Fernando B. Meneguin e Pedro Fernando Nery – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 13 Jul 2015 17:17:32 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 A reforma política reforma os políticos? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2567&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-reforma-politica-reforma-os-politicos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2567#comments Mon, 13 Jul 2015 17:17:32 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2567 A política sem romance. É assim que o Nobel James Buchanan define a teoria da escolha racional, em que os políticos são racionais como os consumidores da microeconomia: buscam a própria satisfação, atuando para alcançar objetivos próprios, não necessariamente os da sociedade que os elegeu. Esse entendimento é útil para uma análise econômica da reforma política, com resultados pouco otimistas em relação às mudanças propostas.

Outro instrumento útil é a teoria econômica do crime, do também Nobel Gary Becker. Por essa teoria, um criminoso pesa os ganhos e perdas esperados com um crime antes de cometê-lo. Essa noção pode parecer sofisticada para crimes comuns, mas é aceita para crimes de colarinho branco, associados à política. Deltan Dallagnol, o procurador da Lava Jato, defende justamente que a corrupção é um crime racional, sendo necessário para combatê-la aumentar seus riscos.

Assim, a economia joga luz sobre as principais propostas de reforma política, como o financiamento público de campanha. A proposta se baseia na lógica que o custo das campanhas induz os políticos a se corromperem. Empresários financiariam esses políticos com a expectativa de, ajudando a elegê-los, serem favorecidos em um seu mandato.  Aos políticos restaria se renderem a essa dinâmica, sob risco de não se elegerem.

Como o financiamento público afeta os incentivos dados ao mau político e ao mau empresário? Os ganhos e perdas esperados de cada um são alterados ao continuarem se valendo desse mecanismo, agora ilegal? Na teoria dos jogos, essa dinâmica pode ser entendida como um jogo simultâneo, em que o político e o empresário decidem se optam por aceitar ou fazer uma doação.

Por essa lógica, fica claro que as chances de mudanças positivas com o financiamento público são pequenas, dando vazão a práticas como o caixa-dois ou o soft money (financiamento indireto). Se a votação de um candidato é de fato dependente dos seus gastos, o payoff da doação ilegal será altíssimo: no financiamento público, na margem, recursos adicionais seriam essenciais para o candidato. Esse ganho esperado seria maior do que sem o financiamento público, porque o erário não será capaz de arcar com o valor bilionário das campanhas. Por isso, o financiamento público pode vir com um teto de gastos.  A distribuição dos recursos, que pode ser igualitária, também limita as despesas.  Marginalmente o ganho esperado com a doação cresceria.

Na outra ponta do jogo, a do empresário, também há ganhos em fazer a doação irregular. É ingênuo supor que para manter seus lucros com o governo o mau empresário se tornaria mais competitivo, produtivo. A doação permaneceria sendo vantajosa, e mais ainda se o financiamento público reduzir a oferta de políticos que podem ser comprados, tornando o payoff da doação maior.

Resta analisar o outro componente do comportamento estratégico dos jogadores: as perdas esperadas. Ao engajarem na prática ilegal, o político e o empresário têm como perda a expectativa de punição, que por sua vez é determinada pela probabilidade da ação ser descoberta e punida, e pelo tamanho da pena. No caso do político, um componente adicional da perda esperada é a punição do eleitor.

O problema é que o financiamento público por si não aumenta a perda esperada, que só seria majorada com o fortalecimento das instituições de fiscalização e controle, o endurecimento da legislação penal e a conscientização do eleitor. A análise econômica evidencia que o financiamento público aumenta os ganhos esperados de uma doação irregular e também não tem qualquer efeito sob as perdas esperadas. Se os ganhos esperados são altos e as perdas pequenas, as doações ocorrerão. Em economês, é o equilíbrio de Nash.

A mesma lógica um comportamento estratégico por um político que visa a objetivos próprios pode ser ampliada para outras ideias da reforma política, como a proibição da reeleição (a mãe de todas as corrupções, para Joaquim Barbosa). Consoante com a teoria de political business cycles, a proibição impediria o uso da máquina para fins eleitorais. Em tese.

Entretanto, o mau político que usaria a máquina para se reeleger pode continuar usando-a para outros objetivos. A proibição o impede de se candidatar ao mesmo cargo, mas não de participar das eleições. Nesse caso, ele ainda dependeria da sua popularidade e apoio político, podendo contar com o direcionamento do governo.

