Fernando B. Meneguin e Tomás T. S. Bugarin – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 15 Aug 2016 11:59:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.1 A ineficiência é sempre injusta? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2833&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-ineficiencia-e-sempre-injusta https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2833#comments Mon, 15 Aug 2016 11:59:25 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2833 Em meio à reconhecida polarização política, parece haver consenso quanto a um relevante tema: é preciso evitar que as instituições do Estado sejam apropriadas por interesses corporativos. Com justo motivo, personalidades de todos os espectros partidários, integrantes dos três Poderes republicanos, já externaram preocupações nesse sentido, desde o então Ministro-Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República,  Gilberto Carvalho (2014), passando pelo Senador Cristovam Buarque (2016), até o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes (2016).

O justificado receio possui variados fundamentos. O mais evidente é que, ao tornar o Estado refém das corporações, acaba-se por corromper a representação parlamentar democrática, a tecnocracia executiva e a imparcialidade judicial. Contudo, há outra disfunção causada pelo fenômeno, que tem sido menos alardeada, apesar dos graves impactos econômicos gerados: a “miopia” ocasionada pela condução estatal por interesses segmentados imediatistas pode ser altamente nociva à realização do interesse público primário.

Tal “miopia” turva a perspectiva distante, isto é, de longo prazo; assim, os tomadores de decisões – Chefes do Executivo, parlamentares ou mesmo juízes – acabam se orientando unicamente pelos efeitos de curto prazo. Aliás, mesmo quando inexiste a pressão de grupos setorizados, por vezes as deliberações não maximizam o bem-estar. A esse respeito, a Análise Econômica do Direito tem muito a contribuir, conforme se verá no transcorrer destas linhas.

Quando se utiliza o instrumental da Análise Econômica do Direito para analisar normas jurídicas1, é comum procurar saber se determinada legislação (ou decisão) melhora ou piora a eficiência da sociedade. Afinal, é sabido que as normas criam um conjunto de incentivos aos indivíduos e empresas, com reflexos sobre a eficiência das transações econômicas.

A norma, ao aprimorar a eficiência da sociedade, contribui para o crescimento econômico, seja por via direta ao estimular a atividade econômica, seja por via indireta ao propiciar a redução de desperdícios de recursos públicos, como, por exemplo, quando foca melhor o alvo de um programa social.

No entanto, há que se ter em mente a existência de um possível dilema entre eficiência de curto prazo e de longo prazo quando acontece uma mudança regulatória. É possível que, num primeiro momento, exista uma perda de bem-estar social, mas, quando se considera a eficiência intertemporal e seu reflexo no crescimento econômico, a nova legislação pode ser considerada pertinente.

Cootere Schäfer(2012) discutem essa perspectiva com enfoque na inovação e seu papel no crescimento econômico. Começam com um exemplo em que não existe o dilema citado, como na regulação que combate cartéis. Nesse caso, a lei, que proíbe e penaliza a formação de cartéis, atua positivamente nas duas frentes, promovendo, a um só tempo, crescimento e eficiência, no curto e no longo prazo. Ao propiciar uma concorrência mais acirrada, a lei contribui para uma maior eficiência incentivando a inovação (oligopólios e monopólios tendem a não inovar, pois seus detentores não querem perder a posição privilegiada no mercado). Além disso, o fim dos lucros extraordinários incentivará o consumo, assim propiciando maior crescimento econômico (e menor concentração de renda).

Nesse caso, a mudança implementada por essa lei pode ser representada na Figura 1 por um deslocamento do ponto A para o ponto B, ou seja, acarreta mais eficiência e mais crescimento.

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No entanto, há leis nas quais há um claro trade-off no curto prazo, como as que asseguram a exclusividade na exploração de direitos de propriedade intelectual. Ganha-se de um lado, mas perde-se do outro.

A criação da propriedade intelectual justifica-se por conta de um problema econômico: uma falha de mercado que impede o oferecimento de um nível eficiente de inovação. Para resolver essa falha de mercado, criou-se, dentre outros institutos, a patente, que é um monopólio jurídico temporário para quem criar uma inovação, garantindo ao autor da invenção condição de obter retorno para os recursos investidos no processo de geração da nova tecnologia (Dosi, Marengo e Pasquali, 2007).

