bolsa Família ou a percepção de que as faltas em período menstrual não seriam suficientes para decretar a perda do benefício poderiam desmontar esse argumento.

Nesse caso, o esforço poderia ser o de prover as escolas com estoques de absorventes para atender a demanda eventual pelas adolescentes (em vez de provisão obrigatória a todas) e de melhorar o monitoramento das condicionalidades do PBF. 

Redução de impostos

Outra possibilidade seria a redução da tributação sobre o consumo de absorventes (não confundir com o imposto de importação, acima tratado). A experiência internacional mostra que vários países optaram por esse caminho.  Há registro de tratamento tributário preferencial na Alemanha, Austrália, Canadá, Colômbia, Jamaica, Líbano, Índia, Malásia, Nigéria, Uganda e Quênia[7].

Em 2004, o primeiro país a eliminar a tributação sobre produtos de higiene menstrual foi o Quênia. Em 2018, a Índia também eliminou a sua taxa de 12%. Em 2016 os países membros da União Europeia entraram em um acordo acerca da flexibilização sobre a taxação de produtos sanitários, mas não incluem uma regulamentação formal para a tributação como realiza com diversos outros produtos, estipulando alíquotas mínimas e máximas. Com isso, por exemplo, em 2019, a Alemanha conseguiu retirar a taxação de 19%, dado que os absorventes eram considerados um item de luxo pelo parlamento[8].

No Brasil, os absorventes (e tampões) são isentos do Imposto de Produto Industrializado, porém continuam com a incidência de outros impostos, como o Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e possuem uma alíquota de tributação média de 34,48%.

O problema de se utilizar a redução de impostos é a falta de focalização nos mais pobres. A redução da arrecadação, que fará falta para financiar outras políticas públicas, subsidiará os absorventes comprados pelos pobres e pelos ricos. Esse é o problema típico de se tentar fazer política de atenção aos mais pobres através de benefícios tributários[9]. Um estudo sobre os benefícios fiscais do ICMS no Rio Grande do Sul mostrou que os 30% mais pobres receberam menos de 14% do benefício, enquanto os 30% mais ricos se apropriaram de 50%32.

De modo similar, o Ministério da Fazenda, em 2017, estimou que destinar R$ 1 bilhão ao Bolsa Família produz um impacto 12 vezes maior para a queda da desigualdade do que desonerar em R$ 1 bilhão a cesta básica[10] . Isso porque, por um lado, acabam entrando no conceito de “cesta básica” produtos não consumidos pelos mais pobres, como carne de primeira. Por outro lado, os produtos têm variações de qualidade que não podem ser discriminadas na tributação: no caso dos absorventes, por exemplo, acabariam sendo desonerados tanto os mais baratos quanto os mais sofisticados. E a variação de preços e qualidade nesse mercado é ampla. Pesquisar o valor de uma unidade de absorventes nos seguintes sites: Amazon, Droga Raia, Drogaria São Paulo e Pague Menos. Notou-se que a variação de preço pode chegar a 10 vezes: a marca Tena-Maxi Night era vendida a R$ 2,42 a unidade, enquanto a marca Cottonbaby saia a R$ 0,26.

Deve-se notar a diferença entre reduzir impostos de importação e reduzir impostos sobre consumo. O imposto sobre importação não tem por finalidade principal arrecadar recursos para financiar políticas públicas. Sua função é regular o fluxo de entrada de produtos no país e o grau de proteção às empresas que atuam dentro do país. Embora a redução de ambos os impostos leve à diminuição do preço ao consumidor, os canais são diferentes. A redução do imposto sobre consumo resulta em perda de receita relevante para o governo, limitando sua capacidade de financiar outras políticas públicas. Já a redução do imposto de importação, não causa perda relevante de receita e atua sobre os preços ao aumentar a concorrência e diminuir margens de lucro e custos de produção.

Outra observação relevante é que o Programa Farmácia Popular, acima apontado como uma alternativa interessante de veiculação da política, também carece de focalização na população mais pobre. A princípio, qualquer indivíduo pode se beneficiar da aquisição de medicamentos subsidiados pelo Programa. No entanto, a forma segmentada de oferta e as exigências burocráticas para a aquisição subsidiada tendem a afunilar a busca pelo programa pelas pessoas que obtêm maior benefício marginal dos descontos. Não é, contudo, objeto desse texto uma avaliação pormenorizada da focalização efetiva do Programa Farmácia Popular.

Por fim, é importante chamar atenção para a importância de se fazer uma reforma tributária. A elevada tributação dos absorventes pelo ICMS decorre de distorções no nosso sistema tributário, que tributa muito os bens e pouco os serviços. Sendo os serviços mais consumidos por pessoas de alta renda, o sistema se torna regressivo. A introdução de um imposto sobre valor agregado (IVA), com alíquota única para todos os bens e serviços, corrigiria esse viés e reduziria o custo dos absorventes.

Adicionalmente, a reforma tributária reduziria a guerra fiscal e, com isso, o subsídio que os estados dão às empresas. Esses subsídios acabam sendo compensados por altas alíquotas nos bens tributados. Se extintos, viabilizariam alívio para todos os bens que hoje têm alíquotas elevadas.  Por fim, um IVA permite que se identifique claramente o montante total de impostos embutidos em um bem ou serviço comprado pelo consumidor final. Pessoas de baixa renda poderiam receber restituição total ou parcial de seu consumo via identificação pelo CPF, o que reduziria a necessidade de alíquotas diferenciadas para produtos específicos.

Produção comunitária de absorventes

Chamou atenção internacional uma bem-sucedida iniciativa do empreendedor indiano Arunachalam Muruganantham, que conseguiu criar um método simples de manufatura de absorventes[11]. Frente ao alto custo dos absorventes, em um mercado dominado por grandes empresas oligopolistas, ele identificou a necessidade de ofertar absorventes a baixo custo para a população indiana de baixa renda. Seu método padronizado, com maquinário simples e de baixo custo, permitiu criar nas comunidades rurais pequenas fábricas, que ocupam a mão de obra local, em especial feminina, produzindo itens que acabam sendo comercializados e consumidos localmente.

Esse tipo de experiência pode ser válido para o Brasil, seja para comunidades rurais, seja para favelas em áreas urbanas, e pode ser implantada de forma descentralizada e baseada em doações privadas, com pouca ou nenhuma participação do setor público. Não se está afirmando que funcionaria automaticamente. Como qualquer outra iniciativa de política pública, o sucesso desta estaria sujeito aos detalhes de desenho e implementação. Mas a experiência indiana é internacionalmente reconhecida como bem-sucedida. Logo, uma avaliação de possível adaptação ao Brasil mereceria ser avaliada.

Esse é mais um argumento que aponta para a relevância de soluções descentralizadas, tornando pouco eficiente a aprovação de uma lei uniformizadora e de aplicação obrigatória em todo o território nacional.

Os vetos presidenciais fazem sentido?

No ambiente de polarização em que estão sendo debatidas todas as políticas públicas, o Presidente da República foi fortemente criticado por vetar o projeto em análise. Os defensores da iniciativa legislativa tendem a afirmar que as justificativas dos vetos seriam “desculpa” para não implementar o projeto. Cabe analisar cada um dos argumentos usados nos vetos e verificar a sua consistência.

O primeiro argumento é de que o projeto de lei seria incompatível com a “autonomia das redes e estabelecimentos de ensino”. De fato, trata-se de ponto já assinalado acima: ao obrigar todos os governos e suas redes de ensino a implementarem um programa uniforme, definido pelo legislador federal, teríamos não só a anulação da autonomia das redes de ensino como dos próprios governos subnacionais. Não basta que se tenha uma causa nobre para desconsiderar essa autonomia, pois tal desconsideração também pode ser usada para finalidades menos elogiáveis. É preciso preservar as regras do jogo democrático e de funcionamento das instituições, e não se justifica quebra-las em função de um objetivo meritório.

Outro argumento é o de que se trata da criação de uma despesa obrigatória de caráter continuado. A Lei de Responsabilidade Fiscal exige, nesses casos, que se aponte uma nova e perene fonte de recursos ou o corte permanente de despesas para garantir o financiamento do programa. O projeto não foi claro a esse respeito, apenas atribuindo o custeio ao SUS e ao Fundo Penitenciário Nacional.

Mais uma vez, há que se preservar as regras fiscais, não cabendo flexibilizá-las em função do mérito da proposta em análise. Afinal, o mérito é sempre relativo a depender das preferências e interesse de quem o avalia. E a estabilidade fiscal é, em si, um bem público importante para proteger os mais pobres de fenômenos como a inflação, que corrói sua renda.

Há um veto específico à inclusão de absorventes na cesta básica que também é consistente. Argumenta o Poder Executivo que “o Projeto de Lei introduziria uma questão de saúde pública em uma lei que dispõe sobre segurança alimentar e nutricional”.

Por outro lado, há argumentos menos defensáveis ou que poderiam ser contornados. Alegou-se que não se pode fazer no âmbito do SUS um programa que seja voltado para clientelas específicas, pois o SUS tem caráter universal. Haveria espaço para, no âmbito do SUS, desenhar programas de subsídios ou fornecimentos nos postos de saúde e outras dependências públicas que não frustrassem o caráter universal. Mas isso teria que ser feito por instrumento infralegal. A proposição do programa na forma de lei, de fato, cria rigidez e maior dificuldade para uma adoção de caráter universal.

Outro argumento é o de que “absorventes higiênicos não se enquadram nos insumos padronizados pelo Sistema Único de Saúde – SUS, portanto não se encontram na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME”. Esse parece um argumento formalista e passível de ser superado, uma vez que se pode considerar a importância de medidas preventivas para a saúde, e o risco de uso de instrumentos inadequados e nocivos à saúde em substituição aos absorventes.

Conclusões

Esse texto procurou apontar diversas alternativas existentes para lidar com o problema do baixo acesso a absorventes por mulheres de baixa renda. Seu intuito foi mostrar que não há uma única maneira de solucionar a questão. Portanto, o ambiente de confronto entre os que são favoráveis e contrários ao PL 14.214/21 empobrece o debate público, pois não permite explorar as melhores soluções possíveis.

O projeto tem como ponto negativo o fato de não estar ancorado em estudos de avaliação ex-ante que tenham buscado identificar as melhores formas de atingir seus objetivos (formas de provisão, financiamento, parcerias, amplitude do programa, instrumentos de mercado para redução de custos dos produtos, etc.) como ocorreu, por exemplo, no caso escocês, citado no texto. Ademais, o PL propôs um modelo único, obrigatório, possivelmente de alto custo. Ao fazê-lo, feriu pontos importantes de instituições relevantes, como a autonomia dos entes subnacionais e das instituições de ensino ou as regras de responsabilidade fiscal.

Esse padrão único nacional desestimularia o surgimento de diferentes alternativas, subsidiadas ou não pelo Governo Federal, de governos subnacionais ou do terceiro setor, gerando diferentes soluções, passíveis de serem replicadas e adaptadas em diferentes partes do país. Avaliações ex-post indicariam os modelos mais efetivos e permitiriam a melhoria dos diferentes programas.

Por outro lado, o PL teve o mérito de abrir a discussão de um problema relevante e que tem sido objeto de políticas públicas em vários países. Ao fazê-lo, já induziu o Governo Federal a se mexer para, por exemplo, reduzir tarifas de importação de absorventes e de insumos necessários à sua produção.

O episódio também foi importante para mostrar como políticas protecionistas prejudicam os mais pobres. Altas tarifas de importação diminuem o grau de competição e elevam custos de produção, encarecendo os bens de consumo final, que se tornam menos acessíveis aos mais pobres. Já a margem de preferência para empresas nacionais nas licitações públicas encarece as políticas públicas de distribuição de bens aos mais pobres, como no caso dos absorventes.

Outro ponto relevante é a importância de uma reforma tributária para a redução do custo da cesta de bens consumida pelos mais pobres, com a possibilidade de mecanismos de devolução dos impostos pagos de forma focalizada na população carente.

Como em qualquer política pública, existem diferentes formas de atingir um mesmo objetivo. Explorar todas as possibilidades, avaliando-as cuidadosamente, além de agir de forma cooperativa (entre governos e com o setor privado) parece ser uma opção superior a simplesmente aprovar um projeto top-down, sem prévia avaliação de custos, benefícios e detalhes de implementação.

 

[1] Esse texto reflete esforço coletivo de análise da disciplina “Política Fiscal” dos cursos de graduação em Economia, Administração e de Engenharia do Insper. Marcos Mendes é o professor da disciplina e os demais autores são alunos.

[2] Os autores agradecem a Sandra Rios e Lucas Ferraz por informações que auxiliaram na elaboração do texto, sem implicá-los em eventuais erros ou associá-los às opiniões aqui emitidas.

[3] Ver: Access to free sanitary products: BRIA – gov.scot (www.gov.scot).

[4] Fonte: http://novo.febrafar.com.br/fabricantes-disputam-o-setor-de-higiene-pessoal/

[5] O Estado de S. Paulo 20/11/21: “Após veto de Bolsonaro, tributo para importação de absorvente é reduzido”.

[6] Ver, por exemplo, Luiza, V.L et al. (2018) Applying a health system perspective to the evolving Farmácia Popular medicines access programme in Brazil. BMJ Global Health. Disponível em: Applying a health system perspective to the evolving Farmácia Popular medicines access programme in Brazil (bmj.com)

[7] Fonte: BBC Brasil 26/11/2020  Escócia se torna primeiro país do mundo a oferecer absorventes e tampões de graça – BBC News Brasil

[8] Fonte: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/11/13/alemanha-acaba-com-taxa-do-absorvente-e-item-deixa-de-ter-19-de-imposto.htm

[9] Ver, por exemplo, Lisboa, M. et al (2020) Uma agenda econômica pós-pandemia:

parte I – qualidade do gasto público e tributação. Insper. Disponível em: https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/07/Uma-agenda-econ%C3%B4mica-p%C3%B3s-pandemia-parte-I-1.pdf

[10] Kanczuk, Fábio. https://www.gov.br/fazenda/pt-br/centrais-de-conteudos/apresentacoes/arquivos/2017/apresentacao_equilibrio-geral-e-avaliacao-de-subsidios_fabio-kanczuk.pdf/view. Acesso em 26/9/2020.

[11] Ver sua apresentação em TED Talks em https://www.ted.com/talks/arunachalam_muruganantham_how_i_started_a_sanitary_napkin_revolution?language=pt-BR#t-56788. A Netflix oferece uma versão romanceada do episódio no filme “Pad Man”.

 

* Marcos Mendes é pesquisador associado e professor do Insper, além de ser membro do Instituto Fernand Braudel; os outros autores são alunos de graduação do Insper.

 

]]>
Por que é tão difícil fazer reformas no Brasil? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3219&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-e-tao-dificil-fazer-reformas-no-brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3219#comments Tue, 07 May 2019 16:23:55 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3219 *Esse texto consiste em resumo de relatório de pesquisa desenvolvido pelo autor junto ao Instituto de Pesquisas Casa das Garças.

 

Para voltar a crescer e diminuir a desigualdade de renda, o Brasil precisa fazer um conjunto amplo de reformas. Previdência, tributos, mercado de crédito, ambiente de negócios, segurança jurídica, abertura comercial, privatização, políticas sociais e educação.

Não é fácil fazer reformas em nenhum lugar do mundo. Reformar significa tirar privilégios de alguns grupos, que obviamente resistem. Os custos são concentrados em poucos, e os benefícios são difusos. Os prejudicados se organizam e resistem, enquanto os beneficiários muitas vezes nem sequer sabem que estão ganhando com aquela medida.

Reformas também provocam incerteza: ainda que todos saibam que o país ficará melhor no futuro, cada indivíduo enfrenta a incerteza de qual será a sua situação particular após a reforma. Afinal, empregos menos eficientes tendem a ser destruídos e outros são criados, requerendo novas habilidades. Muitas pessoas temem não se adaptar à nova realidade, em especial os mais velhos.

Os resultados das reformas também demoram a aparecer. No Chile, por exemplo, em 1985, dez anos após o início das reformas, a renda per capita ainda era a mesma de 1969. Somente nos anos 1990 a renda começou a subir de forma consistente.

Na Nova Zelândia, uma reforma radical, que transformou o país em uma das sociedades mais prósperas do mundo, gerou, inicialmente, uma taxa de desemprego de 14%, que só voltou ao padrão pré-reforma depois de dez anos.

O calendário das eleições é mais curto que o prazo para o efeito das reformas. O próximo pleito acontece antes de as reformas elevarem a popularidade do governante reformista.

Apesar dessas dificuldades, ao longo dos últimos 50 anos, muitos países fizeram reformas abrangentes. Estudando essas experiências, podemos observar características desses países que ajudaram a quebrar resistências. Infelizmente, o Brasil não possui nenhuma dessas características “facilitadoras” de reformas.

Em primeiro lugar, é mais fácil reformar economias de países pequenos. Estes não têm mercado interno significativo e precisam se abrir para o mundo. Com economia aberta, são mais vulneráveis a oscilações da economia internacional e, por isso, precisam manter a macroeconomia saudável. Para atrair capitais externos, precisam de uma Justiça rápida e segura.

Além disso, têm uma elite menos numerosa, o que diminui o custo de transação para realizar acordos. Também têm governo unitário, não sofrendo os conflitos e bloqueios gerados nos sistemas federativos. Singapura, Malta, Hong Kong, Estônia, Nova Zelândia e Irlanda seriam exemplos nesse grupo.

O Brasil, grande, fechado e com uma Federação conflituosa, está longe desse perfil.

Outra característica importante está na transição de ditaduras para democracias. Países que fizeram reformas econômicas antes da abertura política geraram uma economia dinâmica, capaz de elevar a renda, ampliar a classe média, criar ambiente de mercado estável e consolidar o liberalismo econômico, conduzindo a mais investimentos e crescimento. Com o tempo, a melhoria das condições de vida induz a transição para regime democrático, como ocorreu na Coreia do Sul, no Chile, na Malásia e na Indonésia, por exemplo.

Por outro lado, redemocratizar antes de reformar a economia pode levar ao populismo e a mecanismos de apropriação de renda por grupos de interesse.

Em uma economia fechada e estatizada, há grande espaço para a inscrição de privilégios e políticas inconsistentes na legislação. Esse parece ter sido o caso de Brasil, Argentina e Filipinas. Fazer reformas nesses países é muito mais difícil agora, pois significa desmontar benefícios a grupos organizados, cristalizados na Constituição e nas leis.

Também facilitam as reformas os sistemas político-eleitorais que induzem a geração de maioria no Legislativo, dando maior governabilidade ao Poder Executivo.

No Reino Unido, por exemplo, as eleições para o Parlamento seguem o modelo distrital, com voto majoritário, que induz a disputa entre dois grandes partidos, com o vencedor quase sempre sendo majoritário no Legislativo e, portanto, capaz de aprovar reformas sem precisar contar com o apoio de outros partidos.

Além disso, é mais fácil fazer reformas em Parlamentos unicamerais, onde uma medida não precisa passar pelo referendo de Câmara e Senado. Também facilita o fato de cada um dos três Poderes ter claramente delimitado o seu raio de ação, não havendo espaço para o Judiciário interferir em decisões do Legislativo.

Mais uma vez o Brasil não tem tais características. Nosso sistema eleitoral gera grande fragmentação partidária no Parlamento, temos sistema bicameral e frequente judicialização das decisões legislativas e das políticas públicas.

A literatura também mostra que sociedades mais coesas são mais capazes de gerar os acordos sociais necessários para realizar reformas. Essas são sociedades em que a classe média tem uma parcela grande da renda (e, portanto, a desigualdade geral é baixa) e na qual há baixo grau de violência.

Em geral, são sociedades em que as pessoas têm padrões de vida similares, não temem agressões físicas ou aos seus direitos. Por isso têm maior confiança umas nas outras e nas instituições públicas.

Confiança é essencial para o sucesso de reformas. Afinal, estas ​nada mais são que um acordo em que todos fazem sacrifícios no curto prazo com vistas a ter um futuro melhor. Se há baixa coesão e desconfiança, cada grupo de interesse tentará empurrar os custos da reforma para o outro, e a negociação emperra ou a reforma tem seus custos colocados nas costas dos mais fracos.

A figura acima mostra que o grau de coesão social no Brasil é extremamente baixo. No eixo horizontal, temos a participação da classe média na renda (percentual da renda total que vai para os 60% dos indivíduos no centro da distribuição de renda). Somente África do Sul, Namíbia, Zimbábue, Moçambique e Guiné-Bissau têm classe média “mais magra” que a brasileira, ficando mais à esquerda no gráfico.

No eixo vertical temos um índice de violência e confiança mútua. Nesse quesito, o Brasil só supera Camarões e Costa do Marfim. E fica um pouco abaixo de Quênia, El Salvador e Libéria.

A localização do país na parte inferior esquerda do gráfico é uma imagem clara da nossa baixa coesão social. Somos inequivocamente um país desigual, violento, em que as pessoas não confiam umas nas outras. No canto superior direito do gráfico estão os países mais coesos.

A importância da coesão social como fator de estabilidade tem ficado clara nos recentes episódios de radicalização política vividos em diversos países. O encolhimento da participação da classe média na renda tem gerado desconforto com a representação política tradicional, e novos partidos extremistas têm ganhado espaço em vários países. Há crescente fragmentação partidária, levando a governos minoritários, como na Espanha e na Itália.

O brexit surgiu de movimento de descontentamento de uma classe trabalhadora ameaçada pela abertura comercial. Donald Trump e sua política externa mercantilista têm origem semelhante.

No Brasil, o baixo consenso social alimenta um ambiente antirreformas por uma combinação de populismo, conflito distributivo em torno de rendas intermediadas pelo Estado, fragmentação política e protecionismo comercial e regulatório.

Não obstante todas essas dificuldades “estruturais” para fazer reformas no Brasil, sempre surgem algumas janelas de oportunidade. Em geral, elas são criadas por crises, que evidenciam a necessidade de mudanças e enfraquecem a defesa de interesses corporativos específicos.

Também abre espaço para reformas o “efeito lua de mel”, que existe nos primeiros meses de gestão de um governante recém-eleito.

Desde os anos 1980, o Brasil aproveitou essas situações para fazer reformas. Assim, por exemplo, a crise de balanço de pagamentos de 1982-83 gerou reformas fiscais e monetárias. A hiperinflação criou condições para o sucesso do Plano Real.

O efeito lua de mel no governo Collor permitiu um movimento de abertura comercial, e nos governos FHC e Lula viabilizaram-se duas reformas da Previdência.

Da crise de balanço de pagamentos de 1998 vieram o sistema de metas de inflação, o câmbio flutuante e o regime de metas fiscais.

Porém, recentemente o Brasil andou na direção contrária. De 2005 a 2015 vivemos um período de reversão de reformas. A crise política do mensalão levou à expansão do gasto público como forma de sustentar politicamente o governo. Uma expansão no preço internacional de commodities deu impulso ao crescimento e criou a ilusão de que os desequilíbrios fiscais estruturais estavam resolvidos.

Relaxou-se o equilíbrio fiscal e praticou-se política pública na direção oposta das reformas de que o país necessita: aumentou a interferência estatal nas decisões privadas, a exploração do petróleo foi praticamente reestatizada, houve generalizada interferência do governo nos preços de energia e combustíveis, proteção setorial e fechamento da economia, grande desperdício de recursos públicos e privados em investimentos inviáveis.

 

Artigo publicado pela Folha de S. Paulo em 05 de maio de 2019.

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3219 3
Os problemas da PEC do Orçamento Impositivo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3209&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=os-problemas-da-pec-do-orcamento-impositivo Mon, 22 Apr 2019 14:53:18 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3209 O principal objetivo da PEC do orçamento impositivo é tornar obrigatória a execução de emendas de bancadas estaduais , em valor equivalente a 1% da Receita Corrente Líquida (RCL). Atualmente, já é obrigatória a execução de emendas individuais dos parlamentares, aquelas que direcionam verbas para pequenas obras nos municípios. Com a PEC, tornam-se obrigatórias também as emendas de bancada que, a princípio, representam o acordo entre parlamentares de cada estado para destinar recursos a obras estruturantes, de impacto em todo o estado.

Há na PEC um mecanismo de aumento gradual para o máximo de recursos que pode ser aplicada obrigatoriamente em emendas de bancada: inicia-se com 0,8% da RCL e caminha-se para 1% da RCL. Também há uma adaptação à PEC dos gastos: os percentuais da RCL são apenas uma referência inicial. Depois de fixado o montante com base nesse parâmetro, nos anos futuros a correção do valor é pelo IPCA, para que a despesa cresça no mesmo ritmo do teto de gastos criado pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016.

Da mesma forma que já funciona para as emendas individuais, há possibilidade de as emendas obrigatórias serem contingenciadas na mesma proporção das demais despesas discricionárias, para fins de cumprimento de meta fiscal. Nos casos em que há impossibilidade técnica de execução, há um rito para verificar tal impossibilidade e suspender a obrigatoriedade de execução.

Por que é inadequado dar prioridade a emendas que destinam recursos a estados e municípios

O orçamento é da União. Portanto, deve conter, prioritariamente, despesas de interesse de toda a coletividade nacional. O atendimento das necessidades de municípios e estados deve ser atribuição daquelas respectivas esferas da federação, pagos com os seus respectivos tributos. A utilização de verbas federais em investimentos de impacto local, objeto principal das emendas parlamentares, deve ser a exceção, e não a regra. Quando se garante o espaço das emendas, menos recursos sobrarão para as despesas de interesse geral do País que não sejam obrigatórias e que não estão protegidas por vinculações de receitas.

Os argumentos usualmente utilizados para justificar a obrigatoriedade de execução de emendas são:

(a) as emendas são a forma de participação dos parlamentares no orçamento, e o seu contingenciamento significa que o Executivo interfere na escolha do parlamento, o que deve ser evitado;

(b) não seria correto dizer que as emendas geram gastos de pior qualidade do que as programações sugeridas pelo Executivo, pois os parlamentares escutam suas bases e sabem qual a demanda do eleitor melhor que o Executivo.

As duas afirmações são passíveis de contestação. A participação do parlamento no orçamento é muito maior que aprovar emendas individuais e de bancada. Cabe ao Congresso discutir todo o orçamento, e não apenas direcionar verbas e investimentos para as bases eleitorais dos parlamentares. Pode-se argumentar que o orçamento já está fortemente comprometido com despesas obrigatórias de previdência e pessoal, entre outras, e com vinculações orçamentárias. Assim, pouco sobra, além das emendas, para influenciar o perfil do gasto público.

Nesse caso, defender as prerrogativas do Congresso em relação ao orçamento não é reforçar o status das emendas de bancada. Mas sim votar reformas que freiem a expansão da despesa obrigatória e flexibilizem vinculações. Optar pelo atalho da obrigatoriedade de emendas dispersa poder e apequena a missão do parlamento.

Com relação à qualidade do gasto gerado pelas emendas, há elementos suficientes para dar suporte à ideia de que elas têm efeito negativo. Não por serem propostas por parlamentares, mas por dificuldades práticas do processo decisório.

Em primeiro lugar, há uma tendência à pulverização dos recursos em pequenas intervenções, em prejuízo de obras estruturantes. Em segundo lugar, não é simples coordenar a ação de 513 deputados e 81 senadores propondo milhares de investimentos distintos. Não são poucos os casos de prefeitos que “recebem um hospital” que não é necessário e que não têm verba para manter; de escolas agrícolas que, em vez de um, recebem três equipamentos iguais. ou de tomógrafos que sequer saem da caixa porque o município não tem condições de construir um prédio nas especificações adequadas para a operação do aparelho. Em terceiro lugar, as iniciativas não são sujeitas a prévia avaliação de custo-benefício ou avaliação de viabilidade técnica e econômica. Muitas vezes inicia-se uma obra sem os projetos adequados, o que leva à paralisação e estouro dos custos previstos.

Tendo em vista que o interesse maior do parlamentar é tipicamente buscar suporte junto aos prefeitos de sua base eleitoral, e com isso reforçar sua base de votos para a próxima eleição, há uma natural tendência à fragmentação da despesa em pequenos investimentos. Quando as emendas de bancada se tornam obrigatórias, ganhando força dentro do orçamento, haverá incentivos para se realizar o gasto de impacto municipal por meio da emenda de bancada, levando à chamada “rachadinha”: em vez de a bancada apresentar uma emenda para uma obra estruturante, como a pavimentação de uma rodovia estadual, utiliza-se a dotação para uma finalidade que pode ser distribuída para vários municípios (por exemplo, ambulâncias, quadras esportivas, calçamento de ruas, etc.). Ou seja, a obrigatoriedade das emendas de bancada corre o risco de se transformar em uma expansão das emendas individuais, aprofundando os problemas acima descritos.

Note-se que o próprio sistema já adotado para a execução das emendas contém elemento de ineficiência. Primeiro aprova-se a emenda. Depois é que se verifica se é possível executá-la em termos técnicos. Essa verificação ex-post gera uma série de custos: (a) deixa-se de alocar recursos escassos para outras finalidades que seriam viáveis, empoçando recursos que não poderão ser liberados; (b) corre-se o risco de começar uma determinada despesa e não concluí-la, por inviabilidade constatada durante a execução.

O ideal é que não houvesse a obrigatoriedade de emendas, sejam elas individuais, sejam de bancadas. Porém, parece inevitável a aprovação da PEC em análise. Para que o seu impacto seja minimizado, o que se propõe é que se tornem obrigatórias apenas as emendas voltadas a acrescentar recursos a dotações já contidas na proposta orçamentária encaminhada pelo Executivo ou para investimentos que estejam relacionados em um banco de projetos.

Esse banco de projetos conteria aquelas propostas de investimento que já tivessem projeto executivo, certificado de adequação ambiental e demais requisitos técnicos que demonstrem que a obra não só é viável como também gerará benefícios superiores a seus custos. Trata-se de mudar o momento em que se faz o controle da viabilidade. Substitui-se o atual controle ex-post (incluir a obra no orçamento para depois ver se é viável) por um controle ex-ante (só incluir aquelas que já se sabe que são viáveis). Essa seria uma oportunidade para melhorar a qualidade do gasto público.

Pode-se até mesmo pensar em um sistema misto: o orçamento aceitaria emendas para investimentos não depositados no banco de projetos. Mas para esses a execução não seria obrigatória. O parlamentar e as bancadas estaduais teriam a opção: escolher um investimento do banco de projetos, com certeza de execução, ou propor um investimento que não esteja no banco, que terá que disputar espaço com outras despesas do orçamento.

Obrigatoriedade da despesa para além das emendas

O segundo grande problema da PEC está relacionado ao seguinte dispositivo, que vai além das emendas e se aplica a todo o orçamento, inclusive a estados e municípios:

§10. A administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade.

Esse dispositivo pode ser lido de duas formas distintas. Na primeira, partindo-se do princípio de que tudo o que a administração pública faz é para, direta ou indiretamente, “entregar bens e serviços à sociedade”, pode-se concluir que a administração terá que executar todas as programações orçamentárias. Nesse caso, toda a despesa orçamentária se torna obrigatória.

É evidente que isso enrijece o orçamento. Ficará difícil fazer ajuste fiscal pelo controle da despesa. Só restará o ajuste pelo aumento de impostos. Cedo ou tarde o teto de gastos será  revogado, usando-se o argumento jurídico de que a própria Constituição impede a limitação da despesa . Frente à limitação para aumento da já elevada carga tributária e da dívida pública em trajetória insustentável, não temos cenário bonito para o futuro.

Até porque não há qualquer cláusula de escape, nem mesmo em caso de frustração de receitas. Ao contrário da obrigatoriedade de execução das emendas parlamentares, em que há a possibilidade de contingenciamento ou de não execução em caso de inviabilidade técnica, o presente § 10 apenas estabelece o dever de executar, sem qualquer margem para ajuste.

Pode-se interpretar que a expressão “adotando os meios e medidas necessários” abre margem para que o gestor apresente uma justificativa dizendo que fez o que pôde, mas não conseguiu. Mas quem julgará se efetivamente foi feito todo esforço possível?

Cada auditor de controle interno ou externo terá o seu próprio juízo sobre o que é o conjunto de “meios e medidas necessários”. A insegurança para o CPF do gestor crescerá signficativamente, afastando dos cargos gerenciais aqueles mais avessos ao risco, abrindo espaço para outros de espírito mais aventureiro. Dado que a regra se aplica a estados e municípios, o problema se multiplica.

A segunda forma de ler esse dispositivo é aquela que traça uma divisão entre programações orçamentárias “finalísticas”, que resultam em efetiva entrega de bens e serviços à sociedade (campanha de vacinação, aluno em sala de aula, etc.), e atividades “meio” (serviços  administrativos, limpeza, vigilância, etc.). Se for esta a interpretação correta, então entramos no campo da insegurança jurídica. Certamente não existe uma definição clara do que é atividade fim e atividade meio. Basta ver o longo histórico de judicialização que ocorreu na legislação trabalhista, quando se considerava que somente as atividades meio poderiam ser terceirizadas. Em um país no qual não se consegue chegar a um consenso sobre o que é “despesa de pessoal”, para fins de aplicação da LRF, imagine-se a dificuldade para definir o que é “entrega de bens e serviços à sociedade”.

Ainda que se conseguisse regulamentar claramente quais são as rubricas orçamentárias de caráter finalístico, o resultado seria o maior engessamento do orçamento. A tendência à contabilidade criativa, para tirar ou colocar uma despesa no rol das finalísticas, ao sabor das conveniências, deterioraria a qualidade do processo orçamentário.

Não há dúvida que esse dispositivo precisa ser retirado do texto ou, pelo menos, submetido a uma cláusula de escape, para os casos de frustração de receitas. Nesse segundo caso, também seria importante melhorar a redação do dispositivo, para deixar claro quais despesas estariam sujeitas à regra. Se só as finalísticas, definir quais são essas despesas.

Na sua nova análise pela Câmara, o texto dessa PEC precisa ser analisado com cuidado técnico e sem a pressa de se criar fatos políticos. Será elevado para o País o custo de um texto que gera problemas tão graves, em um contexto de contas públicas deterioradas e de incerteza quanto as reformas necessárias para saneá-las. Não há dúvida de que essa PEC é um tiro no pé, que vai cobrar um preço caro em termos de qualidade do gasto público, produtividade da economia e possibilidade de equilíbrio das contas públicas.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
A solução para o problema dos caminhoneiros está na agenda liberal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3206&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-solucao-para-o-problema-dos-caminhoneiros-esta-na-agenda-liberal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3206#comments Tue, 16 Apr 2019 14:58:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3206 De 21 a 31 de maio de 2018 os caminhoneiros autônomos pararam o país. O governo, tomado de surpresa pela situação explosiva, aceitou as principais exigências dos grevistas: uma subvenção para conter o preço do diesel e o tabelamento do frete. Ambas as medidas representam perdas para toda a sociedade brasileira, gerando consequências negativas para  os próprios caminhoneiros no médio prazo.

A solução correta está em medidas de abertura de mercado, regulação pró-competição, melhoria das condições de trabalho para os caminhoneiros e treinamento com suporte social àqueles que desejem mudar de profissão. A solução, portanto, está na agenda liberal e não no intervencionismo sobre preços de fretes e de combustíveis.

O Ministério da Fazenda se esforçou para que o inevitável subsídio ao diesel provocasse o mínimo possível de distorções. Nesse sentido, criou um mecanismo temporário, que expirou em dezembro, e estabeleceu um custo fiscal máximo. Também buscou financiar esse custo reduzindo outros subsídios distorcivos preexistentes que mereciam acabar. Deu a maior transparência possível ao custo da medida, buscando evitar que a perda fosse imposta à Petrobras e aos importadores, o que ocorreria se houvesse congelamento de preços, optando por deixar preços livres e subvencionar aqueles que comercializassem o litro do combustível por valor igual ou menor que um preço de referência.

Não obstante esse esforço para mitigar distorções, foram grandes os custos econômicos e fiscais. Subsidiar um combustível poluente não é a mais indicada das políticas quando a preocupação ambiental é crescente em todo mundo. Ainda mais quando esse subsídio pode acabar beneficiando pessoas de alta renda, proprietárias de caminhonetes de luxo. Ademais, sendo os caminhoneiros autônomos a parte mais fraca na cadeia de transportes, é provável que uma parte do ganho tenha ido para as empresas de transportes que os contratam, em vez de ficar no bolso dos caminhoneiros.

Subsídios aos combustíveis estimulam uso ineficiente de um recurso escasso e mantêm a pressão para baixo no preço do frete, pois impedem que o mercado se ajuste. Sem o subsídio, os transportadores menos competitivos sairiam do mercado, em busca de outra profissão, e diminuiriam a oferta de frete, permitindo que seus preços melhorassem, sem a necessidade de tabelamento do frete.

Por mais que se esforce, o governo não consegue copiar o mercado. Ao interferir em preços, são inevitáveis as distorções e perdas. Inúmeras situações inesperadas surgiram na gestão da subvenção. Para começar, não há apenas um preço do diesel em todo o país. Petrobras e importadores trabalhavam com mais de 70 preços, dependendo do modo de transporte do combustível (oleoduto ou por caminhões), do tipo de contrato (inclui seguro e frete ou não), da região do país, da qualidade do diesel, do tamanho da encomenda, etc. Ao fixar apenas 5 preços, o sistema criou distorções: alguns mercados se tornaram não atrativos, outros excessivamente lucrativos.

O que devem fazer as empresas: vender com prejuízo para preservar contratos ou cancelar vendas? E como explicar uma ou outra opção aos acionistas? Cadeias de fornecimento se desestruturam. O ambiente de negócios do Brasil se torna pior, investidores saem em busca de locais mais estáveis, investimentos e empregos são perdidos.

Outra distorção vem do fato de que não existe um único tipo de diesel. Há, por exemplo, o diesel marítimo. Quando criado, o mecanismo do subsídio não previa a exclusão desse diesel. Empresas que operam exclusivamente com esse combustível e que não entraram no programa de subvenção ficaram sob o risco de perder todo seu mercado para a Petrobras. Foi necessário mudar rapidamente a legislação para minorar esse problema, mas passaram-se meses antes da mudança, com as empresas sofrendo com a perda de rentabilidade e com o aumento da incerteza quanto ao futuro.

Diferentes modalidades de importação acabaram tendo tratamento distinto na subvenção. As importações feitas por distribuidoras por meio de traders foram, inicialmente, excluídas do programa de subvenção, o que também precisou ser corrigido. Mais incertezas e distorções para o ambiente de negócios. Houve longos atrasos no pagamento da subvenção, um grande aparato burocrático precisou ser montado para conferir notas fiscais e realizar os pagamentos da subvenção.

Houve diversas complicações relacionadas a tributos: cada estado da federação tem sua legislação de ICMS incidente sobre o diesel, e foi preciso conhecer cada uma delas para avaliar qual o preço do diesel antes da tributação, para que se pudesse calcular adequadamente a subvenção devida a cada participante. Também na área tributária foi necessário criar um mecanismo para restituir às empresas a tributação que incide sobre subvenções recebidas. Afinal, não fazia sentido subsidiar o diesel com uma mão e tirar parte do subsídio com a outra.

Em suma, ainda que tenha sido feito esforço para que o programa de subvenção causasse o menor impacto negativo possível, ficou evidente que o modelo é ruim. Sua maior virtude foi a de ser temporário, e o seu retorno é indesejável e prejudicial ao País.

