Hélio Tollini e Paulo Bijos – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Fri, 18 Mar 2022 19:56:10 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Planejamento de Médio Prazo do Processo Orçamentário https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3596&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=planejamento-de-medio-prazo-do-processo-orcamentario Fri, 18 Mar 2022 19:56:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3596 Planejamento de Médio Prazo do Processo Orçamentário

 

Por Helio Tollini e Paulo Bijos[1]

 

Uma parte significativa das decisões relativas a receitas e despesas tem implicações que se prolongam bem além do habitual ciclo de uma lei orçamentária anual (LOA). O horizonte temporal curto da LOA, portanto, não estimula que o planejamento fiscal e o planejamento estratégico das despesas sejam consistentes, pois tende a desconsiderar o impacto plurianual das decisões tomadas no momento presente.

Quando o foco do processo orçamentário é apenas o exercício de referência, o interesse em propor modificações nas legislações que provocam rigidez orçamentária é menor, visto que os ganhos de flexibilidade tendem a ocorrer nos exercícios seguintes. Se o foco orçamentário for o médio prazo, haverá estímulos para que boa parte dos ganhos de flexibilidade seja incorporada ao novo processo alocativo.

Um instrumento adotado por diversos países, chamado Quadro da Despesa de Médio-Prazo – QDMP (em inglês, Medium-Term Expenditure Framework – MTEF)[2], permite ao governo ampliar o horizonte da alocação dos recursos públicos para além do calendário orçamentário anual. O QDMP compatibiliza as prioridades estratégicas de cada setor com limites alocativos plurianuais definidos conforme a capacidade fiscal do Estado. Para tal, estabelece com antecedência, para o médio prazo, tetos gerais anuais em consonância com os objetivos de longo prazo da política fiscal, e subtetos de gastos específicos por área temática conforme as prioridades definidas setorialmente.

O QDMP costuma ser construído com amparo em um Cenário Fiscal de Médio Prazo (CFMP), que dilata o horizonte da política fiscal ao apresentar a estimativa de evolução plurianual dos grandes agregados de receitas e despesas. Nesse modelo de planejamento de médio prazo, a limitação “de cima para baixo” (top-down) oriunda do CFMP interage com a programação setorial de gastos “de baixo para cima” (bottom-up), decorrente do cenário-base (baseline) e das novas iniciativas. Os objetivos da adoção conjunta de um CFMP/QDMP seriam impor, com antecedência, metas fiscais estabelecidas para o médio prazo, em consonância com os objetivos de longo prazo da política fiscal, e alocar recursos públicos em linha com essa restrição fiscal e com prioridades estratégicas definidas de antemão.

  • Há diferenças acentuadas entre modelos de QDMP adotados atualmente nos diversos países. Caso venha a ser utilizado no Brasil, tanto no governo federal quanto eventualmente em entes subnacionais, escolhas precisarão ser feitas no que diz respeito:
  • À abrangência (inclui ou não a seguridade social; considera ou não somente as despesas primárias; contempla ou não apenas as despesas correntes);
  • Ao horizonte temporal (dois, três, quatro ou até cinco exercícios financeiros);
  • Ao caráter dos limites impostos aos exercícios futuros (apenas indicativos ou impositivos; irreversíveis ou não);
  • À forma de se desdobrar limites (por função, por programa, por ministério, por setor ou por área);
  • Ao grau de detalhamento da programação objeto do teto (agregadas por grupo de despesa, desdobradas por programas ou por ações);
  • À atualização dos limites (se ajustados pela inflação ou outro critério);
  • Às reservas de programação (para atender mudanças na conjuntura econômica; para atender novas políticas públicas);
  • À previsão de “gatilhos” (para disciplinar o excepcional descumprimento de limites e suas respectivas consequências); e
  • Ao papel do Parlamento (exigência de aprovação; apenas requerimento de ser informado; ou nenhum papel).