Cabe lembrar que a proibição da reeleição no Executivo já existe no Brasil, depois de dois mandatos. Mesmo assim, foram frequentes casos de prefeitos que buscaram um terceiro mandato em município vizinho, ou de governadores que participam das eleições para o Legislativo.

Para manter seus interesses, o mau político pode ainda usar um poste. Essa prática já é comum hoje: o lançamento de vice ou secretário de governo como candidato, que sozinho não tem densidade eleitoral, cuja plataforma eleitoral está associada à máquina, e escolhido pelo próprio governante. Isso sugere uma baixa efetividade da mudança.

As medidas propostas no âmbito da reforma parecem partir da premissa de que o criminoso não é culpado pela corrupção, mas vítima do sistema que o corrompe. O que parece existir, porém, é um equilíbrio de seleção adversa, em que a percepção da política como um lugar fértil para a corrupção e hostil aos honestos atrai maus candidatos e repele os bons, alimentando um ciclo vicioso.

Conforme a análise com a teoria econômica feita, para quebrar o ciclo, é necessário aumentar a perda esperada das más práticas, de modo que maus políticos e empresários sejam punidos pelas instituições e pelo eleitor. Logo, vale mais o apoio ao pacote anticorrupção do Ministério Público Federal do que a algumas das propostas da reforma política. Não se pode esperar muito da reforma porque não há bala de prata para vencer a corrupção. Política não é romance.

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2567 3
Pensões por morte: por que é preciso alterar? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2398&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=pensoes-por-morte-por-que-e-preciso-alterar https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2398#comments Tue, 24 Feb 2015 15:11:51 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2398 1. Introdução

A pensão por morte (PPM) é o benefício a que têm direito os dependentes do segurado da Previdência Social que vier a falecer. Tal benefício foi substancialmente alterado pela Medida Provisória (MP) nº 664, de 2014. Anteriormente à edição da MP, o problema das pensões já havia sido apresentado nesse blog, bem como a necessidade de  sua inclusão em um ajuste fiscal neste ano.

O marco legal anterior à MP nº 664/2014 trazia algumas regras e incentivos negativos que faziam com que esse benefício onerasse pesadamente os cofres públicos:

  • não exigência de carência ou tempo mínimo de casamento;
  • reposição de 100% do valor do benefício de aposentadoria, independentemente do número de beneficiários que dividem a pensão;
  • possibilidade de acúmulo da pensão com uma aposentadoria ou com salário decorrente de trabalho ativo, mantendo seu valor inalterado; e
  • manutenção do valor da pensão para viúvas ou viúvos jovens.

Como a pensão por morte era caracterizada como um benefício com poucos requisitos para sua concessão, poucas restrições quanto à sua manutenção ou acumulação e com regras de cálculo de valor mais brandas, sem nenhum redutor em relação ao salário de benefício, ela se tornou um dos principais benefícios pagos pela Previdência Social. Em dezembro de 2013, representava um quarto dos gastos com benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), caminhando para chegar a casa dos R$ 100 bilhões de reais por ano.

Gráfico 1 – Participação no valor total dos benefícios emitidos do RGPS em dezembro de 2013

img_2398_1

Essa grande participação das pensões nos gastos da Previdência, que por sua vez é o maior componente do gasto público primário do Brasil, se torna especialmente relevante em 2015, quando o país corre risco de perder o grau de investimento após o rebaixamento de sua  nota de crédito, com consequências significativas para a economia do país e os gastos do governo. Avalia-se que a medida pode contribuir para melhora de credibilidade da política fiscal.

Outro fator que indica a necessidade de mudança da pensão por morte é que, com o aumento da longevidade da população brasileira, o impacto desse benefício nas contas previdenciárias passe a ser maior. Segundo Ansiliero, Costanzi e Pereira (2014)1, a duração média da PPM atingiu 16,2 anos em 2011, sendo que a despesa com o pagamento das pensões por morte, no âmbito do Governo Federal, representava 1,1 % do PIB em 1997 e, em 2013, esse percentual já estava em 1,8% do PIB2 (quando somados os sistemas previdenciários estaduais e municipais, essa cifra supera os 3% do PIB, como mostrado no Gráfico 2, abaixo). De acordo com a exposição de motivos da MP, a participação de idosos na população total deverá crescer de atuais 11% para 34% nas próximas décadas.