Como todo monopólio, a patente traz uma ineficiência embutida. O inventor, por ter poder de mercado, pode colocar o preço para a utilização de seu produto em um valor bem acima do ótimo social. Na prática, isso significa que a inovação será disseminada, mas não tanto quanto poderia ser.

Cooter e Edlin (2010) discutem esse dilema entre eficiência estática e crescimento econômico, provando que a perda de bem-estar no curto prazo pode ser compensada por ganhos nos próximos períodos (Welfare Overtaking Theorem).

No caso das patentes, desenvolvem o seguinte  raciocínio: o custo gerado num primeiro momento (preço mais alto, tanto em razão da ausência de concorrência, como para recuperar o investimento inicial necessário ao desenvolvimento da inovação), com consequente queda no consumo, pode ser compensado no longo prazo com uma maior taxa de crescimento que se sustente (estímulo ao investimento necessário para avanços tecnológicos).Ou seja, no longo prazo a queda de eficiência inicial terá sido compensada. Isso fará com que a nova norma seja eficiente do ponto de vista intertemporal, apesar de, no curto prazo, trazer embutida uma ineficiência.

Outro exemplo elucidativo sobre essa ocorrênciaé encontrado nos debates envolvendo o novo Código de Processo Civil. Esteve presente, no transcorrer de toda a sua elaboração, a preocupação acerca das diversas inovações contempladas no diploma. Decerto, haverá um custo inicial de adaptação (dos operadores do direito em geral), tanto na adequação à nova sistemática, como na interpretação dos comandos mais complexos. Acredita-se, todavia, que o benefício social experimentado no longo prazo superará a perda inicial de bem-estar.

Nesse caso, a perda de eficiência num primeiro momento consegue ser compensada por benefícios de médio e longo prazos a superarem o custo inicial? O fato de o país contar com uma legislação processual mais moderna trará maior crescimento econômico nos períodos seguintes? Em caso positivo, na Figura 1, esse movimento seria representado pela mudança do ponto B para o ponto C.

Outras aplicações do Welfare Overtaking Theorem podem ser encontradas no ordenamento jurídico brasileiro, como em tópicos constantes do direito falimentar. A lógica está presente no afastamento da sucessão nas dívidas tributárias e trabalhistasdo adquirente de filiais no âmbito da falência e da recuperação judicial (art. 60, parágrafo único e art. 141, II, ambos da Lei 11.101/05); do mesmo modo, na previsão da suspensão das execuções em curso contra o devedor quando este tem deferido o processamentodo seu pedido de recuperação judicial (art. 6º da Lei 11.101/05).Nos dois casos, há a imposição de uma ineficiência inicial, pois se dificulta o adimplemento obrigacional, por motivos óbvios. Em contrapartida, no primeiro caso, criam-se condições que facilitam a realização do ativo a preço próximo do real, assim viabilizando o pagamento dos credores e, em alguns casos, a continuidade da empresa; e, no segundo caso, se favorece a coordenação dos interesses dos credores no recebimento integral do crédito e concede-se, à empresa recuperada, um período para a sua reestruturação, com vistas a um retorno futuro. No médio e longo prazo, portanto, as medidas propiciam benefícios aos trabalhadores, credores e Estado, embora contemplem uma ineficiência de curto prazo.

A lição a ser extraída do teorema é que não se deve atentar tanto para ineficiências iniciais decorrentes da legislação, desde que essas ineficiências sejam comprovadamente superadas por aumento na taxa de crescimento econômico que se sustente no decorrer do tempo. Assim, deixar de aprovar determinada norma ou política pública porque há uma perda momentânea, desconsiderando os benefícios futuros, é entravar a realização do interesse público na maior extensão possível.

Há que se frisar, no entanto, que também existem ações governamentais extremamente deletérias fazendo o oposto, pois geram aparente aumento do bem-estar num primeiro momento, mas criam uma ineficiência que se propaga de forma negativa por várias gerações. Normalmente, essas ações nocivas estão relacionadas à incapacidade de o governo recusar o atendimento a pedidosde grupos de interesses ou à necessidade de obter rápido retorno eleitoral. Nesse conjunto, incluem-se atos que promovem o agravamento do déficit fiscal em detrimento de toda a sociedade.

