Raul Velloso e Paulo Springer de Freitas – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 04 Jul 2016 12:35:40 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 A desvalorização do real será suficiente para tirar o Brasil da crise? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2813&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-desvalorizacao-do-real-sera-suficiente-para-tirar-o-brasil-da-crise https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2813#comments Mon, 04 Jul 2016 12:35:40 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2813 A se confirmarem as expectativas, o biênio 2015/16 trará uma queda acumulada do PIB de 7,5%, ou quase 10% em termos per capita. Em que pese mudanças de metodologia ao longo do tempo, esta será, certamente, a maior retração da economia brasileira, no mínimo, no período Pós-Guerra. Há uma crise de confiança, que vem impedindo a economia de reagir: desconfiança em relação à sustentabilidade das contas públicas, à evolução da inflação e ao apoio político que o presidente (seja o presidente interino, seja a presidente afastada) conseguirá obter.

Em grande parte decorrente dessa crise de confiança (sem ignorar problemas externos), houve significativa depreciação do real nos últimos anos: entre o primeiro semestre de 2014 (cotação média de R$ 2,30) e os primeiros cinco meses de 2016 (cotação média de R$ 3,70), o real depreciou-se em mais de 60%. Será que essa mudança de preços relativos será capaz de estimular nossa economia e tirar o País da crise?

Vários analistas acreditam que sim. Segundo esse argumento, há uma capacidade ociosa decorrente de escassez de demanda. A depreciação cambial torna nossas exportações mais competitivas, bem como incentiva a produção de nossa indústria substituidora de importações. O aumento da produção industrial irá, aos poucos, aumentando o nível de emprego, gerando renda que se reverterá em consumo, estimulando outras atividades, até que a economia retorne aos trilhos do crescimento.

Entendemos que esse raciocínio esteja correto até certo ponto. Concordamos que o câmbio poderá contribuir para ocupar a capacidade ociosa atualmente existente. Mas, além de fricções importantes, no longo prazo, o atual modelo de econômico, que gera baixa poupança, é incompatível com câmbio depreciado e altas taxas de crescimento. Seguem os argumentos.

Em primeiro lugar, conforme frequentemente divulgado1, o Brasil é muito fechado, de forma que o setor externo, mesmo crescendo bastante, teria pouca capacidade de alavancar a economia como um todo. Seria como esperar que o rabo abanasse o cachorro. Há também fatores conjunturais que podem dificultar o avanço de nossas exportações, como o menor crescimento do comércio internacional observado nos últimos anos.

O maior problema que vemos, contudo, é que a recuperação da atividade teria de vir via indústria. Temos dois grandes setores exportadores. Um é o produtor de commodities, no qual temos vantagens comparativas. Uma depreciação cambial certamente contribuirá para aumentar as exportações do agronegócio, mas, em larga medida, esse impacto tende a ser de menor importância. Mesmo porque, nossa taxa de câmbio é fortemente influenciada pelo preço internacional de commodities, de forma que há uma correlação negativa entre esse preço e o valor do real. Assim como a apreciação cambial de meados da década passada até o início desta foi, em parte, causada pelo boom de commodities, a depreciação recente também está associada à deterioração de nossos termos de troca (sem prejuízo do impacto causado por erros da política econômica). Dessa forma, o preço em reais recebido pelos exportadores de commodities tende a flutuar bem menos do que a taxa de câmbio.

O outro setor com potencial de exportação é a indústria de transformação. Em nosso entendimento, o principal obstáculo para que a depreciação cambial leve ao crescimento sustentável da economia é o fato de o Brasil adotar um modelo de baixa poupança, que impõe sérios limites ao crescimento da indústria de transformação.

Não iremos discutir aqui por que nossa taxa de poupança é baixa, mas cabe mostrar os principais números2. Em 2015, a taxa de poupança doméstica (que constitui a soma da poupança do governo e com a do setor privado) atingiu o mínimo da década, 14,4% do PIB. Desde 2010, a maior taxa observada ocorreu em 2011, quando atingiu 18,5% do PIB3. Para se ter uma base de comparação, de acordo com o World Economic Outlook de abril de 2016, publicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), em 2015, a taxa média de poupança dos países emergentes foi de 31,4%. Na América Latina era de 17,6%4 e, na Ásia emergente, de 41,5%, não por acaso, a região que cresce mais rapidamente no mundo!