Se adaptado com base na exitosa experiência sueca, o teto global de gastos seria de caráter impositivo e irretratável[3], fixado anualmente na LDO para o médio prazo (até o exercício “t+2”), em base móvel, por proposta do Poder Executivo. Os subtetos seriam definidos por área temática, e impositivos apenas entre a LDO recém-aprovada e o projeto de LOA a ser submetido ao Congresso dois meses depois (e de caráter indicativo para os exercícios futuros). As atribuições do Congresso Nacional na aplicação dos recursos públicos seriam reforçadas, pois passaria a definir antecipadamente o montante máximo de gastos e como se daria a divisão desse montante entre as áreas temáticas.

Dentre outras, destacam-se as seguintes vantagens de se elaborar um QDMP em relação à orçamentação anual tradicional:

  • Impor maior disciplina fiscal ao limitar a elaboração e a execução dos orçamentos nos anos seguintes a níveis consistentes com os objetivos fiscais e setoriais de médio e longo prazos;
  • Melhorar a priorização estratégica dos gastos ao discutir antecipadamente a programação setorial dos exercícios futuros, expondo de forma clara a evolução das despesas associadas às diversas políticas públicas vis-à-vis as limitações do espaço fiscal disponível;
  • Permitir a identificação antecipada de medidas corretivas a serem adotadas para contornar rigidezes, obstáculos e eventual degradação das contas públicas no médio prazo, de forma a viabilizar os subtetos indicativos pretendidos para os exercícios seguintes;
  • Fomentar maior eficiência no planejamento intertemporal dos gastos, ao proporcionar maior previsibilidade e transparência aos gestores setoriais quanto aos recursos de que disporão nos orçamentos futuros; e
  • Reforçar aspectos antes relegados a segundo plano num ambiente cujo foco é o curto prazo, fomentando melhorias para o planejamento setorial, a avaliação de desempenho, a responsabilização e a transparência do processo alocativo.

Ademais, o arcabouço CFMP/QDMP seria uma alternativa mais interessante do que o atual Novo Regime Fiscal (NRF) para nortear a política fiscal, pois manteria a rigidez fiscal no médio prazo, com a vantagem de ser flexível no longo prazo. Por ter horizonte temporal mais curto e base móvel, admitiria a correção de curso da política fiscal no médio prazo, em sintonia com a alteração dos indicadores econômicos.

Adicionalmente, informaria melhor o Congresso Nacional a respeito da evolução das contas públicas nos anos subsequentes, dotando-o de melhores condições para calibrar o impacto financeiro de suas decisões de acordo com a trajetória desejada de evolução da dívida pública. A participação de uma Instituição Fiscal Independente robusteceria esse modelo com apoio técnico na elaboração e no monitoramento de cenários fiscais.

A mudança fundamental é o deslocamento do foco do processo de elaboração orçamentária do curto para o médio prazo, com afetação direta da forma como os recursos públicos são alocados.

Quanto ao Plano Plurianual (PPA), dentro desse novo arcabouço ele se torna dispensável enquanto instrumento legal de planejamento orçamentário no médio prazo. O PPA possui limitações estruturais que o tornaram ineficaz. Apesar dos diversos formatos tentados desde o início da década de 1990, nunca conseguiu determinar a alocação plurianual dos recursos públicos. No novo modelo de planejamento orçamentário, a tríade de “leis orçamentárias” (PPA, LDO e LOA) cederia lugar a apenas duas – LDO e LOA. A LDO incorporaria as funções de CFMP/QDMP e a LOA continuaria aprovando despesas anuais à luz de uma estrutura fiscal de médio prazo. O planejamento plurianual, em suma, não mais assumiria a forma de “lei de PPA”, mas a atividade de planejamento, evidentemente, não deixaria de existir, sobretudo em nível setorial. O planejamento central, por sua vez, poderia materializar-se por meio do ainda pouco explorado “plano de governo” a que se refere o art. 84, inciso XI, da Constituição. Para esse instrumento já existente poderia ser canalizado todo aprendizado obtido a partir da experiência histórica com o PPA.