Menos sorte tivemos com o tabelamento do frete, criado sem data para acabar e que igualmente gera perdas e estimula empresas a tomar decisões que diminuirão a produtividade da economia e a capacidade de crescimento do País.

A principal virtude do capitalismo é a divisão do trabalho. Desde Adam Smith sabemos que o que gera crescimento é o fato de que cada um se especializa em um trabalho, fazendo-o cada vez melhor, e vendendo-o no mercado, em troca do trabalho especializado de outros. O tabelamento do frete estimulou muitas empresas a parar de comprar o serviço de transporte no mercado, formando frota própria. Se não tinham frota antes, é porque preferiam se especializar na produção de seus próprios produtos. Ao incorporar um departamento de transporte a suas empresas, vão dispersar esforços e investimentos, e passarão a ser menos eficientes nas suas atividades principais.  Perde o País, que crescerá menos. E perdem os caminhoneiros, que terão menos demanda por seus serviços autônomos.

Interferência nos preços da economia, seja no diesel, seja no frete, é sem dúvida uma péssima saída para lidar com a ameaça de greves de caminhoneiros. Para buscarmos as soluções corretas, é preciso entender as causas do problema.

A primeira pergunta a fazer é: por que existe tanto espaço para que políticos interfiram no preço dos combustíveis? E a resposta está no fato de a Petrobrás ser responsável por mais de 90% da produção nacional, sendo dona de quase todas as refinarias. Com tal poder de mercado, a empresa se torna alvo de seu controlador, o Estado, e dos políticos que transitoriamente estão no comando do Estado.

A privatização das refinarias, acompanhada de uma adequada regulação da competição entre os novos produtores privados, reduziria o espaço para a manipulação de preços. A Petrobras se beneficiaria não só pela redução da pressão política sobre a sua gestão, mas também por poder centrar seus esforços naquilo que faz melhor: prospectar e extrair petróleo. A empresa ganharia valor, e o Brasil cresceria mais. Os consumidores de combustível ganhariam com a maior previsibilidade nos preços: deixaria de haver a volatilidade entre períodos de populismo e preço baixo alternando-se com períodos de recuperação acelerada dos preços, para compensar as perdas da fase populista. E a concorrência adequadamente regulada se encarregaria de conter as margens de lucro das refinarias.

A segunda questão é: por que os caminhoneiros e empresas de transporte de carga têm o poder de paralisar o País? A resposta está no fato de que mais de 60% do transporte de cargas do Brasil ocorre por rodovias. Fosse o transporte mais equilibrado com os modais ferroviário e marítimo, o poder de pressão seria muito menor.

São diversas e antigas as causas para a predominância do transporte rodoviário. Mas certamente poderemos reequilibrar a distribuição de cargas por outros modais se houver mais segurança jurídica para a entrada de capitais privados na construção e operação de ferrovias, e se houver uma abertura do mercado de transporte marítimo de cabotagem, hoje totalmente fechado para proteger as empresas nacionais.

Uma empresa estrangeira que desembarque carga no Recife e esteja a caminho de Buenos Aires, por exemplo, é proibida por lei de aproveitar seu espaço vazio para fazer fretes do Recife para outras cidades do litoral brasileiro. Quase todos os grandes centros produtores e consumidores do Brasil estão em cidades litorâneas. A expansão do transporte marítimo de cabotagem seria uma injeção de produtividade na economia. Mas para que se torne realidade, é preciso não apenas enfrentar o interesse das empresas de transporte atualmente protegidas, mas também privatizar e modernizar a administração dos portos.

Estas são soluções estruturais que, mais uma vez, melhoram o crescimento e a vida de toda a população. Perdem os caminhoneiros? Provavelmente sim. Mas não faz sentido manter um país no atraso para proteger uma categoria de profissionais. Devemos lembrar que a luz elétrica tirou o emprego do acendedor de lampiões, os caixas eletrônicos acabaram com muitos empregos de bancários, e que até mesmo os caminhoneiros se beneficiam do progresso, afinal organizaram uma greve a partir do Whatsapp em seus modernos smartphones. A forma de lidar com essas perdas é a oferta de programas de reciclagem profissional e assistência social no período de transição de uma profissão para outra.

Enquanto não se obtém o desejado reequilíbrio entre os modais de transporte, qualquer sinal de locaute deve ser firmemente reprimido dentro da legislação existente. Certamente a greve de maio de 2018 teria sido menos abrangente se não houvesse o estímulo e o suporte de algumas empresas do setor à ação dos caminhoneiros.

A terceira questão a enfrentar é: por que os caminhoneiros autônomos são os mais prejudicados pela crise? Em uma situação normal, o aumento do preço dos combustíveis seria repassado ao preço final dos bens, batendo no bolso dos consumidores. Se os caminhoneiros não estão conseguindo repassar os custos maiores para o preço do frete, é porque algum fenômeno está afastando esse mercado dos padrões da livre concorrência.

Aqui a resposta se divide em dois pontos. O primeiro está no fato de que empresas de transportes, que contratam os serviços dos autônomos, têm mais poder de mercado que os caminhoneiros. Por isso, garantem para si margens maiores e impõem preços menores aos autônomos. Quando os custos sobem, os caminhoneiros não conseguem repassá-los às transportadoras.

A solução para isso é o tabelamento do frete? Certamente não. O correto é investigar se as empresas estão adotando práticas anticompetitivas ou ilegais, tais como formação de cartel ou imposição aos caminhoneiros de itens contratuais abusivos, tais como seguros sem opção de escolha de seguradora ou aluguel de equipamentos diretamente junto à transportadora. A solução é “mais CADE e menos SUNAB” (para os mais novos, SUNAB era o órgão de tabelamento e controle de preços dos anos 1980, famoso por sua ineficácia). Essa é uma pauta de interesse direto dos caminhoneiros, e o governo deveria insistir nela, tirando proveito da força dos grevistas para enfrentar o poder econômico das transportadoras.

O segundo motivo pelo qual os caminhoneiros não conseguem repassar o aumento de custos para os fretes é o excesso de oferta de fretes. Há gente em excesso trabalhando como caminhoneiro autônomo no País. E isso vem do fato de que o BNDES, ao longo de anos, ofereceu crédito com juros reais negativos para a compra de caminhões. Supostamente essa “doação” financeira seria um benefício para os caminhoneiros. Na prática, aumentou artificialmente a oferta de fretes, diminuindo a margem de lucro dos profissionais. De 2003 a 2013 a frota de caminhões no Brasil cresceu, em média, 5% ao ano, enquanto a economia cresceu 2% ao ano[1]. Quando a recessão de 2014 chegou, derrubando a demanda por transporte de cargas, uma multidão de caminhoneiros, ainda pagando o carnê do caminhão novo, foi surpreendida pela falta de serviços.

Fica a lição de que políticas setoriais intervencionistas cedo ou tarde cobram seu preço. Mas o que fazer com milhares de profissionais que investiram na compra de um ativo fixo que não está dando a rentabilidade esperada? Esse problema só será superado definitivamente quando a economia voltar a crescer. Greves e tabelamentos de preços retardam a retomada e prolongam a agonia dos próprios caminhoneiros. Um dos principais fatores que derrubaram o crescimento em 2018, que em maio daquele ano estava estimado em 2,5%, e encolheu para 1%, foi justamente a deterioração das expectativas decorrente da greve dos caminhoneiros.

O melhor que o governo pode fazer é organizar uma política de treinamento para aqueles que desejarem mudar de ramo, acoplada a algum tipo de ajuda financeira temporária. Para os que preferirem se manter no ramo, o governo poderia acenar com melhorias das condições de trabalho: pontos de descanso, recuperação de rodovias, desburocratização na regulamentação da profissão (sem comprometimento da segurança).

A solução definitiva para a crise dos caminhoneiros passa por tornar os mecanismos de mercado mais eficientes e reduzir a influência política sobre os mercados de combustíveis e frete: privatização, boa regulação, abertura econômica, defesa da concorrência e assistência social aos perdedores de curto prazo. Interferência no sistema de preços, seja do combustível, seja do frete, é a receita do fracasso e de crises futuras. Fosse esta a solução correta, não estaríamos sob nova ameaça de greve menos de um ano depois de encerrada a primeira.

Como toda solução populista, a interferência nos preços ataca os sintomas sem cuidar das causas. O correto seria corrigir as causas sem descuidar de aliviar os sintomas, o que deve ser feito com a assistência social e melhoria das condições de trabalho dos caminhoneiros.

_______________

[1] Fontes: Confederação Nacional dos Transportes e IBGE.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3206 1
A PEC do limite dos gastos e a proteção aos mais pobres https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2868&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-pec-do-limite-dos-gastos-e-a-protecao-aos-mais-pobres https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2868#comments Thu, 29 Sep 2016 12:34:23 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2868 Entre 1997 e 2015, a despesa primária (despesa total menos juros da dívida) anual do Governo Central triplicou em termos reais. Isso equivale a um crescimento médio de 6,2% ao ano acima da inflação. Se a despesa continuar a crescer nesse ritmo, não haverá dinheiro para pagá-la.

Com despesa crescente, o governo precisou extrair mais dinheiro da sociedade. A carga tributária subiu fortemente, chegando a 32,7% em 2015, valor muito acima da média de países emergentes. Mas não se pode continuar aumentando a carga tributária indefinidamente. Os impostos já sobrecarregam as empresas e as famílias.

Arrecadação estagnada e despesa crescendo resultam em déficits primários maiores a cada ano, chegando a R$ 170 bilhões (2,7% do PIB) em 2016.Em má situação financeira, o governo acaba tendo que pagar juros mais altos, pois o seu risco de default aumenta. Déficits primários e juros mais altos aceleram o crescimento da dívida bruta, que disparou de 53,8% do PIB para 69,5% em apenas dois anos.

Quando as empresas percebem que o governo está em dificuldade financeira, passam a temer aumentos abruptos de carga tributária, aceleração da inflação e instabilidade política. As agências de avaliação de risco rebaixam a nota de crédito do governo. Nesse cenário de perda da confiança no futuro de seus negócios, as empresas, num primeiro momento, evitaminvestir e posteriormente passam a demitir. Instala-se a recessão.

O crescimento mais baixo prejudica a receita do governo, agravando o quadro fiscal. Entra-se em um ciclo vicioso: o desequilíbrio fiscal derruba a economia, e a queda da economia piora a situação fiscal.  Estamos em situação difícil: não há como financiar o crescimento real de 6% ao ano dos gastos públicos e a economia já acumula queda do PIB de 7% em dois anos.

É nesse contexto que se está propondo a PEC 241/2016, que estipula limite para o crescimento da despesa primária. A regra é simples: se em um determinado ano a inflação for, por exemplo, de 5%, no ano seguinte o gasto primário da União só poderá crescer, no máximo, 5%.

A aprovação da PECatuará na causa fundamental do problema fiscal (o crescimento acelerado do gasto),sinalizando para a sociedade que o desajuste fiscal será resolvido. Haverá aumento da confiança das empresas, que retomarão os investimentos, gerando crescimento econômico. As receitas públicas reagirão, iniciando o processo de ajuste fiscal.

Ao mesmo tempo, o Tesouro Nacional precisará de menos empréstimos para financiar um déficit decrescente. Sobrarão mais recursos no mercado para financiar o investimento privado, o que levará à queda da taxa de juros, que impulsionará o investimento e o crescimento.Juros mais baixos vão desacelerar o crescimento da dívida pública. Também aumentarão a viabilidade dos investimentos privados em concessões de infraestrutura, reduzindo a necessidade de subsídios creditícios do governo aos concessionários, o que contribui tanto para o crescimento quanto para o ajuste fiscal.

A ideia deconter o crescimento da despesagera o temor de que políticas sociais sejam afetadas, prejudicando os mais pobres. Na verdade, a população de baixa renda será beneficiária do ajuste. Estamos com doze milhões de desempregados, que dependem da recuperação da economia para voltar à ativa. Os pobres são os maiores prejudicados pelo desemprego recorde. Segundo o IPEA, em 2014, a taxa de desemprego era de 20% para os trabalhadores situados entre os 10% mais pobres, enquanto a taxa era de apenas 2% entre os 10% mais ricos. Além disso, os pobres não têm poupança acumulada para enfrentar o período de desemprego, geralmente não têm parentes ricos para lhes emprestar dinheiro e seu acesso ao crédito bancário é limitado e caro.

A mais importante política social é a recuperação da economia e do emprego.Adicione-sea queda da inflação que advirá do ajuste fiscal. Os pobres são os mais prejudicados pela carestia.

Os mais pobres também ganharão com a PEC porque hoje não são os maiores beneficiários do gasto público. O orçamentotem gordas dotações que beneficiam estratos sociais mais altos. Controlando-se a expansão desses gastos, restarão mais recursos para financiar programas que efetivamente atendem os pobres.

A queda da despesa com juros também favorecerá os pobres. Os juros são pagos a famílias de maior renda, que são aquelas que dispõem de reservas financeiras aplicadas em títulos públicos. Menor pagamento de juros resulta em redução do superávit primário necessário para manter a dívida sob controle, permitindo, mais adiante, a expansão de programas sociais. Ademais, ao facilitar as concessões de infraestrutura, a queda dos juros permitirá a expansão do saneamento básico e dos transportes coletivos.

Há, também, no orçamento, perda de recursos por ineficiência. Esse custo não é desprezível. Por exemplo, entre 2004 e 2014, o Ministério da Educação aumentou seus gastos, em termos reais, em 285%, mas isso não parece ter se refletido em melhoria significativa no aprendizado, em especial dos alunos do ensino médio, cujo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica mantém-se em 3,7 quando, pela meta estabelecida, já deveria ter chegado a 5,2. A fixação de um teto de gastos induzirá a administração pública, sujeita a maior controle do gasto, a buscar eficiência, beneficiando a todos. O Ministério da Saúde já deu a largada: com medidas gerenciais e renegociações de contrato reduziu seu gasto anual em mais de R$ 1 bilhão.

A PEC também tem sido questionada ao propor mudança na vinculação de recursos da saúde e da educação. A proposta é que o gasto mínimo (o piso) nesses setores deixe de ser calculado com base na receita do governo, passando a ser corrigido pela inflação. Há o argumento equivocado de que a receita crescerá mais rápido que a inflação, de modo que a troca do indexador levaria a perda de recursos.

É incorretocomparar os cenários “com aprovação da PEC” e “sem aprovação da PEC” supondo que o crescimento econômico e o desempenho da receita serão iguais nos dois casos. Sem a aprovação da PEC e, portanto, mantendo-se a atual regra de correção do gasto mínimo em saúde e educação, o crescimento econômico e da receita serão muito baixos, implicando baixa correção da despesa mínima.Quando o PIB cai, como está ocorrendo agora, a correção pela receita é uma opção pior. Pelos dados dos últimos anos, a correção pela inflação geraria valores maiores que a indexação à receita desde o exercício de 2013. O critério proposto na PEC protege a saúde e a educação durante as crises.

É preciso computar o aumento de demanda porserviços públicos gerado pela deterioração econômica. Pesquisa recente da CNI apurou que, em 2016, 34% dos entrevistados pararam de pagar planos de saúde e 14% transferiram os filhos da escola privada para a pública. Se não houver a aprovação da PEC e a recuperação da economia, mesmo que seja destinada uma dotação maior para saúde e educação, haverá pressão de demanda, prejudicando os usuários.

Deve-se considerar o estrago que a deterioração econômica gera na escolaridade dos mais pobres. Entre 2015 e 2016 a taxa de desemprego para jovens entre 14 e 17 anos, apurada pelo IBGE, subiu de 24% para 39%, refletindo um quadro de abandono dos estudos em busca de emprego. Essa é uma perda para a educação que independe de haver mais verbas destinadas para o setor.

É essencial lembrar que a PEC deixa fora do limite de gastos as transferências federais para o FUNDEB, que financia a educação básica, mais importante etapa educacional no fortalecimento do capital humano dos mais pobres. E a complementação da União vai justamente para os estados mais pobres.

Nada impede que o Congresso decida alocar recursos para saúde e educação acima do mínimo (como está sendo feito no orçamento de 2017), desde que reduza despesas em outras áreas, para respeitar o teto de gasto. Esse é um ponto que ilustra outra virtude da PEC. Ela induz o Congresso e a sociedade a definir prioridades. Não será mais possível adotar a prática atual de superestimar receitas para incluir o máximo possível de despesas no orçamento. O Congresso recobrará o seu papel de fórum de discussão das prioridades nacionais.

Ao tornar mais forte a restrição ao crescimento do gasto, a PEC induzirá a recuperação da economia e do emprego, beneficiará a população mais pobre, criará restrições à obtenção de privilégios a grupos de renda alta; estimulará a racionalização e a eficiência dos programas públicos; permitirá o planejamento fiscal de longo prazo. Essa medida é apenas a primeira peça da reforma do gasto público, que terá segmento como a reforma previdenciária. Sem conter os gastos será difícil superar o atual cenário de deterioração das contas públicas, baixo crescimento e empobrecimento.

 

(Este texto é uma reprodução de artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo em 25/09/2016.)

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2868 3
Uma fábula de improdutividade https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2609&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=uma-fabula-de-improdutividade https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2609#comments Tue, 22 Sep 2015 16:09:24 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2609 João é inteligente e nasceu em uma família de classe alta. Estudou em boas escolas e entrou para uma universidade pública gratuita de engenharia. Formado, viu que os melhores salários iniciais de engenheiros estavam em R$ 5 mil. Fez concurso para um cargo de nível médio em um tribunal: salário de R$ 9 mil mais gratificações, aposentadoria integral, estabilidade, expediente de seis horas. O contribuinte custeou a formação de um engenheiro, e recebeu um arquivador de processos sobrerremunerado. Amanhã João estará em frente ao Congresso, com seus colegas, todos em greve por aumento salarial. Não terá o dia de trabalho descontado, nem se sente remotamente ameaçado de demissão.

Pedro não tem muito talento intelectual. Mas sua família pôde pagar uma boa escola, o que lhe garantiu uma vaga em um curso não muito concorrido em universidade pública. Carente de habilidades acadêmicas, Pedro não se adaptou e mudou de curso duas vezes, deixando para trás centenas de horas-aula desperdiçadas e duas vagas que poderiam ter sido ocupadas por outros estudantes que jamais terão acesso àquela universidade. Foi fácil desistir dos cursos, pois Pedro nada pagou por eles.

Após oito anos na universidade, Pedro finalmente se formou em biologia. Sonha em ter um emprego igual ao de João. Entrou em um cursinho preparatório para concursos públicos. Lá conheceu centenas de jovens formados em universidades públicas  que, em vez de irem para o mercado de trabalho aplicar seus conhecimentos, estão em sala de aula, decorando apostilas para conseguir um emprego público.

Jorge, o dono do cursinho, é um brilhante advogado, que poderia contribuir para a sociedade redigindo contratos empresariais. Mas descobriu que ganha mais dinheiro preparando candidatos ao serviço público.

Um dos professores do cursinho de Jorge é Manuel, que também abandonou sua formação universitária e mudou de ramo. Ao perceber que jamais exercerá a profissão original, ele pediu desfiliação do respectivo conselho profissional. Mas não consegue, porque Márcia, funcionária daquele conselho, tem como missão criar todo tipo de dificuldade às desfiliações e manter em dia a arrecadação compulsória. Manuel desistiu e vai pagar a contribuição pelo resto de sua vida profissional, ainda que não se beneficie em nada, e pouca satisfação seja dada pelo conselho profissional acerca do uso desse dinheiro.

As limitações acadêmicas de Pedro o impedem de ser aprovado em concurso público. Ele vai ser um medíocre professor, em uma escola de ensino fundamental de segunda linha (pública ou privada),  oferecendo ensino de baixa qualidade às novas gerações das famílias que não podem pagar por uma escola melhor. Pedro só conseguiu essa vaga porque há uma reserva de mercado: por lei, as escolas de ensino fundamental só podem contratar professores com diploma de nível superior. Fosse permitido contratar universitários, diversos graduandos em biologia mais talentosos e motivados que o diplomado Pedro estariam em sala de aula, oferecendo boas aulas às crianças.

Antônio é tão brilhante quanto João. Daria um excelente engenheiro, mas nasceu em família pobre e estudou em escola pública. Teve professores limitados, no padrão de  Pedro, e a desorganização administrativa da escola piorava as coisas: muitas vezes não havia professores em sala. Falta com atestado médico não dá demissão.

Antônio até conseguiu passar no vestibular de engenharia em universidade pública, pelo sistema de cotas, mas sua formação deficiente em matemática foi uma barreira intransponível. Abandou ou curso, deixando mais horas-aula perdidas e mais uma vaga ociosa na conta dos contribuintes.

Antônio, porém, é empreendedor. Não se abalou com o insucesso universitário, aprendeu a consertar eletrônicos através de vídeos no Youtube. Montou um pequeno negócio de manutenção de smartphones e computadores. Seu talento poderia torná-lo um grande empresário. Mas para crescer, ele precisa transferir sua empresa do regime de tributação SIMPLES para a tributação normal, pagando impostos muito mais altos, porque o governo precisa de muito dinheiro para pagar altos salários, para custear a universidade gratuita que desperdiça vagas e para sustentar escolas públicas que não dão aula, entre outras despesas. Mesmo assim, o governo permanece em déficit, e toma empréstimo para se financiar, aumentando a taxa de juros. Com impostos altos e crédito caro, Antônio prefere manter seu negócio pequeno. A grande empresa e seus empregos morreram antes de nascer.

Chico é um líder  talentoso. Dirige uma central sindical que congrega os sindicatos dos companheiros do judiciário e dos professores, entre outras categorias. Chico está em frente ao Congresso, apoiando a greve de Pedro por melhores salários. Faz um discurso contra os neoliberais, que só pensam em cortar gastos públicos e arrochar os trabalhadores. Chico não tem muito do que reclamar (embora, como líder sindical, a sua especialidade seja, justamente, reclamar): além da remuneração paga pelo sindicato (e custeada pelo imposto sindical, cobrado obrigatoriamente dos contribuintes), ele está aposentado pelo INSS desde os 52 anos de idade. Até o final da sua vida receberá muito mais do que contribuiu para a previdência.

Nenhum dos personagens citados tem comportamento ilegal. Eles jogam o jogo de acordo com as regras que estão postas. O erro está nas regras. Mudá-las requer superar as dificuldades das decisões coletivas. Não mudá-las implica continuar com talentos profissionais e dinheiro público mal alocados, empregos improdutivos, potenciais inexplorados, gasto público excessivo, oportunidades perdidas, incentivos errados. Uma fábula de improdutividade.

 

Este artigo foi publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, edição de 10/9/2015.

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2609 12
Por que a economia brasileira foi para o buraco? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2585&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-a-economia-brasileira-foi-para-o-buraco https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2585#comments Tue, 25 Aug 2015 18:12:38 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2585 Até poucos anos atrás havia grande otimismo em relação à economia brasileira. Chegamos a crescer 7,6% em 2010. Os salários cresciam, o desemprego ia para zero, a pobreza e a desigualdade caiam. A ascensão da classe C era festejada com a ampliação do consumo. De repente tudo mudou: a economia entrou em recessão em meados de 2014. As previsões para os próximos anos, coletadas junto ao mercado pelo Banco Central, são sombrias: uma recessão de 2% esse ano e crescimento zero em 2016. E mesmo quando a luz no final do túnel aparecer, o que se espera são medíocres taxas de crescimento do PIB de, no máximo, 2% ao ano. A taxa de desemprego calculada pelo IBGE não para de subir, passando de 4,3% em dezembro de 2014 para 7,5% em julho de 2015. Os dados sobre o déficit e a dívida do Governo Federal só mostram deterioração: festejados programas de governo, como o Fies e o Pronatec, tiveram que ser encolhidos por falta de dinheiro. A inflação disparou. Alguns governos estaduais não conseguem sequer pagar o funcionalismo, e estão parcelando os contracheques. Afinal, o que aconteceu para que caíssemos do nirvana para o buraco tão rapidamente?

A crise econômica atual tem causas antigas, que remontam ao início do atual  período democrático (iniciado em 1985), bem como causas recentes, ligadas a uma política econômica equivocada e inconsistente, adotada por volta  de 2005/2006 e aprofundada a partir de 2011.

As causas antigas

Quando o Brasil transitou de um regime ditatorial para uma democracia, em 1985, surgiram fortes pressões sociais para expansão do gasto público. Isso levou ao aumento do déficit público e exigiu a expansão da carga tributária. Esses fatos estão na base da nossa crise atual, como veremos a seguir. Vejamos, primeiro, porque o gasto público passou a crescer após à transição para a democracia.

Houve um acúmulo de necessidades sociais não atendidas ao longo dos 21 anos de regime militar. Praticamente não havia políticas públicas para atendimento aos mais pobres. Os indicadores sociais e educacionais estavam em níveis africanos.

Durante a ditadura os governantes não se sentiam premidos a atender a população mais pobre pelo simples fato de que o direito de voto era restrito. Havia eleição direta apenas para os cargos de senador, deputado e prefeitos de pequenas cidades. Ter uma carreira política de sucesso em muitos casos não dependia de ter votos. Com a redemocratização e a instituição de eleições diretas em todos os níveis, a sobrevivência de um político no poder passou a depender diretamente do voto.

Sendo os pobres a maioria do eleitorado (lembrando que até mesmo os analfabetos passaram a ter direito a voto), nada mais natural de que os políticos no poder passassem a oferecer políticas públicas a favor dos mais necessitados. Houve uma explosão de políticas de assistência social, educação e saúde pública. Diversos indicadores sociais passaram a melhorar, ainda que muito dessas políticas sejam caras e pouco eficientes.

Ocorre que não apenas os pobres se beneficiaram. A classe média também encontrou maior espaço para reivindicação. Afinal, com a redemocratização recobrou-se o direito de greve e o direito de associação em sindicatos e outras instituições formadas por pessoas com interesses comuns (associações de aposentados, de consumidores, de pacientes de doenças raras, etc.). Esses grupos passaram a ter grande poder de pressão para reivindicar políticas públicas a seu favor.

Frente ao ganho de poder político dos pobres e da classe média, seria de se esperar que os mais ricos perdessem espaço no orçamento público, com o governo direcionando os recursos antes gastos em favor deste para programas voltados aos pobres e à classe média. Mas isso não aconteceu. Os mais ricos também ganharam poder de reivindicação. Afinal, eleições custam caro, e alguém tem que financiá-las. Por meio do financiamento eleitoral, grandes empresas (em especial aquelas que têm contrato com o poder público) passaram a garantir o atendimento de seus interesses.

Ou seja, com a redemocratização, o Estado brasileiro passou a ser pressionado para atender aos pobres, à classe média e aos ricos. Com vários segmentos sociais tendo acesso aos recursos públicos, instituiu-se um cenário de forte disputa pelos recursos orçamentários. Para que isso não resultasse em expansão da despesa pública, teria sido necessário criar regras eficazes de limitação do gasto público: um orçamento consistente, que refletisse a real expectativa de receitas e despesas; limites legais para o déficit público; vedação ao financiamento do Tesouro pelo Banco Central.

Essas regras fiscais ou não foram instituídas, ou foram contornadas. Criaram-se, também, regras na direção contrária ao controle fiscal. Na nossa frágil democracia, pressionada por diferentes grupos sociais e de interesses, foram sendo construídas regras que protegiam a fatia do bolo dos grupos que conseguiam fazer mais pressão sobre instâncias decisórias do poder público. Assim, foram criadas regras que instituíam despesa mínima para os setores de educação e saúde, regras benevolentes de aposentadoria, crédito subsidiado para grandes empresas por meio de bancos públicos, regras de aumento real para o salário mínimo, etc.

Ou seja, em vez de haver regras fiscais que impusessem um limite ao gasto público total e forçassem os políticos a fazer escolhas entre beneficiar o grupo A ou o grupo B, o que se criou foram regras que obrigavam o setor público a beneficiar todo mundo, ao mesmo tempo, o tempo todo. Como bem sabe qualquer pessoa que administra um orçamento doméstico, uma hora a despesa fica maior que a receita e o endividamento explode.

No caso de governos, ao contrário dos orçamentos domésticos, há uma saída (perigosa) para evitar o endividamento: emitir moeda para pagar a despesa. E foi isso que se fez entre 1985 e 1994. O resultado foi a hiperinflação. Como os grupos sociais não conseguiam chegar a um consenso sobre o controle dos gastos públicos e como não havia regras fiscais que garantissem um orçamento equilibrado, a inflação fazia o serviço, corroendo o valor real dos gastos públicos e da renda das pessoas.

O problema é que a inflação tem efeitos perversos: além de incidir mais fortemente sobre os mais pobres (que não têm acesso a bancos, para proteger seu dinheiro por meio de aplicações financeiras), ela cria um ambiente de incerteza e insegurança que desestimula o investimento, levando a baixo crescimento econômico. Tivemos uma década perdida, em que tentamos nos livrar da inflação. Tentávamos fazê-lo sem abrir mão da prodigalidade fiscal. Queríamos resolver o problema (inflação) sem extinguir a causa (déficit público).

O esgotamento fiscal induziu a realização de algumas reformas. A principal delas foi o Programa Nacional de Desestatização, iniciado em 1990, que afastou o setor público da gestão de empresas então deficitárias e operadas de forma ineficiente em vários setores, como siderurgia, telefonia e mineração. Essas empresas funcionavam como um segundo cofre do Tesouro e como ferramenta de política econômica, muitas vezes sendo induzidas a tomar decisões que prejudicavam seu desempenho. Tomavam empréstimos no exterior quando era necessário fechar as contas do balanço de pagamentos; tinham os preços de seus produtos congelados, para segurar a inflação; etc.

Embora importantes, as privatizações não foram capazes de mudar o deficitário regime fiscal brasileiro. Passamos quase uma década, de 1985 a 1994, em que sete planos de estabilização da moeda falharam, porque não conseguiram impor limites ao gasto público. Somente em 1994 tivemos um plano de sucesso. O Plano Real correu o mesmo risco de dar errado, como os seus antecessores, pois não foi acompanhado de medidas para controlar os gastos públicos. Mais uma vez os esforços de ajuste fiscal não foram suficientes para equilibrar as contas públicas. Destaca-se nesse período a criação, em 1994, do Fundo Social de Emergência (posteriormente rebatizado de “Desvinculação de Receitas da União” – DRU), para tornar a despesa orçamentária menos rígida e viabilizar a redução de despesas obrigatórias (Emenda Constitucional de Revisão nº 1, de 1994). Esse é o exemplo típico de ajuste fiscal limitado, fazendo-se aquilo que as restrições políticas permitiam fazer: ajustes marginais, jamais reformas amplas, que assegurassem o equilíbrio fiscal e a solvência de longo prazo das contas públicas.

Novas crises de balanço de pagamentos surgiram em 1997 e 1998, nas quais a frágil situação fiscal brasileira somou-se ao contágio de crises ocorridas em outros países emergentes. Naquele momento ficou claro que o sucesso da estabilização dependia de mudanças profundas no regime fiscal brasileiro. As crises econômica e política forçaram os agentes políticos a aceitar limitações fiscais. Ajudou o fato de que um empréstimo do FMI ficava condicionado a medidas de ajuste fiscal: se os diversos grupos sociais e políticos do país não conseguiam se entender sobre como conter o gasto público, uma imposição externa ajudava a formar o consenso.

O ajuste fiscal “meia boca”

O país começou, então, a trilhar um caminho de mais responsabilidade fiscal. Assim, aprovou-se a Lei de Responsabilidade Fiscal no ano 2000. Um pouco antes, entre 1997 e 1998, fez-se uma importante renegociação da dívida dos estados e municípios junto ao mercado financeiro. Essa dívida era impagável e alimentada por déficits crônicos desses governos. O Governo Federal assumiu a dívida e passou a pagá-la em dia aos credores privados. Em troca disso, os estados e municípios se comprometeram a pagar o débito de forma parcelada ao Governo Federal ao longo de trinta anos. Para conseguir pagar essa dívida, foram forçados a ajustar suas contas. Quem não pagasse em dia, tinha as suas receitas confiscadas pelo Governo Federal. O esquema deu certo, e os estados e municípios se ajustaram rapidamente. Pela primeira vez na história recente começamos a ouvir palavras como “eficiência”, “gestão” e “equilíbrio fiscal” no âmbito dos governos estaduais e municipais. Tudo isso porque estava fechada a porta ao socorro federal: ou os estados e municípios se ajustavam ou quebravam.

Mais medidas foram tomadas visando ao equilíbrio fiscal. Estabeleceram-se metas de resultado primário e de redução da dívida nos três níveis de governo. Pouco depois se propôs uma reforma da previdência, com foco no regime dos servidores públicos (Emenda Constitucional nº 20/1998).

A aprovação dessas reformas ajudou bastante, mas não alterou o modelo instaurado nos anos 1980: continuava a pressão por aumento dos gastos públicos. A aprovação de cada reforma representava grande custo político para o Governo, em especial devido à aguerrida resistência dos interesses estabelecidos, apoiada pelos partidos de oposição da época. Não havia nada próximo a um consenso social em torno da reforma do Estado. Somente a visão da beira do precipício, representada pelas ameaças e concretizações de crises cambiais, é que davam estímulo e cacife ao Poder Executivo Federal para propor, e ao Legislativo para aceitar, pequenos avanços na agenda de reformas.

Em função dessa resistência, não  se reformou a previdência do setor privado ou o processo de elaboração e execução do orçamento federal. Para piorar, foram tomadas medidas fiscais em direção contrária, das quais se destacam a aceleração dos reajustes do salário mínimo (que tem grande impacto na despesa da previdência) e a vinculação das despesas em saúde ao ritmo de crescimento do PIB (Emenda Constitucional nº 29, de 2000). O apelo eleitoral desse tipo de medida é evidente.

Naquele momento a carga tributária ainda não era tão elevada. Em 1998, por exemplo, estava na casa de 27% do PIB. Por isso, havia espaço para fazer o ajuste fiscal via aumento de receitas. E assim se fez, com a criação de novos tributos e a majoração dos antigos, para dar conta do crescimento acelerado da despesa. Para a classe política era mais fácil dispersar o custo entre todos os contribuintes do país, do que comprar brigas com grupos organizados que defendiam seu quinhão no orçamento. Ademais, cada aumento de impostos vinha embalado com uma nobre causa a ser atendida: a CPMF era para financiar a saúde, o aumento das contribuições sociais era para financiar as aposentadorias, etc.

Passamos, então, de um regime cronicamente inflacionário (devido ao alto déficit público) para um regime de gastos públicos altos financiados por alta carga tributária. Já não tínhamos mais a hiperinflação, mas a economia não conseguia crescer, sufocada pela alta carga tributária.

Outra característica do nosso ajuste fiscal foi o radical corte nos investimentos públicos. A criação de regras de despesas obrigatórias em diversos setores, como educação, previdência e saúde, não foi acompanhada de regras de despesa mínima em infraestrutura. Estas ficaram expostas a cortes, para que se pudesse ampliar despesas que beneficiavam diretamente grupos bem organizados. A infraestrutura do país tornou-se cada vez mais precária, passando a representar um gargalo adicional para o crescimento econômico.

E o problema não estava só nas contas públicas

O fato de a nossa jovem democracia não ter conseguido construir instituições para conter o poder de influência dos diferentes grupos de interesse (ricos, pobres e de classe média) sobre as decisões públicas criou outros problemas além do desequilíbrio fiscal crônico, que passaram a minar a nossa capacidade de crescimento. Assim como reivindicavam gastos públicos ou benefícios tributários a seu favor, cada um desses grupos organizados também lutava por regulação econômica que protegesse suas rendas. E isso se fazia à custa da eficiência e competitividade da economia, resultando em menor potencial de crescimento.

A indústria conseguiu influenciar a política comercial do país, mantendo altas barreiras à entrada de produtos estrangeiros. Isso diminuiu a entrada de novas tecnologias no país, reduzindo o ritmo de inovação e de ganho de produtividade. Ademais, deu sobrevida a empresas ineficientes que, não tendo que competir com estrangeiros, conseguiram se manter vivas. Essas empresas utilizam recursos produtivos (mão de obra, capital, financiamentos) que poderiam ser mais bem empregados em empresas mais produtivas, gerando mais renda e produto.

Os sindicatos de empregados de empresa do setor formal conseguiram manter regras trabalhistas rígidas, que garantem benefícios a quem está empregado, mas que induzem as empresas a contratar menos. Assim, tais benefícios têm, como contrapartida, perdas para os trabalhadores que não conseguem emprego formal, e se mantêm no setor informal, sem acesso aos benefícios. Com regras trabalhistas rígidas, as empresas não têm flexibilidade para se ajustar a variações no ritmo da economia. Muitas, para evitar entrar no radar dos órgãos de fiscalização, optam por se manter pequenas, sem registrar seus trabalhadores. Perde-se oportunidade para que empresas talentosas cresçam, pois empresas informais não têm acesso a crédito e têm poucos incentivos a treinar seus trabalhadores. Mais uma vez, prejudica-se o crescimento econômico.

Os servidores públicos e seus sindicatos, com crescente influência, conseguiram obter ou manter diversos benefícios para as diferentes categorias, colocando em segundo plano o interesse dos usuários de serviços públicos. Greves intermináveis, nunca punidas com demissões ou desconto de remuneração, passaram a paralisar escolas, universidades, policiamento, vigilância sanitária, justiça e serviços de saúde. Os serviços públicos terceirizados, em uma comunhão de interesses das empresas concessionárias e de seus empregados, passaram a paralisar frequentemente os transportes públicos, a coleta de lixo e serviços funerários.

A justiça morosa sempre beneficiava quem tinha mais tempo e dinheiro para ingressar em juízo e manter causas de longa duração. O respeito aos contratos, em tal situação, fica ameaçado, o que desestimula investimentos.

Em função dessas dificuldades, o país navegou, entre 1994 e 2003, com baixa capacidade de crescimento, mas com estabilidade de preços, garantido pelo ajuste fiscal precário, baseado em aumentos de impostos.

As sucessivas crises externas, associadas a esse equilíbrio instável das contas públicas, infraestrutura deficiente e regulação econômica ineficiente, não abriam muito espaço para o crescimento.

E o ajuste fiscal necessário não se concretizava

Nos primeiros anos do novo século já estava clara a necessidade de reformas que mudassem o padrão de crescimento do gasto público. Projeções de especialistas em previdência social mostravam que os sistemas dos servidores públicos e do setor privado estavam em rota de déficit crescente. Os gastos em programas sociais cresciam de forma acelerada. A rigidez da despesa com pessoal, saúde e educação também aumentava. O processo de elaboração do orçamento era frágil: as receitas superestimadas, as despesas subestimadas e o controle fiscal feito “na boca do caixa”. Tornou-se lugar comum a frase segundo a qual “o orçamento público, no Brasil, é uma peça de ficção”.

Ou seja, mais de uma década atrás já era evidente que o regime fiscal brasileiro não seria sustentável no longo prazo. Obviamente, a carga tributária não poderia crescer para sempre, pois chegaria um momento em que sufocaria os contribuintes e as possibilidades de crescimento econômico e da própria receita. A crônica falta de investimento em infraestrutura reduzia o potencial de crescimento do PIB e da receita pública. Enquanto isso a despesa crescia, sempre a taxas superiores ao PIB, como pode ser visto no gráfico abaixo. Em 2001, já havia rompido, no caso específico do governo central (Tesouro Nacional, Banco Central e Previdência Social), a barreira dos 15% do PIB. Tudo isso projetava um futuro em que a dívida pública cresceria mais que o PIB e, em algum momento, se tornaria impagável.