É possível que, superadas algumas rigidezes de curto prazo, a indústria de transformação cresça, ocupando a capacidade ociosa existente. Mas, uma vez que a economia passe a operar com plena capacidade, as perspectivas de crescimento são mínimas. Uma economia de baixa poupança implica baixo nível de investimento para a economia como um todo. Mostraremos agora que isso é particularmente verdadeiro para a indústria de transformação.

Para entender porque o modelo pró-consumo/baixa poupança tende a desestimular investimentos, devemos observar o movimento dos preços relativos. Quando os gastos da economia superam a sua produção, a única forma de atender ao excesso de demanda é importando. Havendo condições externas favoráveis (leia-se, com o mundo disposto a financiar o Brasil), os preços relativos se movimentam na direção de garantir que o real se valorize, tornando as importações mais baratas. A apreciação do real se dá por meio de mudança nos preços relativos entre bens comercializáveis – chamaremos, para simplificar, de bens industriais – e de não comercializáveis, que chamaremos, também para simplificar, de serviços. Não trataremos aqui do setor produtor de commodities5, que também são comercializáveis, porque, conforme já comentamos, o Brasil apresenta enormes vantagens comparativas em sua produção, de forma que, mesmo havendo apreciação da taxa de câmbio, o País permanece competitivo e mantém elevados níveis de exportação.

Se a demanda aumenta além da capacidade de oferta da economia, a tendência é o preço dos serviços subir mais rapidamente do que o da indústria. Afinal, por não serem comercializáveis, os serviços não sofrem concorrência externa. Quando o preço dos serviços sobe (em relação ao dos bens industriais), os fatores produtivos se dirigem para o setor, fazendo com que sua participação no PIB aumente, à custa da participação da indústria de transformação. O Gráfico 1 mostra a evolução dos preços relativos (mensurada pela relação entre o deflator implícito da indústria de transformação/deflator implícito do setor serviços) e a participação da indústria de transformação no PIB.

Gráfico 1: Evolução da participação da indústria de transformação no PIB e de seu preço relativo, 2001 a 2015.

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Entendemos que a direção de causalidade vai no sentido de variação dos preços relativos alterar a participação da indústria no PIB. Portanto, para entender o atual (fraco) desempenho da indústria de transformação, é importante ver como os preços relativos evoluíram nos anos recentes e por quê.

A queda dos preços relativos a partir de 2011 decorre da política de expansão de gastos e da baixa taxa de poupança, em um contexto de forte liquidez internacional de capitais, que viabilizaram o déficit crescente no balanço de pagamentos.         Conforme o Gráfico 2 mostra, o período de forte queda de preços relativos, entre 2010 e 2014, foi acompanhado de aumento substancial no déficit em transações correntes.

Gráfico 2: Saldo em transações correntes (em USD milhões) e preço relativo da indústria de transformação (base 2010 = 100), 2000 a 2015.

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O movimento de alteração de preços relativos se reverteu em 2015. Entretanto, conforme mostrou o Gráfico 1, a indústria de transformação ainda não reagiu e continuou vendo reduzir sua participação no PIB. Não seria de se esperar que, com a depreciação cambial, a indústria de transformação reagisse?

A resposta seria afirmativa se a depreciação cambial implicasse mudança de preços relativos. Em verdade, a relação de preços comercializáveis/não comercializáveis é a mensuração correta da taxa de câmbio, se o objetivo é avaliar as condições de competitividade da indústria. O Gráfico 2 mostrou que houve, de fato, uma pequena melhora nos preços relativos em 2015 (3,5%), mas foi substancialmente inferior à depreciação cambial (acima de 30%, em termos nominais, comparando média de um ano em relação ao ano anterior, ou de quase 20%, quando se deduz, da depreciação nominal, a inflação medida pelo IPCA)6.