Adicionalmente, o modelo trazido à baila deveria ser idealmente complementado por um processo de Revisão do Gasto Público (em inglês, Spending Review), a fim de evitar o comportamento inercial da “base orçamentária” existente. É preciso institucionalizar um processo de reavaliação periódica de programas, ações, vinculações orçamentárias, gastos tributários e subsídios (financeiros e creditícios). A Revisão do Gasto Público teria o objetivo de aprimorar a alocação de recursos escassos em favor de programações que propiciem maiores benefícios à sociedade. Isso permite que a redução de gastos ineficientes abra espaço fiscal para incorporação de outros mais eficientes (evitando-se também os malfadados “cortes lineares”, que muitas vezes atingem despesas correntes essenciais e investimentos). Para tal, propõem-se revisões específicas (de um ou alguns poucos setores escolhidos) no âmbito de cada projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), e uma revisão mais abrangente apresentada juntamente com o projeto de LDO do último ano do mandato presidencial (para que suas conclusões eventualmente sirvam de base para discussões políticas dos candidatos à Presidência nas eleições do mesmo ano).

Por fim, a LOA precisa dialogar melhor com a abordagem da orçamentação por desempenho (em inglês, performance budgeting). Em sua estruturação moderna, por programas, a LOA deve ser encarada como leis de fins. Isso significa que as ações orçamentárias não são “peças soltas” no ambiente de planejamento governamental. As ações finalísticas do orçamento têm compromisso com entregas na forma de bens e serviços, que por sua vez visam contribuir para a melhoria das condições socioeconômicas do País. Por isso as ações finalísticas da LOA são expressamente dotadas de produtos e respectivas “metas físicas”, que quantificam as entregas associadas a cada dotação orçamentária. Essa informação deve ser levada mais a sério. A fixação e a execução das metas físicas precisam ser consistentes e transparentes, de forma a permitir o acompanhamento da eficácia das ações orçamentárias. A LOA já divulga metas físicas, desde 1987, mas não há qualquer justificativa para os valores fixados para as metas das despesas discricionárias, nem controle social sobre a execução delas. O ideal é que haja divulgação de justificativa específica para o valor de cada meta física fixada, assim como a publicização de sua execução ao longo do ano, de forma a permitir o controle social da eficácia da ação governamental. O argumento de que tal informação eventualmente “burocratizaria” o processo orçamentário não procede. No mundo contemporâneo, altamente digitalizado, não deveria haver óbices para a disponibilização dessas informações à sociedade.

 

Referências

ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Budgeting and public expenditures in OECD countries. Paris: OECD – Publishing, 2019.

Obs.: aos leitores interessados nos temas tratados neste artigo, sugerimos adiante algumas referências pertinentes, em caráter não exaustivo:

AFONSO, José Roberto; RIBEIRO, Leonardo. Revisão dos gastos públicos no Brasil. Revista Conjuntura Econômica, set. 2020.

ALMEIDA, Dayson P.B.; BIJOS, Paulo R.S. Planejamento e orçamento no Brasil: propostas de inovação. In: SALTO, Felipe S.; PELLEGRINI, Josué A. (org.). Contas públicas no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2020.

BIJOS, Paulo R.S. Spending Review e MTEF – caminhos para maior estabilidade? [Publicação preliminar]. In: Governança Orçamentária no Brasil. COUTO, Leandro F.; RODRIGUES, Júlia M. (org.). Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2021.

COURI, Daniel V.; BIJOS, Paulo R.S. Subsídios para uma reforma orçamentária no Brasil. In: Reconstrução: o Brasil nos anos 20. SALTO, Felipe; VILLAVERDE, João; KARPUSKA, Laura (org.). Brasília: Série IDP/Saraiva, 2022.

FORTIS, Martin; GASPARINI, Carlos E. Plurianualidade: marcos de gasto de médio prazo. In: GIMENE, Márcio. (org.). Planejamento, orçamento e sustentabilidade fiscal. Brasília, DF: Assecor, 2020.

MACIEL, Pedro J.; ARAÚJO, Rafael C. Regras fiscais no Brasil: proposta de harmonização do arcabouço fiscal de médio prazo. In: GIAMBIAGI, Fábio. (org.). O futuro do Brasil. São Paulo: Atlas, 2021.