Gráfico 1 – Despesa Primária do Governo Central: 1997-2014 (% do PIB)

img_2585_1

Chegamos, então, a 2002 com um regime fiscal capenga e insustentável. A associação desse fato com a eleição de Lula para a Presidência da República desencadeou um movimento de temor sobre qual seria a política econômica do PT. O passado recente de oposição à Lei de Responsabilidade Fiscal, às reformas da previdência e a toda e qualquer medida de controle de gastos indicava que se teria um governo populista, que aceleraria o ritmo de deterioração das contas públicas. Em função desse temor, houve fuga de capitais e, mais uma vez, o país se viu em uma crise de balanço de pagamentos, sem dólares para pagar os compromissos externos do governo e das empresas privadas. A cotação do dólar ultrapassou a marca dos R$ 4,00 e  a inflação acelerou-se: nos três últimos meses de 2002 o IPCA acumulou 6,5%, equivalente a uma taxa anualizada de 29%.

Ao tomar posse em meio a forte crise econômica, o Presidente Lula surpreendeu e adotou um conjunto de medidas de ajuste fiscal que confrontava todo o discurso oposicionista do PT. Mandou para o Congresso e aprovou, ainda que de forma mitigada, uma reforma da previdência do setor privado (Emendas Constitucionais nº 41/2003 e nº 47/2005). Controlou com mão de ferro as despesas não obrigatórias e os reajustes do funcionalismo público. Manteve a escalada da carga tributária. Ou seja, intensificou o padrão de equilíbrio fiscal do governo anterior: algumas reformas, supressão do investimento público e elevação da carga tributária.

Assim como no caso do Governo FHC, não conseguiu abrir mão de políticas de alto retorno eleitoral, como os aumentos reais para o salário mínimo. Tampouco reformou o frágil processo orçamentário. O controle da despesa continuava na boca do caixa, a base de “decretos de contingenciamento”. Obteve-se alguma melhoria na qualidade do gasto público ao se reformar um conjunto de programas sociais, criando-se o Bolsa Família.

Outras reformas, fora da área fiscal, foram realizadas com o objetivo de aumentar a eficiência da economia. Destaquem-se a Lei de Falências, a introdução do sistema de crédito consignado e a melhoria das garantias em operação de crédito, facilitando a execução de garantias. Isso melhorou o ambiente de negócios e estimulou o crédito e o investimento.

Já se começava a discutir o aprofundamento das reformas fiscais, visando zerar o déficit público. Aí veio o Mensalão…

O Mensalão e o Maná que Caiu do Céu

Essa orientação de política econômica duraria pouco. Em 2005 estourou o escândalo do Mensalão e a popularidade do Presidente Lula caiu fortemente, ameaçando a sua reeleição. Para costurar uma nova rede de apoio político, o Presidente deu uma guinada na política fiscal. Os cofres públicos foram abertos e generosos aumentos de remuneração foram concedidos a praticamente todas as carreiras do funcionalismo federal. Foram ampliadas as verbas públicas destinadas à UNE, aos sindicatos e confederações de trabalhadores, às universidades, aos estados e municípios, às emendas parlamentares, às campanhas publicitárias do governo.

Tudo indicava que teríamos uma recaída fiscal e voltaríamos para o padrão de crises cíclicas. Porém um fenômeno externo veio em socorro ao Brasil. O forte crescimento da economia chinesa elevou a demanda por commodities no mercado internacional. Os preços de nossos produtos de exportação, como minério de ferro e soja, cresceram sobremaneira. Do final de 2002 até o final de 2010 o preço médio das exportações brasileiras, em dólares, subiu 146%, enquanto o das importações cresceu apenas 85%. Um “maná vindo dos céus” (ou melhor, da China) aumentou fortemente as receitas de exportações e barateou as nossas compras de produtos industrializados – produzidos, em sua maioria, na própria China.

O Brasil, assim como todos os demais exportadores de commodities do mundo e, em especial, da América Latina, passou a acumular grandes superávits comerciais. As reservas internacionais cresceram. O fantasma da crise cambial foi afastado. O aumento de renda nacional decorrente das exportações a preços elevados se traduziu em ganhos de arrecadação de tributos. A receita do Governo Federal passou a crescer a inacreditáveis 7% ao ano, em termos reais. O desemprego caiu. A criação de regimes tributários simplificados estimulou a formalização do emprego, o que contribuiu para melhoria das contas da previdência.

Paralelamente, havia um excesso de liquidez no mercado financeiro internacional. Investidores estrangeiros passaram a aplicar seus recursos nos países emergentes. O Brasil, com boas perspectivas econômicas e uma taxa de juros atraente, passou a ser destino preferencial. Essa entrada de poupança externa, somada às melhorias institucionais no mercado interno de crédito, ajudou na forte expansão dos financiamentos de imóveis e bens de consumo.

Essa lufada de boas notícias afastou o inferno astral político do Presidente Lula, que recobrou a sua popularidade e se reelegeu. O ambiente de bonança abriu espaço para que o PT finalmente adotasse os seus ideais históricos de política econômica, baseados na crença de que é possível estimular o crescimento econômico através de um governo grande, que tenha ingerência nas decisões dos agentes privados, para orientar o mercado em direção ao crescimento.

O governo tomou como sendo permanente o ganho de renda proporcionado pelo boom de commodities. Qualquer pessoa que já gastou trinta segundos olhando um gráfico da evolução histórica da cotação de commodities sabe que esse mercado se caracteriza por alternar períodos de alta e de baixa, com a transição de um para outro se dando de forma abrupta. No entanto, a crença era de que a melhoria do quadro econômico era consequência da política interna, nada tendo a ver com o presente vindo da China. Assim, não havia que temer qualquer reversão do quadro externo.

A ordem, agora, era estimular a economia, acelerando-se o gasto público. Trocou-se a equipe econômica e criou-se, em 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), baseado no desarquivamento de projetos de investimento do setor público e de empresas estatais, que passaram a ter prioridade e não seriam contabilizados como despesa pública para fins de apuração do déficit público.

Esse mecanismo de não contabilizar investimentos como desepesas, para fins de apuração do déficit público, havia sido instituído anteriormente, a partir de um acordo com o FMI. Nesse acordo criou-se o Programa Piloto de Investimentos (PPI), no qual alguns projetos, previamente selecionados com base em sua qualidade e retorno econômico, ganhavam esse privilégio. A ideia era que bons projetos de infraestrutura tendem a acelerar o crescimento e, com isso, melhorar as contas fiscais no longo prazo.

Com o advento do PAC, generalizou-se a prática de retirar os investimentos do cálculo do déficit. Não importava se os projetos fossem antigos e de baixa qualidade, tampouco se teriam algum impacto econômico relevante. Subverteu-se, portanto, um mecanismo que, se fosse usado com temperança, poderia ajudar a melhorar a infraestrutura e o crescimento econômico.

Não havia foco, nem prioridade nos investimentos: tudo teria que ser feito ao mesmo tempo. Certamente o Brasil precisava ampliar seus investimentos públicos, após décadas de supressão desses gastos em nome do equilíbrio fiscal. Mas fazê-lo dessa forma dificilmente colaboraria para melhorar a eficiência da economia.

Em 2006 o Brasil foi escolhido para ser a sede da Copa do Mundo de 2014. Em 2007 candidatou-se para sediar os jogos Olímpicos. Duas empreitadas de vulto, que exigiriam fortes investimentos em arenas esportivas, previsíveis elefantes brancos de alto custo de construção e manutenção.

A primeira rodada de aumentos reais de remuneração dos servidores públicos, ocorrida em 2006, desencadeou um movimento de reivindicação por parte das carreiras inicialmente não contempladas. Houve aumentos generalizados e os servidores nunca ganharam tanto. Em 2007, os gastos primários do governo central, retratados no gráfico 1 acima, já se aproximavam dos 17% do PIB, quase dois pontos percentuais acima do nível de 2005. Mas não se via problema nisso, pois a receita estava “bombando” e a carga tributária, reforçada pelos aumentos de impostos do período 2002-2004 e pelo crescimento da base de arrecadação, já chegava a 33,2% do PIB.

Os erros de política econômica que agravaram os problemas estruturais

Em 2008 eclodiu a crise no mercado financeiro norte-americano, com a quebra do banco Lehman Brothers. A atividade econômica mundial caiu fortemente e isso, obviamente, teve consequências sobre o Brasil. No ano de 2009 o PIB brasileiro caiu 0,23%. A equipe econômica decidiu, então, que precisava fazer uma “política anticíclica”: aumentar os gastos públicos e reduzir tributos para estimular o consumo e reativar a economia.

Política anticíclica é, por definição, algo passageiro: expande-se o gasto apenas enquanto a economia está precisando de incentivos. À medida que a economia sai da crise, e a capacidade ociosa das indústrias diminui, o governo deve retirar os estímulos.

Porém, a política anticíclica aqui adotada aumentou gastos difíceis de reverter posteriormente, como, por exemplo, a remuneração do funcionalismo e o salário mínimo. E as desonerações tributárias, que poderiam ser revertidas, não o foram em função da pressão política de seus beneficiários. Tornaram-se, isso sim, definitivas, mediante a edição de uma medida provisória posteriormente convertida na Lei nº 13.043, de 2014.

Já em 2010 a economia apresentava forte crescimento, mas os estímulos fiscais não foram retirados. Na verdade, o boom de commodities continuava intenso, pois a China manteve elevado ritmo de crescimento e continuou fortemente compradora no mercado internacional, apesar da crise que afetava os EUA e a Europa.

A partir de 2011, animado com o elevado crescimento de 2010 (que nada mais foi que a recuperação da queda de 2009 e não o prenúncio de um novo patamar de crescimento), a política anticíclica transmutou-se em um conjunto de medidas que veio a ser batizado de “Nova Matriz Econômica”.

Essa “nova” política consistia em forte intervenção governamental na economia visando estimular o investimento privado e o consumo. A ideia básica era de que, havendo mais consumo, as empresas se interessariam em investir e produzir mais. Ao mesmo tempo, se os investimentos fossem incentivados e subsidiados, o ciclo se fecharia, com as empresas ampliando investimentos e produção. A taxa de crescimento se aceleraria. Não seria preciso se preocupar com equilíbrio fiscal, pois o crescimento decorrente da política de estímulos faria a receita pública crescer e fechar as contas do governo.

Também fazia parte do cardápio a redução da taxa de juros básica da economia. Considerada pelos gestores da política econômica como instrumento ineficiente de controle da inflação, ela precisaria ser reduzida para diminuir os custos financeiros das empresas e dos consumidores. A queda dos juros no mercado internacional, em função da crise financeira de 2008, parecia uma oportunidade e tanto para baixar as taxas domésticas.

Outro pressuposto da Nova Matriz era de que o governo sabia melhor do que as empresas quais seriam os bons investimentos para o país. Partia-se do pressuposto de que era preciso proteger e subsidiar as empresas nacionais, para que novos setores produtivos, escolhidos pelo governo, florescessem no país e/ou se tornassem multinacionais de sucesso. Com isso, deixaríamos de ser um simples exportador de commodities e agregaríamos valor à produção nacional.

Essa política estava baseada em diagnósticos errados. Sua pressuposição básica era de que o aumento do consumo das famílias e do governo desencadearia imediato aumento dos investimentos e, consequentemente, do crescimento econômico. Porém, entre o aumento do consumo e a ampliação da capacidade produtiva há grandes obstáculos: o país tem sérios problemas de infraestrutura; o custo do trabalho subiu muito desde o início do século (aumento do salário mínimo e redução da oferta de trabalho decorrente de mudança na composição etária da população); os trabalhadores têm baixa qualificação; fornecedores não conseguem ofertar insumos de qualidade e no prazo demandado (em função da política de proteção e exigência de conteúdo local); a justiça é lenta e o cumprimento dos contratos sistematicamente desrespeitado; há um excesso de burocracia para se abrir e gerir uma empresa; as regras trabalhistas são rígidas; as regras tributárias complexas e requerem alto custo para serem cumpridas. Ou seja, produzir no Brasil é caro, arriscado e não resulta em produtos de qualidade.

Ademais, há uma inconsistência entre aumentar o déficit público e aumentar o investimento privado ao mesmo tempo. Ambos são financiados pela poupança agregada da economia. Se o déficit público aumenta, o seu financiamento (a venda de títulos pelo Tesouro) vai absorver uma parcela maior da poupança disponível, sobrando menos recursos para financiar o investimento privado.

É verdade que podemos recorrer à poupança externa. Mas a entrada de capital externo acaba gerando um excesso de dólares na economia, valorizando o real. Quando o câmbio se valoriza, a indústria nacional fica menos competitiva em relação aos produtos importados. O aumento do consumo, em vez de estimular mais produção doméstica, vai estimular mais importações. E foi o que ocorreu. Apesar de todo discurso de incentivo ao investimento da indústria nacional, essa teve a sua participação no PIB sistematicamente encolhida nos últimos anos. Em 2010 ela estava na faixa de 15% do PIB, chegando a apenas 11% em 2014.

Não bastasse isso, é preciso reconhecer que, entre o aumento do consumo e a ampliação da produção, existe um hiato de tempo, no qual as empresas precisam constatar que o consumo subiu, acreditar que isso é permanente, tomar a decisão de investir e, finalmente, construir e começar a operar as novas unidades produtivas.

Por todos os motivos acima, apesar dos estímulos e desonerações fiscais, a indústria não conseguiu suprir a expansão do consumo. Os ganhos de renda, advindos da expansão fiscal e da bonança no comércio exterior, levaram ao aumento do consumo de bens importados, dada a incapacidade da indústria em prover bens com preço e qualidade capazes de concorrer com os produtores internacionais. Viajar a Miami, para comprar pela metade do preço, virou esporte nacional.

Ao mesmo tempo, os ganhos de renda elevaram o consumo de serviços (construção e reforma, serviços pessoais, refeições fora de casa). Como esses serviços não podem ser importados, os produtores nacionais não enfrentam concorrência externa, e o aumento de demanda elevou seus preços. Isso teve impacto sobre a inflação e sobre a competitividade da indústria: a absorção de mão de obra pelo setor de serviços aumentou os salários de equilíbrio em toda a economia, reduzindo a margem de lucro da indústria. Aumentou, também, o custo de outros serviços consumidos pela indústria, como alugueis, logística, consultoria e fretes.  Ainda que houvesse incentivo fiscal ao investimento, a menor margem de lucro e a baixa eficiência não permitiam à indústria vislumbrar oportunidades de negócios. Ademais, o crédito barato não era para todos, mas apenas para os escolhidos do Governo.

A redução da taxa Selic “na marra” levou ao descontrole da inflação. Ficou evidente mais um erro de diagnóstico: uma política monetária prudente tem sim efeito sobre a taxa de inflação. A atuação sobre os juros não se fez apenas via taxa básica. Houve determinação política para que os bancos públicos reduzissem os juros cobrados em suas operações de crédito e expandissem os seus empréstimos. A ideia era de que isso acirraria a concorrência com os bancos privados e os induziria a reduzir os juros de seus financiamentos. Na prática, os bancos privados não entraram nessa disputa. A carteira de crédito de instituições públicas, como Caixa Econômica e Banco do Brasil, se expandiu e perdeu qualidade (aumento do risco de inadimplência). O custo dessa maior inadimplência já aparece nas perdas provisionadas por esses bancos e, cedo ou tarde, virará gasto público, quando o Tesouro for chamado a fazer um aumento de capital para compensar as perdas. Criou-se um “esqueleto fiscal” a ser pago no futuro. Como, aliás, já aconteceu em diversos momentos da história do país.

O subsídio ao crédito teve sua expressão máxima nos empréstimos subsidiados do Tesouro Nacional ao BNDES, em montante que atingiu inacreditáveis 10% do PIB. A ideia, mais uma vez, era conceder crédito subsidiado a empresas e estimular o investimento. Ocorre que, para emprestar ao BNDES, o Tesouro tem que tomar emprestado dos poupadores nacionais. Afinal, o Tesouro é deficitário e não tem dinheiro sobrando para emprestar a ninguém. Ao tomar dinheiro em mercado, o Tesouro tirou a oportunidade de que aquele dinheiro fosse emprestado por outros bancos a outros tomadores. Ou seja, os créditos criados via BNDES não eram créditos novos dentro da economia. Eram simples realocações da poupança privada, em que o Governo decidiu, via BNDES, escolher quem receberia os créditos, na suposição de que o Governo tem mais capacidade que o mercado para alocar o crédito de forma eficiente.

Há pelo menos dois problemas nessa política. Primeiro, o crédito não é concedido aos melhores projetos (aqueles que têm mais chance de sucesso e de gerar crescimento econômico), mas sim aos projetos que têm maior conexão política. Segundo, o subsídio embutido no crédito aumenta o déficit público e, com isso, a pressão do Tesouro para se financiar no mercado, reduzindo a poupança disponível para financiar outros investimentos. A taxa de juros (preço da poupança disponível) sobe, prejudicando a viabilidade de todos os outros projetos que não têm acesso a juros subsidiados.

Efeito similar tiveram as diversas medidas de proteção das empresas nacionais. A cadeia produtiva de óleo e gás, por exemplo, foi submetida a crescentes exigências de compra de insumos fabricados internamente. Houve grandes estímulos para a instalação de estaleiros em território nacional. Isso se traduziu em insumos mais caros, de pior qualidade e entregues fora do prazo. E tudo isso bancado por mais subsídios públicos. Também daí decorrem baixa produtividade e redução da capacidade de crescimento.

Sempre que o Governo tenta proteger um dos elos da cadeia produtiva (por exemplo, a indústria naval), ele desprotege o elo seguinte (produção de petróleo), pelo simples fato de que obrigará esse setor a comprar insumos mais caros e piores. Não é possível proteger todos os setores da economia nacional ao mesmo tempo. A menos que importemos o modelo econômico da Coréia do Norte.

Numa demonstração de que o controle fiscal era secundário e que o importante era estimular a empresa nacional, a Lei de Licitações foi alterada, para permitir aos órgãos públicos pagar até 25% a mais nas licitações, quando o ofertante fosse empresa nacional. A aquisição de medicamentos pelo SUS deixou de ter como objetivo único atender as necessidades dos pacientes. Acoplou-se a ela uma política industrial de produção de medicamentos nacionais, mantida a base de fortes subsídios públicos, que, obviamente, consumiam recursos que poderiam ir para o atendimento final dos pacientes. Aguardemos para ver os resultados em termos da expansão da tecnologia e da capacidade nacional para produzir medicamentos…

Não menos problemática foi tentativa de induzir a Vale (empresa privada, mas com grande participação de entidades estatais) a investir no beneficiamento de minério (atividade de baixo retorno e excesso de produção internacional) em vez de se concentrar na mais lucrativa atividade de exploração e exportação de minério. A Petrobras fez uma série de maus negócios, desde compra de refinaria a preço superfaturado até construção de refinarias sem viabilidade econômica. Tudo a título de migrar da exploração de recursos naturais para atividades supostamente mais sofisticadas.

No conjunto de interferências equivocadas no processo produtivo merece destaque a mudança do marco regulatório do petróleo. A título de extrair maiores rendas de petróleo para o governo, e reduzir o lucro das petroleiras, foi proposta a mudança do regime de concessão (que vinha funcionando bem) para o regime de partilha (ver mais sobre esse tópico aqui). Aproveitou-se para estabelecer uma reserva de mercado para a Petrobrás, que seria a operadora única dos campos e sócia obrigatória, com pelo menos 30% do capital em cada campo.

A discussão do novo marco regulatório paralisou o setor. Foram quatro anos sem novas licitações para exploração de petróleo. Bilhões de reais de investimentos deixaram de ser feitos, em um período em que o preço do barril superava os US$ 100 e, portanto, as petroleiras estavam dispostas a dar lances elevados pelas concessões. Agora, com o petróleo a US$ 50, o interesse por investir nos campos (de alto custo) do pré-sal caíram bastante. Enquanto o Brasil gastava quatro anos discutindo as regras do pré-sal, o desregulamentado mercado dos Estados Unidos viu florescer o óleo de xisto, tornando-se o maior produtor de petróleo do mundo.

Ademais, a reserva de mercado concedida à Petrobrás se tornou um veneno para a empresa. Endividada, em função de inúmeros investimentos equivocados, interferência governamental e má governança decorrente de corrupção, a empresa não tem capital para participar com 30% de todo o capital da exploração do pré-sal. Por conta disso, atrasa-se ainda mais o cronograma de investimentos do setor, freando o crescimento econômico.

Ainda no setor de combustíveis, destaca-se o congelamento do preço da gasolina. A medida teve por objetivo controlar, “na marra”, a expansão da inflação, após o equívoco em se tentar controlar, “na marra”, a taxa de juros fixada pelo Banco Central. Ou seja, lançou-se mão de uma medida errada (o controle de preços), para corrigir outra medida errada (o controle dos juros). Os efeitos não se compensaram: somaram-se a amplificaram seus efeitos negativos sobre a economia. Como diz o velho ditado: um erro não justifica o outro.

De fato, a intervenção teve diversos efeitos negativos. Em primeiro lugar, arruinou as finanças da Petrobras, que foi obrigada a importar gasolina a um preço mais alto do que vendia no mercado interno (o que também prejudicou o balanço de pagamentos). Em segundo lugar, inviabilizou todo o setor de produção de etanol, que ficou menos competitivo em relação à gasolina, levando usinas à falência. Em terceiro lugar, criou uma inflação reprimida, que os agentes econômicos sabiam que iria aparecer (como de fato apareceu) em 2015, no momento em que se permitisse um reajuste corretivo dos preços: as expectativas inflacionárias ficaram mais rígidas, exigindo política monetária mais restritiva.

A expressão mais evidente do fracasso do novo marco regulatório do petróleo foi o leilão do megacampo de Libra, em 2013. Com reservas estimadas entre 8 e 12 bilhões de barris, o maior campo já licitado no Brasil e um dos maiores do mundo obteve o interesse de apenas um consórcio, que o arrematou pelo preço mínimo. O que gerou esse resultado pífio foram as regras de exploração, que espantaram os potenciais investidores.

No setor elétrico, a intervenção do governo não foi mais feliz. Às vésperas de um período seco, com os reservatórios das hidrelétricas em nível crítico, foi decretada uma redução de tarifas de energia. Estimulou-se o consumo quando se sabia que a oferta não daria conta de maior demanda. O risco de racionamento elevou-se e só não se concretizou porque a economia entrou em recessão e o consumo caiu. Mas não escapamos de uma correção de preços que, em poucos meses, aumentou em 50% a tarifa de energia.

O desarranjo no setor elétrico foi além do problema das tarifas. Uma medida provisória (MP 579) buscou induzir as geradoras de energia a dar desconto no valor da energia produzida. Para tanto, prometia a renovação antecipada das concessões que estavam para vencer nos próximos anos. As geradoras ligadas à Eletrobrás foram induzidas a aceitar o acordo e tiveram perdas de receitas (criando mais “esqueleto fiscal” a ser transferido para o Tesouro no futuro). Outras importantes geradoras não aceitaram o acordo. O seu suprimento de energia deixou de ser vendido em contratos de longo prazo, a crise de abastecimento se agravou e os preços explodiram. Para quem desejava reduzir o custo da energia, o governo conseguiu um belo resultado, porém com o sinal trocado!

A tão necessária recuperação da infraestrutura não escapou do equivocado pressuposto de que o governo conhece e pode mais que as empresas e o mercado. Ao mesmo tempo em que ofereceu ao setor privado a oportunidade de construir e administrar concessões de estradas e aeroportos, o governo decidiu tabelar o lucro máximo que essas empresa poderiam obter. A ideia era fornecer infraestrutura barata para que os usuários pudessem deslocar sua produção a baixo custo e as famílias não fossem oneradas pelos custos de pedágio. Ocorre que esse tabelamento de lucros atraiu empresas de baixa qualidade para a gestão das estradas, inviabilizou a concessão de outras tantas rodovias e diminuiu a concorrência nas concessões aeroportuárias.

Ainda no setor aeroportuário, a insistência em manter forte intervenção governamental, por meio da participação da Infraero como sócia de todos os consórcios, reduziu a agilidade dos consórcios administradores e onerou o erário, uma vez que a Infraero tem que participar com 49% (sua participação no negócio) de todo o custo de investimento na reformulação e ampliação dos aeroportos.

Outra conta que foi jogada para o contribuinte, no âmbito das concessões, foi o subsídio creditício dado nos financiamentos aos consórcios vencedores. Para que a tarifa aos usuários não fosse elevada, dava-se crédito barato aos concessionários. Ou seja, a conta que o usuário dos serviços (eletricidade, rodovias e aeroportos) não pagava, era repassada ao contribuinte. Mais despesa pública em um país com as contas estressadas.

Não menos desastrada foi a política de desoneração da mão de obra. Com o intuito de reduzir os custos das empresas, substituiu-se a base de cálculo da contribuição para a previdência social. Em vez de se calcular a tributação com base na remuneração de cada empregado, passou-se a calculá-la com base no faturamento das empresas. O resultado imediato foi a indução de contratação de mais mão de obra, pois agora a inclusão de mais empregados na firma não aumentava o custo de contribuição previdenciária. Para um mesmo nível de faturamento, não importava se a empresa tinha 10 ou 100 funcionários, a contribuição seria a mesma. Mas isso foi feito em um momento em que o país estava em pleno emprego. Estimular a contratação em uma situação como essa significa induzir aumentos de salários, pois a demanda por mão de obra cresce e a oferta de mão de obra não acompanha, pois há poucos desempregados buscando colocação. Em vez de reduzir custo das empresas, a medida representou aumento salarial: mais uma estocada na capacidade competitiva das empresas frente aos concorrentes externos, que também gerou perdas substanciais de arrecadação tributária.   (em outro artigo há mais detalhes sobre isso).

A falsa sensação de que o Brasil estava engrenando um longo período de crescimento (criada pela renda extra vinda de fora, sob a forma de altos preços e alta demanda por commodities e pelo dinheiro barato circulando no mercado financeiro internacional) levou a grande relaxamento da política fiscal. Um país que, como vimos, permaneceu por  décadas na corda bamba do déficit, equilibrando-se à base de aumento de carga tributária e cortes de investimentos, de repente descobriu-se sem restrições fiscais. Na educação, por exemplo, os gastos federais aumentaram de R$ 14 bilhões em 2004 para R$ 94 bilhões em 2014: um crescimento real de 294%! (mais sobre esses números aqui)

Como um contágio da baixa responsabilidade fiscal, o Governo Federal passou a estimular os estados e municípios a se endividar. Estes aproveitaram a oportunidade para expandir suas folhas de pagamento.

Em suma, houve uma primeira guinada de política econômica em 2005-2006, motivada pelo Mensalão e custeada pelo boom de commodities. Em seguida estabeleceu-se uma política de expansão fiscal com o pretexto de se fazer política anticíclica, posteriormente transformada em “Nova Matriz Econômica”. Tal “matriz”, além de aprofundar a lassidão fiscal, introduziu novos elementos que prejudicariam o bom funcionamento da economia e sua capacidade de crescimento: escolha pelo governo dos setores a serem estimulados, proteção a empresas nacionais ineficientes, interferência na estratégia de investimento das grandes empresas, congelamento de preços de insumos básicos (energia elétrica e gasolina), relaxamento da política monetária, paralisia das licitações de campos de petróleo, elevação do risco de racionamento de energia elétrica e aumento do risco regulatório (a hiperatividade do governo, interferindo em vários mercados, tornava as empresas receosas de investir).

Esses efeitos negativos, contudo, não foram sentidos de imediato. O aumento da renda real, o baixo desemprego, a expansão do consumo ajudada pelo crédito barato, as estatísticas de redução da pobreza e da desigualdade, tudo isso fazia a população crer que seu nível de vida havia mudado definitivamente para melhor.

Como uma cigarra feliz, o Governo Federal estimulou os brasileiros a consumir com vontade toda a renda extra que veio dos ganhos do boom de commodities e do crédito barato vindo do exterior. Impossível não chamar a Nova Matriz Econômica pelo seu nome verdadeiro: “populismo”.

Em 2013 a maré baixou e os problemas começaram a aparecer

Em 2013 o ritmo de crescimento da economia chinesa começou a diminuir. Os mercados de commodities esfriaram. A atividade econômica no Brasil sentiu o baque e os problemas acumulados com os erros da nova matriz, somados à nossa histórica fragilidade fiscal e aos demais problemas estruturais, passaram a cobrar seu preço: o nível de endividamento dos consumidores brecou a expansão do consumo; a escalada da inflação corroeu a renda; acabou o dinheiro que estava bancando o crescimento  insustentável dos gastos primários; os subsídios creditícios dados pelo Tesouro elevaram a dívida bruta e o seu custo; a queda do preço do petróleo somou-se aos escândalos de corrupção e ao previsível fracasso dos produtores nacionais de equipamentos de exploração, colocando a Petrobras na berlinda; as expectativas se deterioraram; as desonerações fiscais ajudaram a derrubar a receita pública e ampliaram o déficit.

O governo passou a maquiar as contas para esconder o déficit, deteriorando ainda mais a confiança e as expectativas dos agentes econômicos em relação à consistência da política econômica. O gráfico abaixo mostra como o resultado primário despencou em 2014. Isso sinaliza para um rápido crescimento da dívida pública e descontrole da inflação.

Gráfico 2 – Resultado Primário do Governo Federal

img_2585_2

O Banco Central, que perdeu credibilidade ao baixar os juros e deixar a inflação escapar da meta, está se defrontando com taxas na casa de 10% ao ano. Para recobrar a credibilidade e fazer as pessoas acreditarem que pretende trazer a inflação de volta para a meta de 4,5% ao ano, ele precisa “comprar credibilidade”, e o faz com uma elevação de juros bem mais forte do que a que seria necessária caso os agentes econômicos não tivessem perdido a fé nas intenções da Autoridade Monetária. A recessão necessária para colocar os preços nos eixos terá que ser maior.

Diversos programas públicos estão sendo reduzidos ou extintos pela simples falta de dinheiro. Vedetes da propaganda oficial, como Fies, Pronatec, Minha Casa Minha Vida, Minha Casa Melhor e Ciência sem Fronteira estão encolhendo. Mas os desafios fiscais não param. A elevação da inflação fará com que os reajustes futuros do salário mínimo, corrigidos pelos índices passados mais o crescimento real do PIB, sejam altos, realimentando os gastos públicos e a pressão sobre as empresas.

Apesar da evidente crise fiscal, sucessivos aumentos de gastos presentes e futuros têm sido aprovados, com destaque para a meta de se gastar 10% do PIB na área de educação, a fixação de um piso para o gasto em saúde equivalente a 15% da receita corrente líquida da União, a obrigatoriedade de execução das emendas parlamentares ao orçamento, a substituição do fator previdenciário por critérios mais frouxos de acesso a aposentadorias.

A sociedade brasileira e as lideranças políticas parecem ter se acostumado com os anos recentes, em que a receita pública crescia a 7% ao ano, e não conseguem se adaptar à nova realidade, em que a receita está caindo em termos reais.

As agências de avaliação de risco já sinalizaram o iminente rebaixamento da nota de crédito do país. Esse rebaixamento iminente já está expresso nas elevadas taxas de juros cobrados de empresas e governos brasileiros que buscam crédito no exterior. Quando consumado, o rebaixamento fechará o acesso do país a recursos de fundos de investimento internacionais, cujos estatutos proíbem investimentos em países sem qualificação de crédito. A tendência será a desvalorização adicional do real, mais pressão inflacionária e maior dificuldade para equilibrar o balanço de pagamentos.

Só não vamos para uma crise clássica, de falta de liquidez para pagar nossos compromissos externos, porque acumulamos mais de US$ 350 bilhões em reservas internacionais. Entretanto, o uso extensivo de swaps cambiais está aumentando a exposição do governo ao risco cambial, bem como o custo de manutenção das reservas. Em um cenário de stress, o Banco Central pode ser obrigado a vender parte substancial das reservas, aproximando-nos de uma clássica crise de balanço de pagamentos.

Como toda política populista, a “nova matriz” era inconsistente e termina em crise. Tivemos a oportunidade de usar o período do boom de commodities para fazer reformas fiscais e regulatórias que removeriam fragilidades e entraves ao crescimento da economia. Preferimos a fórmula fácil de torrar a renda extra pela via do gasto público em políticas questionáveis ou de eficiência não comprovada, além de multiplicar o crédito subsidiado.

Temos problemas estruturais, que vêm de longe e precedem a política econômica dos últimos oito anos. Mas esta, sem dúvida, agravou em muito os fundamentos da economia brasileira.

Feita essa longa digressão, estamos em condições de discutir indagações que frequentemente surgem nesse momento de crise e de mudança de rota da política econômica. No próximo post será apresentado um F.A.Q. da crise.

 

O autor agradece os comentários de Alexandre Rocha, Paulo Springer de Freitas e Pedro Fernando Nery, isentando-os de responsabilidade por erros eventualmente contidos no texto.

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2585 37
A Operação Lava-Jato reduz o crescimento econômico? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2580&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-operacao-lava-jato-reduz-o-crescimento-economico https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2580#comments Tue, 18 Aug 2015 13:07:54 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2580 Há quem afirme que a Operação Lava-Jato prejudica o crescimento econômico, argumentando que as grandes empresas que estão sob investigação entraram em dificuldade financeira. Os bancos lhes negam crédito, os parceiros comerciais se afastaram. Os preços de suas ações despencam. O risco de se tornarem inabilitadas a participar de obras públicas reduz suas perspectivas futuras. A dificuldade financeira se alastra, pois seus fornecedores acumulam créditos não recebidos. Milhares de empregos são perdidos. Reduz-se o número de empresas tecnicamente capazes a fazer importantes obras de infraestrutura. O resultado é menos crescimento.

Seria importante, então, “punir pessoas culpadas, mas preservar as empresas”, para mitigar os efeitos negativos sobre a atividade econômica. Ou, até mesmo, restringir o alcance das investigações a bem da saúde econômica do país.

O problema dessa interpretação é que crescimento econômico deve ser entendido como um processo de médio e longo prazo. Um país só entra no clube dos desenvolvidos se crescer muitos anos seguidos a taxas razoáveis. A literatura econômica mostra que isso só acontece nas nações que têm “boas instituições”, ou seja, normas de conduta social que favoreçam o investimento, a cooperação, a criatividade, a livre iniciativa, a igualdade de oportunidades e o esforço individual.

Os fatos apurados pela Lava-Jato atentam diretamente contra importantes instituições e, por isso, minam as possibilidades de crescimento de longo prazo. Agridem os direitos de propriedade, pois os atos de corrupção expropriam o patrimônio dos contribuintes, dos acionistas minoritários das empresas envolvidas e dos associados de fundos de pensão onde houve fraudes.

Isso reduz a sensação de segurança de quem tem poupança para investir. Quando os direitos de propriedade estão sob risco, as pessoas preferem consumir suas rendas a correr o risco de poupar e serem expropriadas. Os poupadores de outros países preferem investir em outros lugares. Oresultado é menos poupança disponível para financiar investimento e crescimento.

A sensação de que há corrupção sem punição reduz a coesão social, que pode ser definida como o conjunto de valores e crenças que levam os indivíduos de uma sociedade a cooperar, ajudando a sociedade a resolver seus problemas de ação coletiva. Se eu sei que há corruptos sangrando o erário, passo a considerar que não é justo pagar impostos, e a sonegação se torna socialmente aceitável. Por que devo ser honesto nos meus negócios e na minha conduta pessoal se o país é governado por “big bosses” que cometem erros muito maiores? Resulta daí o generalizado desrespeito aos contratos, às leis e às mais triviais civilidades cotidianas.

Onde não há expectativa de que acordos sejam cumpridos e regras de convivência respeitadas, muitos investimentos produtivos e geradores de renda deixam de ser feitos. É muito difícil trabalhar em locais onde não se pode confiar nos outros. Também não vale a pena estudar e se tornar produtivo, pois quem ganha dinheiro é quem tem estômago para praticar “malfeitos”. A civilidade cede lugar à lei da selva. Isso é muito mais nocivo para o crescimento de longo prazo que “a perda de 1 ponto do PIB” em função do desemprego em empresas corruptas.

Nesse ambiente envenenado, tampouco se pode fazer reformas necessárias ao desenvolvimento, pois os indivíduos se tornam resistentes a fazer sacrifícios pessoais em nome da coletividade. Posso até concordar que aposentadoria precoce é uma regra que precisa ser mudada, a bem do equilíbrio fiscal e do crescimento. Mas porque vou aceitar uma reforma que posterga minha aposentadoria quando sei que há gente roubando a previdência e que permanece impune?

A Lava-Jato deve ser vista como a afirmação de princípios fundamentais de uma sociedade saudável: a lei vale para todos; a corrupção não deve ser tolerada; o crime deve ser punido. Condená-la, em função dos efeitos colaterais que provoca, equivale a dizer que um paciente com câncer não deve se submeter a quimioterapia para não sofrer enjoo ou correr o risco de infecções oportunistas. Por piores que sejam esses efeitos, não há saída sem a quimioterapia.

O risco que a Lava-Jato encerra não é a perda de pontos percentuais do PIB. O risco real é o nosso sistema democrático não aguentar o impacto das revelações. A descrença nos três Poderes e nos partidos políticos pode abrir espaço para “salvadores da pátria”, que surgiriam como infecções oportunistas ao longo do tratamento, e que poderiam levar a resultados tão ruins quanto o próprio câncer.

Com o intuito de “passar o país a limpo”, alguns novos personagens, não identificados como “políticos tradicionais”, podem se eleger com propostas que suprimam o funcionamento das instituições democráticas. O país já viu esse filme e sabemos que tal opção não é promissora.

O desafio é nos mantermos nos trilhos da legalidade e aguentar o tranco até o final das investigações. Precisamos, também, aproveitar a comoção nacional e a fragilidade dos grupos que patrocinam interesses escusos para aprovar reformas importantes que melhorem a qualidade de nossas instituições. Poderíamos começar com uma nova rodada de privatizações que retirassem decisões empresariais da órbita de interesse políticos; bem como fazer melhorias nas regras de governança das empresas estatais e dos fundos de pensão, dois focos de má gestão e corrupção, assim como reduzir a influência política sobre as agências reguladoras. Importante também seria aumentar a probabilidade de punição e o tamanho da pena e da expropriação de recursos dos condenados por corrupção.

 

Reprodução, com algumas poucas alterações, de texto publicado na coluna de opinião do Valor Econômico, em 14 de agosto de 2015.

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).

 

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2580 5
Gastos pró-cíclicos e crise fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2542&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=gastos-pro-ciclicos-e-crise-fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2542#comments Wed, 24 Jun 2015 14:58:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2542 Já é bastante conhecido o fato de que o orçamento das três esferas de governo é rígido e não comporta cortes substanciais. Isso decorre de: despesas mínimas obrigatórias em saúde e educação; regras previdenciárias que geram obrigações  líquidas, certas e crescentes; impossibilidade política de cortes substanciais em programas sociais; estabilidade dos servidores no emprego somada a outras vantagens remuneratórias garantidas em lei. Em 2014, essas despesas consumiram 89% da receita primária disponível do Governo Federal, como mostra a tabela. Nos governos estaduais e municipais o quadro é similar.