Na literatura econômica, esse assunto é conhecido como Political Budget Cycle (“ciclos políticos orçamentários”, Rogoff, 1990). O autor discute a estratégia do governante que tende a distorcer a política fiscal, cortando tributos, aumentando transferências e promovendo gastos que tenham visibilidade imediata. Tal comportamento do governante, provavelmente, geraria ou agravaria uma situação de déficit fiscal. Segundo esse estudo, o político mais votado é aquele que tende a gerar maior desequilíbrio nas contas públicas, contrariamente ao político preocupado com os recursos do Estado. Isso acontece porque se mostra mais eficiente, sob uma perspectiva de curto prazo, aquele que gera maiores déficits.

A esse respeito, advertiu Fernando Henrique Cardoso (2016):

Essa constatação [da desigualdade] só aumenta a angústia e a responsabilidade dos que dela têm noção. Vivemos no Brasil, à nossa moda, algo disso. Há responsáveis, mas não vem ao caso acusar. Provavelmente alguns deles, se forem intelectualmente honestos, estão se perguntando: por que não vi antes que endividar irresponsavelmente o País, mesmo que a pretexto de aumentar momentaneamente o bem-estar do povo e criar ilusões de crescimento econômico, é algo ruinoso, que as gerações futuras pagarão? Exemplo simples: quando foi derrotada a emenda na Previdência Social de meu governo que definia uma idade mínima para as aposentadorias, não faltou quem gritasse vitória. Alguns dos mesmos que década depois se deram conta de que não se tratava de “neoliberalismo”, mas de projetar no futuro próximo as consequências financeiras de tendências demográficas inelutáveis. Diante do estrago, não adianta chorar: é darmo-nos as mãos e ver se encontramos caminhos.

Sabemos que justiça e eficiência são conceitos distintos, mas, como ensina Timm (2014, p. 28), “a ineficiência é sempre injusta“, especialmente num país com extrema desigualdade social como o Brasil, no qual se deveria evitar com todas as forças o desperdício de recursos públicos.

Com a discussão realizada neste texto, podemos lapidar a advertência de Timm para esclarecer que a ineficiência poderá ser injusta quando o crescimento econômico no médio ou longo prazo não a superar e, para tanto, faz-se necessária a análise do impacto das normas e das políticas públicas numa perspectiva intertemporal, sob o risco de se deixar de tomar medidas positivas caso se considere somente o momento presente ou ainda pior, o risco de se decidir algo que trará malefícios para as gerações futuras. O Welfare Overtaking Theorem expõe um dos mais lesivos efeitos da “captura” do Estado por corporações: condicionar a atuação estatal ao atendimento de interesses imediatista, sem sopesá-los com a eficiência intertemporal e o bem-estar de longo prazo.

 

O presente texto está baseado no paper “O Dilema entre a Eficiência de Curto e de Longo Prazo no Ordenamento Jurídico e o Impacto no Crescimento Econômico”, disponível em http://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/TD200

 

Referências Bibliográficas

BRITO, Adriano (2016). PT se “autoassassinou” e governo está em fase terminal, diz ex-ministro de Lula, BBC Brasil, 22/01/2016. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160122_entrevista_cristovam_buarque_ab. Acesso em: 02/08/2016

CARDOSO, F. H. (2016). Um pouco de bom senso. Estadão, Opinião, 03/07/2016. Disponível em: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,um-pouco-de-bom-senso,‌10000060660. Acessoem 10/07/2016.

COOTER, R.; Edlin, A. (2010). Law and Growth Economics: A Framework for Research. Berkeley Program in Law and Economics, Working Paper Series. Disponívelem: http://escholarship.org/uc/item/50t4d0kt

COOTER, R. D.; Schäfer, H. B. (2012). Solomon’s knot: how law can end the poverty of nations. New Jersey: Princeton University Press.

DOSI, G.; Marengo, L.; Pasquali, C. (2007). Knowledge, competition and innovation: is strong IPR protection really needed for more and better innovations? Disponível em http://repository.law.umich.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1093&context=mttlr. Acesso em 28/06/2016.