SALTO, Felipe S. O tripé orçamentário Couri-Bijos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 mar. 2022.

TOLLINI, Hélio. Deslocando o foco orçamentário do curto para o médio prazo. In: GIAMBIAGI, F.; FERREIRA, S.G.; AMBRÓZIO, A.M.H. (org). Reforma do Estado brasileiro: transformando a atuação do governo. São Paulo: Atlas, 2020.

 

[1] Consultores de Orçamento da Câmara dos Deputados.

[2] Estudo da OCDE realizado em 2019 examinou 34 países membros e concluiu que 31 deles adotam o QDMP. Desses, 25 praticam um modelo de base móvel, em que anualmente o exercício financeiro transcorrido é retirado e outro futuro acrescido. Os demais seis países utilizam periodicidade fixa, normalmente coincidente com o ciclo político (OCDE, 2019).

[3] O que não se confunde com ausência de válvulas de escape no modelo.

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Por um novo modelo de emendas ao orçamento https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3538&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-um-novo-modelo-de-emendas-ao-orcamento https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3538#comments Fri, 10 Dec 2021 13:41:20 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3538 Por um novo modelo de emendas ao orçamento

 

Por Hélio Tollini* e Paulo Bijos**

 

Introdução

 

Em ambiente democrático, é prerrogativa do Poder Legislativo participar da elaboração do orçamento público. Sobretudo em sistema presidencialista[1], de fato, nada há de intrinsecamente problemático em relação às emendas parlamentares ao orçamento proposto pelo Executivo. O que se deve discutir, sempre que necessário, é como esse processo pode ser aprimorado.

Essa discussão é pertinente para o Brasil atual, que atravessa uma crise de legitimidade em relação às emendas ao orçamento, especialmente quanto a novas modalidades criadas nos últimos anos. Tais modalidades, porém, são apenas parte de um problema maior, pois as emendas individuais e de bancada estadual também apresentam fragilidades. Sendo assim, não basta que se discutam propostas de ajustes pontuais, como as que visam ao aumento da transparência das emendas de relator-geral. Mudanças incrementais, no cenário atual, são insuficientes. É necessário que o debate público avance para discussões estruturantes, orientadas à definição de uma estratégia capaz de promover uma ampla reformulação das emendas ao orçamento.

Ofertamos neste artigo duas diretrizes principais para subsidiar a formulação de uma estratégia dessa natureza. Tais diretrizes, por sua vez, associam-se a duas indagações recorrentes no debate sobre o tema: (1) Quem deveria propor emendas? (2) Qual deveria ser o limite para emendas? Tratamos a seguir dessas duas questões. 

Quem deveria propor emendas?

O modelo atual, definido na Resolução nº 1/2006 do Congresso Nacional, permite que as emendas ao orçamento sejam de autoria: (i) dos parlamentares individualmente; (ii) das bancadas estaduais; (iii) das comissões permanentes; ou (iv) do relator-geral do projeto de lei orçamentária anual.

No modelo que propomos, a autoria das emendas seria restrita às comissões permanentes, sem prejuízo da participação individual dos parlamentares nesse processo, como explicaremos neste tópico. Ao relator-geral seriam reservadas apenas as emendas formais para correção de erros e omissões. Esse modelo se justifica pelas deficiências associadas às emendas individuais, de bancada e de relator-geral, tal como explicado a seguir.

As emendas individuais apresentam problemas, no mínimo, por dois[2] motivos. Em primeiro lugar, porque agravam a fragmentação do processo alocativo. Pelas regras em vigor, cada um dos 594 parlamentares (513 deputados e 81 senadores) pode propor até 25 emendas ao orçamento, o que possibilita que sejam apresentadas, no limite, até 14.850[3] emendas por ano. Não temos notícia de outro país cujas regras estimulem tamanha fragmentação. Em segundo lugar, as emendas individuais potencializam o paroquialismo orçamentário, por concentrarem a autoria de cada emenda em um só ator, em detrimento de formulações colegiadas e de caráter estruturante.