Esse comportamento dos preços relativos é, em certa medida surpreendente, porque, para uma economia sem imperfeições de mercado, o preço dos bens comercializáveis deveria se igualar ao preço internacional convertido na moeda doméstica. Com a forte depreciação cambial ocorrida, deveríamos esperar, portanto, que o preço dos produtos industriais se elevasse fortemente em relação ao dos serviços. Como isso não ocorreu, ou seja, como a inflação dos produtos industriais foi bem mais baixa do que a depreciação cambial, podemos concluir que esse setor não é tão comercializável como se poderia supor a priori. Há fricções que impedem o ajuste dos preços domésticos.

Essas fricções podem decorrer de vários fatores. As empresas podem ter “desaprendido” a exportar. Ao contrário do setor de commodities, que fornece um bem homogêneo, a indústria precisa convencer seus potenciais compradores que seu produto é melhor do que o do concorrente. Muitas vezes a exportação só é viabilizada se vier acompanhada de financiamento, o que está muito difícil diante da atual conjuntura, com dificuldade de ampliação dos créditos do BNDES e elevação do risco Brasil, que encarece o empréstimo de empresas brasileiras no exterior. É também necessário organizar a logística, que envolve não somente os contratos de transportes, seguros, etc, como também lidar com as burocracias, do Brasil e do país importador.

Outros fatores que vêm impedindo a retomada da produção industrial para exportação incluem a depreciação cambial que também alcançou nossos vizinhos latino-americanos (ainda que em menor escala do que o Brasil), importantes importadores de nossa indústria. Adicionalmente, há evidências anedóticas de que algumas empresas estavam com estoques elevados ou que estavam presas por contratos de importação em vigor quando se iniciou esse ciclo de depreciação do Real. Essas empresas estariam reduzindo os estoques, mas, em função da crise econômica, esse processo está mais lento do que o esperado. A crise, portanto, tem dificultado a alteração de preços relativos por meio de dois canais: dificuldade para redução de estoques e dificuldade para repassar o aumento de custos para os consumidores.

Por fim, o processo de sucateamento pela qual passou a indústria nacional nos últimos anos traz consequências mais fortes para o futuro, além daquela já mencionada de terem desaprendido a exportar. Aumentar a produção para exportar requer investimentos, e ninguém quer investir diante do clima de insegurança que existe, tanto em relação à capacidade de o governo pagar a dívida, quanto em relação à política monetária. O fortalecimento do dólar pode vir a ser acompanhado de aumentos da inflação, em uma escalada inflacionária como a da década de 1980, que anula a depreciação do câmbio real ocorrida nos últimos dois anos.

Dessa forma, nossas perspectivas para o setor exportador, em particular para a indústria, é que há espaço para crescimento no médio prazo, à medida que algumas fricções sejam suavizadas e que se ocupe a capacidade ociosa. Com ou sem escalada inflacionária, o mundo está menos disposto a financiar o Brasil, o que significa que, por um bom horizonte, deveremos nos adaptar a conviver com déficits em transações correntes mais baixos. Isso implica real mais depreciado.

Somos, entretanto, céticos em relação à possibilidade de o setor exportador puxar a economia, permitindo-a sair da recessão e atingir novos patamares de crescimento, a exemplo do que ocorre no Leste Asiático. Sem alterações profundas nas contas públicas ou no comportamento do setor privado, que levem à maior taxa de poupança, o crescimento concomitante da indústria de transformação e das exportações é contraditório. Para a indústria (e o país) crescer, é necessário investir. Com baixa taxa de poupança doméstica, o investimento somente será viabilizado com déficits substanciais em conta corrente. Mesmo que o mundo esteja disposto a financiar perenemente tais déficits, eles somente ocorrerão se houver uma mudança de preços relativos em favor dos bens não comercializáveis, ou seja, em detrimento da indústria. Mas, sem preços relativos favoráveis, a indústria não será competitiva, e não poderá crescer.

Sendo assim, o máximo que se pode esperar da atual depreciação cambial é que ela permitirá que a indústria cresça no curto prazo, ocupando a capacidade ociosa existente. Uma vez ocupada, a tendência será o país voltar a crescer às taxas medíocres que vinha crescendo antes da crise, entre 0% e 2%, que é uma estimativa para o nosso PIB potencial.