Principais itens de despesa primária em 2014 (% da Receita Líquida do Gov. Federal)

img_2542_1

Outro problema fiscal menos debatido é que as regras que determinam esses gastos são pró-cíclicas. Ou seja, induzem o crescimento da despesa pública nos períodos em que a economia e a arrecadação estão crescendo. Isso significa que em períodos de bom desempenho econômico, como 2004-2010, o crescimento do PIB e da receita obrigam, facilitam ou estimulam a expansão da despesa. Justamente no momento em que seria mais fácil poupar (expandindo o superávit), guardando reservas para enfrentar momentos futuros de menor crescimento, há um estímulo a gastar mais, impedindo-se tal poupança. Quando o ciclo econômico se reverte, as despesas estão altas e crescendo rapidamente.

O ajuste fiscal se impõe quando se esgota o ciclo de expansão. Nesse momento, ocorre uma desagradável coincidência entre receitas em queda e despesas no pico. O ajuste se torna mais duro, pois tem que ser feito sem a ajuda do crescimento do PIB, com as restrições aos gastos em programas sociais coincidindo com a alta do desemprego e queda da renda, como temos visto em 2015. A ação do governo, em vez de atenuar os ciclos econômicos, acaba por intensificá-los, gerando tensão política e social.

Vejamos quais são essas regras pró-cíclicas. Na educação, a União é obrigada a aplicar 18% da sua receita de impostos, com o percentual subindo para 25% nos estados e municípios. Isso é calculado em bases anuais: arrecadação subiu, a despesa tem que subir. Na saúde, a despesa dos estados e municípios deve ser de, no mínimo, 12% e 15% da receita de impostos, respectivamente. Mais uma vez: subiu receita, subiu gasto obrigatório. Pela Emenda Constitucional 86/15, a despesa mínima da União em saúde é de 15% da receita corrente líquida (RCL). A RCL é calculada em termos anuais  e, portanto, altamente influenciada pelo ciclo econômico.

Os limites máximos de despesa de pessoal e de endividamento, para os três níveis de governo, são fixados, na LRF e em resoluções do Senado, como proporções da RCL. Em momentos de boom econômico abre-se mais espaço para endividamento e os sindicatos ganham mais argumentos para pressionar por reajustes remuneratórios.

As transferências da União a estados e municípios, e dos estados aos municípios também são pró-cíclicas, pois são calculadas, mensalmente, como um percentual da arrecadação. Com a economia acelerada, transferências crescentes estimulam mais gastos.

O salário mínimo, que indexa os gastos da previdência e diversos programas sociais, é corrigido pelo PIB de dois anos antes. Em momentos de reversão do ciclo econômico, quando a economia começa a cair, o salário mínimo tem correções elevadas, herdadas do período de bonança, o que agrava a crise fiscal, em especial as contas da previdência e a folha de pagamento dos municípios.

A qualidade das políticas também é prejudicada por essas regras pró-cíclicas. Na fase ascendente do ciclo, constroem-se hospitais e universidades e contratam-se mais profissionais. Quando o ciclo se reverte, as verbas obrigatórias para saúde e educação caem junto com a arrecadação e não se consegue dar conta das despesas correntes necessárias para gerir as novas instalações criadas nos anos anteriores. O limite máximo de despesa de pessoal é atingido e não se consegue remunerar adequadamente o quadro (recentemente expandido) de profissionais.

Observe-se que nem a inflação pode contribuir significativamente para reduzir o caráter pró-cíclico dos gastos, pois tanto o salário mínimo quanto os gastos com saúde e educação variam direta ou indiretamente (via aumento da RCL) com o aumento de preços. Como esses gastos são reajustados pela inflação passada, somente uma aceleração inflacionária poderia aliviar as contas públicas (e, obviamente, criar milhões de outros problemas).

Uma proposta simples para começar a reverter esse problema seria a revisão do período de tempo usado para calcular a RCL. Em vez de calculada com base nos doze meses anteriores ao de referência, esta passaria a levar em conta um período mais longo de, por exemplo, 60 meses (com correção pela inflação). Isso englobaria um ciclo econômico completo e arrefeceria a oscilação nas regras e limites referenciados pela RCL.

O Gráfico mostra a receita primária do Governo Central, corrigida pelo IPCA, calculada como uma média de 12, 36 e 60 meses. Fica evidente que a ampliação do período de cálculo torna a série mais suave, evitando saltos nos valores dos limites máximos e mínimos de despesa.

Receita Primária do Governo Central (R$ bilhões de março de 2015)

img_2542_2

Posteriormente se poderia dar passo adicional, discutindo-se mudança similar no cálculo do montante de impostos vinculado aos gastos, nas regras de partilha constitucional e no salário mínimo. Não adianta propor sofisticados modelos de cálculo de déficit estrutural e fixação de meta fiscal levando-se em conta a fase do ciclo econômico, se não for possível, por motivos legais, obter maior poupança na fase positiva do ciclo. É preciso, primeiro, mudar as regras de determinação da despesa. Isso dará mais estabilidade fiscal e mais previsibilidade de verbas para os gestores públicos, com impactos positivos não apenas no equilíbrio das contas, como na qualidade do gasto.

(Artigo publicado no Valor Econômico, em 19/6/2015)

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2542 1
Quem tem medo da terceirização? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2527&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quem-tem-medo-da-terceirizacao https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2527#comments Mon, 25 May 2015 13:13:42 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2527 Para avaliar os impactos econômicos da regulamentação da terceirização, partiremos das críticas que são feitas ao projeto que ora tramita no Congresso, e as analisaremos ponto a ponto, verificando sua consistência.

Um resumo dessas críticas pode ser assim expresso:

“A terceirização vai ‘precarizar’ as relações de trabalho. Por ‘precarização’ entende-se: redução dos direitos dos trabalhadores (férias, décimo terceiro, assistência médica, etc) e redução da remuneração (trabalhadores terceirizados tendem a receber remuneração inferior à dos trabalhadores diretamente contratados). As empresas, sempre interessadas em reduzir custos, vão terceirizar o máximo possível as suas atividades. Por isso, a geração de empregos dentro das empresas será reduzida. Haverá, ainda, redução da segurança dos trabalhadores. Afinal, não sendo a contratante final do trabalhador, a empresa que terceirizar o serviço não se preocupará com as condições de segurança oferecidas. Também haverá redução na qualidade do serviço prestado e na segurança oferecida aos consumidores. Tome-se como exemplo o caso dos bancos. Se forem terceirizadas funções chave, como as de gerente de banco e de analista de crédito, as informações cadastrais dos correntistas passam a ficar vulneráveis. Há, por fim, o risco de perda de poder de negociação dos trabalhadores: a terceirização aumentará a divisão do trabalho e a especialização dos trabalhadores que, contratados de diversas firmas diferentes, não pertencerão a um sindicato unificado. O resultado seria a perda de poder de barganha sindical, com reflexo negativo na remuneração do trabalho e correspondente aumento da participação dos lucros na renda nacional. Se estendida ao serviço público, a terceirização será uma ameaça ao instituto do concurso público e um incentivo à distribuição demagógica e clientelista de empregos públicos”.

Quão próxima da realidade estaria essa avaliação? Como veremos, está bem distante!

 

  1. Aprovada a lei, não haverá uma corrida pela terceirização do máximo possível de atividades das empresas

É preciso, considerar, em primeiro lugar, os motivos pelos quais uma empresa toma a decisão de terceirizar uma atividade. Trata-se de decidir entre “fazer internamente” ou “comprar fora”. Em analogia com as decisões tomadas no âmbito de nossas casas, é algo similar a decidir entre contratar uma cozinheira ou preferir fazer as refeições cotidianas em restaurantes self-service. Diversas considerações são feitas para que se faça a escolha entre “fazer internamente” ou “comprar fora”. Além da comparação entre o custo de contratar a cozinheira (salários, impostos, direitos trabalhistas, etc.) e o custo da conta do restaurante, há outras considerações relevantes: qual a qualidade da comida de cada uma das opções; quão interessado eu estou em ter um cardápio preparado exatamente como eu gosto (em contraposição aos pratos padronizados do restaurante); quais os horários em que pretendo fazer a refeição (supondo que o restaurante não está sempre aberto e que posso negociar com a cozinheira os horários em que ela trabalhará); quais são as diferentes opções de preço e qualidade oferecidas pelos restaurantes das redondezas; quais os transtornos que terei se a cozinheira decidir deixar o emprego; quanto tempo e energia gastarei treinando e supervisionando o trabalho da cozinheira,  etc.

A escolha entre a cozinheira e o restaurante não é óbvia. Dizer que as empresas correrão em direção à terceirização é o mesmo que dizer que todas as famílias preferirão o self-service a ter uma cozinheira em casa. O fato de que milhares de lares do país têm empregadas domésticas que preparam as refeições diárias ilustra isso.

Após aprovada a regulamentação da terceirização, não necessariamente as empresas desencadearão intenso processo de terceirização, buscando reduzir custos. Deve-se lembrar, em primeiro lugar, que, embora as empresas sempre busquem reduzir custos (pois é da essência do capitalismo), o mercado impede que esses custos caiam arbitrariamente. Não é por menos que firmas pagam salários acima daqueles determinados em lei. Se, para reduzir custos, bastasse a empresa desejar fazê-lo, todos ganhariam salário mínimo (ou o mínimo da categoria). Não é isso que ocorre simplesmente porque, se oferecer salários incompatíveis com o mercado, a firma não conseguiria contratar a mão de obra na quantidade e com a qualificação de que necessita.

Voltando à análise da terceirização, há outros aspectos a serem considerados, além dos custos de produção. As empresas buscam decisões racionais, que permitam a sua sobrevivência e competitividade em um mercado concorrencial. Não raciocinam apenas na dimensão de redução de custos de produção. Precisam, também, cuidar da qualidade do produto, da preservação de suas informações estratégicas, dos incentivos para que os trabalhadores e fornecedores se esforcem o máximo possível, de se protegerem de uma posição de fragilidade nas negociações com fornecedores e consumidores, de evitarem a multiplicação de tarefas e a perda da especialização em seu negócio principal.

Tome-se o exemplo dos bancos, acima citado. É muito provável que as funções de gerente e de analista de crédito não venham a ser terceirizadas. Esses profissionais lidam com informações estratégicas para os bancos. Eles precisam pertencer à organização, estando vinculados a um código de ética e a um padrão de prestação de serviços (que pressupõe investimento prévio da empresa em treinamento). Logo, a empresa preferirá “fazer internamente” esses serviços em vez de “comprá-los fora”.

Outro exemplo interessante foi apresentado por Vinícius Carrasco, em artigo publicado na revista Exame1. Suponha uma empresa que explora minério em uma localidade isolada do território nacional. Não há portos por perto. Ela deve decidir se constrói o próprio porto (fazer internamente) ou se transporta suas mercadorias através de um porto construído e administrado por terceiros (comprar fora). Muito provavelmente a empresa optará por construir o próprio porto, por uma razão simples. Se ficar dependente de um porto gerido por outra empresa, essa empresa portuária poderá impor tarifas de transporte muito altas, pois não há outras opções de transporte para a mineradora, tendo em vista estar situada em local isolado no território nacional. Por outro lado, dificilmente haverá empresa interessada em construir e gerir o porto. Afinal, haverá somente um comprador para aquele serviço (a empresa de mineração) que, por isso, pode tentar pressionar para baixo o valor do frete. Haveria, portanto, nesse exemplo, dificuldade em prover o serviço de transporte de forma terceirizada.

Caso a mineração ocorresse em local próximo a instalações portuárias já existentes, havendo diversas possibilidades de escoamento, por diferentes portos, a firma de mineração teria a opção de terceirizar o transporte. Nesse caso, a terceirização  não a colocaria em uma posição fragilizada no mercado e, ao mesmo tempo, a permitiria se concentrar na sua função principal, que é a extração de minério.

Fica, então, estabelecido o primeiro ponto: a regulamentação da terceirização não desencadeará um intenso processo de terceirização em busca de redução de custos de produção. As empresas dependem de outros fatores na decisão entre “fazer internamente” ou “comprar fora”.

 

  1. Quando houver terceirização, ela ajudará a aumentar a produtividade da economia, o que é bom para todos, ainda que possa ser ruim para algumas categorias profissionais.

Em diversos casos em que a terceirização vier a ser adotada, ela poderá reduzir os custos de produção, elevar a qualidade dos produtos e, sobretudo, aumentar a produtividade da economia (o que significa produzir mais bens e serviços com uma mesma quantidade de trabalhadores, máquinas e insumos). Isso aumenta a produção e a renda do país, gerando mais empregos para todos. O custo disso, no entanto, pode ser a ocorrência de perdas para algumas categorias profissionais.

Tomemos como exemplo um marceneiro que trabalhe fazendo esquadrias de madeira para janelas e portais em uma empresa que constrói prédios de apartamentos. Sendo esta uma atividade fim no âmbito da empresa, a construtora não tem autorização legal para terceirizar o serviço de marceneiro.

Por isso, esse marceneiro tende a ficar ocioso em vários momentos da jornada de trabalho. Nem sempre está na hora de instalar as portas e janelas, e nem sempre a construtora tem obras suficientes para que esse profissional esteja em plena atividade. Isso significa que, nesses momentos de inatividade, ele representará um custo para a empresa sem, ao mesmo tempo, gerar produção. Diversas outras modalidades profissionais dentro do processo produtivo da empresa passarão por esses momentos de ociosidade. Esse custo será incorporado ao preço do apartamento, que por isso custará  mais caro. Menos pessoas terão condições de comprar o apartamento, devido ao preço alto.

Uma vez permitida a terceirização, a empresa tenderá a demitir o marceneiro e terceirizar a função. Esse profissional, que tinha um emprego fixo e uma rotina tranquila, com vários períodos de ociosidade, provavelmente se transformará em um autônomo, e prestará serviços a diversas empresas de construção. Acabarão seus períodos de ócio, e ele terá que ir de uma obra para outra, buscando serviço onde houver demanda.

Em um primeiro momento, a qualidade de vida desse marceneiro pode cair, pois passará a ter uma vida menos previsível, mudando de locais de trabalho com frequência, o que implica ter de se adaptar a novas rotas para o trabalho (com o risco de ter de ir trabalhar em locais mais distantes), novos colegas de profissão, etc. Por outro lado, sua renda tenderá a aumentar, pois a ociosidade que vivenciava no antigo emprego certamente era refletida em um salário mais baixo. Já para a sociedade como um todo, há uma melhora inequívoca: as empresas operarão com menor custo; os apartamentos custarão mais barato e serão mais acessíveis; a economia do país estará empregando os seus recursos produtivos (trabalho, insumos e capital) de forma mais eficiente e, portanto, gerando mais bens e serviços (sendo, pois, mais produtiva).

E não há nada que implique perda de qualidade na produção. Pelo contrário. A possibilidade de terceirização de diversas atividades que compõem o processo produtivo de um prédio de apartamentos induzirá a criação de empresas especializadas em cada aspecto desse processo. O nosso marceneiro, que em um primeiro momento perdeu o emprego fixo e virou autônomo pode, em breve, ser contratado por uma empresa especializada em fornecer os serviços de marcenaria para construtoras. Recuperará o seu emprego e, provavelmente, ganhará mais, pois será mais produtivo na nova função. Não só porque não terá mais períodos de ociosidade, como também porque estará dentro de uma organização especializada na produção de portas e janelas. Como se sabe, a especialização é a chave para o progresso tecnológico. Em breve essa empresa estará criando métodos mais modernos de produção e instalação de janelas e portas, estará experimentando novos materiais na confecção de seus produtos, otimizará a distribuição do material e profissionais entre as obras (possivelmente terceirizando o serviço de transportes para uma empresa especializada), etc.

Embora as empresas possam demitir alguns trabalhadores, substituindo-os por terceirizados, o nível total de emprego da economia não diminuirá. Pelo contrário. À medida que as empresas se tornem mais eficientes, em decorrência da terceirização, elas expandirão suas atividades, a economia crescerá e mais emprego será gerado em função dessa expansão.

É verdade que o nosso marceneiro passará por momentos de insegurança. Ninguém gosta de perder um emprego fixo e um salário certo ao final do mês. Porém, se a opção da sociedade brasileira for a de dar segurança ao marceneiro e aos demais profissionais que, no curto prazo, venham a ter sua estabilidade ameaçada pela terceirização, o nosso destino será a estagnação econômica. Imagine se, com o advento da iluminação elétrica, tivesse sido lançada uma legislação vedando as instalações de postes elétricos, com vistas a preservar a segurança do emprego do acendedor de lampiões!

Chega-se, então, a um segundo conjunto de conclusões: a curto prazo haverá, de fato, maior insegurança para algumas categorias de trabalhadores cujas atividades venham a ser terceirizadas, mas isso corresponderá a ganhos para a sociedade e a um rearranjo do mercado de trabalho que, no médio e longo prazo, poderão beneficiar até mesmo aqueles adversamente afetados em um primeiro momento.

 

  1. Haverá “precarização” das relações de trabalho?

Analisemos, agora, as diversas dimensões daquilo que tem sido chamado de “precarização” das relações de trabalho. A primeira dimensão já foi tratada na seção anterior. Diversas categorias de trabalhadores perderão o conforto do emprego fixo em uma determinada empresa, tendendo a se tornar empregados de empresas que prestam serviços terceirizados a outras empresas.

Ainda que isso tire esses trabalhadores da zona de conforto do emprego fixo ao qual estão acostumados, induzindo-os ao esforço adicional de buscar serviço como trabalhador autônomo ou a se encaixar em outra firma especializada em prestação de serviço terceirizado, não se pode dizer que esse trabalhador vai perder direitos legais.

O projeto em análise estende para os trabalhadores em regime terceirizado todas as garantias e vantagens dadas aos empregados das empresas contratantes dos serviços terceirizados. Também contém mecanismos que impedem as empresas de demitir seus empregados para, em seguida, contratá-los como terceirizados.

Tampouco é verdade que trabalhadores terceirizados recebem menos que os empregados diretamente pelas empresas. É importante aqui comentar sobre as conclusões de um estudo elaborado pela CUT intitulado “Terceirização e Desenvolvimento: uma conta que não fecha” e que se transformou nos debates e nas redes sociais em uma bíblia dos que criticam a terceirização. A Tabela 2 desse Estudo mostra que os trabalhadores em setores tipicamente terceirizados recebem 24,7% a menos do que aqueles que trabalham em setores tipicamente contratantes, trabalham 3 horas a mais por semana e possuem tempo médio de emprego 3,1 anos menor. Esses números seriam a prova cabal que a terceirização precariza o trabalho. Trata-se, entretanto, de uma interpretação absolutamente equivocada dos dados.

O que ocorre atualmente é que as áreas em que se permite a terceirização são aquelas que empregam trabalhadores de menor qualificação (vigilância e limpeza, por exemplo). Não faz sentido comparar a remuneração desse tipo de profissional, com a de empregados de outros setores de empresas que fazem tarefas mais sofisticadas (marketing, vendas, etc.). São profissionais diferentes, com nível de escolaridade diferente. O que determina a remuneração de cada um deles não é o tipo de contrato de trabalho (terceirizado ou direto), e sim suas qualificações e o tipo de trabalho que exercem.

É preciso lembrar, ainda, que a autorização para a terceirização de toda e qualquer atividade dentro de uma empresa levará à formação de empresas especializadas na provisão dos diversos aspectos do processo produtivo. Isso mudará completamente o perfil das empresas de terceirização hoje visto no país. As que hoje existem, concentradas nas áreas em que é permitida a terceirização, lidam com grandes contingentes de trabalhadores pouco qualificados e, portanto, pouco remunerados.

A tendência é que surjam empresas de provisão de serviços terceirizados de alta qualificação. E não haverá razões óbvias para se acreditar que a remuneração oferecida por elas venha a ser inferior ao que pagam as empresas diretamente contratantes.

Note-se, a esse respeito, que o país está encerrando o seu período de transição demográfica, o que significa dizer que a população em idade de trabalhar está encolhendo, e os indivíduos da terceira idade tornando-se mais numerosos. Em decorrência, a quantidade de pessoas ofertando trabalho diminuirá. Pela lei da oferta e da demanda, as remunerações no mercado de trabalho tendem a subir.

No que diz respeito à burla no pagamento e concessão de direitos trabalhistas, de fato existe, no atual quadro de empresas de terceirização de trabalho de baixa qualificação, abusos e empresas mal-intencionadas, que se aproveitam do baixo grau de informação de seus empregados para burlar a lei e lhes negar direitos trabalhistas. A nova legislação, contudo, cria mecanismos para coibir tais abusos. Há, por exemplo, o mecanismo em que a empresa contratante retém parte do pagamento à contratada para garantir o pagamento dos direitos trabalhistas dos empregados terceirizados. Além disso, caso se omita nesse processo de retenção de recursos e de fiscalização dos direitos trabalhistas dos terceirizados, a contratante passa a ser co-responsável pelas irregularidades, sendo obrigada a arcar com os custos de indenização dos trabalhadores.

Raciocínio similar pode ser feito em relação aos procedimentos de segurança no trabalho. Não há qualquer razão para que uma empresa contratante seja menos cuidadosa na proteção de um terceirizado do que o é em relação ao um contratado direto. Isso porque a Justiça do Trabalho brasileira é reconhecidamente enviesada a favor dos trabalhadores. Há, portanto, grande probabilidade de que uma empresa contratante seja condenada a pagar indenização a um terceirizado que venha a se acidentar durante a prestação de serviços.

A terceirização pode mesmo contribuir para aumentar a segurança do trabalho, ao reduzir os custos de prover essa segurança. Uma vez que cada empresa se especializará em um conjunto menor de atividades, será mais fácil implantar procedimentos de segurança adequados para aquele tipo de atividade. Ao mesmo tempo, os cursos de prevenção de acidentes, ao serem focados em atividades específicos, tornar-se-ão mais eficazes e mais baratos.

 

  1. O enfraquecimento dos sindicatos e a perda de poder de barganha dos trabalhadores

Se há perdedores certos com a regulamentação da terceirização, estes são os sindicatos de trabalhadores nos moldes hoje organizados. À medida que a terceirização permitirá ampla especialização das empresas, cada uma se concentrando em um aspecto específico do processo de produção, os trabalhadores serão igualmente fragmentados em diversas empresas. Ainda que trabalhem no mesmo espaço físico, não serão os mesmos trabalhadores atuando sempre nos mesmos lugares.

Daí decorrem diversas dificuldades para os sindicatos. Em primeiro lugar, tendem a surgir profissões mais especializadas e, consequentemente, um sindicato amplo se repartiria em diversos sindicatos específicos. Em vez de um sindicato geral dos metalúrgicos, haveria vários sindicatos dos trabalhadores em empresas de peças específicas que compõem os diversos processos produtivos dentro da metalurgia. Em segundo lugar, a mobilidade e rotatividade da mão de obra nos locais de trabalho dificultariam a organização da ação sindical.

Toda a renda e poder político auferidos pelos dirigentes sindicais fica ameaçada. Daí a forte reação à inovação legislativa.

O enfraquecimento dos sindicatos atuais não significa, contudo, o enfraquecimento da classe trabalhadora e do seu poder de barganha. Além do fato de que outros sindicatos surgirão, desafiando a hegemonia dos atuais; há a realidade inconteste de que outras profissões e vagas de trabalho surgirão. O aumento de produtividade viabilizado pela terceirização fará com que o poder da lei da oferta e da demanda por trabalho beneficie os trabalhadores muito mais do que conquistas sindicais. Uma economia mais produtiva pagará mais a empregados que geram mais valor agregado para as empresas.

Em suma: a estrutura sindical hoje existente certamente perderá, o que não significa que os trabalhadores em geral serão prejudicados; nem que a terceirização sancionará uma concentração de renda em favor do capital e em prejuízo do trabalho.

 

Haverá precarização dos serviços públicos, com desestruturação dos concursos públicos e politização nas contratações nos cargos públicos?

A esse respeito é preciso dizer, em primeiro lugar, que a versão do projeto aprovada na Câmara dos Deputados estipula que as regras ali inscritas não se aplicam à terceirização no âmbito da administração pública. O que na realidade é uma pena, pois o projeto ajudaria a resolver vários problemas hoje existentes nas terceirizações no setor público, como argumentado adiante.

Se o Senado vier a alterar esse dispositivo, permitindo que as regras valham para a administração pública, haverá mais ganhos do que perdas para o país.

Supondo que isso ocorra, como ficariam os concursos públicos? Não haveria uma generalizada terceirização de funções, com a contratação de apadrinhados políticos, em detrimento do mérito dos concursos?

Esse, de fato, é um problema. Se as empresas são forçadas a tomar decisões racionais para se manter vivas no mercado competitivo, o mesmo não é válido para os órgãos públicos. Estes não enfrentam nada similar a uma concorrência de mercado, não estão sob o risco de falência e, sobretudo, os seus dirigentes estão apenas de passagem, não tendo compromisso com a qualidade dos serviços prestados no longo prazo. Muitas vezes o interesse eleitoral de curto prazo induz a ações nocivas ao interesse público no âmbito da administração governamental.

Seria necessário, por isso, uma regulação específica para a terceirização no âmbito da administração pública. Tal regulamentação substituiria os limites que o mercado impõe às empresas privadas.

Por outro lado, vários ganhos poderiam ser obtidos na prestação de serviços terceirizados no âmbito da administração pública. Novas formas de gestão hospitalar e de escolas poderiam melhorar a qualidade do serviço prestado, criando-se, no âmbito da administração pública, um ambiente de concorrência e inovação entre prestadores e modos de gestão. Nem sempre a contratação por concurso público, associada à estabilidade no emprego, é a melhor forma de se ter mão de obra motivada e disposta a prestar bom serviço público. O espaço para terceirização poderia abrir espaço para inovações importantes.

Ademais, a administração pública sofre bastante com problemas nos serviços atualmente terceirizados em função da inexistência de mecanismos que estão sendo propostos no projeto em discussão. Por exemplo, é comum que prestadoras de serviço abandonem os contratos próximo ao final de sua vigência, deixando empregados sem pagamento. Também comum é o não recolhimento de contribuições à previdência, FGTS e outras. Quando isso ocorre, a administração pública torna-se imediatamente responsável por assumir tais encargos, em função de uma súmula editada pela Justiça do Trabalho. Por isso, os incentivos da legislação atual são para que as empresas ajam com desídia, pois sabem que os seus empregados não irão à Justiça contra elas, visto que os direitos serão imediatamente pagos pelo poder público.

A proposta em discussão cria vários mecanismos de depósitos prévios e de retenção de verbas que minoram esse incentivo incorreto. Ademais, deixa mais claros os limites da corresponsabilidade do contratante.

Assim, um eventual regramento em separado para a terceirização na administração pública deve aproveitar os mecanismos preventivos que venham a ser aprovados para o setor privado.

_______________

1 Vinícius Carrasco. “Terceirização e Natureza da Firma”. Exame.com. Publicado em 12/05/2015.

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2527 5
Por que não abrir o mercado brasileiro de serviços de engenharia? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2495&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-nao-abrir-o-mercado-brasileiro-de-servicos-de-engenharia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2495#comments Tue, 28 Apr 2015 15:58:07 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2495 A “Operação Lava Jato” da Polícia Federal revelou a existência de uma possível organização criminosa envolvendo empreiteiras e empresas estatais na prestação de serviços de infraestrutura no país. Esse episódio abre importante oportunidade de aperfeiçoamento institucional e de ganhos econômicos para o país. Ela mostra  que o controle do mercado de serviços de engenharia e projetos por grandes empresas nacionais é nocivo ao país. A crise torna politicamente factível a abertura desse mercado à participação de empresas estrangeiras. Passa a ser politicamente viável a adoção de medidas como: o fim da exigência de conteúdo local em obras nacionais, o fim da preferência a empresas brasileiras em licitações públicas ou a abertura do mercado de trabalho para engenheiros estrangeiros.

Há quatro razões para a abertura do mercado de serviços de engenharia: efetivo funcionamento da Justiça; desincentivo à criação de organização criminosa ou de cartéis; aumento da produtividade da economia; e atração de mão de obra especializada escassa no país. Esses pontos são descritos a seguir.

Efetivo funcionamento da Justiça. O controle do mercado de projetos e serviços de engenharia e arquitetura por algumas poucas grandes empreiteiras nacionais restringe a possibilidade de que sejam efetivamente punidas judicialmente, caso se envolvam com corrupção ou ilegalidades. Cria-se uma situação em que essas empresas tornam-se “muito grandes para serem punidas”. Logo após à revelação das dimensões do escândalo, autoridades como o Vice-Presidente da República, o Presidente do Tribunal de Contas da União e o Ministro da Controladoria Geral da União, por exemplo, se pronunciarem a favor da “modulação” da punição das empresas para evitar a declaração de sua inidoneidade. Temia-se que, impedidas de contratar obras públicas, não haveria outras empresas no mercado para realizar tais obras, com o consequente atraso nos investimentos em infraestrutura1.

A restrição à punição, nesses termos, é uma evidente ameaça ao Estado de Direito e à igualdade de todos perante a lei. Cria-se incentivo à prática de ilícitos pela sinalização de que não é possível punir infratores. Para que se evite tal constrangimento, é preciso quebrar o domínio de grandes empreiteiras nacionais no mercado de obras públicas. A abertura para empresas estrangeiras é uma solução natural para que a Justiça não seja constrangida no cumprimento de suas funções. Realizada em conjunto com outros aprimoramentos institucionais (tais como maior controle dos financiamentos de campanha por fornecedores do setor público, agilização da justiça, melhor regulação da concessão de serviços públicos, etc.) a abertura ajudaria a conter o peso econômico e político das empreiteiras nacionais. Nesse novo cenário, se tornadas inidôneas, elas não ameaçariam os investimentos do país, pois sempre restaria ao Estado a opção de contratar empresas internacionais.

Restrição à criação de organizações criminosas e cartel. Um mercado fechado à entrada de estrangeiros facilita a criação de organizações criminosas e cartel, resultando em sobrepreço e despreocupação com a qualidade dos serviços prestados. A abertura do mercado dificultaria as práticas ilegais por três motivos. Em primeiro lugar, aumentaria o número de empresas que precisariam chegar a acordo em torno do procedimento ilícito, o que dificultaria o conluio e diminuiria o ganho esperado de cada empresa (o bolo teria que ser dividido por um maior número de participantes). Em segundo lugar, colocaria no mercado brasileiro empresas e executivos novos e pertencentes a distintas culturas empresariais; mais uma vez dificultando a formação de acordos, pelo menos enquanto as empresas estrangeiras não se aculturam e estruturam seus laços políticos e econômicos. Em terceiro lugar, as empresas estrangeiras estão sujeitas à punição imposta pelos judiciários de seus países de origem, quase sempre mais eficientes e duros que o brasileiro (com exceção de alguns países da Ásia), o que preveniria comportamento anticoncorrencial por parte das empresas estrangeiras atuantes no país.

Aumento da produtividade da economia. O Brasil entrou em um ciclo de baixo crescimento econômico porque vários fatores que, no passado, impulsionaram o crescimento estão perdendo força:

  • A expansão da oferta de trabalho desacelerou em função da queda no ritmo de crescimento populacional, havendo menos mão de obra disponível para ampliar a produção de bens e serviços;
  • O ritmo de melhoria da qualificação da mão de obra, que vinha crescendo desde os anos 1990, em função da inclusão de crianças na escola, estagnou-se devido à conclusão do processo de universalização do ensino básico. Novos ganhos de qualificação dependem agora da melhoria da qualidade da educação, algo bem mais difícil que a simples inclusão de alunos no sistema escolar;
  • O forte crescimento da China, que ampliou a demanda por commodities brasileiras, está refluindo e resultando em perdas nas nossas receitas de exportação;
  • O Brasil tem baixa taxa de poupança e investimento, o que faz o nosso estoque de capital crescer lentamente, afetando a capacidade produtiva do país.

Frente a esse quadro, a principal forma de acelerar o crescimento do país é através do aumento da produtividade da economia. Ou seja, fazer com que os nossos restritos estoques de capital e de mão de obra sejam capazes de produzir mais e melhores bens e serviços.

Um dos fatores de baixa produtividade da economia brasileira é a nossa infraestrutura limitada e de baixa qualidade. Estradas esburacadas aumentam o custo de frete e o índice de perda de produtos durante o transporte. Portos congestionados e sem calado para receber grandes embarcações restringem a agilidade na circulação de insumos e produtos. Aeroportos com restrições em suas malhas de voo e atrasos por falta de equipamentos para navegação durante mau tempo dificultam a circulação de executivos e técnicos especializados. De modo geral, em infraestrutura gastamos pouco e gastamos mal.2

O Brasil tem histórico de dificuldades para expandir a quantidade e qualidade de sua infraestrutura. Há reconhecida incapacidade para identificar claramente os gargalos de infraestrutura, definir os melhores projetos para solucionar tais gargalos, elencar prioridades na definição de projetos, produzir projetos de boa qualidade, e executar as obras dentro do prazo cumprindo o orçamento do projeto3.

Uma leitura dos recentes relatórios do TCU sobre as contas do governo é bastante ilustrativa; em especial as seções que avaliam os investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Na edição de 2011 lê-se, por exemplo, que a Usina Hidrelétrica de Belo Monte estava com sua previsão de conclusão atrasada em três anos. A Termonuclear Angra III estava atrasada em dois anos. No segmento de transportes o atraso médio era de 1,2 ano. Dezessete obras dos grupos Petrobras e Eletrobras tinham orçamentos estourados em mais de 100% do orçamento inicial4.

Na edição de 2012, o relatório de contas de governo destaca o atraso nas obras de transposição do Rio São Francisco, com o primeiro trecho postergado de 2010 para 2014 e o segundo trecho passando de 2012 para 2015. A obra, que em 2007 tinha orçamento de R$ 4,8 bilhões, pulou para R$ 8,2 bilhões em 20125.

Um projeto de Trem de Alta Velocidade (TAV) entre Rio e São Paulo surgiu no ano de 2008 com um orçamento estimado em R$ 34 bilhões. Não obstante a imponência dos valores envolvidos (com indícios de subestimativas), os projetos e modelagem de concessão apresentavam falhas e inconsistências. Em consequência, não houve empresas interessadas no negócio, e o TAV parece ter sido arquivado, embora ainda conste como projeto do PAC.6 Os torcedores da Copa do Mundo de 2014 sentaram-se em estádios cujo custo de construção chegou, em alguns casos, a duplicar em relação aos projetos originais (ver mais sobre esse ponto em outro post neste blog).

A abertura do mercado brasileiro de serviços de projeto e engenharia ajudaria a minorar esses problemas. Não apenas pelo aumento na quantidade de empresas capazes de realizar obras, como também pela entrada de novas tecnologias, e pela agregação de valor decorrente de maior capacidade de planejamento e execução.

Suprimento de mão de obra especializada. Uma das principais restrições apresentadas pelo mercado de trabalho brasileiro é a escassez de mão de obra especializada. As empresas têm grande dificuldade em preencher vagas que exigem formação de nível superior em engenharia, geologia, arquitetura, química e outras profissões do ramo de serviços de engenharia, arquitetura e projetos7. A abertura do mercado brasileiro não traria apenas firmas, mas também profissionais estrangeiros qualificados, contratados e treinados nas matrizes das empresas, para preencher essa lacuna.

Ressalte-se a oportunidade que tem o Brasil de tirar proveito de um grande contingente de profissionais qualificados que, em função da crise econômica europeia, encontra-se sem perspectiva profissional em seus países de origem. Pessoas cuja formação foi custeada por outros países poderiam colocar sua capacidade de trabalho a nossa disposição. A tradicional fuga de cérebros, em que cientistas e técnicos formados à custa do contribuinte brasileiro transferem-se para universidades e empresas estrangeiras, pode agora ser revertida em favor do Brasil.

Há, portanto, boas e fortes razões para a abertura do mercado brasileiro a empresas de engenharia e projetos estrangeiras, ainda que, sozinha, essa providência não represente condição suficiente para melhorar a qualidade, custo e honestidade dos processos produtivos do setor.

Outras reformas se impõem

Embora seja condição necessária para darmos um salto institucional, a abertura do mercado de serviços de projeto, engenharia e arquitetura, isoladamente, não é suficiente para alcançarmos tal melhoria. É preciso aprimorar outros aspectos legais e regulatórios. Restrições ao financiamento de campanha por empresas que têm grandes contratos com o setor público é certamente um ponto central para se cortar o alinhamento de interesses entre políticos e fornecedores do governo. Note-se que não se está aqui falando em “financiamento de campanha exclusivamente público”, como propugnado por muitos. Trata-se apenas de restringir, na legislação, o evidente conflito de interesse que existe em contribuir para campanhas e, ao mesmo tempo, ser fornecedor do setor público.

Outro aspecto central é a regulação dos processos de concessão de obras públicas. No passado recente o Governo Federal priorizou a modicidade tarifária no desenho de leilões de concessão. Acabou, com isso, atraindo algumas empresas que aceitavam cobrar tarifas baixas, mesmo sabendo que tal remuneração não permitiria manter a qualidade dos serviços e os investimentos definidos no contrato de concessão. Possivelmente essas empresas objetivavam, posteriormente, pressionar o governo para obter aditivos contratuais. Houve empresas estrangeiras que se comportaram desse modo, sendo o caso da espanhola OHL o exemplo clássico: obteve contratos de concessão de rodovias com pedágios a R$ 1,00. Deu motivo para o Governo comemorar o aparente sucesso de um leilão vantajoso para o usuário das rodovias. Na prática, a empresa falhou em cumprir o contrato e deixou o país depois de tomar empréstimos bilionários no BNDES e de passar alguns anos coletando pedágio sem oferecer o serviço no padrão contratado (já tratamos sobre isso neste blog) 8.

Certamente as empresas internacionais que entrarem no Brasil irão, com o tempo, aprender as brechas deixadas pela legislação, pela regulação e pelas falhas de fiscalização para incrementar seus ganhos. Daí a importância de se fazer progressos institucionais. O aumento da autonomia decisória e da qualidade técnica das agências reguladoras é um ponto fundamental nesse processo.

Por fim, há que se investir na melhoria da capacidade de planejamento do Estado, para evitar que obras desnecessárias ou não prioritárias sejam realizadas, relegando-se as urgentes ao segundo plano; bem como para que os projetos tenham qualidade e cumpram suas finalidades com eficiência. Não obstante a necessidade de todas essas reformas é preciso, também, aumentar a concorrência no mercado de projetos e obras de  engenharia. Em textos futuros falaremos sobre algumas das barreiras à entrada que existem nesse mercado.