Registre-se, ainda, que as emendas individuais foram fragilizadas pelo advento da chamada “emenda PIX” (criada pela Emenda Constitucional nº 105/2019), que transfere recursos da União diretamente para os entes subnacionais, sem qualquer vinculação quanto às áreas temáticas abrangidas ou aos objetivos programáticos pretendidos. Se isso já não bastasse, de forma inusitada, essa modalidade de emenda afasta a fiscalização da execução dos recursos assim transferidos por parte do Tribunal de Contas da União.

As emendas de bancada estadual, ao contrário das emendas individuais, são de natureza coletiva, mas não por isso estão isentas de problemas. Afinal, as bancadas estaduais são um colegiado geográfico[4], e não uma instância especializada em políticas públicas setoriais. Por isso é preocupante que possam propor emendas em qualquer área de despesa, atribuição esta que não se harmoniza com a ideia de especialização temática. Além disso, há indícios históricos de que essas emendas podem ser divididas entre os parlamentares da bancada, gerando emendas que na prática são individuais, mas trasvestidas de coletivas (PRAÇA, 2010).

O mesmo ocorre com as emendas de relator-geral, que abrangem múltiplas áreas de despesa. Não seria plausível supor que uma só pessoa reunisse conhecimento especializado sobre áreas tão diversas como saúde, educação, saneamento, infraestrutura, defesa etc. Acresce a isso o novo uso dado a essas emendas a partir do orçamento de 2020, que passaram a se constituir no que a imprensa vem chamando de “orçamento secreto”. Tal alcunha se deve ao fato de que essas emendas, também conhecidas como “RP9”[5], não identificam publicamente o seu proponente de fato, ou seja, o deputado ou senador que será politicamente atendido pelos recursos aprovados pelo relator-geral. Na prática, com efeito, o relator-geral atua durante a execução do orçamento no exercício seguinte, fazendo indicações ao ministro competente para executar os recursos recebidos a pedido de outro parlamentar. Mais consistente, a nosso ver, seria que o relator-geral se limitasse, via emendas, a atuar apenas na correção de erros ou omissões de natureza formal[6] durante o processo de apreciação do projeto de lei orçamentária anual.

Ao encontro da introdução deste artigo, portanto, nota-se que o atual do modelo de emendas merece ser amplamente reformulado, e não apenas pontualmente ajustado. A sistemática vigente não estimula a coordenação programática entre as políticas públicas desenvolvidas pelo Poder Executivo federal e as ações locais financiadas por intermédio das emendas. As lógicas por detrás dessas duas formas de se alocar os recursos públicos são bem distintas: apesar de conter falhas, o Executivo, em tese, busca seguir um planejamento mais abrangente de suas ações, com lastro em políticas setoriais, ao passo que as emendas – ao menos no modelo atual – incentivam a atuação fragmentada baseada no paroquialismo.

Mundo afora, existem modelos alternativos de intervenção legislativa que permitiriam um processo mais robusto de apreciação orçamentária por parte do Congresso Nacional. É o que ocorre em modelos mais descentralizados[7], nos quais a comissão que possui funções orçamentárias (equivalente à nossa Comissão Mista de Orçamento) cuida da sistematização do processo, do texto do projeto de lei, das questões macrofiscais e da alocação dos recursos entre áreas temáticas, delegando às demais comissões permanentes[8] as decisões sobre emendas à programação de suas respectivas áreas de atuação.

A principal vantagem desse modelo é que decisões sobre áreas temáticas específicas ocorrem dentro de comissões especializadas nos respectivos assuntos. Por exemplo, as apropriações propostas por emendas que envolvem a área de Educação seriam decididas pelas comissões de Educação[9]; emendas na área de Defesa seriam decididas pelas comissões de Relações Exteriores e de Defesa Nacional; e assim por diante com todas as demais áreas. Em princípio, tal arranjo permitiria uma análise aprofundada, no âmbito da comissão responsável pela área temática, da totalidade da programação proposta pelo Poder Executivo vis-à-vis as modificações propostas pelos parlamentares.