Apesar de ser de difícil mensuração, há evidências muito fortes de que a taxa de crescimento do PIB potencial está abaixo de 2%. O ano de 2014 foi emblemático para corroborar essa conclusão: o País já vinha de períodos de crescimento medíocre (o crescimento anual médio no primeiro governo Dilma foi de 2,2%); a Utilização da Capacidade Instalada, medida pela Fundação Getúlio Vargas, situou-se acima da média histórica (83,3% ante 81,6%); a taxa de desemprego atingiu o mínimo histórico em dezembro daquele ano (4,3%); e o País se encontrava em vias de sofrer racionamento de água e energia. Ou seja, os fatores de produção estavam plenamente ocupados e, ainda assim, a economia cresceu apenas 0,1% em 2014. Esse resultado, aparentemente paradoxal, só pode ser explicado se a taxa de crescimento potencial da economia for igualmente baixa.

Dessa forma, a retomada das exportações pode ajudar o País a ocupar a atual capacidade ociosa. Mas isso significa voltar a crescer a taxas medíocres, de até 2% ao ano. Para que o País possa crescer a taxas mais elevadas de forma sustentável, será necessário implementar reformas estruturais que alterem o modelo econômico atualmente adotado, na direção de aumento da poupança pública e de menor intervenção no setor privado.

 

Este artigo é um resumo da seção final do capítulo intitulado “A crise atual: razões e perspectivas de recuperação via ajuste cambial”, publicado no livro “O Dia do Juízo Fiscal”, que também contou com a co-autoria de Marcos José Mendes. O livro foi apresentado no Fórum Nacional, patrocinado pelo Instituto Nacional de Altos Estudos, em maio de 2016, no Rio de Janeiro, e está disponível para download em http://www.raulvelloso.com.br/o-dia-do-juizo-fiscal/

 

___________________

1 Ver http://www.dgabc.com.br/Noticia/1554042/setor-externo-tem-pouco-potencial-como-alavanca-do-pib-diz-economista-da-fgv e http://exame.abril.com.br/economia/noticias/com-dolar-tao-alto-as-exportacoes-podem-salvar-o-brasil. Esses textos mencionam outros aspectos que podem reduzir o impacto do câmbio sobre a recuperação da economia, como a depreciação de outras moedas frente ao dólar.

2 O leitor interessado poderá ler o artigo original.

3 O IBGE revisa frequentemente as estatísticas do PIB e, para a taxa de poupança, apresenta dados que retroagem somente até 2010. Segundo as estatísticas mais recentes, do 1º trimestre de 2016, a taxa de poupança em 2011 havia sido de 18,5% do PIB.

4 Esse valor está influenciado pela baixa taxa de poupança brasileira. Se supusermos que nosso PIB corresponde a cerca de 30% do PIB latino-americano, a taxa de poupança do continente seria em torno de 19%, se excluirmos o Brasil.

5 Em verdade, parte importante das commodities é formada por bens industrializados ou semi-industrializados, como o aço, farelo de soja, açúcar e o suco de laranja.

6 Esse resultado é robusto para outras mensurações de preços relativos, por exemplo, inflação dos comercializáveis/inflação dos não comercializáveis.

 

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Devemos culpar São Pedro pela escassez de energia? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2302&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=devemos-culpar-sao-pedro-pela-escassez-de-energia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2302#comments Tue, 30 Sep 2014 19:19:58 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2302 O objetivo deste artigo é apresentar evidências da escassez de oferta de energia e identificar suas causas. Como veremos, a hidrologia ruim explica apenas parcialmente a escassez de oferta. Instrumentos inadequados de planejamento e uma política de modicidade tarifária excessiva, que leva a atrasos e não entrega de obras também contribuíram para o atual quadro.

I – Evidências de crise de oferta energética

Desde o final de 2013 a sociedade brasileira vem discutindo a possibilidade de estarmos encaminhando para um novo racionamento, semelhante ao que houve em 2001.  A queda no volume de água armazenado nos reservatórios, que se aproxima dos valores perigosamente baixos observados naquele ano, é a evidência mais aparente de que há algo errado com o sistema elétrico. Mais especificamente, ao final da estação chuvosa, em abril, os reservatórios da região Sudeste/Centro Oeste, principal região produtora de energia do País, estavam com menos de 39% de sua capacidade preenchida, quando o normal, para essa época do ano, seriam valores acima de 70%. Em fevereiro, o diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Hermes Chipp, disse esperar que os reservatórios das hidrelétricas do Sudeste e Centro-Oeste chegassem ao final de abril com armazenamento médio de água de, no mínimo, 43% da capacidade total, para garantir o fornecimento de energia no país ao longo de 2014 e também 2015.