___________

1 Ver, na imprensa, por exemplo: http://veja.abril.com.br/multimidia/video/inidoneidade-ou-nao-as-gigantes-empreiteiras-da-lava-jato-eis-a-questao/ e http://brasil.elpais.com/brasil/2014/11/24/politica/1416836274_165235.html

2 Ver, a esse respeito, por exemplo: Frischtak (2013), Mesquita, Volpe e Blyde (2008), Pagés (2010).

3 Sobre esse ponto ver Rajaram et al (2008) e Banco Mundial (2009).

4 TCU (2011, p. 178-186).

5 TCU (2012, p. 466-67)

6 Sobre as inconsistências do TAV ver Mendes (2010) e Mendes (2011).

7 Ver Fundação Dom Cabral (2013).

8 Velloso et al (2012) tratam essa questão em detalhes do ponto de vista teórico e prático.

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2495 6
O Governo Federal gasta pouco com educação? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2478&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-governo-federal-gasta-pouco-com-educacao https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2478#comments Mon, 20 Apr 2015 14:04:26 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2478 1. Os números

A área de educação foi bastante privilegiada em termos de alocação de recursos federais na última década. A Tabela 1 mostra a evolução do gasto federal como proporção da receita líquida, dividindo-o em grandes grupos de despesa1. Percebe-se que, à exceção da despesa de pessoal, todos os demais itens ali retratados tiveram forte expansão e passaram a consumir parcelas crescentes dos recursos orçamentários disponíveis. A educação desponta como o item de despesa que mais cresceu. Em 2004 os desembolsos para o setor equivaliam a 4% da receita líquida do Tesouro, tendo passado a 9,3% em 2014. Um salto nada desprezível de 130%.

Tabela 1 – Diversos Itens de Despesa do Governo Federal: 2004 a 2014 (% da Receita Líquida do Tesouro Nacional)

img_2478_1

O Gráfico 1 mostra a evolução da despesa federal em educação em reais (corrigidos pela inflação para valores de 20142) e em porcentagem do PIB3. Nota-se que, de fato, a despesa quase quadruplicou no período em termos reais, passando de R$ 24,5 bilhões em 2004 para R$ 94,2 bilhões em 2014, o que equivale a 1,71% do PIB (em proporção do PIB o aumento foi de 2,3 vezes).

Gráfico 1 – Despesa do Governo Federal na Função Educação: 2004 a 2014 (R$ Bilhões de 2014 e % do PIB)

img_2478_2 

Essa despesa superou o montante mínimo de despesa obrigatória em educação. De acordo com o art. 212 da Constituição, a União deve aplicar, no mínimo, 18% de sua receita de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino. O Gráfico 2 mostra que ao longo de toda a década analisada o gasto superou esse patamar mínimo. Em especial, nos últimos três anos da série o gasto superou bastante o limite. Somente nos três últimos anos da série (2012-2014) a União gastou R$ 43,1 bilhões acima do limite mínimo (uma média de R$ 14,4 bilhões a mais por ano), conforme retrata a Tabela 2.

Gráfico 2 – Despesa do Governo Federal com Manutenção e Desenvolvimento do Ensino: 2004 a 2014 (% da Receita de Impostos)

img_2478_3

Tabela 2 – Valor Mínimo Constitucional e Valor Efetivamente Gasto em Educação pelo Governo Federal: 2012 a 2014

img_2478_4

Abrindo-se a despesa nos tradicionais “grupos de natureza da despesa” (GND) temos o quadro mostrado na Tabela 3. Houve grande impulso nos investimentos e inversões financeiras (em especial, o Programa FIES, analisado adiante) que cresceram mais de 1.000% em termos reais no período. Os gastos com pessoal e outras despesas correntes que, em termos absolutos, representam mais de 70% da despesa total, também cresceram bastante.

Tabela 3 – Despesa do Governo Federal em Educação por Grupo de Natureza da Despesa: 2004 a 2014

img_2478_5

A Tabela 4 mostra o gasto em maior detalhe. Nela separou-se toda a despesa de pessoal das demais despesas, classificando-se essas últimas de acordo com ações orçamentárias agrupadas por grandes temas. O maior destaque fica para a expansão do financiamento para estudantes de ensino superior matriculados em escolas privadas. Esse programa, conhecido como “Fundo de Financiamento Estudantil (FIES)”, já é o maior item de desembolso federal em educação, a exceção dos gastos em pessoal. Consumiu R$ 13,8 bilhões em 2014, o que representa um crescimento real de 1.100% em relação às cifras de 2004. Sozinho já representa 15% de toda a despesa federal em educação.

Tabela 4 – Despesa do Governo Federal em Educação em Pessoal e Encargos Sociais e em Grupos de Ações nas Demais GND: 2004 a 2014 (R$ Bilhões de 2014)

img_2478_6

É verdade que o FIES não é exatamente uma despesa, mas sim uma “inversão financeira”, ou seja, um empréstimo que o Governo Federal faz aos estudantes, e que deverá ser quitado por eles no futuro. Assim, a despesa atual (que corresponde ao total desembolsado pelo governo, a cada ano, com o pagamento das mensalidades escolares dos beneficiários) tem como contrapartida uma receita futura, sob a forma de quitação dos débitos pelos estudantes. Mas também é verdade que os juros reais cobrados nessa linha de financiamento são negativos, e não há no orçamento qualquer rubrica para registrar os subsídios creditícios daí decorrentes (o que acaba por subestimar a despesa). Ademais, é alta a perspectiva de inadimplência, visto que os mecanismos de aval e fiança utilizados nessa modalidade de crédito estudantil foram bastante flexibilizados nos últimos anos.

Ainda que no futuro haja o repagamento de parte desses empréstimos, melhorando a situação patrimonial do governo, o impacto imediato sobre a demanda agregada (e portanto, sobre a inflação) ocorre como se esta fosse uma despesa como qualquer outra. Por fim, deve-se considerar que mesmo excluindo-se os desembolsos do FIES (vide última linha da Tabela 4) tem-se um crescimento real de 245% da despesa com educação.

Outro item que chama atenção na Tabela 4 é a despesa da União com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB). Esse fundo tem por objetivo complementar o financiamento do ensino fundamental, da educação infantil, do ensino médio e da educação de jovens e adultos; que são providos pelos estados e municípios. O FUNDEB4 substituiu, em 2006, o FUNDEF que se restringia ao financiamento do ensino fundamental (1º ao 9º ano), expandindo os valores que a União fica obrigada a transferir a estados e municípios.

A Tabela 5 apresenta, em maior detalhe, a impressionante escalada dos desembolsos com o FIES e com o FUNDEF/FUNDEB. No caso do FUNDEF/FUNDEB percebe-se o grande salto na despesa no ano de 2007, quando as novas regras, instituídas com a aprovação do FUNDEB no ano anterior, passaram a ter impacto financeiro. Já o FIES deslanchou a partir de 2010, quando foi reduzida a taxa de juros do financiamento e facilitado o acesso ao crédito concedido pelo programa.

Tabela 5 – Despesa do Governo Federal em Educação com FIES e FUDEF/FUNDEB: 2004 a 2014

img_2478_7

O terceiro item de forte expansão do gasto, registrado na Tabela 4, refere-se ao setor de educação profissional e tecnológica. De fato, o Programa Nacional de Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) teve grande destaque nos debates eleitorais de 2014, evidenciando sua importância como prioridade de governo. As despesas nessa área subiram 1.533% em termos reais entre 2004 e 2014, alcançando R$ 7,1 bilhões no último ano da série.

Ainda entre os grandes itens de despesa mostrados na Tabela 4, destaca-se o funcionamento e investimento em universidades federais. Entre 2003 e 2014 foram criadas nada menos que 18 novas universidades federais. As universidades já existentes, por sua vez, ampliaram fortemente o número de vagas e expandiram suas instalações físicas. Com isso, chegou-se a 2014 com gastos no setor da ordem de R$ 8,8 bilhões, mais que o triplo, em termos reais, que o gasto em 2004.

Note-se a inércia que se cria no gasto público ao se fazer investimento pesado na criação ou expansão de universidades. Isso requererá mais gastos correntes no futuro, com a contratação de professores e funcionários, bem como com a aquisição de equipamentos e manutenção das instalações.

Chama atenção, também, a expansão da despesa com bolsas de estudo para o ensino superior, com expansão real de 562% no período, atingindo R$ 5,1 bilhões em 2014. Além das concessões regulares de bolsas para mestrado e doutorado, essa rubrica inclui o Programa Ciência sem Fronteiras, que passou a incluir os alunos de graduação entre os elegíveis a bolsas de estudos no exterior, antes restrita aos mestrandos e doutorandos.

Esses dados não contam toda a história dos dispêndios federais em educação. Há, ainda, os chamados “gastos tributários”, que representam as políticas públicas que, em vez de serem custeadas por gastos do Tesouro, o são por isenções e desonerações tributárias5. A Tabela 6 apresenta as estimativas da Receita Federal para esses gastos tributários. Percebe-se um forte aumento real de 324%, com os valores de 2014 atingindo R$ 8 bilhões. Os principais itens são os descontos com despesas em educação no Imposto de Renda e a isenção tributária concedida a instituições de ensino consideradas como sendo “sem fins lucrativos”. Os aumentos reais nesses dois itens decorrem, provavelmente, da própria expansão do acesso ao ensino privado decorrente das políticas do MEC e da elevação da renda da população.

Tabela 6 – Gastos Tributários do Governo Federal na Área da Educação: 2004 e 2014 (R$ Milhões de 2014)

img_2478_8

Deve-se chamar atenção para o terceiro item da lista, que é o Programa Universidade para Todos (PROUNI), que não existia em 2004 e que, em 2014, consumiu R$ 601 milhões em benefícios tributários. O PROUNI consiste em aquisição de vagas em universidades privadas para alunos de baixa renda, por meio de concessão de benefícios fiscais.

A Tabela 7 consolida os gastos registrados no Orçamento Geral da União (Tabela 4)  com os gastos tributários (Tabela 6), indicando um dispêndio total em 2014 de R$ 102,2 bilhões. Um incremento real de 288% em relação ao ano de 2004.

Tabela 7 – Despesas do Orçamento Geral da União e Gastos Tributários do Governo Federal na Área da Educação: 2004 e 2014 (R$ Milhões de 2014)

img_2478_9

2. O que significam esses números?

Tal expansão de gastos pode ser considerada algo muito positivo para o país, se os programas nos quais o dinheiro está sendo aplicado efetivamente derem retornos à sociedade em termos de melhor qualificação da população, aumento de produtividade, ganhos de renda, redução das desigualdades de oportunidade, etc. Por outro lado, pode representar um aumento de custos sem retorno social se os programas federais voltados à educação forem ineficientes. Nesse caso, a sociedade estaria pagando mais impostos para custear serviços que não lhes dão o esperado retorno.

Em que situação estamos? Não é fácil dizer, porque são muito escassos no país os estudos de avaliação de programas públicos, tanto ex-ante, para definir a necessidade de criação de uma nova política; quanto ex-post, para checar se tal política está gerando os resultados desejados e para comparar seus custos a seus benefícios. As ações parecem decorrer de pressões políticas e impressões superficiais acerca da importância desse ou daquele tipo de programa.

Tomemos como exemplo o FIES. Em apenas quatro anos, entre 2010 e 2014, os gastos com o programa cresceram de R$ 1,2 bilhão para R$ 13,8 bilhões. Multiplicaram-se os alunos e as escolas privadas financiadas pelo programa. Várias dessas escolas viraram potências empresariais, com ações em bolsa de valores, financiadas principalmente pelos recursos do programa. Tudo isso sem que tenham sido respondidas questões básicas (também aplicáveis ao PROUNI), tais como:

  • Os cursos feitos pelos alunos financiados têm qualidade mínima, de modo que o gasto no seu financiamento retornará à sociedade no futuro, sob a forma de profissionais qualificados?
  • Os alunos selecionados para receber o financiamento têm um padrão mínimo de desempenho acadêmico que dê garantias mínimas à sociedade de que aproveitarão o subsídio público que estão recebendo?

É alvissareira a sinalização recente do Governo Federal de que pretende criar alguns critérios de mérito na distribuição do benefício como, por exemplo, exigir uma nota mínima no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) aos alunos candidatos ao financiamento do FIES. Da mesma forma sinaliza-se a concentração do financiamento em cursos que cumpram requisitos mínimos de qualidade. Isso, contudo, não parece suficiente para chancelar o programa como sendo uma iniciativa de retorno positivo para a sociedade. É preciso que se avalie com muito mais rigor os potenciais ganhos e custos de um programa antes de multiplicar seus gastos.

Destaque-se que o MEC, quando avalia a qualidade do curso, leva em consideração somente aspectos objetivos da estrutura e corpo docente: número de laboratórios, bibliotecas, número de professores com doutorado, etc. Não é apresentada nenhuma estimativa do retorno obtido por alunos formados em determinado curso. Sem essa medida, torna-se muito difícil fazer qualquer avaliação de custo-benefício do curso que está sendo analisado.

O mesmo tipo de consideração pode se aplicar aos demais programas federais em educação. Que tipo de estudo considerou meritório promover rápida expansão das universidades federais? Fez-se alguma avaliação das vantagens naturais de cada cidade para abrigar cursos específicos (proximidade com segmentos econômicos que demandam mão de obra com qualificação específica, existência de um polo de pesquisas já consolidado na região, etc.)? Ou foram apenas criadas universidades públicas que oferecem cursos em todas as áreas, multiplicando-se um modelo que já mostra grandes problemas nas universidades já existentes? Não seria o caso de ampliar o financiamento das escolas bem avaliadas e bem sucedidas, fechando-se ou reduzindo-se aquelas de pior desempenho?

Ademais, os gestores das universidades públicas mais antigas constantemente reclamam de falta de verbas e más condições para o ensino e pesquisa. Não seria o caso de concentrar os investimentos na recuperação e melhoria das instituições já existentes, para evitar sua deterioração e perda de patrimônio público, antes de se criar novas universidades?

Quais os resultados efetivos trazidos pelo Programa Ciência sem Fronteiras? Seriam casos isolados, aqueles retratados por matérias jornalísticas dando conta de alunos sem preparo e sem conhecimento do idioma do país onde foram estudar? Os cursos de graduação no Brasil estariam tão defasados que, para formarmos profissionais com um mínimo de competência, temos de enviá-los para o exterior? Ou estaríamos financiando um grande número de estudantes sem maturidade para o trabalho científico? Pouco se sabe, pouco se avaliou.

Também pouco se conhece sobre o impacto positivo do PRONATEC na empregabilidade e renda de seus alunos depois de formados, ou sobre a adequação dos currículos dos cursos às exigências do mercado de trabalho.

O que temos, em suma, é uma aposta. Escolheram-se alguns programas para serem turbinados. Despejou-se soma considerável de recursos em cada um deles, sem uma adequada hierarquização de prioridades ou avaliação do impacto de cada um deles. Espera-se que, com sorte, eles tragam resultados no futuro.

É digno de nota que, com exceção do Fundeb, os maiores aumentos de gastos foram direcionados para as etapas finais do ensino – cursos técnicos e ensino superior. Uma reorientação de gastos, privilegiando as etapas iniciais da educação, provavelmente repercutiriam mais positivamente sobre a distribuição de renda e produtividade da mão de obra em geral. A Tabela 8, construída a partir dos dados da Tabela 4, mostra que (excluindo-se a despesa de pessoal e outros itens de despesa para os quais não é possível associar um nível específico de ensino) a destinação de verbas para os programas ligados ao ensino superior e profissional passaram de 55% para 63% da despesa, havendo uma contração da participação das verbas dedicadas à educação básica na despesa total.

Tabela 8 – Despesa do Governo Federal em Educação: programas voltados para ensino superior e profissional vs.programas voltados para educação básica: participação % no total

img_2478_10

Em um país sujeito a fortes restrições fiscais, essa não parece ser a melhor forma de gerenciar os serviços públicos. Talvez seja por isso que estejamos testemunhando a contradição entre um governo que gasta cada vez mais em educação (e em outras políticas públicas) e uma população cada vez mais insatisfeita com os serviços que recebe.

 

Esse texto foi originalmente publicado como Boletim Legislativo nº 26 da Consultoria Legislativa do Senado. O autor agradece os comentários e sugestões de Alexandre Rocha, Carlos Murilo de Carvalho, Paulo Springer de Freitas, Tatiana Britto, Fernando Álvares Correa Dias, Pedro Fernando Nery, Mansueto Almeida e ao corpo técnico do FNDE que prestou informações relevantes sobre o Programa FIES. Bruna Abra Paggiaro e o serviço de pesquisa de informações da Consultoria Legislativa do Senado auxiliaram no levantamento de informações. Os eventuais erros e as opiniões aqui expressas são de responsabilidade exclusiva do autor.

___________

1 O conceito de despesa utilizado ao longo de todo o texto é o de despesa paga mais restos a pagar pagos e inclui as inversões financeiras (GND 5).

2 A correção inflacionária é feita com base na variação do IPCA acumulado entre junho de cada ano e julho de 2014. Tal procedimento é usado em todos os deflacionamentos apresentados no texto.

3 Os dados de PIB utilizados neste texto já são aqueles divulgados pelo IBGE após recente revisão (março de 2015) da metodologia de contas nacionais.

4O FUNDEB foi criado pela Emenda Constitucional nº 53/2006 e regulamentado pela Lei nº 11.494/2007 e pelo Decreto nº 6.253/2007, em substituição ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – Fundef, que vigorou de 1998 a 2006.

5 Definição precisa do conceito de gasto tributário utilizado pela Receita Federal pode ser obtida em seus relatórios anuais de demonstrativos de gastos tributários, disponível em http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/gastos-tributarios/previsoes-ploa/arquivos-e-imagens/demonstrativos-dos-gastos-tributarios-dgt

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2478 19
Como fazer um ajuste fiscal no Governo Federal? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2337&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-fazer-um-ajuste-fiscal-no-governo-federal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2337#comments Mon, 17 Nov 2014 12:22:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2337 O Governo Federal está com grande desequilíbrio em suas contas. De janeiro a setembro de 2014 o setor público (União, Estados e Municípios) acumulou um déficit primário de R$ 15,3 bilhões, quando a meta fiscal para o ano era de superávit  de R$ 99 bilhões. Temos, portanto, uma brecha de R$ 114,3 bilhões (aproximadamente 2% do PIB) entre a intenção e a realidade. O déficit nominal (aquele que inclui as despesas com juros) já chegou a 4,9% do PIB, mais que o dobro dos 2,43% do PIB observados a menos de dois anos, em janeiro de 2013. A dívida bruta do governo geral, que era de 56,7% do PIB em dezembro de 2013,  pulou para 61,7% do PIB em setembro de 2014 (5 pontos percentuais do PIB em menos de um ano!)1.

O desequilíbrio fiscal deve ser considerado o problema número um a ser enfrentado pelo Governo. O objetivo do presente texto é apresentar as linhas gerais do ajuste de que necessita o país.

Deve-se observar, desde já, que não necessariamente o ajuste aqui proposto representará sacrifício à parcela mais pobre da sociedade. É equivocada a associação entre racionalização de gastos públicos e perdas para os mais pobres. Na verdade, como se verá adiante, boa parte do ajuste diz respeito a gastos públicos que beneficiam os segmentos mais ricos da sociedade. Há espaço para um ajuste que não agrave a nossa elevada desigualdade de renda ou que piore os indicadores de pobreza.

A deterioração da qualidade de vida dos pobres e miseráveis ocorrerá, isto sim, se não for feito qualquer ajuste. A alta inflação e o crescimento econômico próximo a zero já estão mostrando seus efeitos sobre essa parcela da sociedade: o número de pessoas extremamente pobres parou de cair e já mostra inflexão positiva (eram 10,08 milhões em 2012 e passaram a 10,45 milhões em 2013). O mesmo está ocorrendo com a desigualdade de renda, que interrompeu sua trajetória de queda e está estacionado em nível ainda alto (índice de Gini de distribuição da renda domiciliar per capital em torno de 0,53 desde 2011)2.

Antes de listar as propostas de um ajuste fiscal, é preciso compreender por que ele tem importância vital para a retomada do crescimento e o controle da inflação. São vários os canais pelos quais o desequilíbrio das contas públicas prejudica a economia:

  • Não havendo ajuste fiscal, as agências de avaliação de risco retirarão do país a classificação de “grau de investimento”. Este “selo de qualidade” indica que é desprezível o risco de o governo não pagar sua dívida. Se o Brasil perder este certificado de qualidade, grandes investidores mundiais (entre eles os fundos de pensão) ficarão proibidos, por seus estatutos, de investir no país, o que representará forte queda da entrada de investimentos externos. Isso não só terá impacto negativo no crescimento, mas também no nosso balanço de pagamentos. Atualmente temos déficit de 3,72% do PIB em transações correntes (negociações de bens e serviços com o exterior), que é coberto por entrada de capitais via investimentos e financiamentos da ordem de 4,65% do PIB. Escasseando a entrada de capitais, sofreremos rápida redução de nossas reservas e o real se desvalorizará frente ao dólar. A desvalorização cambial aumentará a inflação. Com menos reservas no Banco Central, será mais arriscado para investidores estrangeiros investir no país, pois pode haver falta de dólares na hora em que eles desejarem levar seus capitais de volta ao país de origem. Em suma: aumenta a inflação, cai o nível de investimento e diminui o ritmo de crescimento econômico.3
  • O desequilíbrio fiscal também exerce pressão sobre a inflação por meio de outro mecanismo: o aumento da demanda agregada. Com o governo gastando acima do que arrecada, ele coloca na economia mais dinheiro (via gastos) do que retira (via tributos). Com isso, além do efeito direto do consumo do governo, há aumento do consumo das famílias (aqueles que recebem do governo – funcionários públicos, fornecedores, beneficiários de programas sociais, etc – terão mais dinheiro no bolso para consumir). Ocorre que a economia brasileira enfrenta diversas barreiras para aumentar a oferta de bens para atender essa maior demanda: baixo investimento (devido a incertezas, como será explicado a seguir), deficiências de infraestrutura, baixa poupança para financiar investimentos, entre outras. Com maior demanda e oferta restrita, o resultado é o aumento dos preços.
  • Os agentes econômicos desconfiam fortemente da capacidade do governo para controlar suas contas, não só em função dos maus resultados recentes, mas também pelo esforço feito pela atual administração para esconder a situação através de expedientes de contabilidade criativa (sobre contabilidade criativa ver neste site o texto O que é contabilidade criativa?). Por isso, a perpetuação e agravamento do desequilíbrio fiscal representará desestímulo ao investimento, levando a baixo crescimento da economia nos próximos anos;
  • As despesas do governo com juros tendem a aumentar agravando ainda mais o déficit público, pois o Banco Central tende a combater a maior inflação por meio do aumento dos juros. Além disso, o aumento da dívida pública (decorrente dos déficits sucessivos) aumenta a base sobre a qual os juros devidos são calculados. O setor público já gasta a elevada quantia de 5,5% do PIB com juros todos os anos, e essa conta tende a aumentar.4
  • Em um contexto de desajuste fiscal torna-se impossível aprovar uma reforma tributária que reduza o impacto negativo do atual sistema sobre a eficiência e a produtividade da economia. Qualquer reforma que racionalize o sistema tributário implicará perda de receita, o que não é fácil de suportar em momento de crise fiscal. Em consequência se perpetua o bloqueio que o sistema tributário ineficiente exerce sobre o crescimento econômico;
  • A deterioração nos indicadores de inflação, crescimento, balanço de pagamentos e rating de crédito realimentarão o desequilíbrio fiscal pois, com a economia crescendo menos, o governo arrecada menos. Cria-se uma espiral de más notícias que só será rompida com a mudança do regime fiscal.

Não se pode, portanto, brincar com desequilíbrio fiscal no nível em que ele se encontra. É preciso lançar medidas de reequilíbrio das contas públicas. Acredito que um programa de ajuste deveria se apoiar em três pilares, que devem ser apresentados em conjunto (como um pacote) e postos em prática simultaneamente:

  • Recuperação da credibilidade do governo na gestão fiscal;
  • Ajuste de curto prazo;
  • Ajuste de médio e longo prazo.

RECUPERAÇÃO DA CREDIBILIDADE

Esta dimensão do programa de ajuste consistiria em acabar com a contabilidade criativa e dar transparência à real situação financeira do setor público. Algumas das medidas listadas a seguir agravariam os dados oficiais no curto prazo, simplesmente porque há déficit escondido nas contas públicas. Mas uma política fiscal crível deve resistir à tentação de produzir estatísticas que não reflitam a real situação fiscal, sob pena de não conquistar o apoio dos agentes econômicos. O simples fato de se anunciar o fim de procedimentos nocivos ao equilíbrio fiscal – e atuar de acordo! – ainda que não represente melhora nas contas no curto prazo, já cria expectativa positiva em relação ao futuro.

As principais medidas nessa área seriam:

  1. Suspensão dos empréstimos do Tesouro ao BNDES e redução gradualmente da carteira de empréstimos desse Banco. Caso sejam necessários aportes residuais para cumprir contratos em andamento, eles devem ser registrados como despesa primária do Tesouro, sendo contabilizados como inversão financeira no Banco. Essas operações geram elevado custo de juros para o Tesouro (da ordem de R$ 30 bilhões ao ano) e não têm sido eficaz em atingir seu principal objetivo, que seria o estímulo ao investimento privado.
  2. Fixação, por lei, do montante máximo de dividendos que as empresas públicas podem pagar ao Tesouro a cada ano. Tal medida visa impedir que o Tesouro, ansioso por fechar suas contas, force as empresas a pagar dividendos excessivos, que levem à descapitalização das empresas e à necessidade de, no futuro, o próprio Tesouro ter que fazer aporte de capital para recuperá-las. Os dados mostram evidente aumento de pagamentos de dividendos ao Tesouro: entre 2000 e 2008 tais pagamentos foram equivalentes a 0,26% do PIB ao ano, e entre 2009 e 2014 eles saltaram para 0,55% do PIB.5
  3. Acerto de contas do Tesouro com as empresas, fundos e bancos públicos que, na condição de agentes pagadores de programas do governo, detêm créditos junto ao Tesouro em função de atrasos de pagamentos. Essas chamadas “pedaladas” orçamentárias precisam ser explicitadas e ter um cronograma claro de redução ao longo do tempo. Somente com o FGTS, o Tesouro Nacional tem dívida de R$ 17,7 bilhões6, havendo ainda passivos junto à Caixa Econômica, Banco do Brasil e BNDES, cujos números não são claramente divulgados.
  4. Interrupção do lançamento de sucessivos programas de parcelamento de débitos fiscais. Esses programas, conhecidos como REFIS, têm por objetivo facilitar o pagamento de débitos dos contribuintes inadimplentes, gerando uma entrada extra no caixa. Ocorre que a sua repetição, ano após ano, induz o contribuinte a não pagar regulamente suas obrigações, esperando pelo parcelamento em condições facilitadas. Há evidente desmoralização do fisco e queda na arrecadação regular de tributos. Entre os anos 2000 e 2013 foram abertos nada menos que sete programas de parcelamento e refinanciamento de débitos. Os sinais de esgotamento desse mecanismo já são claros. Em 2014 a arrecadação esperada por meio do refinanciamento era de R$ 13 bilhões, mas teve que ser minorada e agora está entre R$ 7 e R$ 9 bilhòes.7
  5. Suspensão de todas as operações entre o Tesouro e empresas públicas ou de economia mista cuja finalidade seja a antecipação da entrada de recursos no Tesouro, como por exemplo, a venda de direitos de royalties de Itaipu para o BNDES ou a venda de direito de exploração de petróleo diretamente à Petrobras, sem a realização de leilão aberto a outras empresas.
  6. Contabilização em separado das receitas de concessão e venda de ativos públicos, apresentando-se o resultado primário com e sem essas receitas não recorrentes. O resultado primário nos últimos anos tem ficado cada vez mais dependente de receitas não-recorrentes, ou seja, receitas que não pertencem ao fluxo regular de arrecadação de tributos, tais como vendas de ativos ou recebimento de dividendos em valores acima do que se observa no mercado; o que indica fragilidade das contas públicas. É preciso mostrar, separadamente, o superávit/déficit advindo dos fluxos regulares de despesas e receitas e aqueles decorrentes de eventos extraordinários. Em 2013, por exemplo, de um superávit primário de 1,9% do PIB, nada menos que 0,9% do PIB resultaram de receitas não recorrentes.8
  7. Definição de um cronograma multianual de redução dos “restos a pagar”, que são despesas orçamentárias feitas no ano “t” cujo pagamento é adiado para o ano “t+1”. Tais adiamentos têm criado uma bola de neve. Em 2004 os restos a pagar (inscritos menos os cancelados) no Orçamento Geral da União equivaliam a 0,7% do PIB. Em 2014 já alcançava 3,4% do PIB.
  8. Apresentação ao Congresso Nacional de proposta orçamentária com base em projeções realistas (de crescimento econômico, inflação, etc.), evitando-se a superestimação das receitas e enfatizando-se o difícil quadro fiscal de curto prazo (a recente propostas apresentada ao Congresso de se ampliar a maquiagem do déficit, por meio de desconto de investimentos e desonerações tributárias é condenável e vai na direção contrária do que está sendo aqui proposto). Em especial é preciso evitar o já “manjado” jogo de cena, feito ao longo dos últimos anos, em que se aprova um orçamento com receitas e despesas irrealistas e, em seguida, faz-se um contingenciamento (sempre com o número mágico de R$ 50 bilhões) que, na verdade, representa cortar despesas que não seriam realizadas, pois não haveria receitas para financiá-las.

AJUSTE DE CURTO PRAZO

As medidas de curto prazo são aquelas voltadas a produzir aumento de receita e redução de despesa com reflexo imediato nas contas governamentais:

  1. Reverter a chamada “desoneração da folha de pagamento”, não só porque ela gera significativa perda de arrecadação (R$ 20 bilhões ou aproximadamente 0,4% do PIB)9 como também cria problemas relativos à eficiência da economia (a esse respeito ver, neste site, o texto “O que é desoneração da folha de pagamento e quais são seus possíveis efeitos?”).
  2. Reverter a redução de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) concedida a vários produtos, pois ela representa perda de arrecadação (no mínimo R$ 7 bilhões por ano) e estímulo ao consumo em um momento de inflação em alta.
  3. Enfrentar a grande pressão por aumento de gastos de pessoal, que vem sobretudo do Poder Judiciário, sob a forma de: criação de adicional de tempo de serviço não sujeito ao teto remuneratório constitucional (PEC 63/2013 – custo de até R$ 10 bilhões ao ano para a União e R$ 14 bilhões para os estados10); introdução de auxílio moradia para juízes e procuradores (demanda já aprovada no STF e que deve ser enfrentada na esfera judicial – custo estimado em R$ 1,5 bilhão por ano11); forte aumento do teto remuneratório proposto pelo STF (de R$ 29,4 mil para R$ 35,9 mil – acréscimo de 22%, que levaria a aumento de despesa de R$ 1,4 bilhão em 201512). Esses aumentos rapidamente repercutem na remuneração do restante do funcionalismo, desencadeado reajustes em cascata e demandas por realinhamento de remuneração entre carreiras, o que pode aumentar ainda mais o custo estimado da medida. São nocivos não apenas pelo desarranjo fiscal que provocam, mas também por serem fator de concentração de renda, visto que os servidores públicos (em especial os do Judiciário) estão no topo da pirâmide de renda.
  4. Também no STF está tramitando causa relativa ao chamado direito de “desaposentadoria” que, de forma resumida, pode ser descrito como a elevação dos benefícios recebidos pelas pessoas que se aposentaram, mas continuaram no mercado de trabalho. Se aprovada tal possibilidade, haverá um custo de, no mínimo, R$ 70 bilhões com possibilidade de se multiplicar ao longo dos anos (sobre esse ponto ver neste site O que é desaposentadoria e qual o seu impacto? e Por que o julgamento do STF sobre desaposentadoria é importante?)
  5. Suspender a determinação governamental e os estímulos regulatórios voltados a expandir o crédito ao consumo, ofertado pelos bancos públicos. A forte expansão desse crédito em passado recente (o saldo das operações com pessoas físicas passou de 13% do PIB em 2007 para 26% do PIB em 2014)13, associada ao baixo ritmo de crescimento da economia, tende a aumentar o potencial de inadimplência da carteira de crédito dos bancos públicos. Isso representará perda patrimonial e futura necessidade de aporte de recursos do Tesouro àquelas instituições. Foi anunciado recentemente, por exemplo, uma transferência de créditos “podres”da Caixa Econômica para a Empresa Gestora de Ativos (Engea), da ordem de R$ 5 bilhões. A Engea é uma espécie de agência para lidar com créditos de instituições públicas de difícil cobrança 14.
  6. Reverter a política recentemente adotada pelo Tesouro Nacional de facilitar a tomada de empréstimos por estados e municípios. Esses governos subnacionais têm seus limites de endividamento controlados pelo Tesouro, em conformidade com regras estipuladas pelo Senado. Se as regras forem cumpridas à risca, os estados e municípios têm que obter superávit primário para pagar seus débitos vincendos. Quando se abre aos estados e municípios a possibilidade de tomar novos empréstimos, deixa de ser necessário fazer superávit para pagar suas dívidas. Basta fazer dívida nova para pagar dívidas antigas. O resultado foi a queda do superávit fiscal de estados e municípios, que deteriora a situação fiscal agregada do setor público. O superávit primário de estados e municípios caiu de 1,15% do PIB em 2008 para 0,34% do PIB em 2013.

AJUSTE DE LONGO PRAZO

  1. Não há dúvida de que o ajuste de longo prazo mais importante é a retomada da reforma da previdência. Esse é o maior item de despesa do orçamento (consumindo quase 40% de toda a receita primária do Tesouro, com gastos anuais de R$ 350 bilhões ou 7,3% do PIB em 201315). É também a categoria de despesa que tem maior potencial de crescimento, seja devido às regras benevolentes de concessão de benefícios, seja pelo rápido envelhecimento da população, que afetará não só o lado do gasto, mas também o lado da receita, pela diminuição da parcela da população participante no mercado de trabalho e contribuinte para a previdência. As pessoas com mais de 65 anos de idade eram 7% da população em 2012 e serão 22% em 205016. Por isso, faz-se necessário, pelo menos: instituir idade mínima para aposentadoria no Regime Geral de Previdência Social (RGPS), aumentar o tempo de contribuição necessária para que se pleiteie aposentadoria por idade, rever o instituto das aposentadorias especiais, rever o tempo reduzido de aposentadoria para mulheres, reduzir a benevolência dos benefícios associados à pensão por morte.
  2. A segunda prioridade também é a previdência! Isso porque tramitam no Congresso mais de uma centena de projetos que aumentam benefícios, concedem novas aposentadorias especiais, propõem a institucionalização da desaposentadoria e/ou reduzem exigências para gozo de benefícios existentes. Olhando-se isoladamente cada um desses projetos, eles parecem inofensivos em termos fiscais. Muitos se baseiam em argumentos meritórios. Porém, quando analisados em conjunto, têm potencial explosivo sobre os custos da previdência. A cada ano alguns desses projetos são aprovados e sancionados, cavando um pouco mais o poço do déficit previdenciário (sobre esse ponto será futuramente publicado texto específico neste site). É preciso instituir um mecanismo de avaliação do impacto fiscal desses projetos, e dar a eles atenção redobrada durante sua tramitação no Congresso.
  3. Logo após à previdência, o segundo maior item de despesa é a folha de pessoal do Governo Federal (R$ 221 bilhões ou 4,6% do PIB)17. Como já afirmado acima, esta tende a crescer em função da pressão do Judiciário por aumento de remuneração. Além disso, a política de pessoal do setor público brasileiro é ineficiente e dispendiosa, pagando remunerações elevadas e contratando acima da necessidade, além de garantir estabilidade no emprego de forma generalizada. Um ponto fundamental a ser mudado na política de pessoal diz respeito aos direitos e deveres dos servidores em relação à greve. Atualmente há um desequilíbrio: os servidores podem fazer greve, mas não há instrumentos para punir greves abusivas, não há corte de remuneração dos dias parados nem a possibilidade de demissão. Isso estimula a realização de greves e coloca o poder público contra a parede, resultando em remunerações elevadas e perda de qualidade dos serviços públicos em função de sucessivos movimentos paredistas. A aprovação de uma lei de greve que equilibrasse direitos e deveres contribuiria tanto para conter o peso fiscal da folha de pagamento, quanto para recuperar a qualidade dos serviços prestados.
  4. Ainda em relação ao serviço público, é preciso rever regras de contratação, remuneração e promoção visando criar incentivos para o bom desempenho, assim como conter a contratação em excesso (propostas nesse sentido estão no texto O que fazer para melhorar a eficiência dos servidores públicos e reduzir as despesas de pessoal do governo?). De especial interesse seria a adoção de modelos alternativos de prestação de serviços públicos, como a atuação de organizações sociais mediante contrato de gestão na área de saúde, ou a adoção (mediante avaliação de seus efeitos) de políticas de voucher escolar e terceirização de gestão das escolas públicas.
  5. As políticas de assistência social (Bolsa Família, Abono Salarial, Seguro Desemprego, Benefício de Prestação Continuada – BPC, aposentadorias rurais) têm apresentado peso crescente na despesa pública (elas consumiam 6,2% da receita primária em 2004, pulando para 10,3% em 2013 – em reais foram R$ 182 bilhões ou 3,7% do PIB). Embora algumas dessas políticas representem importante contribuição à redução da pobreza e da desigualdade, outras não são tão eficazes e devem ser descontinuadas. É preciso focar os benefícios nos mais pobres, para ter o máximo de resultado ao menor custo possível. Essa foi a chave do sucesso do Bolsa Família, um programa barato e eficaz. Sob essa ótica, o Abono Salarial é um candidato a ser extinto, o que representaria economia de R$ 19 bilhões em 201518. O seguro desemprego tem sido objeto de fraudes, e precisa passar por mudanças nas suas regras e mecanismos de fiscalização. O valor do salário mínimo, que rege o reajuste do BPC e o piso das aposentadorias, deveria passar a ser corrigido pela inflação adicionada de um índice de produtividade (ou, para facilitar, a taxa de crescimento do PIB per capita). Isso garantiria a manutenção do poder de compra dos benefícios (agregado a um ganho real) em ritmo compatível com o crescimento da economia e da capacidade fiscal. A regra atual de elevação do salário mínimo é mais benevolente, porém sacrifica as contas públicas e tira dos pobres, via inflação, o que lhes dá por meio do reajuste dos benefícios.
  6. Na área de educação é preciso tomar a decisão de focar a ação do setor público na pré-escola e no ensino básico, revendo-se a prioridade até hoje conferida ao ensino superior, em especial à injustificável gratuidade do ensino superior para estudantes de famílias que podem pagar pelo serviço.
  7. É essencial que se instaure no Estado brasileiro mecanismos de avaliação das inúmeras políticas públicas em execução. Os programas são criados e perpetuam-se sem que se avalie se eles geram mais benefícios do que custos. Algumas perguntas básicas devem ser respondidas sobre cada programa público: a quem beneficiam? Qual o custo per capita? Há programas alternativos que beneficiariam mais gente ao mesmo custo? Há necessidade de intervenção do governo ou o problema que se quer resolver pode ser solucionado pelo livre funcionamento de mercado (ou seja, há falhas de mercado envolvidas?)? Qual o impacto sobre a distribuição de renda e redução da pobreza? Quais os efeitos colaterais positivos e negativos que os programas geram para a sociedade?
  8. A criação de uma instituição fiscal independente (ver sobre isso, neste site, no texto “O que são instituições fiscais independentes?”) ou a criação de programas de avaliação de impacto no âmbito do Poder Executivo (já há iniciativa nesse sentido no âmbito da Secretaria de Assuntos Estratégicos) ajudaria a colocar luz sobre programas públicos ineficientes, que devem ser descontinuados ou reformados, bem como indicar quais são as experiências bem-sucedidas que devem ser replicadas e ampliadas.
  9. Reavaliação do modelo de investimento público. O famoso PAC é um programa baseado na ideia de “quanto mais investimentos melhor”. Ele reuniu e embrulhou em um só pacote diversos projetos que existiam e estavam a espera de financiamento, sem uma avaliação da qualidade e oportunidade desses projetos. E, sobretudo, sem se fazer uma escala de prioridades. Ocorre que o país não tem recursos fiscais nem capacidade gerencial para tocar um grande número de projetos ao mesmo tempo. Acabam ocorrendo casos de projetos mal executados ou inadequados (desconsiderando-se outras opções mais baratas e eficientes), obras interrompidas por falta de recursos, estouro de orçamento em função de mau planejamento. Nesse sentido, seria necessário criar uma agência (ou dar atribuição a um órgão já existente) que centralizasse o planejamento dos investimentos públicos, buscando a sinergia entre diferentes projetos, e definindo com clareza quais seriam objeto de concessão, parceria público-privada ou investimento público direto.
  10. Ainda sobre os investimentos em infraestrutura, é preciso mudar a política adotada naqueles destinados ao modelo de concessão. Não se pode usar a concessão como uma forma de trazer o investidor privado para trabalhar pelo governo, submetendo-o a uma remuneração inferior ao seu custo de capital. Ou seja, medidas populistas, voltadas a reprimir o preço das tarifas pagas pelos usuários, acabam levando a baixa qualidade dos serviços ou relações espúrias entre prestador de serviço e governo, que passam a buscar meios de remuneração menos transparentes (via subsídios extraorçamentários, subsídios cruzados, etc.). O custo para o contribuinte e as distorções de preços relativos e perda de eficiência da economia acabam sendo maiores que a economia no preço do serviço. Em segundo lugar, não se pode usar os programas de concessão tendo por objetivo principal maximizar a receita fiscal obtida nos leilões. Isso porque para maximizar tal receita, o poder público acaba tendo que permitir que o concessionário preste um serviço de pior qualidade (e tenha menor custo e maior lucro), em troca de um pagamento inicial mais polpudo. O ganho fiscal de curto prazo acaba gerando perda de qualidade, e portanto de produtividade, no longo prazo.