Nesse novo modelo, as comissões temáticas permanentes seriam as autoras das emendas ao projeto de lei orçamentária. Decorrentes de sugestões apresentadas na comissão pelos parlamentares, essas emendas seriam postuladas pela comissão temática à Comissão Mista de Orçamento, tal como ocorre hoje. De modo exemplificativo, cada parlamentar poderia ter o direito de apresentar uma sugestão em cada comissão temática permanente. E como incentivo à especialização, também poderia propor outra emenda adicional na comissão em que fosse titular.

Entre as virtudes desse novo modelo, podemos citar: (i) maior teor estratégico das emendas, propiciado por eventuais diretrizes emanadas pelas comissões temáticas quanto aos programas ou ações que devem ser priorizados pelos parlamentares; (ii) aproximação do orçamento das políticas públicas, por conta da discussão, debate e votação das sugestões recebidas no âmbito de uma comissão que lida especificamente com a temática sob análise; e (iii) estímulo à especialização da atuação parlamentar, reforçada pela possibilidade de apresentarem maior número de emendas nas comissões em que são titulares. Com maior qualificação das emendas, tende-se a melhorar a qualidade do gasto público. 

Qual deveria ser o limite para emendas?

Uma vez definido que cabe às comissões temáticas propor emendas ao orçamento, deve-se estipular um limite para essas intervenções legislativas. No modelo aqui proposto, não se repetiria a fórmula atual aplicada a emendas individuais e de bancada estadual, ancorada em percentuais da Receita Corrente Líquida (RCL) da União. Atualmente, com efeito, os limites constitucionalmente fixados para as emendas impositivas[10] são: (i) de 1,2% da RCL para as emendas individuais; (ii) e de 1% da RCL para as emendas de bancada estadual.

Essa regra não é boa, pois é pró-cíclica, enquanto o tecnicamente recomendável é que o gasto público seja anticíclico[11]. É verdade que a Emenda Constitucional nº 95, de 2016, ao instituir o “teto de gastos”, suspendeu a vinculação das emendas à receita, atualizando-as anualmente pela inflação[12]. Mas esse efeito é apenas temporário, já que só se aplica durante a vigência do teto. Além disso, ambas as regras em nada contribuem para a superação da rigidez orçamentária, pois não geram incentivos para que se evite o comportamento irresponsável na geração de despesas obrigatórias. Afinal, independentemente do nível de despesas obrigatórias, o limite de emendas não seria comprometido pelas regras vigentes, já que seria definido com base no desempenho da receita ou no valor do ano anterior, preservado em termos reais.

Verifica-se, portanto, que as regras vigentes (relativamente à definição de limites para emendas) dedicam pouca atenção à máxima da teoria institucionalista de que “instituições importam”, ou seja, de que condicionam o comportamento humano. Na definição de Douglas North[13], instituições são regras do jogo que “estruturam incentivos no intercâmbio humano, sejam eles políticos, sociais ou econômicos”.

É por esse enfoque que, antes de se ocupar com a quantificação de um limite financeiro para emendas, deve-se ter clareza sobre qual comportamento se quer influenciar. A partir disso é que se deriva uma regra capaz de produzir o incentivo favorável a determinado comportamento. Nessa esteira, a fórmula aqui proposta fundamenta-se na seguinte lógica. Ao contrário de outros países, em que as decisões que envolvem receitas e despesas públicas se dão no âmbito da discussão orçamentária, no Brasil há um descompasso entre o processo orçamentário e o processo legislativo ordinário, que tende a estrangular as despesas discricionárias. A dinâmica é simples. Na produção de leis, criam-se despesas obrigatórias que, posteriormente, durante a elaboração do orçamento, diminuem a margem para despesas de livre alocação. No PLOA para 2022, por exemplo, as despesas discricionárias corresponderam a apenas 8% das despesas primárias da União[14].