Uma melhora das condições hidrológicas na região Sul e, principalmente, um arrefecimento da demanda por conta da estagnação do PIB e do aumento de preços da energia para alguns consumidores1, fez com o risco de racionamento em 2014 se reduzisse. O nível dos reservatórios ficou praticamente constante entre abril em junho (em torno de 42% para o país como um todo, e em torno de 37% para o Sudeste/Centro-Oeste), e, embora tenha caído cerca de 5 pontos percentuais desde então, o risco de racionamento caiu significativamente.

Mesmo com menor risco de racionamento, não se pode ignorar que o Brasil enfrenta uma crise de oferta de energia elétrica. O nível dos reservatórios está próximo ao mínimo observado nos últimos 13 anos, conforme pode ser visto no gráfico abaixo2:

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Fonte: CCEE. (Clique no gráfico para ampliar)

Além do baixo nível dos reservatórios, outros fatores corroboram a tese de escassez de oferta:

i) Despacho integral de usinas termoelétricas desde outubro de 2012. O sistema brasileiro é planejado para dois tipos de usina. Um funcionando continuamente, predominantemente hidroelétricas, e outro constituído pelas chamadas usinas de geração por disponibilidade. Trata-se de usinas térmicas que foram construídas com o objetivo de gerar energia somente em condições excepcionais, cerca de 4% do tempo. Essas usinas têm por característica apresentarem custo de construção relativamente baixo, mas elevado custo de produção de energia.

O sistema funciona da seguinte forma: quando a situação hidrológica é favorável, não há necessidade de a termoelétrica produzir energia, pois a produção a partir de usinas hidrelétricas é mais econômica. Nesse caso, a usina termelétrica fica parada e recebe, mensalmente, uma espécie de aluguel. Quando a usina é chamada para gerar energia, além do aluguel, ela cobra o custo do combustível (normalmente óleo combustível) e demais custos operacionais. O custo da energia produzida por essas usinas varia, de valores próximos a R$ 100,00 a valores acima de R$ 1.200,00. As usinas são chamadas a produzir na ordem de seu custo, à medida que a escassez aumenta: primeiro as mais baratas e assim sucessivamente, até chegar às mais caras.

Como dissemos, desde outubro de 2012, praticamente todas as usinas térmicas vêm operando continuamente. Ora, se tudo estivesse ocorrendo como planejado, as usinas térmicas somente teriam sido ligadas durante 4% do período, ou seja, em torno de um mês; jamais estariam funcionando ininterruptamente por praticamente 24 meses.

A contrapartida da escassez é o aumento de custo. Estima-se que a crise do setor elétrico tem gerado custos da ordem de mais de R$ 50 bilhões. Ainda não é claro quem vai pagar essa conta: se geradores, distribuidores, governo (leia-se, os contribuintes) ou os consumidores de energia. Assim, mesmo que todo esse custo ainda não tenha se refletido nas contas de luz, ou mesmo que jamais venha a ser incorporado, para a sociedade como um todo esse custo existe, e é elevado.

ii) O problema poderia não estar na escassez de oferta, mas em um aumento desproporcional da demanda. Mas não é isso que está ocorrendo. A demanda por energia, sobretudo em função do baixo crescimento do PIB, está evoluindo de acordo ou até mais lentamente do que o planejado. Em 2009, por exemplo, projetava-se uma demanda de 65 GWm para 2013. Esse valor manteve-se aproximadamente constante ao longo do período. No início de 2013, a demanda estimada era de 63,4 GWm e fechou o ano em 62,8 GW médios, abaixo, portanto, daquela prevista quatro anos antes. Para 2014, a demanda efetivamente observada também está menor do que aquela prevista nos últimos cinco anos. Em 2009, por exemplo, projetava-se uma demanda de 69,4 GWm para 2014. A projeção mais recente para a carga média deste ano é de somente 64,9 GWm, segundo estimativa do ONS.

iii) A expansão da oferta tem sido significativamente inferior à projetada. Atrasos na conclusão de obras ou simplesmente desistência dos projetos (explicaremos suas causas mais adiante) têm feito com que a EPE venha sistematicamente superestimando a capacidade de geração de energia. Se olharmos para a garantia física, as projeções para 2013 partiram de 71,2 GWm em 2010, atingiram um pico de  72,9 GWm em 2011, mas recuaram para 65,2 GWm em 2013. A tabela abaixo sintetiza as projeções de oferta e carga de energia para 2013 e 2014.