CONCLUSÕES

Os pontos aqui esboçados, se adotados em conjunto, dariam aos agentes econômicos uma perspectiva de equilíbrio, eficiência e transparência das contas públicas no longo prazo. Isso atuaria no sentido de conter a inflação e o déficit no balanço de pagamentos. Estimularia os investimentos, permitiria a redução da taxa de juros de equilíbrio e resultaria em maior crescimento econômico.

Resta, como desafio, argumentar que este não seria um “pacote de arrocho” com consequências negativas aos mais pobres.

Uma breve revisão das principais medidas propostas permite constatar que muitas delas, na verdade, desconcentram a renda. É o caso das políticas que visam restringir as altas remunerações do Poder Judiciário, e praticar uma política salarial no setor público mais próxima do que se paga no setor privado. Conter a expansão do efetivo de servidores públicos também atuará no sentido da redistribuição. Parte significativa do funcionalismo está entre os 5% mais ricos do país.

A adoção de políticas voltadas a estimular os servidores públicos a serem mais eficientes, bem como os modelos alternativos de prestação de serviços de saúde e educação, resultaria em melhores serviços prestados aos mais pobres, que são os maiores usuários desses serviços, visto que os mais ricos há muito migraram para os serviços privados.

Igual efeito terá a reforma da previdência, pois em sua conformação atual, o sistema de benefícios é apropriado majoritariamente pela classe média, em detrimento dos mais pobres. Os projetos de mudanças avulsas no sistema previdenciário (na direção contrária à do ajuste das contas), que aos poucos vão sendo aprovados no Congresso, também são, muitas vezes, direcionados a grupos de pressão de classe média, tendo um custo equivalente ao necessário para tirar um grande contingente de famílias da miséria.

A focalização das políticas sociais também seria um instrumento de fazer mais e melhor em favor dos mais pobres, eliminando-se os “vazamentos” de benefícios que hoje vão para a classe média.

Também no caso dos investimentos em infraestrutura é possível buscar um enfoque pró-pobre. Um adequado planejamento e hierarquização de prioridades levaria ao aumento de investimentos em áreas como saneamento básico, remoção de habitações de áreas de risco para conjuntos habitacionais populares e melhorias nos investimentos e gestão do transporte público. São evidentes os benefícios aos mais pobres e à classe média.

A adoção de monitoramento e avaliação de programas públicos de forma sistemática deixaria claro para a sociedade os programas que, embora aparentem gerar muitos benefícios, têm custos elevados. Se submetidas a avaliações desse tipo, iniciativas do chamado Sistema S, que consomem em torno de R$ 15 bilhões por ano, provavelmente se mostrariam caras e ineficientes. O uso dos recursos do imposto sindical e dos programas de treinamento financiados pelo Ministério do Trabalho também ficaria mais claro, podendo-se aferir até que ponto são os trabalhadores ou uma elite sindical que se beneficia dos recursos.

A contenção no ritmo de crescimento do salário mínimo não pode ser vista como uma medida de “arrocho” contra os pobres. Afinal, em algum momento do tempo o salário mínimo terá que parar de subir acima dos demais salários. Do contrário, no longo prazo ele se tornará um “salário máximo”. Os ganhos em termos de redução da pobreza e da desigualdade, decorrentes do reajuste do salário mínimo acima da inflação tendem a ser cada vez menores. Primeiro, porque passarão a pressionar a inflação e retirar renda dos mais pobres.Segundo, porque esse salário passará a ser cada vez mais pesado para as empresas, desestimulando a contratação de trabalhadores pobres menos qualificados (com produtividade abaixo da remuneração mínima). Ademais, a medida proposta não é de redução do valor real do salário mínimo, e sim de moderação na sua taxa de crescimento real.

Por fim, mas não menos importante, o fim dos bilionários subsídios concedidos pelo Tesouro a grandes empresas, por meio de financiamentos do BNDES e o fim dos subsídios implícitos nas desonerações de IPI e folha de pagamentos deixarão de carrear bilhões de reais para o topo da pirâmide de renda.

____________________

1 Fonte dos dados: Banco Central do Brasil, Nota para a Imprensa, out 2014.
2 Fonte de dados: www.ipeadata.gov.br
3 Fonte dos dados: Banco Central do Brasil. Nota para a Imprensa, out. 2014.
4 Fonte dos dados: Banco Central do Brasil. Nota para a Imprensa, out. 2014.
5 Fonte dos dados: Secretaria do Tesouro Nacional. Resultado do Tesouro – Série histórica.
6 Valor Econômico, 17/11/2014.
7 http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,arrecadacao-do-refis-frustra-governo-e-deixa-meta-fiscal-mais-distante-imp-,1555788
8 Fontes: Banco Central do Brasil e Banco Itaú (2013). “Contas públicas: dimensionando o impacto das operações não recorrentes”.
9 Fonte: Receita Federal do Brasil – Desonerações instituídas.
10 Fonte: Valor Econômico, 2/6/14.
11 Fonte: O Globo 7/10/14.
12 Fonte: Folha de S. Paulo 5/11/14.
13 Fonte: www.ipeadata.gov.br
14 Fonte: http://epocanegocios.globo.com/Informacao/Acao/noticia/2014/11/caixa-repassa-r-5-bilhoes-em-creditos-podres.html
15 Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional. Resultado do Tesouro Nacional
16 Estimativas de Marcelo Caetano, com base em dados do IBGE.
17 Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional. Resultado do Tesouro Nacional
18 Fonte: Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias 2015.

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2337 9
Quanto custam para o Tesouro os empréstimos concedidos ao BNDES? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2296&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quanto-custam-para-o-tesouro-os-emprestimos-concedidos-ao-bndes https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2296#comments Tue, 23 Sep 2014 15:10:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2296 O Tesouro Nacional tem feito seguidos empréstimos ao BNDES, com intuito de prover recursos para que este Banco amplie a oferta de crédito a empresas privadas e ao setor público. A ideia é estimular o crescimento econômico por meio de empréstimos subsidiados para investimentos dos setores público e privado. O crédito do Tesouro junto ao BNDES, em julho de 2014, segundo as estatísticas do Banco Central, já somava R$ 449 bilhões. Trata-se de valor significativo, equivalente a 9,3% do PIB de 2013.

Essa política implica custo para o Tesouro, pelo fato de que este empresta ao BNDES a uma taxa inferior ao seu custo de financiamento. De forma simplificada, tudo funciona como se uma pessoa (o Tesouro) tomasse dinheiro emprestado em um banco, pagando juros de 11% ao ano, e usasse esse dinheiro para emprestar a um amigo (o BNDES), cobrando dele juros de 5% ao ano. O custo dessa ação será justamente a diferença entre os juros pagos ao banco e os juros recebidos do amigo.

Não tem sido muito simples estimar o custo incorrido pelo Tesouro Nacional nessas operações, pois as características financeiras dos diversos empréstimos feitos ao BNDES não são plenamente divulgadas. Não se sabendo exatamente quais são os prazos, as taxas de juros, a carência para pagar juros e principal e o método de amortização, fica difícil estimar o custo implícito desse tipo de operação. Além disso, o cálculo é complicado pelo fato de que Tesouro e BNDES frequentemente renegociam contratos vigentes, mudando suas características.

Este texto busca apresentar uma estimativa dos custos fiscais desses empréstimos, tomando por base as características financeiras apresentadas em coluna do jornalista Ribamar Oliveira, publicada no jornal Valor Econômico do dia 28 de agosto de 2014.

Tal coluna descreve detalhes financeiros de uma renegociação de parte da dívida, ocorrida em março de 2014, no valor de R$ 194 bilhões, afirmando que sua fonte de informação é um parecer da Secretaria do Tesouro Nacional, obtido pelo jornal por meio da lei de acesso à informação. Como naquele mês o saldo total devido pelo BNDES ao Tesouro era de R$ 414 bilhões, a renegociação abarcou a significativa parcela de 47% da dívida total. Estimando o custo da parcela renegociada é possível ter uma ideia do custo total da política.

Para complementar as informações oferecidas na coluna jornalística, recorri a uma descrição sumária dos empréstimos Tesouro-BNDES, disponíveis no site do BNDES, sob o título “Captações realizadas com recursos do Tesouro Nacional – Posição 30/06/2013”. As informações ali disponibilizadas estão organizadas em uma tabela, com informações incompletas e sem maiores explicações metodológicas. Apesar disso, é possível inferir (por similaridade de valores) que a renegociação aludida pelo jornalista Ribamar Oliveira corresponde aos contratos PGFN 922/2014 e PGFN 923/2014, que somam R$ 194.148 milhões. O contrato renegociado é descrito por Ribamar Oliveira (e parcialmente corroborado pelas informações disponibilizadas pelo BNDES, ainda que menos completas que as dispostas na coluna jornalística) da seguinte forma:

  • Valor renegociado: R$ 194 bilhões (R$ 194.148 milhões segundo documento do BNDES);
  • Juros totais: igual à Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), não podendo ser superior a 6% ao ano (o documento do BNDES não faz referência a esse teto de 6% ao ano para os juros);
  • Prazo de pagamento: 46 anos, vencendo em 2060 (informação confirmada pelo documento do BNDES, que informa que o último vencimento do contrato será em março de 2060);
  • Carência integral para o pagamento de juros nos primeiros seis anos (informação confirmada pelo documento do BNDES, que afirma que haverá carência no pagamento integral dos juros até março de 2020);
  • Pagamento parcial de juros entre o 7º e o 21º ano, equivalente a 1/3 da TJLP, limitado ao máximo de 6% ao ano (o documento do BNDES não faz qualquer referência a pagamento parcial de juros ou a teto de juros);
  • A partir do 22º ano do contrato o pagamento dos juros será intergral (o documento do BNDES não informa esse detalhe);
  • Carência de 26 anos para o pagamento do principal (o documento do BNDES confirma essa informação, estabelecendo março de 2040 como o fim do período de carência para pagamento do principal).

Em suma, em nenhum dos itens acima as informações disponibilizadas pelo BNDES contradizem aquelas apresentadas na coluna jornalística. Assim, considerarei como corretas as informações apresentadas na coluna jornalística, utilizando-as em conjunto com aquelas oferecidas pelo BNDES.

Para obter uma estimativa de custo para o Tesouro decorrente de um contrato com tais características financeiras, basta calcular o valor presente do fluxo futuro de pagamentos e compará-lo com o valor total do empréstimo (R$ 194,1 bilhões). A diferença representará o custo em reais incorrido pelo Tesouro, em valores da data da assinatura do contrato (março de 2014).

O cálculo do valor presente requer que sejam feitas hipóteses sobre o comportamento futuro das variáveis que influenciarão o pagamento da dívida ao longo dos anos. Isso significa fazer hipóteses sobre a trajetória futura da taxa de juros nominal do contrato (TJLP) e da taxa Selic, que representa o custo de financiamento do Tesouro.

No exercício simplificado que realizei, supus que os juros pagos pelo BNDES serão os maiores possíveis dentro do desenho contratual. Como visto na descrição do novo contrato feita na matéria jornalística, há um teto de 6% ao ano para os juros. Caso a TJLP supere esse teto, o BNDES pagará a taxa fixa de 6% ao ano. Logo, ao supor que o BNDES pagará sempre 6% ao ano, trabalho com o limite superior de juros. Obviamente isso SUBESTIMA o custo do Tesouro.

Foram traçados cinco cenários que combinam diferentes hipóteses sobre a trajetória futura da taxa Selic (8%, 9%, 10%, 11% ou 12%). O Quadro 1 mostra a estimativa de custos para o Tesouro para cada uma dessas taxas. Por exemplo, com uma taxa Selic na casa de 11%, o valor presente (em março de 2014) do fluxo de pagamentos que o Tesouro receberá do BNDES até o final do contrato equivaleria a R$ 65,1 bilhões. Dado que o Tesouro emprestou R$ 194,1 bilhões ao BNDES, o seu custo seria equivalente a R$ 129,1 bilhões (ou 47% do valor do empréstimo). O custo é muito alto: de cada R$ 1,00 emprestado pelo Tesouro, ele receberá de volta do BNDES R$ 0,33.

Quadro 1 – Estimativas do valor presente da dívida nos termos contratuais vigentes depois da renegociação (R$ bilhões)

img_2296_1

Mesmo que a economia brasileira caminhe para uma melhor situação macroeconômica, que permita reduzir a Selic nominal para a casa de 8% ao ano, o custo para o Tesouro seria equivalente a R$ 72,1 bilhões. Nesse caso, para cada R$ 1,00 emprestado pelo Tesouro, o BNDES pagaria de volta apenas R$ 0,63.

Resta saber qual dos cenários apresentados no Quadro 4 será mais realista para o futuro do país. Teremos no futuro uma Selic na faixa de 8% ao ano ou uma Selic mais alta, que poderia levar o prejuízo a R$ 140 bilhões (lembrando que o prejuízo será ainda maior se a taxa Selic ficar acima de 12% ao ano)? Tudo vai depender da taxa de inflação. Se supusermos que a taxa de juros real  de equilíbrio da economia brasileira ficará na faixa de 4 a 5% ao ano, então uma inflação de 4% nos levaria a uma Selic entre 8 e 9% ao ano, o que atenuaria o custo do Tesouro. Se, porém, tivermos taxas de inflação mais altas, na casa de 6% ao ano, cairemos no cenário em que a Selic média será de 11% ao ano, ampliando o custo do Tesouro.

Por fim, vale lembrar que esse custo maiúsculo imposto ao Tesouro (mesmo no cenário mais benigno) refere-se a menos da metade dos créditos junto ao BNDES. Se a outra metade tiver condições financeiras similares, o custo total tende a ser próximo ao dobro daquele estimado no Quadro 1.

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2296 5
Os conflitos federativos na democracia brasileira https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2278&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=os-conflitos-federativos-na-democracia-brasileira https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2278#comments Mon, 01 Sep 2014 14:14:44 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2278 Introdução

As regras de relação federativa no Brasil são em parte herdadas do período militar e em parte construídas ou adaptadas após a redemocratização. A parcela herdada do passado não–democrático – como o arranjo do CONFAZ para gerir o ICMS – simplesmente perdeu funcionalidade, porque pressupunha centralização de poder nas mãos do Executivo federal (no caso do CONFAZ, poder do Ministro da Fazenda e submissão dos secretários estaduais). A parcela criada ou reformulada no período democrático padece dos problemas vividos por nossa democracia que, como argumentado adiante, estimula forte conflito distributivo entre diferentes grupos de interesse, organizados em bases sociais, profissionais, ideológicas, religiosas, entre outras. Os problemas federativos são mais uma dimensão desse conflito, tendo as regiões, estados e municípios como núcleo de organização dos interesses conflitantes.

A democracia brasileira está sendo construída em uma sociedade bastante desigual. A desigualdade não se restringe às dimensões de renda e patrimônio, mas também de acesso a serviços públicos e à justiça, de nível educacional e também das condições econômicas e possibilidades de desenvolvimento regional.

Ao transitar de um regime fechado, sem espaço para pressões políticas por redistribuição, para um regime aberto, com ampla representação política, a sociedade brasileira viu explodir as demandas de diversos grupos de interesse. O Congresso Nacional tem representantes declarados ou ocultos de inúmeros grupos profissionais, sociais e ideológicos, oriundos de todos os níveis de renda: bancada ruralista, bancada da bola, movimento negro, bancada da saúde, bancada da educação, bancada municipalista, etc. O nosso sistema eleitoral permite esse tipo de representação, ao adotar o voto proporcional com distritos eleitorais amplos.

Embora não caiba aqui uma detalhada análise do sistema político eleitoral, o que inclusive exigiria que se explicitassem os benefícios que esse sistema traz; o que é relevante ressaltar é que cada um dos inúmeros grupos de interesse tem uma agenda que busca não apenas aumentar o gasto público em favor da sua causa ou grupo social, mas também criar regras que lhes concedam novos privilégios ou protejam os antigos. Por exemplo, subsídios ou proteção comercial criados no passado são renovados independentemente de terem sido bem-sucedidos ou não, porque criaram clientes que deles auferem renda e se mobilizam para perenizá-los.

A combinação de grande heterogeneidade social com ampla liberdade de reivindicação e de representação política acaba levando a forte conflito distributivo. Tal conflito, ao resultar na expansão do Estado, tanto pela via do gasto (e da tributação) quanto pela via da regulação econômica ineficiente (que busca proteger renda de grupos); acaba minando a eficiência da gestão pública e a produtividade da economia. O resultado é o baixo crescimento econômico. O bolo de renda a ser dividido fica menor do que poderia ser, o que reforça o conflito original, colocando o país em uma armadilha de baixo crescimento e limitada capacidade de fazer reformas que quebrem privilégios e sejam capazes de aumentar a eficiência e o crescimento.

O restante deste texto apresenta os principais problemas de relação federativa no Brasil, mostrando como eles se situam nesse modelo geral de democracia conflituosa e de herança de instituições do período autoritário.

ICMS e CONFAZ

O ICMS é um imposto sobre o valor agregado pertencente aos estados. Como forma de incentivo para atração de empresas, vários estados passaram a conceder isenção de impostos. Para evitar essa guerra fiscal, instituiu-se o Confaz como instância deliberativa, em que a isenção fiscal oferecida por determinado estado somente seria permitida caso os Secretários de Fazenda de todas as unidades da federação, por unanimidade, aprovassem tal isenção. Ocorre que esse modelo só funcionava em um ambiente político centralizado, no qual o poder central, representado pelo Ministério da Fazenda, impunha as regras, e os representantes estaduais não tinham poder para desafiá-las. A partir do momento em que houve democratização e descentralização do poder, tornou-se inviável a gestão consensual do ICMS.

Tampouco parece haver espaço para uma solução cooperativa, com a redução da alíquota interestadual do ICMS para coibir a guerra fiscal, simplesmente porque o Governo Federal não tem credibilidade para oferecer compensações aos perdedores.

Essa falta de credibilidade decorre, em primeiro lugar, do fato de que a real compensação seria a implantação de infraestrutura de transportes e logística que efetivamente integrasse as áreas mais distantes do país aos centros consumidores e aos pontos de exportação. Ocorre que o Governo Federal não consegue oferecer tal infraestrutura a curto e médio prazo, pois os investimentos no setor se tornaram presa do conflito distributivo em torno das verbas orçamentárias. Para gerar benefícios que representam renda no bolso dos diversos segmentos sociais (remuneração do funcionalismo, aposentadorias e pensões, assistência social, crédito subsidiado em bancos públicos, perdão de dívidas agrícolas, etc.) foi necessário não apenas elevar a tributação, mas também cortar os investimentos em infraestrutura.

Sem as necessárias artérias de transportes, os estados de economia mais atrasada não conseguem se integrar ao polo dinâmico da economia e perdem a oportunidade de utilizar suas vantagens comparativas (mão de obra e custo de terrenos mais baratos, por exemplo) para atrair investimentos e empregos. Resta o caminho conflituoso da guerra fiscal, que não só distribui custos de maneira aleatória (quem paga o custo do incentivo é o estado de destino das mercadorias), como incentiva a alocação ineficiente dos investimentos (que se baseia nos custos tributários e não nos custos de produção). Ademais, o excesso de regulação federal na área de portos, voltada a proteger a renda dos empregados do setor e o mercado dos operadores, impede que os estados litorâneos disponham de plataformas eficientes de comércio internacional.

Também contribui para a baixa credibilidade das ofertas federais de compensação a posteriori a experiência da Lei Kandir, em que alguns estados argumentam que não foram plenamente compensados pela desoneração de exportações, conforme estabelecido naquela lei. O fato é que, com o gasto público sempre crescente, decorrente do conflito distributivo acima referido, há sempre o risco de promessas de futuras compensações financeiras serem frustradas pelo próximo contingenciamento orçamentário.

Somente a ameaça de uma medida drástica, como a declaração de ilegalidade dos benefícios com efeito retroativo, pode forçar as partes a negociar e chegar a um acordo. Isso, contudo, não se fará sem impor perdas a alguns estados e deixar cicatrizes nas relações políticas.

Royalties de Petróleo e CFEM

A disputa aberta travada entre os estados acerca das regras de distribuição dos royalties do petróleo é um exemplo típico do conflito distributivo que impera no país. Não há argumentos tecnicamente convincentes para que os royalties se concentrem nos estados e municípios próximos aos locais de produção. Tampouco existem argumentos para sustentar a transferência desses recursos aos estados e municípios, em vez de concentrá-los nas mãos da União. Há robustas evidências empíricas de que os estados e municípios que “enriqueceram” com as receitas de royalties desperdiçaram parte significativa dos recursos, que somem sob a forma de captura pela burocracia, desperdício ou corrupção1. Apesar de tudo, continua o debate pela descentralização e redistribuição dos recursos. Quem fala mais alto leva!

Note-se que se está discutindo a distribuição das rendas de um petróleo que sequer saiu do fundo do mar e que enfrentará grandes desafios tecnológicos para chegar à superfície e ser transportado até o continente. Somos incapazes de nos concentrar na discussão sobre a forma mais eficiente de produzir e vender o petróleo, ou seja, de como aumentar a arrecadação total decorrente da extração do óleo. A discussão é essencialmente distributiva. E é assim porque o conflito é alto e acirrado. Quem cochilar perde tudo para o vizinho.

Por que não se discute a possibilidade de os recursos dos royalties de petróleo financiarem a tão necessária infraestrutura que integraria o país e daria competitividade aos estados e municípios mais distantes? Mais uma vez surge a falta de confiança entre as partes. Cada prefeito e governador prefere ter o dinheiro na mão, ainda que seja para fazer um investimento com menor impacto para o desenvolvimento local, quando comparado a grandes investimentos de âmbito nacional, com medo de que o governo federal simplesmente não faça investimento algum. Há também o risco de as obras federais, por mais importantes que sejam para o País como um todo, trazerem pouco benefício para determinado estado ou município. Por exemplo, a construção de uma rodovia interligando as áreas produtoras de soja do Mato Grosso ao Porto de Paranaguá pouco contribui diretamente para o bem estar de um morador da Bahia. Além disso, também existe, no âmbito estadual e municipal, o mesmo conflito distributivo, em que grupos demandam emprego público, subvenções e outros benefícios localizados. Portanto, a demanda de primeira ordem para governantes estaduais e municipais é ter dinheiro na mão para atender as pressões políticas locais.

Zona Franca de Manaus e Fundos de Desenvolvimento Regional

A Zona Franca de Manaus (ZFM), recentemente renovada por mais 50 anos, é um exemplo típico de incentivo que sobrevive graças ao seu fracasso. Seus beneficiários não querem perder o privilégio, e lutam para perpetuá-lo. A ideia original era dar incentivos fiscais temporários para que a indústria se instalasse naquela região e, com o tempo, adquirisse escala de produção suficiente para se tornar viável e capaz de competir com indústrias do restante do país e do mundo.

Passados 47 anos desde a implantação da ZFM, ela continua dependente de isenção tributária para sobreviver. O total de gastos tributários federais com a ZFM é da ordem de R$ 22 bilhões por ano. Cada um dos 500 mil empregos diretos e indiretos gerados na região custa ao país, em termos de benefícios fiscais, algo como R$ 44 mil por ano. No limite, seria mais eficiente pagar esse valor a cada pessoa hoje empregada na ZFM, o que corresponde a R$ 3,7 mil por mês, para que ela ficasse em casa, transferindo a produção para outra região do país que tenha competitividade para produzir sem precisar de incentivos fiscais2. Mantido o mesmo nível de gasto tributário, o País teria ganhos em termos de produtividade e redução de custos de logística e transportes, ficando em situação melhor que a atual, na qual, além dos custos fiscais, incorre nos custos de eficiência!

Porém, é politicamente inviável acabar com o incentivo e deixar um vazio demográfico e econômico em Manaus. O custo político é alto, e a pressão dos grupos beneficiados sobre o Congresso muito alta.

Raciocínio similar aplica-se aos fundos constitucionais de financiamento do setor produtivo. Apenas os fundos constitucionais absorvem 3% da receita de Imposto de Renda e IPI. A inadimplência dos tomadores desses recursos é alta, os custos operacionais dos bancos públicos que gerem os recursos são elevados (e consomem boa parte da verba orçamentária destinada aos financiamentos). Não há evidências de que, após décadas de financiamentos dessa natureza, tais instrumentos tenham sido capazes de fechar significativamente o hiato de desenvolvimento entre o Sul-Sudeste e o Norte-Nordeste. No entanto, os mecanismos seguem intocados, e sempre que possível as partes interessadas batalham por mais recursos e novos fundos.

Não há, no âmbito dos debates federativos, qualquer estudo mais detalhado de impacto, que mensure os custos e benefícios desses mecanismos e que abra um debate sobre como melhor usar esses recursos em prol do desenvolvimento regional. Faz-se hoje o que se fazia no passado, ainda que os resultados sejam medíocres. Qualquer possibilidade de reforma é bloqueada pelo medo de se perder recursos. Há um viés a favor do status quo.

O mesmo ocorria com os royalties, que durante anos foram canalizados para alguns poucos estados e municípios sem que os demais reclamassem. A perspectiva de aumento no valor total distribuído a partir da descoberta do pré-sal, contudo, aumentou o custo da inação política. E o debate sobre a redistribuição foi aberto.

No caso da ZFM, talvez os demais estados não se tenham dado conta do elevadíssimo custo. No caso dos fundos constitucionais, por beneficiarem estados de três regiões, é possível que haja, no parlamento, maioria favorável à sua continuidade. Afinal, rediscutir maior eficácia na aplicação desses recursos sempre gera o risco de se perder as verbas para outros grupos de pressão, localizados fora das áreas hoje beneficiadas pelos fundos. Não se pode esquecer, ademais, do grande incentivo que têm os atuais beneficiários de ambos os mecanismos para criar mobilização política em favor da manutenção de seus privilégios.

Criação de Obrigações aos Estados e Municípios sem o Respectivo Suporte Financeiro

Outra manifestação clara das consequências do conflito distributivo sobre as relações federativas são o que em inglês se chama de “unfunded mandates”: o legislador federal cria uma obrigação de ação ou gasto para os estados ou municípios sem, contudo, lhes fornecer os recursos necessários para cumprir a nova lei. Há abundantes exemplos de legislação recentemente aprovada no Congresso com essas características. Por exemplo, o piso nacional para a remuneração do magistério, a absorção dos agentes comunitários de saúde como servidores públicos com plenos direitos, as obrigações decorrentes da nova legislação de coleta e tratamento de lixo. Há mais demanda na fila, como a famosa PEC 300, que cria piso nacional para os policiais militares e bombeiros.

De uma hora para outra o prefeito ou governador descobre que tem mais metas a cumprir, mais gastos a fazer, e tem que encontrar dinheiro no orçamento para custear isso. Por que tais leis são aprovadas? Exatamente porque os grupos de pressão interessados nos benefícios que elas proporcionam (professores, agentes comunitários de saúde, organizações de defesa do meio-ambiente,etc.) conseguem se fazer ouvir e, sobretudo, conseguem fazer aprovar legislação sem um adequado estudo de seus custos e benefícios. Trata-se de clara expressão do conflito distributivo, em uma sociedade com interesses diversos e fragmentados, onde há ampla representação classista e setorial.

É preciso evoluir no sentido de se colocar restrições institucionais que impeçam o legislador federal de criar obrigações para os estados e municípios sem, concomitantemente, fornecer os meios financeiros para viabilizar a implantação de novas políticas. Isso certamente irá gerar legislação mais consequente, e abrirá caminho para soluções negociadas. Por exemplo, ainda que seja ótimo termos uma legislação muito avançada de coleta e processamento de lixo, é preciso analisar os seus custos fiscais. A eventual adoção de métodos mais avançados que os atuais não significa que precisamos ir para a fronteira tecnológica. É preciso balancear benefícios e custos, poupando-se recursos e adequando-se a ação pública às restrições fiscais dos estados e municípios. Ou seja, é bom sonhar em ter um Jaguar ou uma Mercedes, mas a realidade da conta bancária nos leva a comprar um carro mais modesto. No nosso sistema político atual, o legislador federal ordena aos prefeitos e governadores que comprem uma Mercedes, porque é isso que um grupo de pressão pediu ao Congresso. Mas não dá um tostão para ajudar a comprar o carrão.

O FPE e o FPM  e a lógica da Ação Coletiva

O Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) fornecem dois bons exemplos de como o conflito distributivo generalizado impede que se melhore a alocação dos recursos públicos.

Comecemos pelo FPE. Como é sabido, no passado recente alguns estados se sentiram prejudicados pelo fato de as cotas do FPE a que tinham direito estarem congeladas desde a década de 1990, e não mais obedecerem à regra de partilha anterior, em que se levava em conta a população e o inverso da renda per capita. Pois bem, seguindo a regra de cada um lutar pelo seu pedaço de orçamento, os estados prejudicados pela regra vigente ingressaram no Supremo Tribunal Federal com ação questionando a legislação. Pretendiam, com isso, aumentar o seu quinhão no FPE em prejuízo de outros estados, que perderiam participação.

O Supremo, como é sabido, decidiu pela inconstitucionalidade da lei e determinou ao Congresso a substituição da norma por outra cujos critérios contemplassem a variação das condições socioeconômicas dos estados ao longo do tempo. Tal norma deveria ser aprovada até 31 de dezembro de 2012. A obrigatoriedade de se discutir novos critérios, em que não havia como gerar ganhos para todos, e alguns estados certamente perderiam, abriu forte conflito. Jamais se chegou próximo a um acordo para uma solução que distribuísse os recursos de forma eficiente, que transferiria mais verbas para os estados com maior hiato entre a capacidade de arrecadação e os gastos obrigatórios.

Uma característica importante da decisão do Supremo era a de impor o risco de elevada perda a todos os estados, caso não se aprovasse uma nova legislação. Findo o prazo, o FPE deixaria de ser distribuído a todos. O correr do tempo sem se chegar a um consenso redistributivo levou os estados a se unirem em torno de uma solução para evitar a perda para todos, mantendo tudo como estava antes. Simplesmente aprovou-se uma lei que reproduzia a regra já existente, com uma transição para o novo critério que é tão lenta que vai durar mais de um século para que os novos critérios passem a valer.

A lição e o incentivo transmitidos aos estados nesse episódio é a seguinte: é muito perigoso para um ou alguns poucos entes federativos agirem sozinhos, contra o interesse dos demais, por mais justas que sejam as suas reivindicações. Abrir uma disputa entre entes federados torna todos mais vulneráveis. O risco de perder o FPE enquadrou os estados “rebeldes” e os fez aceitar a manutenção do status quo.

Com esse tipo de incentivo, fica muito difícil propor qualquer mudança de critério na partilha dos recursos que vise aumentar a equidade ou a eficiência na alocação das verbas. Esse tipo de debate coloca estado contra estado e enfraquece o grupo frente a suas disputas com o Governo Federal e com os demais grupos de pressão. Até porque, em outras disputas, em que a recompensa é tão alta que vale a pena partir para o conflito (como nos royalties e na guerra fiscal) já há grande tensão entre estados. Por isso, é preciso evitar conflito quando a recompensa não é alta, como no caso do FPE.

Situação similar ocorre com o FPM. Há muito o que melhorar na partilha desse Fundo. Atualmente, os pequenos e micromunicípios são excessivamente beneficiados, em prejuízo das cidades médias nordestinas e dos municípios situados nas periferias das regiões metropolitanas. Esse viés na distribuição dos recursos cria muita ineficiência e má alocação de recursos.

Há, por exemplo, um evidente incentivo à criação de pequenos municípios: três municípios de cinco mil habitantes recebem mais dinheiro que um município de quinze mil habitantes. Isso acaba gerando multiplicação das estruturas administrativas e perda de escala na oferta de serviços públicos.

Quando se olha a atuação das instituições representativas dos municípios no plano federal, o que se percebe é uma forte resistência a se discutir a ineficiência dos critérios de partilha do FPM. E isso é compreensível. Esse tipo de discussão vai colocar município contra município, e enfraquecer a capacidade de todos os municípios, de forma unida, participarem da luta por mais recursos junto ao governo federal. Há o justificado temor de o grupo perder força e perder espaço em uma encarniçada luta em que inúmeros grupos de pressão disputam recursos federais.

E há motivos para isso. Nos anos recentes, parte substancial do FPM (e do FPE) foi corroída pela concessão de incentivos fiscais no âmbito do IPI. O lobby dos contribuintes do IPI ganhou do lobby dos prefeitos e governadores. Gastar energia discutindo a redistribuição interna do FPM e do FPE significa ter menos tempo, energia e união para enfrentar, de forma unida, as ameaças que outros grupos de pressão colocam sobre as verbas estaduais e municipais.

Assim, o que se vê como demanda em relação ao FPM, no âmbito do Congresso Nacional, é a elevação do tamanho do bolo, aumentando-se a parcela do Imposto de Renda e do IPI destinados ao Fundo, em detrimento da parcela desses tributos destinada à União. Evita-se discutir as grandes distorções nos critérios de partilha, e o país como um todo segue perdendo com a alocação ineficiente dos recursos, sobretudo com a grande carência de verbas das cidades médias nordestinas e das periferias metropolitanas, onde se acumulam problemas sociais e faltam serviços públicos. Ao mesmo tempo, micromunicípios interioranos transformam a sua folha de pagamento na principal fonte de renda das cidades, criando legiões de pensionistas, com baixa produtividade e pouca prestação de serviço público.

Quem Ganha com a Renegociação das Dívidas junto à União?

É bem sabido que os grandes ganhadores com a renegociação proposta para a dívida refinanciada junto à União são cinco estados e um município: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Alagoas e Município de São Paulo. No entanto, há quase unanimidade entre os estados na pressão pela aprovação da renegociação. Por que estados que não estão entre os maiores ganhadores também se interessam e pressionam pela renegociação? Não seria mais razoável colocar as fichas políticas em outros temas que lhes dessem maior retorno?

A resposta pode estar em um dos argumentos já apresentados acima. Em primeiro lugar, como os custos da renegociação vão ser pagos por toda a sociedade, cada administração estadual daquelas não tão beneficiadas pela renegociação irá pagar uma parcela pequena do custo. Portanto, não há preocupação com o custo fiscal ou macroeconômico da renegociação.

Em segundo lugar, há a lógica da ação coletiva e da reciprocidade. O estado A apoia o estado B na questão da dívida, e recebe o apoio de B quando tiver uma pendência de seu interesse junto à União. Por exemplo, a autorização para a contratação de uma operação de crédito.

Em terceiro lugar, ainda que não levem a maior parte dos benefícios, os outros estados levam “algum” benefício. E pouco é melhor do que nada. Esse argumento se torna mais relevante porque o benefício de uma não renegociação seria muito indireto. O impacto imediato da renegociação é transferir recursos da União para os estados. Sem renegociação, portanto, a União passa a dispor de mais recursos. Tais recursos podem ser utilizados em obras, mas nada garante que essas obras iriam beneficiar diretamente aquele estado que está pouco endividado. Alternativamente, esses recursos podem ser poupados, melhorando o ambiente macroeconômico. Para o governador de um estado, contudo, os benefícios de uma melhora do ambiente macroeconômico são mais difíceis de serem quantificados e, pelo menos do ponto de vista de propaganda eleitoral, devem trazer menos votos (para o governador) do que a realização de determinada obra, como  uma estrada ou escola.

Esta é, mais uma (com perdão pela insistência no argumento) manifestação de uma sociedade em estado de forte conflito distributivo. Cada um tira para si o que pode, prevalece o interesse individual (de cada estado ou município) e fenece o interesse coletivo.

A falta de disciplina fiscal gera alívio de curto prazo, mas piora o cenário de longo prazo

Nos últimos anos houve evidente redução da disciplina fiscal dos estados e municípios. O Governo Federal afrouxou os controles sobre a contratação de novos empréstimos, inclusive liberando aval da União para estados e municípios com classificação de crédito muito baixa, segundo os critérios de avaliação da própria Secretaria do Tesouro Nacional. Entre 2011 e 2014, foram nada menos que R$ 23 bilhões em dívidas autorizadas para estados e municípios com classificação de crédito “C”e “D”. Autorizações que foram ratificadas pelo Senado.

Com mais acesso a crédito, os governos subnacionais precisaram fazer menor esforço fiscal para gerar os excedentes necessários ao pagamento de juros e amortização de suas dívidas vincendas. Ou seja, passaram a ter caixa não só para pagar as dívidas anteriores, como para expandir despesas. O resultado foi a queda do superávit primário de estados e municípios, de 1,15% do PIB em 2007, para 0,34% em 2013.

Isso certamente melhora a situação de curto prazo para o gestor que está no poder. Mas em nada contribui para melhorar a qualidade da gestão pública ou gerar incentivos à boa gestão fiscal.

O enfraquecimento da restrição orçamentária e a expansão do endividamento subnacional, muitas vezes estimulado pelo Governo Federal, não é bom para a gestão pública. O histórico dos anos 70 e 80 mostra que isso acaba em sobre-endividamento, governos despreocupados com qualidade de gestão e crise fiscal. Governos locais que têm uma porta aberta para conseguir mais um espaço fiscal por concessão administrativa do Governo Federal acabam relaxando na busca de eficiência e qualidade de gestão. É sempre mais fácil manter um programa ineficiente e financiar isso via dívida, do que fazer cortes em funções comissionadas, extinguir secretarias, contrariar interesses estabelecidos, cancelar programas que apresentam baixos resultados e altos custos.