Para mitigar esse problema, propõe-se que o limite para emendas passe a ser definido não com base na receita, nem no valor do ano anterior atualizado pela inflação, mas com base no tamanho das despesas discricionárias. Desse modo, caso o Legislativo se comporte de forma imprudente no processo legislativo ordinário, com descontrole na geração das despesas obrigatórias, ou com inércia na sua revisão, menor se torna a margem discricionária e, por consequência, o espaço para emendas.

A estratégia aqui proposta parte desse princípio, mas vai além ao considerar que parte da despesa discricionária é constituída por gastos rígidos, como os de custeio da máquina pública (água, luz, limpeza etc.). Por esse motivo, propomos que o limite para emendas seja fixado como percentual dos investimentos constantes dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social (OFSS)[15] nos projetos de lei orçamentária anual, observadas as restrições fiscais pertinentes[16]. Desse modo a regra incidiria sobre despesas discricionárias do tipo “puro-sangue”, com estímulo específico ao aumento dos investimentos públicos, que se situam em níveis históricos bastante deprimidos, inferiores a 1% do PIB, com trajetória de queda desde 2013; no PLOA 2022, constam apenas R$ 25,7 bilhões para esses investimentos[17].

A definição sobre qual deve ser o percentual dos investimentos que serviria de limite para emendas, todavia, é uma decisão de arbitragem política que compete ao próprio Legislativo para autolimitar seu poder de interferir na definição do gasto público. 

Conclusão

Buscamos demonstrar, neste artigo, que o atual modelo de emendas ao orçamento contém problemas conceituais e estruturais que tendem a afastá-lo de discussões qualificadas sobre políticas públicas. As emendas são formuladas de forma fragmentada e paroquialista, ou então de modo colegiado, porém não especializado, com fraca conexão ao planejamento governamental. Além disso, modalidades específicas, como as emendas “PIX” e as “RP9”, agravam ainda mais o problema apontado.

Para superar esse quadro, propomos a adoção de um novo modelo, que não seria alcançado por meio de ajustes finos, mas mediante uma reforma estrutural capaz de conferir maior protagonismo às comissões permanentes do Legislativo, reservando-lhes o papel de instância formuladora de emendas ao orçamento. Ao homenagear a especialização temática legislativa, vislumbra-se que o novo modelo possa contribuir para uma melhor qualificação das emendas, ampliando sua legitimidade, em benefício da qualidade do gasto público.

Ao mesmo tempo, propõe-se que as emendas sejam articuladas com um sistema de incentivos mais estratégico para a gestão do gasto público, a fim de que as despesas discricionárias não sejam constantemente reduzidas. Para isso, sugere-se limitar o valor agregado das emendas ao orçamento a um percentual dos investimentos contidos nos orçamentos fiscal e da seguridade social. Sob essa sistemática, os legisladores teriam melhores incentivos para evitar que as despesas obrigatórias aumentassem de forma descontrolada a ponto de estrangular as discricionárias, em especial os investimentos públicos. 

 

Referências

BIJOS, Paulo R.S. Governança legislativa orçamentária: da fragmentação paroquialista à priorização estratégica. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2021. 77 p. (Estudo Técnico n. 8. mai. 2021).

BRASIL. Câmara dos Deputados. Raio-X Orçamento 2022 – PLOA. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2021a. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/raio-x-do-orcamento/raio-x-2021/raio-x-do-orcamento. Acesso em: 6 dez. 2021.

BRASIL. Congresso Nacional. Nota Técnica Conjunta nº 5, de 2021 – CONORF/SF – CONOF/CD – Subsídios à Apreciação do Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) para 2022 – PLN 19/2021-CN. Brasília, DF: Congresso Nacional, 2021b. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/leis-orcamentarias/loa/2022/tramitacao/notas-tecnicas-e-informativos-conjuntos. Acesso em: 6 dez. 2021.

NORTH, Douglas C. Instituições, mudança institucional e desempenho econômico. São Paulo: Três Estrelas, 2018.

PRAÇA, Sérgio. A evolução das instituições orçamentárias no Brasil, 1987-2008. 2010. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

RAILE, Eric D.; PEREIRA, Carlos; POWER, Timothy J. The Executive Toolbox: Building Legislative Support in a Multiparty Presidential Regime. Political Research Quarterly, v. 64, n. 2, p. 323-334, 2011.