 

Tabela 1: Projeções para 2013 e 2014 de garantia física de energia e carga, em GWh

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II – Causas da escassez de oferta

Uma vez evidenciada a escassez de oferta, discutiremos a seguir suas possíveis causas. Apesar de elas não serem excludentes, gostaríamos de chamar atenção para a última – política tarifária –, que usualmente é pouco lembrada.

A primeira explicação, mais utilizada pelos órgãos governamentais para justificar a crise de oferta, é a hidrologia ruim. É verdade que 2014 (até agosto) vem sendo um ano ruim, com chuvas equivalentes a 81% da média histórica. Mas 2013 foi um ano de hidrologia normal, onde choveu 97% da média histórica e, ainda assim, os reservatórios terminaram o ano em 43% da capacidade, o 3º menor valor dos últimos 15 anos. Se pensarmos na hidrologia acumulada nos últimos três anos, o triênio 2012-2014 estaria entre os 25% mais secos desde o início da série histórica, em 1930. Ocorre que o sistema é planejado para acionar as térmicas somente 4% do tempo. Isso significa que o cenário hidrológico atual, apesar de ruim, não é tão catastrófico para justificar o acionamento permanente das térmicas de disponibilidade há quase dois anos ininterruptamente.

A raiz do problema, portanto, está no planejamento, que tem sido deficiente. Na seção anterior adiantamos o ponto, mostrando que a EPE superestimou a oferta de energia para 2013 e 2014. Ou seja, a energia efetivamente disponível para esses anos é inferior àquela que a EPE havia projetado nos anos anteriores. Observe-se que ali falamos de energia garantida, ou seja, da quantidade de energia que as usinas devem ser capazes de entregar, em média, no longo prazo. A frustração de oferta pode ser explicada por dois fatores:

  1. Instrumentos inadequados de planificação
  2. Atrasos ou cancelamentos de obras.

Vamos tratar desses dois assuntos a seguir, lembrando que não são explicações excludentes.

Instrumentos inadequados de planificação

Essa hipótese foi levantada por consultorias do setor, como a PSR. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) é a responsável pelo planejamento de longo prazo da oferta de energia elétrica. Resumidamente, a EPE recolhe das distribuidoras a estimativa de demanda para os cinco anos seguintes. Com base nessas estimativas, ela faz um cronograma de expansão da oferta, de forma tal que a expansão do sistema (com usinas das mais diferentes fontes) seja capaz não somente de atender ao aumento esperado para demanda, como também de gerar um pequeno excesso de oferta (normalmente acima de 5%1), para dar segurança ao sistema.

O que provavelmente está ocorrendo, na opinião de especialistas, são falhas nos modelos de previsão. Essencialmente, os modelos orientam o planejador ao dizer qual a capacidade de produção das usinas que estão em funcionamento (sendo que essa capacidade depende crucialmente do nível de reservatórios e da hidrologia esperada) e qual capacidade adicional é necessária para fazer frente à demanda estimada. Os modelos, contudo, podem prever erroneamente a capacidade de geração, atual e futura. Por exemplo, com o passar do tempo, as turbinas das usinas podem perder eficiência, de forma que passem a necessitar maior quantidade de água para gerar determinada quantidade de energia. A ONS, quando opera o sistema, determina que determinada usina produza x unidades de energia. Para produzir essa quantidade, a ONS estima que utilizará uma quantidade y de água. Ocorre que, se os modelos não estiverem capturando a perda de eficiência das turbinas, a quantidade de água utilizada não será y, mas um valor z > y, e o reservatório irá secar mais rapidamente. Além da perda de eficiência, o modelo pode não estar capturando outras fricções, como o desvio de água para outros fins, como irrigação (isso parece ser particularmente importante no Rio São Francisco), ou o assoreamento das barragens, que faz com que a quantidade de água efetivamente existente na represa seja menor do que aquela que se acredita existir.