Cabe ressaltar ainda que, em comparação com as normas de concessão de pensões no resto do mundo, o Brasil apresentava, antes da MP, condições e regras bem mais generosas que as verificadas em outros países. O Gráfico 2 abaixo evidencia que, quando se leva em conta a comparação internacional, os gastos do país com pensões são altos para o seu atual estágio demográfico (razão de dependência3).

Gráfico 2 – Gastos com pensões e razão de dependência

img_2398_2

 

2. A MP nº 664/2014

A MP nº664/2014 alterou as condições de elegibilidade para as pensões por morte, e também o valor a ser recebido como pensão (fórmula de cálculo e tempo de duração). As mudanças são as mesmas para o RGPS e para o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), com a exceção da fórmula de cálculo do benefício, que será detalhada adiante.

Em relação às condições de elegibilidade, a pensão por morte passou a exigir período contributivo mínimo (carência) de dois anos, ressalvados casos especiais. Outra alteração referente à elegibilidade foi o estabelecimento da exigência de um período mínimo de casamento ou união, também de dois anos (salvo a ocorrência de eventos específicos).

No que tange ao valor a ser recebido, a Medida Provisória institui fórmula de cálculo: a reposição varia de 50% a 100% do benefício do falecido, dependendo da quantidade de dependentes,. A reposição será de 50%, somados 10% para cada dependente, até o máximo de 100% – respeitados o piso constitucional para pensões de um salário mínimo, de R$ 788, e também o teto dos benefícios do RGPS, de R$ 4.663,75.

Entretanto, cumpre ressaltar que, ao contrário das outras mudanças, a fórmula de cálculo do benefício atinge apenas os segurados do RGPS e os servidores da União que ingressaram no serviço público após fevereiro de 2013. Nesse sentido, a MP aprofunda as diferenças existentes entre o regime de previdência dos trabalhadores do setor privado e o regime dos servidores públicos da União, sendo este último mais benevolente no cálculo das pensões por morte.

Para o contingente restante de servidores públicos civis da União, o cálculo do valor do benefício permaneceu de acordo com as mudanças promovidas pela Segunda Reforma da Previdência (Emenda Constitucional nº 41, de 2003). Desde então, as pensões já haviam perdido a paridade com a remuneração dos servidores e há um redutor para as pensões de 30% sobre o valor que exceder o teto do RGPS, em todos os casos. Por fim, com a criação do regime de previdência complementar, no caso dos servidores de que ingressaram no serviço público a partir de 2013, as pensões estão limitadas ao teto do RGPS5.

Com a MP nº 664/2014, mudou-se também o tempo de duração do benefício, de acordo com a idade do(a) pensionista. A pensão permanece sendo vitalícia apenas para os pensionistas que possuem expectativa de sobrevida de 35 anos ou menos (ou para os casos de invalidez após o casamento ou união). A menor duração será de três anos, para os pensionistas com expectativa de sobrevida maior que 55 anos. Para os casos intermediários, o tempo de duração da pensão será tanto maior quanto menor for a expectativa de sobrevida, conforme o Quadro 1 a seguir, extraído do texto da MP:

Quadro 1 – Tempo de duração da pensão de acordo com a expectativa de sobrevida do pensionista

img_2398_3

Conforme a Tábua de Mortalidade (IBGE) vigente quando da publicação da Medida Provisória, a duração da pensão se relacionaria com a idade do cônjuge, companheiro ou companheira da seguinte forma:

Quadro 2 – Tempo de duração da pensão de acordo com a idade do pensionista

img_2398_4

O Quadro 3 a seguir resume as mudanças trazidas pela MP nº 664/2014:

img_2398_5

As mudanças também afetam o auxílio-reclusão, que é devido nas mesmas condições da pensão por morte6.

Por fim, a MP acaba com a possibilidade de recebimento de pensão por morte nos casos em que o pensionista é condenado por crime que tenha causado a morte do segurado. Não houve mudanças das regras em relação ao acúmulo de pensão por morte e aposentadoria, nem em relação à contração de novo casamento ou união do pensionista – que são comuns em outros países.

Cumpre observar que as alterações promovidas foram necessárias para dar maior equilíbrio atuarial ao benefício da pensão por morte, corrigindo distorções que em muitos casos incentivavam a adoção de comportamentos oportunistas de parte dos segurados, gerando despesas exageradas aos cofres públicos. Tais distorções permitiam que parte dos segurados programassem (como com “casamentos de fachada”) o recebimento da pensão (seleção adversa), que é, por definição, um benefício de risco, como o auxílio-doença e a aposentadoria por invalidez. Em tese, o recebimento desses benefícios não é programado, ao contrário da aposentadoria por idade ou por tempo de contribuição, por exemplo.