TOLLINI, Hélio M. Em busca de uma participação mais efetiva do Congresso no processo de elaboração orçamentária. Brasília, DF: Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados, 2008.

TOLLINI, Hélio M. Deslocando o foco orçamentário do curto para o médio prazo. In: GIAMBIAGI, F.; FERREIRA, S.G.; AMBRÓZIO, A.M.H. (orgs). Reforma do Estado brasileiro: transformando a atuação do governo. São Paulo: Atlas, 2020.

WEHNER, Joachim. Legislatures and the budget process: the mith of fiscal control. New York: Palgrave Macmillan, 2010.

 

[1] No sistema parlamentarista de governo, a aprovação de emendas orçamentárias pode significar um voto de desconfiança no governo e ensejar a sua queda (WEHNER, 2010). Já no sistema presidencialista, em que a separação de poderes é mais pronunciada, as emendas são instrumentos naturais de intervenção legislativa no orçamento. Além disso, em presidencialismos multipartidários, também são instrumentos utilizados pelo Chefe do Executivo na gestão de coalizões (RAILE; PEREIRA; POWER, 2011).

[2] Também se poderia discutir se as emendas individuais prejudicam o processo competitivo eleitoral, favorecendo parlamentares que podem destinar recursos para suas bases “em nome próprio”.

[3] Os valores efetivamente realizados constam em Bijos (2021).

[4] As bancadas estaduais são constituídas pelo conjunto de deputados e senadores eleitos em cada Estado ou Distrito Federal.

[5] O “RP9” é a sigla utilizada para identificar as emendas “de mérito” de autoria do relator-geral do projeto de lei orçamentária anual (PLOA). Ao contrário das emendas que se restringem a corrigir erros ou omissões de ordem técnica, as emendas de mérito promovem alterações em programações constantes do PLOA ou inclusão de programações novas, conforme disposto no art. 7º, § 4º, II, “c”, “4”, da Lei nº 14.116, de 2020.

[6] Historicamente, as emendas de relator-geral sempre foram utilizadas para promover os necessários ajustes técnicos no projeto de lei orçamentária. Ao longo dos anos, passam também contemplar finalidades/ações específicas definidas ex-ante anualmente no parecer preliminar. As emendas de mérito, porém, só se tornaram claramente identificáveis a partir da LOA 2020.

[7] Conforme originalmente proposto por Tollini (2008).

[8] No modelo proposto, todavia, preserva-se a atribuição constitucional da CMO como instância responsável pelo recebimento e apreciação das emendas.

[9] No Senado, pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte.

[10] São as de execução obrigatória, mas sujeitas a contingenciamento proporcional ao do Executivo.

[11] A ideia subjacente, associável à fábula “A Cigarra e a Formiga”, é de que o governo crie poupança em períodos de prosperidade para utilizá-la em momentos de crise.

[12] Conforme disciplinado pelo art. 111 do ADCT e pelo art. 3º da EC 100/2019.

[13] Em “Instituições, mudança institucional e desempenho econômico” (NORTH, 2018, p. 13).

[14] Segundo metodologia constante do informativo “Raio-X Orçamento 2022 – PLOA”, elaborado pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira (CONOF) da Câmara dos Deputados (BRASIL, 2021a).

[15] Não seriam considerados os investimentos constantes das empresas estatais não dependentes, que compõem o Orçamento de Investimento (OI).

[16] Idealmente, sob a abordagem de um Quadro de Despesas de Médio Prazo (TOLLINI, 2020).

[17] O cenário indicado consta da Nota Técnica Conjunta nº 5/2021, elaborada pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados e pela Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal, como subsídio para a apreciação do PLOA 2022 (BRASIL, 2021b).

 

* Hélio Tollini é consultor de orçamento da Câmara dos Deputados e ex-secretário da Secretaria de Orçamento Federal.

** Paulo Bijos é consultor de orçamento da Câmara dos Deputados

 

 

 

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