Se o modelo prevê uma capacidade de geração menor do que a verdadeira, irá recomendar ao planejador licitar um menor volume de aproveitamentos do que aquilo que seria efetivamente necessário.

Atraso ou não entrega das obras

Uma vez conhecendo a necessidade de expansão de energia, a EPE determina quais usinas serão licitadas. Via de regra, a licitação ocorre com uma antecedência de cinco anos para projetos hidroelétricos, e de três anos, para projetos de termoelétricas. Tendo em vista o tempo necessário para construir as usinas, eventuais erros de planejamento ou de execução requerem tempo para serem corrigidos.

O que observamos nos últimos anos foi um excesso de adiamentos e cancelamentos de obras. Em 2011, dos 2.180 MW médios previstos para entrar em operação, nada menos que 980 MW médios foram cancelados. Em 2012, a previsão era de 2.327 MW médios, mas somente 45% foi entregue no prazo. A frustração de oferta prosseguiu em 2013, com apenas 27% dos 4.672 MW médios previstos tendo sido entregues na data correta. Enfim, o quadro se repete em 2014, com menos de 50% das usinas contratadas ficando pronta no prazo previsto. Mais recentemente, a Usina de Santo Antonio solicitou à Aneel autorização para atrasar as obras em 63 dias.

É normal haver fatos intervenientes que possam atrasar a entrega das obras, mas, queremos crer, que tais atrasos sejam devidamente incorporados nas previsões do órgão planejador. Contudo, os atrasos que vêm ocorrendo, na frequência e magnitude com que se manifestam, inclusive com cancelamento de projetos, não podem ser creditados a causas fortuitas. A escassez de oferta decorre de uma política governamental de tentar impor modicidade tarifária a qualquer custo.

Após o racionamento de 2001, e com o início do primeiro mandato de Lula, em 2003, o governo entendeu ser necessário alterar o marco regulatório vigente para garantir, simultaneamente, modicidade tarifária e segurança energética. Ocorre que tais objetivos são conflitantes. Maior segurança energética requer construção de mais usinas, de forma a garantir que a oferta seja sempre capaz de atender a demanda. É necessário construir usinas termelétricas tanto para operar na base (ou seja, continuamente), como para ficar à disposição, para gerar energia em períodos que, por fatores fora do controle (como hidrologia excepcionalmente ruim), seja necessária a energia extra. Em ambos os casos, maior segurança energética implica maior custo e, na ausência de subsídios governamentais (leia-se, do contribuinte), maior tarifa ao consumidor

O processo licitatório consiste, grosso modo, na realização de um leilão em que vence o licitante que oferecer o menor preço por unidade de energia produzida. Quanto menor for o número de usinas leiloadas, mais acirrada será a competição entre os licitantes, o que estimula a oferta de lances com preços mais baixos.

É difícil estabelecer se a EPE licitou usinas em quantidades compatíveis com a necessidade energética do País. Desde 2010, cerca de 7 mil MW médios deixaram de ser entregues ou sofreram atraso. Entretanto, desde outubro de 2012, o despacho de energia térmica aumentou em mais de 10 mil MW em relação ao que vinha ocorrendo. Ou seja, mesmo que não houvesse atrasos e cancelamentos, usinas térmicas que deveriam funcionar apenas ocasionalmente estariam despachando de forma contínua, ainda que em volume significativamente inferior ao fazem atualmente.

Além de uma possível restrição de oferta de usinas a serem leiloadas, processos licitatórios pouco rigorosos estimularam a participação de empresas com pouca capacidade de lidar com o negócio. No curto prazo, a participação dessas empresas parecia ser benéfica, pois permitiu que os preços definidos em leilão caíssem. Ocorre que, em vários casos, os preços baixos se mostraram inviáveis, levando aos atrasos e mesmo cancelamento dos projetos, prejudicando a expansão da oferta energética. O caso mais emblemático é do Grupo Bertin. Originariamente controladores de frigoríficos, chegaram a ter em carteira projetos de construção de termelétricas que totalizavam 6 mil MW, cerca da metade da capacidade de Itaipu, e consumiriam R$ 7 bilhões em investimentos. Por falta de experiência no setor e dificuldades de financiamento, o resultado foi que as 21 concessões ganhas não saíram do papel. Posteriormente, parte delas foi vendida, mas parte teve de ser revogada pela Aneel.