 

3. Comparação internacional

As novas regras da MP convergem para as práticas adotadas pelo mundo. O Quadro 4 sumariza a situação existente nos países da América do Sul e do G20, contemplando, portanto, tanto países desenvolvidos quanto países emergentes, incluindo latino-americanos e asiáticos.

Assim, observa-se que tanto países europeus (ricos) quanto países da América Latina (com renda e perfil demográfico mais parecido do brasileiro) optam por regras como as instituídas pela MP nº 664/2014 – o que pode ser um indicativo de insustentabilidade das regras anteriores. Já as economias emergentes da Ásia, como as que integram o grupo dos BRICS, sequer possuem algo parecido com um sistema de pensões por morte.

Quadro 4 – Regras de pensões por morte – América do Sul, G20 e Brasil7

img_2398_6

Ansiliero, Costanzi e Pereira (2014), analisando as regras de 132 países, constatam que 87% possuem regra de carência (tempo mínimo de contribuição), 86% estabelecem requisitos para cônjuges e 82% limitam a taxa de reposição para a família, como os dispositivos da MP.

 

4. Considerações finais: pensões e desigualdade de renda

Cabe observar alguns pontos em relação à visão de que as novas regras para pensões levam à desproteção da parcela mais desfavorecida da população. Em que pese a noção de solidariedade que existe na seguridade social, o valor médio das pensões por morte concedidas em 2012 no meio urbano foi de R$1.1328, acima mesmo das aposentadorias por idade (R$ 860) e por invalidez (R$ 1.086) e bem acima dos valores de benefícios assistenciais direcionados a grupos como idosos pobres (R$ 622) e gestantes pobres (R$ 32)9.

Embora esse valor não seja alto em termos absolutos, de acordo com o IBGE, um brasileiro com esse rendimento per capita (não considerando acúmulo com outras rendas ou a existência de dependentes), faria parte da metade mais rica da população em idade ativa10. Esse não é um traço exclusivo das pensões por morte, mas dos benefícios da Previdência Social como um todo: segundo o IPEA (2012), a Previdência, na forma em que se molda atualmente, é uma fonte de concentração de renda no Brasil, responsável por 18% da desigualdade do país11.

______________

1 ANSILIERO, G; COSTANZI, R. N.; PEREIRA, E. S. A Pensão por Morte no Âmbito do Regime Geral de Previdência Social: tendências e perspectivas. Planejamento e políticas públicas, Brasília, n. 42, jan-jun, 2014.

2 Exposição de motivos da MP nº 664/2014.

3 Definida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como o peso da população considerada inativa (0 a 14 anos e 65 anos e mais de idade) sobre a população potencialmente ativa (15 a 64 anos de idade).

4 ROCHA, R.; CAETANO, M. O sistema previdenciário brasileiro: uma avaliação de desempenho comparada. Brasília: Ipea, 2008. (Texto para discussão 1331).

5 Valores acima deste teto serão pagos pela própria previdência complementar e não pela União. A duração do benefício depende da expectativa de sobrevida do segurado (no caso do Executivo e do Legislativo) ou do beneficiário (Judiciário). O valor do benefício depende do saldo das contribuições do segurado. Assim, o valor da pensão será tanto maior quanto maior for o tempo e os valores das contribuições, e tende a ser também tanto maior quanto maior for o tempo de casamento. Tais regras estão disciplinadas no art. 23 dos regulamentos da Funpresp-Exe (abrange os planos ExecPrev e LegisPrev) e Funpresp-Jud.

6 Art. 80 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências.

7 O objetivo neste texto foi a construção de um quadro sucinto e resumido, mas existem diversas regras diferentes e mesmo casos de múltiplos regimes em um só país. Mais detalhes estão disponíveis em: www.ssa.gov/policy/docs/progdesc/ssptw

8 Cálculos baseados no Anuário Estatístico da Previdência Social – 2012.

9 Respectivamente, o Benefício de Prestação Continuada e o benefício variável do Bolsa Família (valores de 2012).

10 Segundo a Síntese de Indicadores 2012, baseada na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), metade da população em idade ativa possuía rendimento médio inferior a R$ 1.020 naquele ano.