A qualidade de gestão só se tornou assunto importante em governo estadual e municipal no Brasil a partir da forte restrição orçamentária imposta pelas condicionalidades da renegociação da dívida de 1997-98 e pela aprovação da lei de responsabilidade fiscal em 2000. Quando deixou de existir a facilidade de acumular dívidas impagáveis e se exigiu efetivo desembolso para pagar os débitos existentes, é que os gestores tiveram incentivos para buscar eficiência, contrariar interesses e ajustar a máquina pública.

Nesse sentido, o afrouxamento das regras de endividamento, no passado recente, prejudica a qualidade da gestão fiscal e sinalizam para mais problemas futuros e mais conflitos para alocar, no futuro, os custos do endividamento excessivo.

O que fazer?

A agenda de negociações federativas teve, ao longo de 2012 e 2013, grande oportunidade de buscar uma negociação envolvendo os principais pontos de conflito: redistribuição do FPE, renegociação da dívida com a União, redução das alíquotas interestaduais do ICMS com regulamentação dos incentivos concedidos à revelia do CONFAZ e redistribuição dos royalties. Não foi viável, porém, costurar esse acordo. No parlamento, deu-se prioridade a negociar os assuntos em separado. No espírito do aguçado conflito distributivo, cada grupo vetava ou colocava em banho-maria a reforma que lhe prejudicava, ao mesmo tempo em que tentava fazer andar a que lhe beneficiava. Ao final chegou-se a uma não-reforma do FPE, a uma proposta de renegociação da dívida com alto custo fiscal para a União e com prejuízos à segurança jurídica, que o Executivo teme em bancar. Nada se avançou na questão do ICMS e os royalties viraram questão judicial.

Não parece haver, portanto, condições políticas para um amplo pacto federativo. Até porque, como já afirmado acima, há grande insegurança acerca da credibilidade de qualquer proposta da União no sentido de compensar os perdedores. Há, também, muita insegurança em torno dos números: quem serão os perdedores? Quanto efetivamente eles perderão?

É preciso, pois, buscar uma agenda que seja responsável em termos fiscais e que una interesses dos três níveis de governo, para que se comece a gerar resultados concretos. Um bom começo seria uma emenda à constituição que proíba a criação, no plano federal, de obrigações financeiras a estados e municípios (unfunded mandates). Isso não só daria previsibilidade e segurança financeira para os gestores estaduais e municipais, como também seria um escudo contra o poder de fortes lobbies  em busca de subsídios, rendas ou privilégios salariais e previdenciários.

Outro tema que poderia unir o interesse dos três níveis de governo seria a regulamentação do direito de greve dos servidores públicos. Afinal, os estados e municípios, por serem responsáveis pelas áreas de educação, segurança e saúde, empregam largos contingentes de servidores altamente sindicalizados. As longas greves de professores, médicos, policiais e outras categorias relevantes impõem perdas administrativas e de credibilidade aos prefeitos e governadores, ao mesmo tempo em que exigem esforço financeiro dos três níveis de governo.

Como é sabido,  há um vácuo legal na regulamentação do direito de greve no setor público, em que os servidores têm o direito constitucional de paralisarem atividades, mas não estão submetidos a regras explícitas de desconto dos dias parados, restrições a greves em áreas estratégicas ou demissão. O resultado é que greves no setor público ocorrem com mais frequência e duram mais que as do setor privado. De acordo com dados do DIEESE, em 2012 74% das horas paradas por greve corresponde a movimentos paredistas de servidores públicos (embora eles representem apenas 25% da força de trabalho total). Em média, uma greve do setor público dura o equivalente a 172 horas de trabalho, contra apenas 46 horas no setor privado.3

Os gestores públicos ficam refém desse poder desproporcional, o que tem dado aos servidores grande vantagem no conflito distributivo, garantindo remuneração elevada, além de barrar outras experiências de gestão como a terceirização da gestão de unidades de saúde, ou diferenciação de pagamento de professores em função do mérito e desempenho, por exemplo.

Da parte do Governo Federal é preciso rever a política do enfraquecimento das normas da Lei de Responsabilidade Fiscal no que diz respeito à autorização de novas operações de crédito. É preciso que haja forte restrição orçamentária para induzir estados e municípios a buscar a economia de gastos e melhora nos processos de gestão.

Em contrapartida, pode ser feito um ajuste nos contratos de dívida com a União, porém em termos menos benevolentes que os propostos no PLC 99/2013, que estipula a revisão dos contratos das dívidas de forma retroativa. Além de ser um grande prejuízo para a segurança jurídica do país, essa revisão retroativa de indexadores soa a casuísmo, visto que concentra benefícios em um único ente federado.

A substituição de indexadores, de IGP-DI por IPCA é bastante defensável, visto que as receitas estaduais e municipais têm maior correlação com o segundo que com o primeiro. A redução dos juros fixos também é admissível, visto que a faixa de 6% a 9% ao ano supera a taxa de juros de equilíbrio do passado recente. Porém nada inferior a 5% ou 4,5% deve ser buscado, visto que o país ainda tem perspectiva de um longo período de elevados juros reais pela frente. O uso da Selic como balizador dos juros, substituindo-os quando for menor que a taxa fixa contratual também é um bom seguro para os estados e municípios, porém prejudicial para a União.

Outro ponto relevante a se renegociar é a forma de pagamento do resíduo da dívida. Quando a dívida dos estados foi renegociada nos anos 1990, fixou-se um limite de até 15% da Receita Corrente Líquida dos estados para o pagamento de juros e amortizações. O que excedesse esse limite seria pago posteriormente. Por esse motivo, havia a possibilidade de, findo o prazo de 30 anos para o pagamento da dívida, parte dela ainda não teria sido quitada. Os contratos previam então que, nesse caso, haveria 10 anos adicionais para se pagar o resíduo. Em vez de um prazo fixo de 10 anos para quitação do passivo, poder-se-ia migrar para uma regra em que o ente subnacional comprometeria um percentual fixo de sua receita com o pagamento do resíduo e o pagamento se estenderia pelo prazo necessário à quitação do passivo. Com isso evitar-se-ia a situação que parece estar se configurando para alguns estados e para o Município de São Paulo de, ao final dos trinta anos da renegociação, ter um resíduo muito elevado, que consumiria mais de 20% de sua receita corrente para pagamento em dez anos. A mudança dessa regra tornaria todas as dívidas sustentáveis e reduziria o alto grau de incerteza que hoje paira sobre a saúde fiscal de longo prazo dos entes mais endividados.

A pressão gerada pela aprovação da nova regulamentação para criação de municípios, cujos projetos aprovados no Congresso foram duas vezes vetados pelo Executivo, forçará a discussão sobre os critérios de partilha do FPM. Se não houver um requisito de população mínima acima de, pelo menos, 15 mil habitantes para criação de nova jurisdição, haverá nova onda de criação de micromunicípios financeiramente inviáveis. O projeto recentemente vetado propunha limites populacionais baixos: 6 mil habitantes para o Norte e o Centro-Oeste e 12 mil habitantes para o Nordeste. Somente no Sul e Sudeste, onde são requeridos pelo menos 20 mil habitantes, é que os estímulos à fragmentação administrativa serão menos intensos.

Ainda que ao custo de divisão interna entre seus representados, as associações representativas de municípios terão que discutir os problemas das regras atuais de partilha do FPM. Há no Congresso, em estado avançado de tramitação, um projeto que corrige o problema mais básico, que é a divisão dos municípios em faixas populacionais, e que faz com que as receitas de FPM subam ou caiam muito quando um município muda de faixa. Uma mudança simples como essa, que gera evidente ganho de eficiência e equidade, tem sofrido resistência daqueles municípios que se veem como potenciais perdedores. Parece ser hora de aceitar a racionalização do FPM, sobretudo de reduzir o viés a favor dos micromunicípios, para que o municipalismo não seja enfraquecido junto à opinião pública, que não mais aceita a criação de cidades dedicadas a receber transferências.

Se as grandes reformas (do ICMS, dos royalties, etc.) estão travadas, então deve-se buscar avanço nas microrreformas, como a dos critérios do FPM e de ajustes pontuais da dívida. Com relação às grandes reformas, parece que um critério importante é garantir aos estados alguma prerrogativa de ter política fiscal própria. A viabilidade do modelo centralizado, consensual e unânime morreu com o fim do regime militar. O novo ICMS terá que dar espaço à concorrência entre estados, ainda que isso gere algum grau de ineficiência alocativa. O importante é evitar que, como ocorre hoje, um estado jogue o custo da sua política de incentivos sobre outro estado.

Ademais, o Governo Federal precisa avançar na agenda da infraestrutura, para garantir que cada estado e município possa explorar plenamente as suas vantagens comparativas. É preciso aproximar os estados mais distantes dos centros consumidores e de exportação. Para ter recursos para investimento, o Governo Federal precisa conter os gastos correntes, feitos em favor de inúmeros grupos de pressão. Um agenda comum com os estados e municípios, como a acima proposta, de limitação do poder das corporações e de grupos de pressão que pleiteiam a criação de unfunded mandates seria um bom começo.

___________________

1 Vide: Mendes, M.J. (2002) Descentralização fiscal baseada em transferências e captura de recursos públicos nos municípios brasileiros. Universidade de São Paulo. Faculdade de Administração, Contabilidade e Economia. Departamento de Economia. Tese de Doutorado; e Caselli, F., Michaels, G. (2009) Do oil windfalls improve living standards? Evidence from Brazil. NBER Working Paper Series w15550.

2 Vide Miranda, R.N. (2013) Zona Franca de Manaus: desafios e vulnerabilidades. Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal – Texto para Discussão nº 126.

3 DIEESE (2013) Balanço das greves em 2012. – Estudos e Pesquisas nº 66, maio.

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2278 1
Será a “reforma política” a mãe de todas as reformas? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2259&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=sera-a-reforma-politica-a-mae-de-todas-as-reformas https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2259#comments Tue, 15 Jul 2014 13:01:34 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2259 Sempre que uma crise política ou econômica se instala no país  – como, por exemplo, as manifestações populares de julho de 2013 –  volta ao debate o argumento de que é preciso fazer uma “reforma política”. Tal reforma, chega a ser colocada por alguns analistas como sendo mais importante que as demais (previdenciária, tributária, orçamentária, trabalhista, etc.). Já foi qualificada até como a “mãe de todas as reformas”1.

Em geral o argumento é de que o sistema político prejudica a governabilidade, estimula a corrupção e o agigantamento do Estado. Ao mesmo tempo, não colabora para que se instale uma administração moderna, focada no mérito e nos resultados obtidos, nem tampouco viabiliza a formação de maiorias necessárias para aprovar as demais reformas.

Este texto pretende argumentar que um governo decidido a dar prioridade à reforma política acabaria por conduzir sua administração para um impasse, sendo incapaz de fazer tanto esta reforma quanto as demais.

1 – A “reforma política” é, na verdade, um conjunto de várias reformas: não seria viável tratar todas de uma vez.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que não existe “a” reforma política. O que há é uma diversidade de diagnósticos acerca de quais seriam os mais importantes problemas do sistema político e, portanto, um grande rol de propostas de reforma. Por exemplo, aqueles que acreditam que o problema central está na baixa disciplina partidária e na dificuldade de o governo eleito formar maioria no Congresso, propugnam a mudança do atual sistema de eleições proporcionais com lista aberta, usada para a Câmara dos Deputados e legislativos estaduais e municipais, por outros sistemas como o voto distrital ou o voto proporcional em lista fechada. Outros, preocupados com comportamento oportunista de pequenos partidos pouco representativos, desejam que haja uma cláusula de barreira que impeça partidos pouco votados de ter representação na Câmara. Também se preocupam com as distorções geradas pelas coligações em eleições proporcionais ou a regra de escolha de suplentes de senador.

Há, ainda, uma longa lista de temas, como o voto facultativo, a duração das campanhas, as fontes de financiamento (público ou privado), a possibilidade de reeleição, a duração dos mandatos, a vedação a candidatos condenados (ficha limpa), etc.

Percebe-se, portanto, que não existe um único problema a ser resolvido. Há uma diversidade de problemas. Tratá-los todos de uma vez, como uma “ampla reforma política” é inviável.

Tal inviabilidade decorre, em primeiro lugar, das próprias limitações do sistema político. Está claro, após quase trinta anos de democracia, que medidas que contrariam interesses organizados têm viabilidade de aprovação apenas no primeiro ano de mandato presidencial, quando o chefe do Executivo tem o suporte da grande quantidade de votos recentemente obtida e pode apelar para o desejo de mudança e progresso do eleitorado. Com o passar do tempo os grupos de interesse se organizam e a mobilização cívica do período eleitoral se esvai. Por isso é necessário aprovar reformas que estejam baseadas em claro diagnóstico do problema a ser resolvido e da eficácia das medidas a serem tomadas.

2 – Para cada um dos vários problemas há múltiplas soluções propostas e nenhum consenso sobre qual seria a melhor delas

Além de serem muitos os problemas do sistema político, há uma diversidade de soluções propostas para cada um deles. Cada possível solução tem seus benefícios, mas também efeitos colaterais indesejados. O voto distrital, por exemplo, aproximaria o eleitor de seu representante, aumentando a transparência e fiscalização sobre o comportamento do parlamentar. Por outro lado, ampliaria o viés localista da ação dos deputados federais: eleitos por pequenos distritos, eles teriam como principal preocupação levar benefícios para seus eleitores, em vez de se concentrarem nas questões políticas de âmbito nacional. Adicionalmente, sistemas com voto distrital tendem a subrepresentar as minorias. O voto em lista fechada, por sua vez, reduziria custos das eleições e aumentaria a fidelidade partidária, mas traria o risco de uma elite de dirigentes partidários passar a acumular poder excessivo e impedir a ascensão de novos líderes.

Ou seja, há muitos dilemas envolvidos nas escolhas a serem feitas em reformas do sistema político. A sociedade e os partidos políticos estão fortemente divididos sobre qual a melhor opção, muitas vezes em função de interesses ocasionais e de projeto de poder.

Compare-se essa situação com, por exemplo, uma reforma do sistema previdenciário. Aqui o problema tem dimensão bem mais restrita. Há quem afirme que vai tudo bem com a previdência e que nenhuma reforma é necessária. E há os que apontam que o déficit previdenciário é insustentável no longo prazo. A reforma resume-se a aceitar o diagnóstico da necessidade de ajuste (e aprovar a reforma), ou discordar do diagnóstico (e rejeitar a reforma). Obviamente há disputa de grupos de interesses, e discordância sobre como atingir os objetivos da reforma. Mas há muito menos dilemas e incertezas a serem considerados no debate e decisão política do que no caso da “reforma política”. Tanto os diagnósticos quanto as possíveis soluções estão mais maduras e o espectro de possíveis reformas é mais reduzido.

Usar o precioso primeiro ano de mandato de um governo para abrir um debate sobre reforma política seria abrir uma caixa de pandora. Perder-se-ia a oportunidade de ouro de viabilizar outras reformas, também difíceis de fazer, porém “menos inviáveis” que temas afetos à reforma política.

3 – Embora tenha muitos problemas, as regras de funcionamento do sistema político não paralisam o processo decisório: o Presidente da República tem poder suficiente para melhorar políticas públicas e fazer outras reformas.

As regras do sistema político brasileiro, ao longo dos quase trinta anos de democracia, foram sendo adaptadas no sentido de garantir governabilidade, dando ao Presidente da República instrumentos políticos suficientes para colocar em prática seu programa2. Ainda que isso tenha sido obtido por meio de alto custo fiscal, com baixa transparência, limitações à eficiência do governo, espaço para corrupção, entre outros problemas.

A Constituição de 1988 não promoveu mudança radical no sistema de representação política e nas regras eleitorais vigentes no regime militar. Fez apenas adaptações ao que então existia. Manteve-se o regime presidencialista com um Congresso bicameral, no qual a Câmara dos Deputados e o Senado constituem duas instâncias decisórias distintas. Todas as matérias submetidas ao Congresso devem ser votadas em uma casa e revista pela outra. Manteve-se também o sistema federativo, com três níveis de governo: União, estados e municípios.

Isso significa que há diversas instâncias com poder para interferir em decisões políticas. O Poder Executivo federal, para ter uma política pública posta em prática, precisa não apenas obter maioria nas duas casas do Congresso, como também evitar contrariar os interesses de estados e municípios, que dispõem de razoável poder de influência sobre os deputados e senadores representantes de seus respectivos estados.

O Poder Executivo federal, todavia, dispõe de instrumentos que são fortes o suficiente para garantir ao Presidente da República a liderança na ação política e o controle fiscal. O primeiro desses instrumentos são as Medidas Provisórias (MP). Trata-se de leis, de validade provisória, porém imediata, que o Presidente pode decretar sem a prévia aprovação do Congresso. Uma vez instituída uma medida provisória, o Congresso tem prazo para aprovar, emendar ou alterar essa medida, transformando-a em lei de caráter definitivo. Esse instrumento constitui uma adaptação dos “decretos-lei” criados no regime militar. Na forma adotada na nova constituição, as MP têm tramitação prioritária no Congresso e, enquanto houver MP pendentes de votação, o Congresso não pode deliberar sobre grande parte de outras espécies de projeto de lei.  Isso dá ao Presidente da República o poder de definir a agenda do Congresso, colocando os assuntos que considera prioritários no topo da agenda de votações do legislativo.

O Presidente da República dispõe, ainda, de outros instrumentos importantes na sua relação com o Congresso. Ele pode solicitar que determinado projeto de lei tramite em regime de urgência, fazendo-o saltar à frente de outros projetos na prioridade de votação. Também tem o poder privativo de apresentar projetos de lei sobre assuntos específicos (por exemplo, projetos que criam cargos no governo ou alterem a organização administrativa dos órgãos públicos), ficando vedado aos congressistas apresentar projetos dessa natureza.

O modelo de elaboração, votação e execução do orçamento federal também dá grande poder ao Presidente da República. Cabe ao Poder Executivo elaborar a proposta de orçamento e apresentá-la ao Congresso. O Congresso pode alterar as estimativas de receita, bem como acrescentar despesas. Contudo, a lei orçamentária aprovada pelo legislativo é apenas uma autorização de gasto, não obrigando o Executivo a fazer a despesa. Assim, se desejar executar menos despesas que aquelas aprovadas pelo Congresso, o Executivo tem direito de fazê-lo.

Com o advento da redemocratização, aumentou fortemente a pressão por gastos públicos. Houve a criação de programas sociais para atender os pobres (que passaram a ter poder de voto), a ampliação de benefícios à classe média (que passou a ter a liberdade de associação e formação de sindicatos, introdução do Regime Jurídico Único para os funcionários públicos). Isso se somou aos privilégios que os mais ricos sempre obtiveram do estado (subsídios creditícios e fiscais, por exemplo). Frente ao inevitável aumento de despesas, a política fiscal do governo federal é conduzida de forma a tentar equilibrar as contas por meio do aumento da carga tributária. E o Presidente da República efetivamente tem poder para tal. Apesar de todos os defeitos do nosso sistema político, foi possível, em 1999-2000, instituir uma série de medidas fiscais, entre elas a Lei de Responsabilidade Fiscal, que reduziram significativamente o déficit público e viabilizaram o fim definitivo da hiperinflação, obtido em 1994.

Ademais, o Presidente da República lança mão do direito de não executar parte das despesas contidas no orçamento. O alvo principal desses cortes têm sido os acréscimos feitos pelos congressistas à despesa orçamentária. Trata-se das chamadas “emendas parlamentares ao orçamento”. Ao liberar a conta-gotas os recursos para pagar tais despesas, o Executivo ganha poder de barganha para controlar o voto dos deputados e senadores. É comum que tais recursos sejam liberados apenas após votações importantes no Congresso, beneficiando aqueles que votaram a favor do Poder Executivo.

Esse instrumento dá ao Presidente o poder de formar maiorias circunstanciais para aprovar projetos de lei e emendas constitucionais, ainda que ao custo de liberar recursos para obras e programas que podem não ser de prioridade nacional. Já foram apontados, também, diversos casos de corrupção ligados às emendas parlamentares. Mas para solucionar esse tipo de problema não é necessária “uma ampla reforma política”, e sim mais transparência, fiscalização e punição de ilícitos.

O Poder Executivo federal pode, ainda, controlar do ritmo de endividamento dos estados e municípios. A maioria dos empréstimos feitos por esses governos tem que ser explicitamente autorizada pelo Poder Executivo federal. Embora esse controle tenha sido frouxo nos primeiros anos após à redemocratização, o que levou a uma crise de sobreendividamento dos entes subnacionais, a partir do ano 2000 tais controles foram reforçados (e afrouxados a partir de 2008). Com isso, o Governo Federal tem poder para induzir estados e municípios a equilibrar suas contas e cooperar no esforço fiscal agregado.

Em suma, não obstante todos os defeitos das instituições político-eleitorais, há espaço para governabilidade. Um Poder Executivo dotado de um programa de governo e uma agenda de reformas tem espaço para realizá-los. Ainda que isso tenha custos de curto prazo, como a liberação de gastos orçamentários não-prioritários, o aumento da carga tributária para financiar esses gastos e a oportunidade de corrupção na execução do orçamento. Parte desses efeitos colaterais pode ser combatida por fortalecimento de instituições como o TCU, a Polícia Federal e a Secretaria do Tesouro Nacional, sem que seja necessário recorrer a “reforma política” para minimizá-los. Talvez a reforma necessária não esteja no sistema político, mas sim na justiça penal que, com sua morosidade, abre espaço para corrupção e mau-feitos sem que haja ameaça de punição aos infratores.

4 – As regras eleitorais geram, de fato, efeitos colaterais negativos para as finanças públicas e o crescimento do país…

Não obstante dispor de amplos poderes, o Poder Executivo não tem força para governar sozinho. Isso é não é um defeito, e sim uma virtude de um regime democrático, que necessita de checks and balances entre os poderes. Esses checks and balances, contudo, podem ser exercidos de forma distorcida, ou estar baseados em incentivos inadequados.

O Congresso, se não tem muito espaço para definir a lista de projetos prioritários para votação e pode ter a sua intervenção no orçamento desfeita pelo Executivo, tem poder para rejeitar ou alterar os projetos de lei e as MP propostas pelo Executivo. O fato de essas propostas  terem que ser aprovadas tanto na Câmara quanto no Senado aumenta o poder de barganha dos congressistas. Há, ainda, matérias que demandam quórum elevado, como as emendas à Constituição, que tornam ainda maior tal poder de veto do Congresso.

O Congresso pode, também, instituir comissões de inquérito para investigar ações do Poder Executivo;  vetar o acesso de pessoas indicadas pelo Presidente de República para exercer cargos em agências reguladoras e outros órgãos públicos; convocar membros do Executivo para inquirir sobre a condução de políticas.

Todas essas ações, importantes instrumentos de equilíbrio de poder em uma democracia, criam também a possibilidade de se “criar dificuldades para vender facilidades”, criando embaraços à gestão pública, ou aumentando o gasto público,  ou criando regulação que favoreça grupos de pressão.

Para conseguir aprovar suas propostas políticas e evitar ações do Congresso que contrariem seus interesses ou desequilibrem as contas públicas, o Presidente da República necessita formar maioria tanto na Câmara quanto no Senado. A formação dessas maiorias depende dos incentivos que deputados e senadores têm para votar a favor do governo. E tais incentivos são formatados pelas regras eleitorais.

Na eleição para a Câmara dos Deputados, cada estado da federação tem direito a um número fixo de cadeiras. O eleitor vota em um candidato específico. O voto ao candidato é computado a favor do seu partido. As cadeiras da Câmara dos Deputados que cabem a um determinado estado são divididas entre os partidos proporcionalmente à fatia de votos que cada agremiação recebeu. As vagas conquistadas por cada partido são preenchidas pelos candidatos mais votados.

Esse sistema de votação tem várias implicações. Em primeiro lugar, ele reduz a disciplina partidária, porque o candidato a deputado disputa contra os seus próprios companheiros de partido. Para ser eleito, não basta que o partido tenha muitos votos. É preciso estar entre os mais votados do partido. A tendência é que cada candidato tenda a fazer campanha individualmente. Não faz sentido fazer campanha em conjunto com outro candidato do mesmo partido, que pode tomar a sua vaga. Menor disciplina partidária significa que os líderes dos partidos não terão forte comando sobre sua bancada e, por isso, não poderão conduzir negociações com o Executivo em nome de toda a bancada. Sempre haverá espaço para cada deputado, individualmente, votar contra a orientação de seu partido. Isso força o Poder Executivo a negociar o apoio a suas iniciativas no varejo, oferecendo a cada deputado ou senador, individualmente, vantagens para mantê-los na base de apoio ao governo.

Em segundo lugar, os candidatos disputam voto em todo o território estadual, pois não há divisão dos estados em distritos eleitorais menores. Como o Brasil é um país de dimensões continentais, os seus estados têm amplos territórios. A combinação de campanha individualizada com um distrito eleitoral grande, que precisa ser percorrido pelo candidato (com instalação de comitês eleitorais e outras despesas)  torna bastante alto o custo de campanha para cada candidato3. Estes precisam encontrar formas de financiar suas campanhas. Uma forma de fazê-lo é buscar a contribuição de lobbies, o que facilita a captura do mandato parlamentar por interesses específicos. Isso reforça o incentivo de cada parlamentar a negociar individualmente com o Executivo a sua permanência na base de apoio, com vistas a atender os interesses específicos de seus financiadores.

Outra estratégia muito comum é o candidato focalizar a busca de votos em uma região específica do estado. Nesse caso, ele se compromete a, durante o mandato, obter recursos federais para um determinado grupo de municípios. São esses incentivos que fazem com que os parlamentares queiram alterar o orçamento federal, com vistas a introduzir despesas de interesse local. Como afirmado acima, o Presidente da República tende a represar essas despesas, liberando-as apenas à medida que os parlamentares nelas interessados votem de acordo com a orientação do governo. Nada impede, também, que as emendas parlamentares ao orçamento sejam apresentadas com vistas a se fazer despesas que beneficiarão grupos econômicos que deram suporte à campanha do parlamentar.

Outra característica importante do sistema eleitoral é que ele permite a eleição de representantes de grupos os mais diversos, inclusive a representação de minorias. Em um sistema de votação em que o estado da federação é repartido em vários distritos e, em cada um deles, há eleição de somente um representante, um grupo minoritário, disperso no território estadual, não conseguirá maioria em nenhum distrito, e não conseguirá ser representado no Congresso. No sistema brasileiro, um grupo minoritário pode somar os seus votos espalhados por todo o território estadual e eleger o seu representante.

Em consequência, há estímulo para que os políticos se especializem em representar os interesses de categorias profissionais específicas, ou patrocinem os direitos de grupos étnicos, de grupos religiosos, de setores econômicos (ruralistas, indústrias, etc.). Com muita frequência formam-se bancadas informais, compostas por parlamentares de diferentes partidos, para representar um interesse específico (bancada da saúde pública, bancada da segurança pública, bancada ruralista, etc.).

Essa dispersão de interesses permite que os diversos agrupamentos se organizem, no Congresso, para pressionar por despesa pública e regulação a favor dos grupos que representam. Como a responsabilidade política pelo equilíbrio fiscal e pelo desempenho macroeconômico cabe ao Poder Executivo, os deputados têm pouco interesse em manter o equilíbrio orçamentário. Para eles, quanto mais despesas conseguirem enxertar no orçamento, melhor. Daí a importância do mecanismo que dá ao Executivo o poder de represar despesas orçamentárias.

O sistema eleitoral também gera incentivos para a criação de um grande número de partidos. Em primeiro lugar, porque cada partido tem direito a verbas públicas e a espaço gratuito na TV para fazer propaganda. Em segundo lugar, porque é possível formar coligações partidárias para disputar as eleições para a Câmara: vários partidos se unem e seus votos e cadeiras na Câmara são contados como se fossem um único partido. Ser líder de um partido, ainda que pequeno, garante ao político poder, verbas e flexibilidade para fazer coalizões de ocasião.

A forte dispersão de interesses  e o grande número de partidos força o Poder Executivo a formar maiorias no Congresso por meio da distribuição de benesses ou ampliação de políticas públicas que atendam os mais diversos grupos sociais. Dificilmente o partido que vence as eleições presidenciais consegue maioria na Câmara dos Deputados. Por isso, é preciso formar alianças, no que ficou apelidado de “presidencialismo de coalizão”.

Alguns partidos políticos se especializaram na função de “partidos de apoio ao Executivo no Congresso”. Em vez de buscar o poder apresentando um candidato à Presidência da República, esses partidos se concentram na formação de ampla bancada na Câmara e no Senado, comandada por hábeis líderes, e se apresentam aos partidos que têm candidatos competitivos à presidência oferecendo  a tão necessária maioria parlamentar.

O preço cobrado vem sob a forma de cargos no governo, postos na direção de empresas estatais, liberação de recursos orçamentários, regulação que protegem grupos profissionais ou econômicos em detrimento do resto da sociedade. Uma simples estatística ilustra bem como a necessidade de acomodar políticos no Poder Executivo, para garantir coalizão majoritária no Congresso, resulta na expansão da máquina pública. No primeiro governo após à redemocratização, o Poder Executivo Federal tinha 25 ministérios. Vinte e seis anos (ou seis mandatos presidenciais) depois, esse número havia chegado a 39! Aumentam-se não apenas as vagas de ministro, como também criam-se ampla burocracia pública e cargos, muitos deles de preenchimento por indicações de políticos.

Há, ainda, a dimensão regional da distribuição de poder. Os militares haviam ampliado o número de cadeiras da Câmara dos Deputados que cabiam aos estados menos desenvolvidos, coincidentemente, os menos populosos. O objetivo à época foi garantir apoio político ao regime militar das lideranças regionais mais dependentes de ajuda financeira federal, além do fato de imperar, nas regiões mais atrasadas, um modelo de controle do eleitorado por líderes políticos locais.

Nos estados mais desenvolvidos, com eleitores de maior renda, mais informados e vivendo predominantemente em grandes cidades, o poder de comando de chefes políticos era menor. A nova constituição acentuou a desproporcionalidade da representação em favor dos estados menos desenvolvidos, situados nas regiões Norte e Nordeste do país. Em primeiro lugar, vários territórios federais localizados na região Norte, que não tinham representação no legislativo, foram transformados em estados, passando a ter direito a deputados e senadores para representá-los. Em segundo lugar, fixou-se um número mínimo de oito deputados por estado, independente do tamanho da população.

Com isso, os estados das regiões mais atrasadas (Norte e Nordeste) ou de desenvolvimento mais recente (Centro-Oeste) conseguem maioria em relação às bancadas do Sul-Sudeste, mais desenvolvido. Norte, Nordeste e Centro-Oeste, juntos, comandam 74% dos votos no Senado e 50% dos votos na Câmara, embora abriguem apenas 46% da população. Isso abre espaço para a barganha por transferências federais para os estados daquelas três regiões. O viés regionalista do parlamento brasileiro é bastante acentuado.

Essa pressão de origem estadual ou regional restringe, também, o uso dos poderes legais do Executivo federal para conter o endividamento dos estados e municípios. É comum que haja pressão política no parlamento, em especial no Senado, para que o Governo Federal alivie o controle do endividamento dos governos subnacionais.

Em suma, o sistema político-eleitoral dá margem a uma série de distorções que incham o estado, reduzem a eficiência da economia, criam privilégios a grupos organizados e, em última instância, prejudicam o crescimento e desenvolvimento do país. Isso não quer dizer, contudo, que uma reforma das regras eleitorais livraria o país de todos esses problemas, conforme argumentado a seguir.

5 – O sistema político eleitoral apenas reflete características históricas da sociedade brasileira: a “reforma política” não mudará aquelas características e pode agravar os problemas que deseja resolver

O Brasil é um país extremamente desigual desde os primeiros anos da colonização, com alta prevalência de clientelismo, apropriação privada de recursos públicos, rent-seeking e corrupção. A redemocratização do país que, por um lado abriu acesso dos mais pobres a políticas públicas, por outro lado permitiu que aquelas características indesejáveis encontrassem terreno fértil para prosperar. Usa-se a negociação política, que idealmente deveria se dar no campo das ideias e projetos para o país, como meio para apropriação de renda e criação de privilégios. Quanto mais grupos sociais tiverem acesso a esse processo de negociação mais intenso o conflito distributivo.

As instituições políticas descritas no item anterior não foram criadas no vácuo. Elas decorrem de escolhas feitas ao longo da história do país.  São mecanismos criados para mediar de forma eficiente os interesses dos diversos grupos sociais. Mudar as regras de forma a tentar barrar comportamentos políticos considerados inadequados pode gerar efeitos colaterais adversos, que resultem em piora da qualidade do processo decisório e da governabilidade, sem que se corrijam os problemas originais.

Tome-se, como exemplo, a imposição de limites ao financiamento privado de campanhas políticas. Ao longo do ano de 2014 o Supremo Tribunal Federal está julgando causa que pleiteia a proibição desse tipo de financiamento. O objetivo é impedir que grandes grupos econômicos tenham poder de influência sobre os políticos eleitos, de modo a reduzir a apropriação de recursos públicos e a criação de regulação econômica que proteja grupos específicos em detrimento do resto da população.

Deve-se questionar, todavia, se a proibição de tais financiamentos vai, efetivamente, bani-los. É possível que apenas aumente o movimento de dinheiro não declarado (caixa dois), reduzindo a transparência das eleições. No sistema vigente pode-se identificar claramente qual empresa doou a qual candidato. Sem registros, fica difícil cobrar explicações dos governantes sobre porque beneficiou determinada empresa.

Ademais, os políticos podem ficar mais dependentes de verbas públicas para financiar suas campanhas, o que estimularia a corrupção, a exploração política das empresas estatais e, sobretudo, daria vantagem competitiva aos candidatos do partido governista, que têm mais acesso aos fundos públicos. Ou seja, os rios correm para o mar. Tentar barrar esse caminho com diques ineficientes pode gerar inundações e outros efeitos adversos, sem impedir que o rio chegue a seu destino.

Outro exemplo interessante está em uma decisão do Supremo Tribunal Federal  proibindo congressistas de mudar de partido durante o cumprimento do mandato. O objetivo era aumentar o poder de comando dos partidos sobre seus membros. Imaginava-se que com mais disciplina partidária seria mais fácil formar coalizões que dessem governabilidade ao país, sem a necessidade de o Poder Executivo ter que barganhar o apoio individual de cada parlamentar em cada votação importante no Congresso.

No entanto, a corte suprema não podia proibir a criação de novos partidos, o que significa deixar aberta a possibilidade de se sair de um partido para formar nova agremiação. Indivíduos que se dispuseram a incorrer no custo de cumprir as exigências formais para criar partidos (muitas delas de difícil cumprimento, como a coleta de milhares de assinatura em todo o país) passaram a ofertar vagas a parlamentares desejosos de sair de seus partidos. Obviamente essa oportunidade adquire valor monetário. Não se resolveu o problema original e se agregou mais uma distorção ao sistema.

Além dos efeitos colaterais indesejados, as tentativas de reforma política esbarram na resistência dos interesses estabelecidos. Os políticos e partidos que votarão essas reformas são aqueles que foram eleitos pelas regras vigentes. Portanto, são os beneficiários de tais regras. Vê-se, então, a dificuldade em se mudar tais regras. Em 2007, por exemplo, aprovou-se uma “cláusula de barreira”, que exigia votação mínima para que um partido tivesse representação no Congresso. Tal regra foi contestada junto ao STF pelos partidos prejudicados e acabou sendo considerada inconstitucional pela corte suprema.

Exemplo similar está no caso da “verticalização das coligações eleitorais”. A título de impor coerência programática aos partidos políticos, o Tribunal Superior Eleitoral expediu, em 2006, uma resolução proibindo que os partidos políticos fizessem, nas eleições estaduais, coligações partidárias diferentes daquelas formadas para o pleito nacional. A regra retirava flexibilidade para a negociação política nos diferentes estados. Dado que os partidos políticos têm pouca homogeneidade programática e, em cada estado, abrigam diferentes grupos políticos (em algumas unidades da federação dois partidos podem abrigar grupos aliados, em outras grupos adversários), a regra simplesmente contrariou a realidade política do país. Não obstante a sua meritória intenção, foi revogada pela Emenda Constitucional n. 52, de 2006, que, aprovada rapidamente, retirou essa nova regra de circulação.

6 – O que fazer?

Deve ser possível fazer reformas no sistema político-eleitoral que reduzam os efeitos desse sistema sobre a política fiscal, a governabilidade e a qualidade da gestão pública. Todavia, cada alternativa de regra eleitoral e de representação tem suas vantagens e desvantagens, não sendo fácil se chegar a acordo acerca de que regras geram resultado superior para a média da sociedade. Reformar diversas regras ao mesmo tempo multiplica a complexidade do problema,  desde a dificuldade de aprovação até à imprevisibilidade das consequências e efeitos colaterais.

Assim, ao contrário do que muitas lideranças políticas e analistas argumentam, uma reforma política ampla, seja ela qual for, está longe de ser o santo graal que restabelecerá a virtude e a racionalidade na gestão pública brasileira. Seja porque sua aprovação será muito difícil, seja porque haverá efeitos colaterais indesejados ou, ainda, porque permanecerá intacto o conflito distributivo e o incentivo a se usar o Estado como fonte de rendas e privilégios.

O sistema político-partidário vigente mostra-se compatível e funcional em um contexto em que diversos grupos sociais heterogêneos disputam benesses e regulação estatal a seu favor. Por isso, talvez seja mais interessante dar prioridades a reformas que ajudem a aliviar o conflito distributivo existente no país.

Para isso, é preciso crescer mais rápido e distribuir renda de forma mais eficaz. Deve ser dada prioridade a reformas institucionais que, ao mesmo tempo, estimulem o crescimento econômico e reduzam a desigualdade. No topo dessa lista de prioridades deve estar a reforma da previdência social, pois ela não só bloqueia o crescimento (ao gerar grande déficit público no presente e incerteza quanto à sua sustentabilidade futura) como concentra renda (por pagar benefícios mais elevados a trabalhadores da classe média e garantir pensões e aposentadorias sem equilíbrio atuarial).

Também prioritária deve ser a busca por melhoria na educação pública. A educação aumenta a produtividade (e, portanto, o crescimento) ao mesmo tempo em que aumenta a igualdade de oportunidade, abrindo espaço para redução da desigualdade e da pobreza. Investimento em infraestrutura urbana de atenção aos mais pobres, como saneamento e transportes urbanos de massa também atuam no sentido de aumentar a produtividade dos trabalhadores e melhorar as oportunidades de emprego e de ascensão social.

Em paralelo a isso, é preciso investir em reformas fiscais (muito mais simples que as complexas propostas de reforma política) que imponham maior disciplina ao gasto e ao endividamento públicos, seja por meio de transparência, seja por meio de regras fiscais críveis. Havendo maior restrição orçamentária diminuirá o espaço para que diferentes grupos de interesse consigam extrair renda do Estado.

A gestão cotidiana do orçamento também pode ajudar muito: procedimentos de auditoria dos gastos, análise de custo-benefício dos programas públicos, elaboração de programas federais estruturados que transformem as emendas parlamentares em gastos eficientes, melhorias no planejamento e execução de obras públicas, aperfeiçoamento na legislação de compras públicas e na participação do setor privado em investimentos de infraestrutura. Todas essas são medidas mais fáceis de colocar em prática que uma reforma política de amplo espectro.