Outra forma de garantir preços baixos no leilão é via aumento da participação estatal, diretamente ou se associando a consórcios. Afinal, a estatal é obrigada a seguir as orientações de seu controlador, no caso, a União. As subsidiárias da Eletrobras, em especial a Chesf, foram particularmente agressivas nos leilões de linhas de transmissão. Os baixos preços oferecidos na licitação, conjugados com dificuldades de caixa da empresa, fizeram com que 96 obras de transmissão da Chesf sofressem atrasos, que, em média, atingiam 495 dias. Com esses atrasos, a energia de 28 parques eólicos construídos na Bahia e no Rio Grande do Norte que estavam prontos desde julho de 2012 não pode ser distribuída no sistema por falta de linhas de transmissão.

Nos projetos estruturantes (Santo Antonio, Jirau e Belo Monte), além da forte presença da Eletrobras, os baixos preços oferecidos foram viabilizados pela expectativa de vender até 30% da energia no mercado livre, a preço mais alto do que o compactuado no mercado regulado (nos leilões, fixa-se somente o preço do mercado regulado, que é o que atende a todos os consumidores residenciais, à grande maioria de pequenos e médios consumidores não residenciais, e de parte dos grandes consumidores). Além disso, as empresas esperavam antecipar a entrega das obras, o que lhes permitiria vender no mercado livre toda a energia produzida nesse período de produção antecipada. O risco assumido está custando caro, pelo menos para o consórcio responsável por Santo Antonio. Como eles contrataram a venda de energia no mercado livre, mas não conseguiram antecipar a produção da forma como esperavam, estão tendo de comprar no mercado à vista a um preço muito superior ao que se comprometeram entregar. No início de setembro, a dívida no mercado de curto prazo já atingia R$ 1 bilhão, obrigando a concessionária a iniciar um processo de demissão.

Em resumo, existe uma crise energética no País, caracterizada por escassez de oferta, e que deve ser atribuída a fatores muito mais complexos do que uma simples hidrologia ruim. Instrumentos inadequados de planejamento e, principalmente, uma política de modicidade tarifária excessiva vêm comprometendo a expansão da oferta de forma preocupante. A crise só não está pior porque as medíocres taxas de crescimento econômico têm reduzido a demanda por energia. Em 2001, o racionamento levou a uma retração na expansão do PIB, que permitiu reequilibrar oferta e demanda no mercado de energia. Agora, a política econômica se encarregou de produzir essa retração do PIB, adiando, por hora, a necessidade de um racionamento.

Este texto (com pequenas alterações) foi originalmente publicado com o título “Escassez de oferta de energia elétrica: muito além de São Pedro” no Fórum Nacional (Sessão Especial). Visões do Desenvolvimento Brasileiro e Nova Revolução Industrial – a maior desde 1790. Rio de Janeiro, 10 e 11 de setembro de 2014, no site http://www.inae.org.br/sec.php?s=120&i=pt.

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1 Esse valor é o planejado pela EPE, mas é incompatível com a realidade. Isso porque as distribuidoras só podem ficar sobrecontratadas em até 5% da demanda estimada. Como elas representam 75% do mercado (o restante é formado pelo mercado livre), a sobra do sistema como um todo pode ser, no máximo, de 3,75% (igual a 75% de 5%).

2 Algumas distribuidoras já reajustaram seus preços em 2014, com valores frequentemente acima de 15%. Além disso, grandes consumidores que tinham energia descontratada tiveram que comprar no mercado spot por valores até cinco vezes maiores do que os que vigoravam em 2013.

3 Gráfico disponível em: disponível em:

http://www.ccee.org.br/portal/wcm/idc/groups/bibpublic_comunicacao/documents/conteudoccee/ccee_298618.pdf , pag. 95.

 

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