11 IPEA (2012). A Década Inclusiva (2002-2011): Desigualdade, Pobreza e Políticas de Renda. Comunicados do IPEA n. 155.

 

(Este texto é baseado no trabalho “Análise da MP nº 664, de 2014: Alterações na Pensão por Morte e no Auxílio-Doença”. O estudo integral consta do Boletim do Legislativo nº 21 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado, disponível no seguinte link: http://www.senado.gov.br/estudos)

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2398 3
O que é desaposentadoria e qual o seu impacto? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2252&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-e-desaposentadoria-e-qual-o-seu-impacto https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2252#comments Tue, 24 Jun 2014 13:54:07 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2252 A desaposentadoria (ou desaposentação) é o cancelamento de uma aposentadoria que está vigendo para pleitear uma nova. Com esse cancelamento, consideram-se novamente todos os anos de trabalho do passado, acrescidos às contribuições da manutenção da condição laboral após a primeira aposentadoria. O objetivo disso é conseguir um benefício melhor. A desaposentadoria é pleiteada por aqueles que se aposentam mas não param de trabalhar, recebendo simultaneamente o benefício de aposentado e a renda do trabalho, sobre a qual incide a contribuição previdenciária.

Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) não reconhece o direito dos aposentados em se desaposentar, pois considera impassível a renúncia do benefício. Além disso, argumenta que se a sistemática da desaposentadoria virar regra, haverá um enorme impacto prejudicial às contas da previdência.

O Poder Judiciário tem posicionamento diferente. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já confirmou, no ano passado, em julgamento de recurso repetitivo1, que o aposentado tem o direito de renunciar ao benefício para requerer nova aposentadoria em condição mais vantajosa, e que para isso ele não precisa devolver o dinheiro que recebeu da Previdência. Isso significa que a renúncia à aposentadoria, para fins de concessão de novo benefício, seja no mesmo regime ou em regime diverso, não implica o ressarcimento dos valores recebidos.

Para o STJ, os benefícios previdenciários são direitos patrimoniais disponíveis e, portanto, suscetíveis de desistência pelos seus titulares, dispensando-se a devolução dos valores recebidos da aposentadoria a que o segurado deseja renunciar para a concessão de novo e posterior benefício. A matéria deve entrar em breve na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário nº 661.256, que ganhou repercussão geral. Em caso semelhante (Recurso Extraordinário nº 381.367), o ministro relator Marco Aurélio iniciou o julgamento votando a favor da desaposentadoria. No Legislativo, tramitam vários projetos de lei instituindo esse direito ou concedendo vantagens semelhantes2.

Cabe considerar, no presente tema, não apenas a questão jurídica, mas também todo o impacto econômico na sociedade. Ao se validar o instituto da desaposentadoria, contraria-se todo o esforço recente de se melhorar as contas da previdência.

É importante fazer um breve histórico sobre as recentes alterações previdenciárias. O Governo, na época da aprovação da Emenda Constitucional nº 20, de 1998, não conseguiu incluir o limite de idade para aposentadorias na esfera do setor privado; no entanto, a mesma Emenda nº 20 abriu caminho para substancial inovação na metodologia de cálculo do salário-de-benefício dos segurados do Regime Geral de Previdência Social – RGPS, operado pelo INSS. Calcado no novo dispositivo constitucional (art. 201), que explicita o caráter contributivo da previdência social e requer equilíbrio atuarial e financeiro do sistema, bem como na “desconstitucionalização” da regra de cálculo do valor dos benefícios, o Governo implantou o chamado “fator previdenciário”.

Tratou-se de iniciativa do Poder Executivo que, pressionado pela imprescindível adoção de medidas que permitissem o controle e contenção da tendência ascendente dos gastos previdenciários, enviou ao Congresso proposta de legislação ordinária que estabelecia, dentre outros aspectos, o chamado “fator previdenciário” no cálculo das aposentadorias. Tal projeto de lei, tendo tramitado em regime de urgência, foi aprovado, com pequenas modificações, em novembro de 1999, transformando-se na Lei nº 9.876, de 26 de novembro de 1999.

O fator previdenciário consiste na inserção, na fórmula de cálculo do salário-de-benefício, de um multiplicador que inclui a expectativa de sobrevida, a idade e o tempo de contribuição do segurado, ou seja, critérios atuariais que aumentam a correlação entre contribuição e benefício. Ademais, ao invés de considerar apenas os últimos três anos de contribuição como base para a fixação do valor da aposentadoria, como antes estabelecido na Constituição, o novo cálculo considera toda a vida laboral do trabalhador (a partir de julho de 1994).