Melhorias do sistema judicial que levem à efetiva e rápida punição da corrupção também ajudariam a disciplinar o mercado das negociações políticas. Em especial é preciso tornar a justiça mais rápida e menos sujeita a recursos e chicanas.

Para que os criminosos de colarinho branco sejam efetivamente levados à justiça, é essencial que a Polícia Federal e o Ministério Público tenham autonomia de atuação, sempre dentro dos marcos da legalidade e transparência. Ademais, a imprensa não pode ter sua liberdade de informar cerceada.

Uma vez que essas reformas desencadeiem um ciclo virtuoso de menos corrupção, maior eficiência do estado, maior crescimento econômico e menor desigualdade, surgirá uma classe média, com boas perspectivas de ascensão social. Essa nova classe média terá força política e eleitoral para resistir à captura do Estado por grupos de interesse. Somente quando chegarmos a essa sociedade mais homogênea, com setor público mais eficiente e com maior potencial de crescimento econômico é que haverá espaço para a implantação de um sistema político menos baseado no uso do Estado como fonte de renda e privilégios. Aí as reformas políticas ocorrerão como consequência natural da preferência da maioria do eleitorado.

No nosso atual estágio de desenvolvimento institucional, falar em reforma política ampla é fazer fumaça para esconder os verdadeiros problemas. Nessa área as reformas devem ser pontuais, alterando-se paulatinamente as regras, testando-se o seu efeito nas eleições seguintes. Um bom exemplo disso é a “lei da ficha limpa”, que foi aprovada isolada de qualquer iniciativa de alteração mais ampla das regras eleitorais; tem sido posta em prática nas eleições recentes, e seus efeitos têm sido observados e divulgados pela imprensa, medidos e analisados pelos acadêmicos e modulados pela justiça eleitoral.

__________________

1 Ver, por exemplo: Dantas, H. (2010) Reforma política: aspectos centrais da mãe de todas as reformas.In: Dantas et al. Reforma do estado brasileiro: perspectivas e desafios.Cadernos Adenauer. Konrad Adenauer Stiftung.

2 Uma descrição sintética das instituições políticas brasileiras e abundantes referências bibliográficas podem ser obtidas em Cintra (2004).

3 Samuels (2001a) e (2001b) mostra como as eleições brasileiras são caras quando comparadas a outras democracias.

 

Download:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2259 7
Quanto gastam a Assembleia Legislativa e o TCE do seu Estado? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2238&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quanto-gastam-a-assembleia-legislativa-e-o-tce-do-seu-estado Mon, 16 Jun 2014 16:04:07 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2238 Existe uma sensação generalizada de que as assembleias legislativas e os tribunais de contas estaduais consomem elevados recursos financeiros. Este texto avalia se isso de fato ocorre. Ademais, compara as despesas dos diferentes estados, de modo ressaltar os casos mais extremos.

A primeira constatação que se faz ao se buscar dados acerca das despesas anuais das assembleias e tribunais de contas estaduais é que falta transparência na divulgação de tais dados. Supostamente as informações deveriam estar disponíveis no sítio do Tesouro Nacional na internet, em um sistema de informação chamado “SISTN”1. Contudo, quando se solicitam as contas dos legislativos e tribunais de contas estaduais em tal sistema, a resposta quase sempre obtida é de que os dados estão indisponíveis.

A segunda opção de levantamento de dados é uma pesquisa na página de cada assembleia e cada TCE na internet. Os resultados também são pouco satisfatórios. Em vários estados, o máximo que se consegue é o valor orçado, não havendo dados para os gastos efetivamente empenhados ou liquidados.

Frente às dificuldades expostas, os dados apresentados a seguir podem não refletir fielmente a efetiva despesa de cada assembleia ou tribunal de contas. São, contudo, o melhor que se pôde obter.

A Tabela 1 mostra que o gasto total de assembleias e tribunais estaduais tem valores totais bastante relevantes. Em 2013 foram R$ 14,5 bilhões, sendo R$ 9,4 bilhões nas assembleias e R$ 5,1 bilhões nos tribunais.

Tabela 1 – Despesa Total de Assembleias Legislativas Estaduais e Tribunais de Contas Estaduais – 2013 (R$ milhões)

img_1_2238

Fontes: sites das assembleias e tribunais de contas na internet. Elaborado pelo autor. Notas: Foi utilizada a despesa orçada para os seguintes estados: AP, CE, MA, PR, RO, RR, e para o TCE do PA.  Foi utilizada a despesa liquidada para os seguintes estados: BA, ES, MT, PB. Para os demais casos utilizou-se a despesa empenhada.

 

Uma forma de detectar excessos nas despesas das assembleias e TCEs é verificar sua evolução ao longo do tempo. Para isso, é importante ter em conta que ambas as instituições realizam funções bastante padronizadas. As assembleias propõem e aprovam leis, bem como fiscalizam ações do Poder Executivo local. Os TCEs cumprem função fiscalizadora com atribuições definidas nas constituições federal e estaduais. Por isso, suas estruturas operacionais e seus gastos não precisam crescer, ao longo do tempo, acima da inflação. Uma vez montada a estrutura de funcionamento de uma casa legislativa ou de um TCE (construção de sede, aquisição de equipamentos, etc.), os anos seguintes exigirão apenas as despesas de funcionamento (salários, material de escritório, etc.) e de reposição dos ativos depreciados (troca de móveis, de veículos, etc.).

Isso é muito distinto, por exemplo, da ação de uma secretaria de saúde, que amplia o número de postos de atendimentos, constrói novos hospitais, expande a clientela atendida. Difere, também, da ação de uma secretaria de educação, que incorpora novos alunos, contrata novos professores. Também não se compara às despesas de uma secretaria de obras que, a cada ano, gasta um montante maior ou menor de recursos, em função do número e do porte das obras realizadas.

Quando uma assembleia ou um tribunal de contas aumenta, ano após ano, a sua despesa acima da inflação, isso significa que, provavelmente, ela está contratando mais funcionários, ou está concedendo aumentos reais aos funcionários e dirigentes, ou, ainda, está ampliando o seu gasto de consumo. Tais aumentos podem ser aceitáveis em alguns momentos. Por exemplo, uma assembleia que estava desestruturada, constrói uma nova sede ou repõe seu mobiliário. Ou, então, contrata assessores mais capacitados, que ganham salários maiores. Porém, não se deve imaginar como normal uma situação de crescimento real de despesa de assembleias e tribunais de contas ano após ano. No máximo se poderia esperar que a folha de salários cresça, em termos reais, no mesmo ritmo dos salários do setor privado.

Infelizmente a falta de informações disponíveis impede que se avalie a evolução das despesas totais de assembleias e TCEs ao longo do tempo. Há, contudo, um conjunto de informações disponibilizado pela Secretaria do Tesouro Nacional que ajuda nessa avaliação. Trata-se da despesa dos estados com a chamada “função legislativa”, que é distinta da despesa total de assembleias e TCEs.

De acordo com o Manual Técnico de Orçamento do Ministério do Planejamento, a “função legislativa” abarca todas as despesas das assembleias e TCEs em suas respectivas áreas fins. Diferem da despesa total de cada órgão por não considerar seus gastos com aposentadorias e pensões (classificadas na função “assistência e previdência”), bem como outras despesas como, por exemplo, planos de saúde para os servidores (classificadas na função “saúde”).

Deve-se utilizar essa estatística com cautela, afinal não se pode afirmar com segurança que todos os estados usem critérios similares para incluir ou excluir despesas em cada uma das diferentes funções. Feitas essas ressalvas, o Gráfico 1 mostra que o somatório de despesas legislativas no Brasil cresceu em termos reais, entre 2002 e 2012, nada menos que 47%, passando de R$ 7,9 bilhões para R$ 11,6 bilhões (em valores de 2012). Se supusermos que em 2002 o gasto desses órgãos era suficiente para o cumprimento de suas funções, não haveria motivos para, em 2012, eles se situarem em nível 47% mais alto. Destaque-se a título de comparação que, de acordo com o IBGE, o salário real médio entre março de 2002 e abril de 2014 para os trabalhadores assalariados com carteira de trabalho aumentou em torno de 17%.

Gráfico 1 – Despesa de Todos os Estados com a Função Legislativa – 2002-2012 (R$ bilhões)

img_2_2238

Fontes: Secretaria do Tesouro Nacional – Execução Orçamentária dos Estados. Elaborado pelo autor.

 

Note-se que um dos fatores de elevação vegetativa da despesa, que é o aumento de gastos com aposentadorias e pensões, está excluído do conceito de “despesa legislativa”.

O Gráfico 2 mostra a evolução da despesa legislativa por estado, entre 2002 e 2012. Somente o RJ reduziu a despesa em 2012 na comparação com 2002. Porém, como será visto adiante, o nível dos gastos da assembleia e TCE desse estado foram bastante elevados em 2013, de modo que a queda real ao longo do tempo indica que houve apenas corte de parte do excesso.

Gráfico 2 – Despesa com a Função Legislativa por Estado – variação real entre 2002 e 2012 (%)

img_3_2238

Fontes: Secretaria do Tesouro Nacional – Execução Orçamentária dos Estados. Elaborado pelo autor. Nota: deflacionado pelo IPCA.

 

Somente RJ, SP, ES e MG não tiveram crescimento real significativo do gasto. Em nove estados a despesa mais que dobrou. Em RR multiplicou-se por 3,2. Onde cresceu pouco, essa despesa variou 25% entre 2002 e 2012, o que ainda é um aumento considerável.

O Gráfico 3 mostra que as despesas das assembleias e tribunais de contas consomem parcela significativa das receitas dos estados. Em média, elas representam 4,1% da Receita Corrente Líquida (RCL). Em Roraima chegam a consumir 7,7% da RCL.

Gráfico 3 – Despesa Total das Assembleias e TCEs como proporção da Receita Corrente Líquida  – 2013 (%)

img_4_2238

Fontes: sites das assembleias e tribunais de contas na internet e STN. Elaborado pelo autor.

 

Uma forma de verificar se isso representa uma despesa elevada, é comparar com outras categorias de despesa. Tomamos, a título de exemplo, os gastos estaduais com investimentos. Esses gastos são importantes para a população, visto que representam a construção de estradas, infraestrutura urbana, sistemas de saneamento básico, etc. O Gráfico 4 mostra que, em média, os gastos das assembleias e TCEs em 2013 equivalem a quase a metade de tudo o que se gastou com investimentos em 20122. Em Goiás e no Rio Grande do Sul, os gastos com aqueles órgãos superam 80% do que se gasta em investimentos.

Gráfico 4 – Despesa Total das Assembleias e TCEs em 2013 como proporção da Despesa com Investimento em 2012 (%)

img_5_2238

Fontes: sites das assembleias e tribunais de contas na internet e STN. Elaborado pelo autor.

 

Conforme afirmado acima, tanto as assembleias quanto os TCEs fazem um trabalho padronizado, tendo as mesmas atribuições constitucionais e legais nos diferentes estados. Por isso não há motivos para que as despesas das diferentes casas legislativas e TCEs do país sejam muito distintas entre si. Todas elas têm um custo fixo representado pela manutenção de sua sede e um custo variável, decorrente das suas operações cotidianas.

No caso das assembleias, o custo variável tende a crescer com o número de deputados: quanto mais deputados, maior o número de assessores, gabinetes, etc. O que o Gráfico 5 mostra, contudo, é uma grande dispersão do gasto total dividido pelo número de deputados.  Enquanto no Acre esse indicador é de  R$ 4,7 milhões por deputado; no Rio de Janeiro essa cifra chega a R$ 15,9 milhões.

Gráfico 5 – Despesa Total das Assembleias por Deputado – 2013 (R$ milhões)

img_6_2238

Fontes: sites das assembleias na internet. Elaborado pelo autor.

 

É verdade que estados com maior PIB e maior arrecadação tendem a gastar um pouco mais com suas assembleias. Afinal, o processo legislativo torna-se mais complexo, exigindo assessoria e estrutura operacional mais qualificada e, portanto, mais cara.

Esse argumento, contudo, não é suficiente para explicar a alta despesa de RJ e MG. Afinal, São Paulo, mais populoso e com população maior e organização urbana e econômica mais complexas, gasta bem menos por deputado. Também não há justificativa para gastos por deputado tão altos em MT, DF e SC.

No caso dos TCEs não há, sequer, diferença no número de conselheiros entre estados, visto que o art. 75, parágrafo único, da Constituição Federal determina que todos eles devem ter sete conselheiros. Assim, o custo total de todos os TCEs deve ser bastante similar, o que faria com que os estados de menor receita gastassem uma parcela maior desta com o órgão. Ainda que se possa argumentar que estados com orçamentos maiores exigiriam auditorias mais complexas e mais caras, elas não seriam tão mais caras a ponto de, por exemplo, dobrar o custo de operação do TCE.

O Gráfico 6 mostra que o estado de maior receita (SP) tem, de fato, menor relação entre despesa do TCE e sua RCL. Contudo dois outros estados de alta RCL (MG e RJ) têm despesa muito maior como proporção da receita, ao passo que estados de menor receita, como CE e BA, figuram com baixa relação entre despesa do TCE e RCL. Ou seja, a grande dispersão mostrada pelo Gráfico 6 sugere que há estados que gastam com os seus TCEs muito acima do que seria exigido por uma operação eficiente desses órgãos. O MT, por exemplo, apresenta razão entre gastos e RCL equivalente ao dobro da média nacional.

Gráfico 6 – Despesa Total dos TCEs como proporção da Receita Corrente Líquida – 2013 (%)

img_7_2238

Fontes: sites dos TCEs na internet e STN. Elaborado pelo autor.

 

O Gráfico 7 mostra que os estados que têm alta relação entre despesa com TCE e RCL também tendem a ter alta relação entre gasto com a assembleia e a RCL. A correlação entre as duas variáveis é razoavelmente alta, equivalente a 0,45. Ou seja, parece haver uma decisão política, em cada estado, na qual alguns destinam muitos recursos para os dois órgãos, enquanto outros controlam mais fortemente ambas as despesas.

Gráfico 7 – Despesa Total das Assembléias e dos TCEs como proporção da Receita Corrente Líquida – 2013 (%)

img_8_2238

Fontes: sites dos TCEs e Assembleias na internet e STN. Elaborado pelo autor.

 

Há, portanto, evidências estatísticas de que as despesas das assembleias e tribunais de contas estaduais cresceu acima do necessário ao longo dos últimos anos, bem como de que, pelo menos em alguns estados, situa-se muito acima do necessário para financiar o adequado provimento dos serviços essenciais fornecidos por aqueles órgãos.

_________________

1 https://www.contaspublicas.caixa.gov.br/sistncon_internet/index.jsp
2 Não foi possível obter, de forma desagregada para todos os estados, dados para os investimentos em 2013.

 

Download:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
Quanto custaria o passe livre estudantil em transporte público? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2230&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quanto-custaria-o-passe-livre-estudantil-em-transporte-publico https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2230#comments Mon, 19 May 2014 13:43:21 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2230 Um tema central das marcantes manifestações populares de julho de 2013 foi o passe livre em transporte público, em especial o passe livre estudantil. Existem movimentos que reivindicam tal gratuidade espalhados por todo o país, bem como projetos de lei nos legislativos estaduais e federal. Poucos, contudo, se deram ao trabalho de fazer as contas para saber quanto custaria ao país tal gratuidade.

Não é fácil fazer essa conta, pois não há transparência nos dados de custos e tarifas nos transportes públicos. Os dados disponíveis, além de incompletos estão desatualizados. O presente texto tenta fazer uma estimativa aproximada, para que se tenha, pelo menos, ideia da ordem de grandeza dos custos envolvidos. A conclusão que se chega é de que o custo seria elevado, atingindo pelo menos R$ 10 bilhões por ano, mas podendo se aproximar dos R$ 30 bilhões, dependendo de como a demanda por transportes reagiria à gratuidade.

Supõe-se a hipótese de gratuidade no transporte público para todos os estudantes do ensino fundamental, médio e superior, tanto de escolas públicas quanto privadas. De acordo com o que tem sido reivindicado pelos grupos de defesa do passe livre estudantil, os estudantes poderiam usar o transporte público livremente, quantas vezes quiserem, em qualquer dia da semana, inclusive no período de férias escolares.

São usados dois métodos para fazer a estimativa. O primeiro método usa os dados de tarifas e passageiros transportados nas capitais do país em outubro de 2012. O segundo método usa dados de matrículas escolares e da composição etária da população brasileira, respectivamente levantados pelo MEC e pelo IBGE.

Método I

A Tabela 1, construída com dados da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) de 2012, estima uma despesa de R$ 9,7 bilhões anuais com o custeio do Programa Passe Livre Estudantil.

Tabela 1 – Estimativa da Perda de Receita do Sistema Público de Transportes das Capitais com a Concessão de Gratuidade aos Estudantes

img_1_2230

Fontes: NTU e IBGE. Elaborado pelo autor.
Notas: (1) considerando período letivo de nove meses em “H”; (2) considerando utilização ao longo de doze meses em “J”.

 

Essa estimativa é construída da seguinte forma. Em primeiro lugar, toma-se o valor da passagem em cada capital (coluna A). A coluna B informa a participação percentual dos estudantes no número total de passageiros. Multiplicando-se tal percentual pelo total de passageiros que utilizaram o sistema no mês de outubro de 2012 (coluna C), obtém-se o total de estudantes que utilizaram o sistema público de transporte naquele mês (coluna D).

A coluna E mostra qual seria a receita mensal obtida com o transporte de estudantes caso estes pagassem tarifa cheia. Esse seria o custo mensal do passe livre estudantil. Ela corresponde ao produto do valor da tarifa (coluna A) pelo total de estudantes transportados (coluna D).

Esse cálculo, a princípio, superestima o custo do programa, pois a introdução do passe livre, se financiado com recursos orçamentários, acabará com o subsídio cruzado, em que os passageiros pagantes de tarifa cheia arcam com o atual desconto concedido aos estudantes. Assim, as tarifas consideradas na coluna A deveriam ser menores que as atualmente praticadas. Porém, não temos informações suficientes que nos permitam calcular qual seria essa nova tarifa. Ademais, tal superestimação pode ser atenuada pelo fato de que, em muitos casos, as tarifas usadas na coluna A estão defasadas, tendo em vista que, em algumas cidades, reajustes que deveriam ter ocorrido foram postergados.

Supondo-se que o mês de outubro de 2012 (o único para o qual dispomos de dados) seja representativo e que os estudantes utilizam o transporte apenas nos meses de aula (9 meses por ano), chega-se ao total que o sistema de transportes arrecadaria com o transporte de estudantes caso praticasse tarifa cheia para esses passageiros (coluna F), equivalente a aproximadamente R$ 1,4 bilhão. Note-se que a indisponibilidade de dados para a participação dos estudantes no total de passageiros transportados em algumas capitais (coluna D) nos obrigou a usar, nesses casos, a média observada nas outras capitais.

A estimativa acima apresentada tende a ser subestimada porque:

1) restringe-se às capitais de estados, enquanto a gratuidade valerá para todos os municípios do País;

2) não considera que, com a gratuidade, haverá um natural aumento da demanda dos estudantes, que passarão a fazer mais viagens no sistema de transportes. Os passes estudantis atuais restringem o desconto aos trajetos de ida e volta da escola e ao período de aulas. Com o passe livre, estudantes poderão circular sem limite de viagens e durante todo o ano, o que amplia a perda potencial de receita e exige do sistema de transportes maior oferta de serviços.

Para superar o primeiro tipo de subestimação, supusemos que o passe livre será utilizado em todos os municípios com mais de 45 mil habitantes. Em municípios menores não costuma haver dificuldades para o estudante caminhar até a escola e muito desses municípios sequer têm sistema organizado regular de transporte público.

Na coluna G da Tabela 1 apresentamos um fator de expansão populacional, para que seja possível levar em conta o uso de transporte público pelos estudantes dos municípios que não são capital de estado e têm mais de 45 mil habitantes. Por exemplo, em Palmas, capital do Tocantins, a população é de 228 mil habitantes. Em todo o Estado do Tocantins, os municípios com mais de 45 mil habitantes (inclusive a capital) têm um total de 505 mil habitantes. O fator de expansão é dado por (505/228 = 2,21)1.

A coluna H multiplica o fator de expansão pelo custo estimado para as capitais (coluna F). Chega-se, então, a um custo de R$ 5,1 bilhões por ano.

Esse valor, porém, não leva em conta o fato de que os alunos passarão a circular mais vezes do que simplesmente a ida e volta para a escola. Se houver um aumento de, por exemplo, 30% na demanda total de viagens, o custo do programa aumentará proporcionalmente, chegando a R$ 9,7 bilhões (3,4 x 1,3), conforme mostrado na coluna I.

Método II

Uma forma alternativa de se buscar uma noção dos valores envolvidos na concessão do passe livre é através da utilização dos dados de matrículas escolares, levantados pelo INEP, e da composição populacional das cidades brasileiras, levantada pelo IBGE.

Tomamos como número total de estudantes com direito ao passe livre o total de matrículas em escolas públicas e privadas do ensino básico situadas em áreas urbanas, mais o total de matrículas no ensino superior no ano de 2011. Foram excluídos os alunos da educação infantil que, pela faixa de idade, já gozam de gratuidade. O total assim obtido é de 45,3 milhões de alunos (fonte: INEP – MEC).

Como estimativa do número de estudantes que efetivamente utilizariam o passe livre, mais uma vez supusemos que apenas aqueles residentes em cidades com mais de 45 mil habitantes utilizariam ônibus para se deslocar à escola. Tomando por base a população de cada município brasileiro, calculamos o percentual da população de cada estado que vive em cidades com mais de 45 mil habitantes. Isso gerou um número de potenciais usuários do passe livre equivalente a 31 milhões de pessoas (fonte: IBGE).

O custo médio da passagem em cada estado do País foi tomado a partir de dados da NTU, já mostrados na Tabela 1. Supusemos que a tarifa nos demais municípios fosse igual à da capital. Com relação ao número médio de dias que cada estudante utilizará o transporte, faremos duas hipóteses. Uma hipótese conservadora de que o transporte seja usado apenas em dias letivos (200 por ano) e uma hipótese alternativa de que os estudantes também usariam o transporte eventualmente no final de semana (250 dias por ano).

Quanto ao número de vezes em que um estudante usaria o transporte por dia, trabalharemos com uma hipótese conservadora de que ele faria apenas as viagens de ida e volta para a escola (2 viagens) e uma hipótese alternativa de que haveria um aumento de 30% nas viagens (2,6 viagens).

Quanto ao percentual de estudantes que efetivamente usaria o passe livre, trabalhamos com 4 hipóteses, que vão de 30% do total dos estudantes em cidades de mais de 45 mil habitantes até 60% desses estudantes.

A Tabela 2 apresenta estimativas para o caso em que os estudantes utilizem o passe livre apenas nos dias letivos.

Tabela 2 – Estimativas de custos para o caso em que os estudantes utilizem o passe livre apenas nos dias letivos (200 dias por ano) (em R$ bilhões)

img_2_2230

Se, por exemplo, os estudantes fizerem apenas duas viagens por dia e somente 30% dos estudantes elegíveis para o uso do passe efetivamente viajarem, o custo anual do passe livre será de R$ 10 bilhões. Por outro lado, se 60% dos estudantes elegíveis viajarem, em média, 2,6 vezes por dia, o custo atingirá R$ 26 bilhões.

As estimativas da Tabela 2 tendem a ser conservadoras, pois tendo a possibilidade de usar gratuitamente o transporte público quando quiserem, os estudantes tenderão a utilizar o benefício também nos finais de semana. Assim, a Tabela 3 apresenta estimativas para o caso de que eles viagem, em média, 250 dias no ano. Nesse caso, os custos variariam entre R$ 12,5 e R$ 32,5 bilhões.

Tabela 3 – Estimativas de custos para o caso em que os estudantes utilizem o passe livre 250 dias por ano (R$ bilhões)
img_3_2230

As estimativas aqui apresentadas devem ser tomadas com cautela. A baixa transparência e indisponibilidade dos dados relativos aos custos e à intensidade de uso do transporte público não permitem que se façam cálculos mais precisos. De qualquer forma, mesmo na estimativa mais otimista (R$ 9,7 bilhões por ano) já representa custo elevado.

Para se ter uma ideia de grandeza desse valor, considere que o setor público brasileiro (União, estados e municípios) gasta aproximadamente 3% do PIB, todo ano, com educação pública de 1º a 9º ano de ensino (ensino fundamental)2. Em 2013 isso representou algo como R$ 145 bilhões. Com o dinheiro do passe livre seria possível aumentar a despesa com aqueles níveis de ensino entre 6,8% (hipótese otimista de custo total de R$ 10 bilhões) e 22% (hipótese pessimista de custo total de R$ 32 bilhões). A sociedade brasileira precisa, então, decidir se quer subsidiar o transporte dos estudantes até a escola ou se quer melhorar a escola em si. Ambas as opções são legítimas, e precisam ser avaliadas com cuidado. Só é preciso ter em mente que o passe livre estudantil não é “de graça”, tem seu custo econômico e social.

Analisando a possibilidade de aplicação alternativa dos recursos para fins de melhoria da qualidade e aumento da oferta de  transporte, deve-se dizer que R$ 10 bilhões por ano fariam grande diferença. Com esse valor pode-se, por exemplo, construir, todos os anos, 20 km de linhas de metrô3 ou mais de 500 km de corredores de BRT (Bus Rapid Transit)4, o que elevaria a rapidez e conforto do transporte coletivo.

O investimento desses recursos na melhoria e maior eficiência do sistema de transporte (em vez do subsídio ao transporte de estudantes) aumentaria a velocidade média e reduziria os custos operacionais do sistema, gerando melhor serviço e maior produtividade econômica para todos. Além disso, a melhoria da qualidade tenderia a atrair novos passageiros pagantes, criando, assim, um ciclo virtuoso de maiores receitas e menores custos por viagem. Tal caminho parece ser bem mais promissor que o subsídio ao uso de um sistema ineficiente e sobrecarregado. Passagens gratuitas para estudantes sobrecarregarão um sistema que já não funciona adequadamente, reduzindo a velocidade média e elevando seus custos.

Por fim, cabe o alerta de que, frente à permanente escassez de recursos públicos, se opte pelo financiamento do passe livre por meio de subsídios cruzados. Ou seja, pela elevação da passagem cobrada dos demais usuários para financiar a gratuidade para os estudantes. Nesse caso, como na maioria dos casos de subsídios cruzados, haverá injustiça distributiva. Afinal, não é razoável que o trabalhador subsidie a passagem do estudante de classe média.

________________

1 Esse procedimento tende a superestimar o número de estudantes usuários, visto que na estatística das capitais já estão incluídos estudantes residentes em outros municípios que transitam pela capital. Mas não há como evitar tal superestimativa.

2 Fonte: INEP-MEC

3Tomando-se o custo de construção da linha 4 do metrô de São Paulo, conforme http://www.metro.sp.gov.br/noticias/acontecendo/governador-geraldo-alckmin-inicia-2a-fase-da-linha-4amarela.fss

4Tomando-se por referência os custos anunciados para os projetos de BRT no Distrito Federal. Vide http://www.brtbrasil.org.br/index.php/brt-brasil/cidades-com-sistema-brt/menubrasilia/expresso-df#.U3X_L1VdXjN

 

Download:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2230 6
O que são “instituições fiscais independentes”? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2221&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-sao-instituicoes-fiscais-independentes https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2221#comments Mon, 05 May 2014 13:58:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2221 O Estado brasileiro passa por um processo de deterioração fiscal que tem componentes de curto e longo prazo. No curto prazo observa-se a queda dos resultados primários do setor público, que passaram de 3,8% do PIB em 2008 para 1,9% em 2013. Há, também, uma deterioração na qualidade deste superávit e das contas públicas, em que procedimentos contábeis pouco usuais têm sido utilizados com o intuito de mascarar parte da deterioração fiscal (sobre tal ponto ver, neste site, “O que é contabilidade criativa?”).

É forçoso, contudo, reconhecer que, mesmo quando o setor público apresentava superávits primários robustos e contabilidade mais clara, a qualidade da nossa política fiscal já não era das melhores. Ano após ano a despesa total cresce e, com ela, a carga tributária. A despesa primária do governo central pulou de 14% do PIB para 19% do PIB entre 1997 e 20131, e a carga tributária nos três níveis de governo saltou de 28% para 34% do PIB no mesmo período2. Os superávits primários têm sido feitos não apenas por meio de aumento de tributos, que sufocam os contribuintes e desestimulam o crescimento econômico, mas também com base em repressão dos investimentos públicos, tornando a infraestrutura do país precária. Este é o componente de deterioração de longo prazo da política fiscal.

O processo orçamentário se dá de uma forma em que os poderes Executivo e Legislativo têm interesse em fixar receitas superestimadas e despesas elevadas. O Executivo o faz porque, dispondo do poder de contingenciar gastos, pode escolher quais despesas executará ou não. Assim, quanto mais amplo o espectro de despesas disponíveis, mais espaço tem para distorcer o orçamento a favor de suas prioridades. Já o legislativo tem interesse em ampliar as despesas para encaixar os gastos de interesse dos parlamentares e de suas bases. O controle fiscal se faz na boca do caixa, sem transparência ou ordenamento de prioridades sociais.

No campo da qualidade do gasto público, inexiste no país a prática de se avaliar benefícios e custos gerados pelos programas patrocinados pelo governo. Os programas são postos em prática, o gasto se eleva ano após ano, mas pouco se avalia se eles constituem benefício para a sociedade como um todo ou apenas mais uma fonte de renda para grupos específicos com poder de pressão política. Os investimentos públicos não passam por planejamento cuidadoso, sua execução usualmente estoura os orçamentos prévios e, depois de prontos, têm manutenção deficiente, o que reduz a vida útil de estradas, portos e equipamentos urbanos (mais sobre isso, em outro texto neste site: “Por que é importante investir em infraestrutura?”).

Não será simples corrigir todas essas distorções. Um caminho promissor, contudo, pode ser a criação de uma “instituição fiscal independente” ou “conselho fiscal” – doravante chamados de IFI – nos moldes de instituições que já funcionam em vários países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A mais famosa dessas instituições é o Congressional Budget Office (CBO) dos Estados Unidos. Mas há também o Office for Budget Responsibility (OBR) no Reino Unido, o Conselho de Finanças Pública (CFP) em Portugal e mais outras vinte e seis instituições similares em países tão distintos entre si quanto Quênia e Coréia do Sul. A expansão desses órgãos ganhou impulso especialmente na Zona do Euro, com a necessidade de promover ajustes fiscais estruturais após a crise de 2008, que afetou fortemente a Europa.

Tais instituições são órgãos de Estado, com estrutura similar a de agências reguladoras (dirigentes com formação técnica, com mandatos predefinidos e protegidos de pressões políticas). Sua função é a de ser uma espécie de cão de guarda da estabilidade fiscal e da qualidade do gasto público. Devem fazer análises técnicas isentas, tornando-as públicas, buscando dar o máximo de transparência possível a suas avaliações.

Certamente uma agência com essa natureza ajudaria a melhorar a qualidade da política fiscal no Brasil, pois atuaria sobre pontos críticos que precisam ser aperfeiçoados. Em primeiro lugar, poderia fazer estimativas independentes da receita orçamentária, que colocaria em xeque as estimativas usualmente superestimadas feitas pelo Executivo e o Legislativo. Estes teriam que, no mínimo, explicar porque suas receitas esperadas estariam acima daquela estimada pela IFI. Não conseguindo fazê-lo, seriam forçados a moderar a fixação da despesa orçamentária.

A IFI também poderia atuar avaliando a qualidade de políticas públicas. Estudos de custo-benefício, que requerem grande quantidade de informações e alta especialização técnica para que sejam bem feitos, poderiam indicar à sociedade quais são os programas públicos que merecem ter continuidade e quais deveriam ser extintos por trazerem mais custos que benefícios.

Isso permitiria não apenas melhorar a qualidade do gasto público, introduzindo no país uma cultura de avaliação dos gastos, como também permitiria conter a expansão do gasto agregado. Menor carga tributária seria necessária para dar conta de despesas em menor nível. As avaliações de custos e benefícios poderiam ser feitas, inclusive, antes de os projetos serem postos em prática, por meio de avaliação de impacto de proposições em tramitação no Congresso que visem instituir novos gastos, conceder isenções tributárias ou outros tratamentos preferenciais a grupos específicos.

Outra área de relevante atuação desta instituição independente seria na fixação de critérios contábeis de alta qualidade, o que deixaria explícito os casos em que os governos estariam tentando iludir a população com o uso de contabilidade criativa.

É importante notar que a criação de uma IFI não significa retirar do Executivo e do Legislativo o poder para programar e executar a política fiscal. Não se trata de aplicar, na área fiscal, princípio similar ao de independência do Banco Central, pelo qual o governo amarra suas mãos e dá à autoridade monetária o poder para gerir a oferta de moeda à sociedade. A política fiscal não pode ser executada dessa forma, pois ela é a essência da atividade de governar. O que a instituição fiscal independente deve fazer é, como dito acima, funcionar como um “cão de guarda” das finanças públicas, apontando excessos, ineficiências e distorções; oferecendo parâmetros para avaliar a trajetória de longo prazo da política fiscal; estabelecendo critérios contábeis lastreados na transparência das contas públicas.

Ela deve usar a sua comunicação com o público, em especial com a imprensa, para divulgar o que se espera do governo em termos de adoção de boas práticas fiscais. Deve explicitar custos e benefícios dos programas públicos. Mas jamais deve determinar o corte ou expansão desta ou daquela despesa, a interrupção deste ou daquele programa.

Não se deve confundir, também, a ação de uma instituição fiscal independente com a de instituições voltadas à auditoria e controle, como os tribunais de contas. Estes atuam avaliando o passado, estudando o resultado de programas em andamento ou já encerrados, aprovando ou rejeitando as contas públicas. As instituições fiscais independentes atuam olhando para o futuro: avaliam os prováveis cenários para a receita e a despesa, estudam benefícios e custos de programas visando seu aperfeiçoamento, definem critérios de qualidade para a contabilidade pública.

O Brasil já tem, na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), um embrião de instituição fiscal independente. Trata-se do Conselho de Gestão Fiscal (CGF), instituído pelo art. 67 daquela Lei. Todavia, o CGF não foi instituído até hoje.

Tal demora deve-se a dificuldades envolvidas na regulamentação. Isso porque a LRF exige que o CGF tenha representantes de todos os poderes, em todos os níveis de governo, além de representantes de entidades técnicas da sociedade civil. Surgem aí alguns problemas práticos e algumas incongruências com a ideia de entidade independente. Em primeiro lugar, o CGF teria número excessivo de representantes, dificultando a obtenção de quorum e o processo decisório. Em segundo lugar, a participação de membros do poder público, eles próprios executores de políticas que seriam avaliadas pelo conselho, reduziria o grau de independência e imparcialidade nas avaliações feitas pela entidade. Em terceiro lugar, é muito difícil estabelecer critérios práticos para se escolher, por exemplo, quem seria o representante de todos os legislativos municipais do país, Como fazê-lo? Uma eleição na qual votariam todos os vereadores do Brasil? Dificuldade similar surgiria para escolher o representante dos judiciários estaduais ou para definir quais seriam as entidades da sociedade civil contempladas com o direito de participar do CGF.

Para que o CGF pudesse ser convertido em uma verdadeira instituição fiscal independente, seria necessário alterar a LRF com vistas a dar ao Conselho um perfil similar ao das agências reguladoras: nomeação de um pequeno número de diretores, com perfil técnico, evitando-se dar representação a entidades, órgãos governamentais ou poderes públicos. Deve-se, ademais, prover a entidade com equipe técnica qualificada e abrir a possibilidade de atuar em conjunto com universidades e outras instituições capacitadas para fazer as análises que se espera de uma IFI.

Este seria um grande passo no sentido de se mudar o perfil expansionista de nossa política fiscal, de melhorar a qualidade da intervenção do governo na economia e, com isso, elevar o potencial de crescimento do país.

Já há evidências empíricas de que as IFI têm efeito concreto. Um estudo do FMI3 mostra que países com IFI que atendem a alguns requisitos básicos apresentam desempenho fiscal mais sólido e orçamentos mais realistas. Esses requisitos são: ter independência operacional, realizaranálise de projeções fiscais, estar presente na mídia e monitorar metas fiscais.

O Brasil, sem dúvida, carece de um aperfeiçoamento institucional dessa natureza. O que não falta é literatura sobre o tema, conforme lista apresentada abaixo, e possibilidade de assistência técnica por parte do FMI, da OCDE e das próprias IFI já em funcionamento.

 

Para ler mais sobre o tema:

Bos, F., Teulings, C. CPB and Dutch fiscal policy in view of the financial crisis and ageing. http://www.cpb.nl/en/publication/cpb-and-dutch-fiscal-policy-view-financial-crisis-and-ageing

Calmfors, L. (2010) The swedish fiscal policy council – experience and lessons. http://people.su.se/~calmf/Wipol_2011_Calmfors.pdf

Calmfors, L., Kopits, G., Teulings, C. (2010) A new breed of fiscal watchdogs. EVRO Inteligence. http://www.finanspolitiskaradet.se/download/18.55431e1f13f86263d6a1c5a/1377195290368/Calmfors,+Kopits+%26+Teulings+(2010).pdf

Debrun, X. (2011) Democratic accountability, deficit bias, and independent fiscal agencies. FMI – Working Paper WP/11/173.

Debrun, X., Kinda, T. (2014) Strengthening post-crisis fiscal credibility: fiscal councils on the rise – a new dataset. FMI – Working Paper WP/14/58.

Eichengreen, B., Hausmann, R., von Hagen, J. (1999) Reforming budgetary institutions in Latin America: the case for a National Fiscal Council. Open Economies Review, 10: 415-442.

FMI (2013) The functions and impacts of fiscal councils. http://www.imf.org/external/np/pp/eng/2013/071613.pdf

Hagemann, R. (2011) How can fiscal councils strengthen fiscal performance? OECD Journal: economic studies, vol. 2011/1, http://dx.doi.org/10.1787/19952856

Kopits, G. (2011) Independent fiscal institutions: developing good practices. 3rd Annual Meeting of OECD Parliamentary Budget Officials – Estocolmo, Suécia.

Marinheiro, C.F. (2011) Fiscal sustainability and the accuracy of macroeconomic forecasts: do supranational forecasts rather than government forecasts make a difference? International Journal of Sustainanble Economy, v. 3, n. 2

OCDE (2013) OECD principles for independent fiscal institutions. http://acts.oecd.org/Instruments/ShowInstrumentView.aspx?InstrumentID=301&InstrumentPID=316&Lang=en&Book=False

Szpringer, Z. (2013) A parliamentary view of Poland’s plans to enhance the role of existing institutions in place of establishing an independent fiscal institution. Mimeo – Varsóvia, Polônia. http://www.pbo-dpb.gc.ca/files/files/D1-AM%20-%20Roundtable%20-%20Zofia%20Szpringer%20-%20POLAND.pdf

_______________

1 Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional
2 Fonte: Receita Federal do Brasil
3“Strenghening Post-Crisis Fiscal Credibility: Fiscal Councils on the Rise – A New Dataset”, de Xavier Debrun e Tidiane Kinda.

Download:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2221 4