MARETTI, Eduardo (2014). Interesses corporativos impedem reformas no país, afirma Gilberto Carvalho, Rede Brasil Atual, 24/04/2014. Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2014/04/interesses-corporativos-impedem-reformas-no-pais-afirma-gilberto-carvalho-3731.html. Acesso em: 03/08/2016.

SALES, Robson (2016). Gilmar Mendes: Impeachment está “a caminho de se concretizar”, Valor Econômico, 10/06/2016. Disponível em: http://www.valor.com.br/politica/4596367/gilmar-mendes-impeachment-esta-caminho-de-se-concretizar. Acesso em: 03/08/2016.

TIMM, L. B. (2014). Direito e Economia no Brasil. Editora Atlas, São Paulo.

_____________

1 O termo “normas jurídicas” é utilizado, aqui, em sentido bastante amplo, incluindo leis de efeitos abstratos e concretos, atos administrativos e mesmo decisões judiciais (enquanto normas do caso concreto).

 

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Qual o critério para ser miserável no Brasil? (e como o Judiciário agrava a miséria) https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2444&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=qual-o-criterio-para-ser-miseravel-no-brasil-e-como-o-judiciario-agrava-a-miseria https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2444#comments Mon, 23 Mar 2015 13:22:09 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2444 A Constituição Federal de 1988 assegurou ao idoso e ao portador de deficiência que comprovarem não possuir meios de prover a própria subsistência, ou de tê-la provida por sua família, o direito à percepção de um salário mínimo mensal, a título de benefício assistencial (art. 203, V).

Esse é o Benefício do Prestação Continuada, regulamentado pela Lei nº 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS), com a atual redação dada pela Lei nº 12.435/11. Nessa norma, estabeleceu-se que se considera “incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo” (art. 20, § 3º).

Desta forma, segundo a LOAS, há dois requisitos que devem ser atendidos em situação de cumulativa ocorrência para que o cidadão faça jus ao benefício assistencial: (i) ser idoso ou portador de deficiência; e (ii) encontrar-se em situação de miserabilidade econômica, ocorrente quando a renda familiar per capita for inferior a ¼ do salário mínimo nacional.

Já se discutiu neste site o custo do Benefício de Prestação Continuada no texto “Qual o programa assistencial mais caro do Brasil? (Não é o Bolsa Família)”, no qual se mostrou que o BPC é o programa social que mais onera os cofres públicos, superando inclusive o dispêndio com o Bolsa Família. Estima-se que em 2015 o gasto será de quase R$ 42 bilhões, havendo ainda questionamento quanto à sua eficiência, pois, em relação à pobreza, o BPC não é considerado o instrumento mais efetivo para reduzi-la.

Inicialmente, cumpre salientar que este padrão objetivo de aferição de miserabilidade foi estabelecido por Lei e, portanto, foi alvo de aprofundada reflexão no Poder Executivo e no Legislativo, onde se entendeu que a concessão do benefício àqueles que comprovassem renda familiar inferior a ¼ do salário mínimo não oneraria demasiadamente o erário, e que a instituição dessa política pública, tal como preconizado pelo constituinte, seria salutar, nos moldes desenhados pela Lei nº 8.742/93.

Seguindo os ditames legais, a administração pública passou a negar a concessão do benefício assistencial ao idoso ou deficiente que integrava família com renda per capita superior ao limite máximo legalmente estabelecido. Muitas dessas pessoas recorreram ao Poder Judiciário, pleiteando o estabelecimento do benefício, a despeito do não preenchimento de um dos requisitos.

A orientação predominante nos Tribunais Regionais Federais firmou-se pela possibilidade da concessão do benefício assistencial, ainda que a renda familiar per capita superasse ¼ do salário mínimo, desde que houvesse outros elementos que indiciassem a situação de miserabilidade econômica (e.g. necessidade de comprar remédios caros não fornecidos pelo SUS, custear tratamento médico especializado, contratar enfermeira).

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, consolidou-se que “A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo1.