Com o novo método, cada segurado passou a ter direito a receber um benefício calculado de acordo com a estimativa do montante de contribuições realizadas, capitalizadas por uma taxa determinada pelo tempo de contribuição e idade do segurado, bem como pela expectativa de duração do benefício.

É fundamental entender que a nova regra representa passo significativo em direção à construção de um sistema previdenciário equilibrado. Além de embutir em seu cálculo um fator atuarial – a expectativa de sobrevida por faixa etária – tende a equilibrar o fluxo de caixa do sistema previdenciário no curto e médio prazos. Isso porque o segurado que sair mais cedo, provocando um desembolso antecipado, receberá, em contrapartida, uma aposentadoria de menor valor.

Tal critério é justo. É razoável que aquele que opte por se aposentar por tempo de contribuição (35 anos para homens e 30 para mulheres) em idade precoce faça jus a benefício inferior a de outro que prefira se aposentar com idade mais elevada. Esse último, além de ter contribuído por maior período, deverá receber o benefício por menos tempo, sendo, justo, pois, que aufira uma renda mensal mais elevada que o primeiro.

Percebe-se, assim, que o fator previdenciário, embora não elimine o déficit existente, nem altere direitos adquiridos de aposentados, permite maior correlação entre salário-de-contribuição e salário-de-benefício para as novas aposentadorias. Ainda, representa grande avanço no sistema de repartição simples, profundamente afetado por mudanças demográficas. Com o aumento da expectativa de sobrevida da população, por exemplo, é necessário que limites de idade mínima sejam periodicamente repactuados com a sociedade. No entanto, na medida em que esta variável está presente no próprio cálculo do salário de benefício, os ajustes necessários serão automaticamente internalizados de modo que o sistema se mantenha equilibrado.

O instituto da desaposentadoria acaba com os benefícios do fator previdenciário para a saúde das contas previdenciárias. Com as regras criadas pelo Poder Judiciário, os beneficiários do INSS têm incentivo a se aposentarem cedo e continuar trabalhando, pois acumularão a renda da aposentadoria com o salário do trabalho não interrompido. Depois de anos recebendo a aposentadoria, quando conseguirem um fator previdenciário favorável, simplesmente pedem o cancelamento da aposentadoria e solicitam novo recálculo do benefício. O Ministério da Previdência Social (MPS) estimou em 2011 impacto de R$ 69 bilhões nas contas públicas a longo prazo caso a desaposentadoria fosse reconhecida pelo Supremo3.

Ora, mas não há cálculo atuarial que consiga equilibrar essa situação, pois, no período entre a primeira aposentadoria e o novo recálculo, o beneficiário já tinha gerado um ônus para o Estado, pois já estava recebendo uma renda pelo INSS. Para consolidar a desaposentação, o mais justo seria então o beneficiário devolver tudo o que recebeu a título de aposentadoria nesse intervalo.

Ademais, a desaposentadoria constitui grande injustiça com os trabalhadores e aposentados que, quando satisfizeram os critérios para pedir a aposentadoria por tempo de contribuição, optaram por não pleitear o benefício, trabalhando sem acumular a renda do trabalho com a aposentadoria.  Esses trabalhadores se planejaram de acordo com a lógica do fator previdenciário, esperando anos para poder receber uma aposentadoria com valor maior. Naturalmente, esses trabalhadores e aposentados se sentem lesados com a possibilidade da desaposentadoria, já que receberiam benefícios iguais ao daqueles que se aposentaram muito antes, sem, no entanto, terem recebido a aposentadoria durante todos os anos nesse intervalo.

Assim, a discussão sobre a desaposentação remete ao grave problema das aposentadorias precoces no Brasil, decorrentes da possibilidade de aposentadoria por tempo de contribuição – que encontra paralelo em pouquíssimos outros países – e da ausência de idade mínima para quem se aposenta pelo INSS, problema que o fator previdenciário, embora não seja o ideal, conseguiu “remendar”. A idade mínima para a aposentadoria não é a regra apenas nos países ricos – como nos escandinavos em que chega aos 67 anos -, mas também em países emergentes, mais parecidos com o Brasil. México, Colômbia, Argentina, Chile, Peru e até El Salvador possuem idade mínima para aposentadoria de 65 anos4. A título de ilustração, a idade média de aposentadoria por tempo de contribuição das mulheres brasileiras no meio urbano é de apenas 52 anos5.

O fator previdenciário atenua essa situação, mas além de não resolver o problema, é mal compreendido pelos segurados, muitos dos quais pedem a aposentadoria por tempo de contribuição cedo. Sentem-se,  porém, vitimados pelo “desconto” do fator, o que dá ensejo posteriormente às ações de desaposentadoria para corrigir a suposta injustiça.

Dessa forma, a má compreensão sobre o funcionamento do fator previdenciário faz com que esses aposentados genuinamente creiam que o INSS lhes deve valores, ou que os valores das contribuições feitas depois da “primeira” aposentadoria deveriam ser devolvidos. Logo, não se percebe que a relação entre o tempo de contribuição e o tempo de usufruto do benefício para os segurados do INSS é muito diferente da comparação internacional e que o regime de custeio escolhido para o INSS na Constituição não é o de capitalização – como o da previdência privada, em que o valor das contribuições é revertido em benefício – e sim o de repartição, em que o sistema financia os inativos com as contribuições daqueles que estão em atividade.

Merecem ser destacadas, ainda, as falhas em um argumento comumente usado a favor da desaposentadoria: a de que este direito existe para os servidores públicos (Regime Próprio de Previdência Social – RPPS) por meio do instituto conhecido como “reversão”. A reversão é muito diferente da desaposentadoria, já que o servidor não recebe ao mesmo tempo seu salário e a aposentadoria, deixando meramente de ser inativo para voltar a ser ativo, no exato mesmo cargo que ocupava antes. Ressalta-se ainda que a reversão está prevista em lei (não foi criação de tribunais), só pode ocorrer de acordo com o interesse da Administração e segundo outros critérios da Lei nº 8.112, de 1990, e que existe idade mínima para aposentadoria no RPPS (65 anos para homens e 60 para mulheres, sem fator previdenciário). Obviamente, isso não implica que os aposentados do RPGS estejam em situação mais confortável que os do RPPS, mas todas as características citadas tornam os institutos da reversão e da desaposentadoria muito diferentes.

O gráfico a seguir, produzido na Consultoria Legislativa do Senado, mostra a evolução, em termos reais, das principais séries de despesa e receitas públicas. Nota-se que a série que mais cresceu foi a que representa os gastos com o Regime Geral de Previdência Social. Essa foi a única série que superou o crescimento da Receita da União, mostrando como o Regime Geral é uma bomba ainda não controlada.

img_1_2252

 

Enquanto em 2010, segundo o IBGE, havia 16 idosos com mais de 60 anos para cada grupo 100 brasileiros entre 15 e 19 anos, as projeções mais atualizadas indicam que essa relação aumentará, em menos de três décadas, para 52 a cada 1006. Levando em conta que o próprio Ministério da Previdência Social projetou um déficit do Regime Geral já da ordem R$ 50 bilhões em 2014, só é possível concluir que a situação da previdência ficará muito grave nos próximos anos, e institutos como a desaposentadoria reforçam esse quadro. Novamente segundo o MPS, mais de 700 mil segurados teriam hoje direito ao aumento de seus benefícios, contingente maior do que a população inteira de várias capitais do país.

O que se lamenta é uma falta de consciência da restrição orçamentária intertemporal na economia. A irresponsabilidade fiscal de hoje certamente causará problema para as gerações futuras do Brasil.

1 Recurso Especial nº 1.334.488.
2 Apenas no Senado tramitam os projetos de lei nos 464, de 2003; 214, de 2007; 56, de 2009; 91 de 2010; e 188, de 2011.
3 Constanzi (2011)
4 Cechin e Cechin (2007).
5 Giambiagi e Schwartsman (2014).
6 Giambiagi e Schwartsman (2014).

___________________

Referências:

CECHIN, J.; CECHIN. A. “Desequilíbrios: causas e soluções”. In: Tafner, P. e Giambiagi, F. (org.). Previdência no Brasil – debates, dilemmas e escolhas. Ipea, 2007.

CONSTANZI, M. N. “Evolução e Situação Atual das Aposentadorias por Tempo de Contribuição”. Informe da Previdência Social, vol. 23, nº 8. Ministério da Previdência Social, 2011.

GIAMBIAGI, F.; SCHWARTSMAN, A. Complacência. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.

 

Download:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2252 11