Em 1998, o STF, divergindo do entendimento jurisprudencial prevalecente, reconheceu a constitucionalidade do critério legal matemático estabelecido na LOAS, ao julgar improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.232/DF. Naquela oportunidade, consignou o Min. Nelson Jobin que “compete à lei dispor sobre a forma de comprovação. Se a legislação resolver criar outros mecanismos de comprovação, é problema da própria lei. O gozo do benefício depende de comprovar na forma da lei, e esta entendeu de comprovar dessa forma [1/4 do salário mínimo per capita]. Portanto, não há interpretação conforme possível, porque, mesmo que se interprete assim, não se trata de autonomia de direito algum, pois depende da existência da lei, da definição2.

Assim, naquela ocasião, o Supremo Tribunal Federal foi deferente à decisão dos Poderes Legislativo e Executivo.

Todavia, em 2013, a própria Corte Suprema reviu seu posicionamento quando do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 567.985/MT. Os ministros passaram a admitir que outros critérios fossem utilizados pelos magistrados para aferir a miserabilidade econômica dos postulantes ao benefício assistencial.

O fundamento da reversão jurisprudencial (overruling) foi, em síntese: (i) que o parâmetro objetivo legalmente estabelecido poderia acarretar a exclusão do direito assistencial a pessoas miseráveis, que realmente precisariam do auxílio estatal; e (ii) que, “Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei nº 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei nº 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei nº 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei nº 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas”.

Ao desconsiderar a escolha política (1/4 do salário mínimo), o STF acabou exercendo, obliquamente, controle de decisões técnicas de órgãos políticos (Presidência da República e Casas do Congresso Nacional).

Desde essa decisão paradigmática, os Tribunais, de forma amplamente majoritária, se não unânime, têm aceitado outras provas de miserabilidade, reconhecendo o direito à percepção de um salário mínimo legal mesmo para aqueles que auferem renda familiar per capita superior a ¼ do salário mínimo3.

Já se discutiu também neste site qual é o ponto ótimo de intervenção do Poder Judiciário nas políticas públicas, considerando o bem-estar da sociedade (Qual a quantidade ótima de intervenção judicial nas políticas públicas?). No presente caso, relativo à definição do conceito de miserabilidade, não há negar que a intervenção do Judiciário colaborou para colocar o BPC como o programa assistencial mais caro do País. Alargam-se os benefícios vinculados aos direitos sociais, mas não se prevê uma harmonização entre esses direitos e os recursos disponíveis para a concretização das políticas públicas (regra da contrapartida), tampouco com a necessidade de aplicação dos escassos recursos em outras finalidades que poderiam gerar maior bem-estar à sociedade.

Para agravar a situação, consagrou-se situação de insegurança jurídica que apenas sobrecarrega o próprio Judiciário. Isso porque a administração deve sempre pautar sua atuação em lei. Assim sendo, está impedida de apreciar se, no caso, apesar da renda familiar superar ¼ do salário mínimo, o postulante está em situação de miserabilidade (uma vez que a lei não lhe confere tal discricionariedade e, ainda que assim não fosse, a autoridade administrativa possui limitados instrumentos para apurar a condição social e econômica do requerente). Logo, só resta ao pretenso beneficiário recorrer ao Judiciário e, em realidade, por vezes nem mesmo ele sabe se faz jus ao benefício, já que a aferição da miserabilidade passou a ser bastante flexível e subjetiva.

Em outras palavras, o STF permitiu que mais pessoas sejam enquadradas como miseráveis sem realizar prévio estudo técnico quanto ao impacto orçamentário de sua decisão. Indo além, desconsiderou o critério objetivo traçado pelos Poderes Executivo e Legislativo. Tal proceder, que poderia ser qualificado por alguns como “ativista”, impõe um enorme custo social que suga considerável alocação orçamentária para atender às demandas judiciais, restando menos recursos para o desenvolvimento de políticas públicas que poderiam atender à sociedade de forma generalizada e criando mais obstáculos para o desenvolvimento econômico.

___________

1REsp (Recurso Especial) nº 1.112.557/MG, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, STJ – 3ª Seção, DJe 20/11/2009.

2ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 1.232-1/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, STF – Pleno, julgado em 27/08/1998.

3Nesse sentido, ver TRF-1, AC 180146120134019199, DJe 16/10/2013; TRF-2, AC/RE 201402010065423, DJe 09/10/2014; TRF-3, AC 00337173720124039999, DJe 13/09/2013; TRF-4 AG 200104010887366; e TRF-5, REO 00034470620104058201.

 

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