Pedro Fernando Nery – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Tue, 11 Dec 2018 18:23:57 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 A Presidência e a Previdência: o que pensam os candidatos? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3176&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-presidencia-e-a-previdencia-o-que-pensam-os-candidatos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3176#comments Thu, 22 Mar 2018 16:13:35 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3176 O debate sobre a Previdência deve se estender às eleições. Mesmo que versão atenuada da PEC 287 seja aprovada, o novo presidente dificilmente escapará de ter de fazer novas mudanças, em relação a militares, rurais e BPC-Loas. O que pensam os principais candidatos sobre o tema?

O debate deste ano é o que não fizemos em 2014. Já 2 meses após o pleito, o governo reeleito apresentou uma reforma da pensão por morte. Na campanha, apenas a oposição tratou do tema, prometendo acabar com o fator previdenciário.

A reforma da Previdência é assunto difícil para eleições. Até agora, porém, nenhum dos principais candidatos negou a sua necessidade. Algumas campanhas até se aventuraram mais no tema, como as de Ciro Gomes e Bolsonaro.

Ciro promete revogar a PEC, afirmando não existir déficit, que existiria somente no futuro. Mais reveladoras são falas anteriores.  Quando ministro apontou a reforma como inevitável: “Precisamos discutir isso fraternalmente. Não há solução indolor”. Falando para alunos em Harvard em 2016, disse: “é verdade que a previdência está desequilibrada no seu financiamento.”

Sugere um regime de capitalização, e explicou como seria sua comunicação: “você prefere deixar para o seu filho uma dívida ou uma poupança?”.  Não detalhou como financiar a transição da repartição atual para a capitalização, que gera perda de arrecadação (contribuições são individualizadas) justamente quando os déficits são crescentes. Apenas fala em estabelecer um corte de idade.

Também não explicou como tratar grupos subsidiados que perdem com a capitalização, como professores e rurais, cujo tratamento da PEC criticou. Só a gestão do modelo capitalizado foi mais explicada em entrevistas: pública, feita por coletivos de trabalhadores.

A capitalização também aparece na campanha de Bolsonaro. Seu assessor Paulo Guedes afirmara que se tivesse que fazer uma única reforma seria a da Previdência, bola de neve capaz de explodir o Brasil. Teria simpatia pelo modelo chileno.

De concreto, o filho Eduardo afirmou que a proposta de Bolsonaro seria a dos professores Abraham e Arthur Weintraub, de capitalização. Chamada de aposentadoria fásica, valeria já a partir de 2020. A proposta é silente sobre os custos de transição. Há perda de receita também porque se pode parar de contribuir aos 50.

Apesar da grande perda de arrecadação, não é uma proposta populista. Ela pressupõe o fim da vinculação do salário mínimo, que nem a PEC fez. A aposentadoria em fases levaria a benefícios de até R$ 241.  O salário mínimo só seria recebido com o dobro de contribuição atual, 30 anos, aos 65.

Por fim, Bolsonaro votou contra as reformas feitas por FH e Lula – comparada a um massacre. Sobre a PEC 287, se disse completamente contra: crime, maldade e falta de humanidade.

Já do Presidente Lula é sabido que é opositor da atual reforma (implosão, desmonte) e que realizou uma relevante reforma do regime dos servidores em 2003. Os sinais são mistos.

De um lado, o ex-ministro da Previdência Gabas tem feito apresentações pelo país – segundo ele a pedido do Presidente. Alega que reforma quer enriquecer a previdência privada e usa dados alternativos para mostrar sua desnecessidade.

De outro, o ex-Ministro Nelson Barbosa defende mudanças, e a ex-Ministra Helena Chagas garante que Lula fará uma reforma, salvo possibilidade muito remota, “ainda que não vá ser a de Temer”.

Se o Presidente Lula propõe referendo revogatório das medidas do governo, em 2016 também afirmou que a Previdência de vez em quando tem que ser reformada.

Ainda entre os principais candidatos, Marina, Dória e Alckmin defendem a atual PEC. Marina teve reservas ao texto original, mas disse que votaria a favor se fosse parlamentar. Aceita a idade mínima e rejeitou o aumento do tempo de contribuição do pobre – que saiu da proposta.

Dória foi um defensor vocal da PEC, até do texto original. Porém, em entrevista fez ressalvas à idade mínima: defendeu 60 anos para que o texto seja aprovado. Propôs retirar a Previdência do teto de gastos.

Como é sabido, Alckmin assumiu no final do ano a presidência de seu partido, que fechou questão a favor da PEC. O déficit da previdência do Estado de São Paulo se aproxima de R$ 20 bilhões, o maior do país. O dado só passou a ser divulgado com mais clareza em 2017: antes se reportava não haver déficit financeiro ou atuarial.

Como governador, teve poucos instrumentos para reduzi-lo, mas não elevou a alíquota de contribuição dos servidores, que permanece em 11%. Dez Estados têm alíquotas maiores.

Benefícios difusos, gerações que não votam: Previdência é um tema difícil para candidatos. Na Espanha, em 93, acusações sobre o assunto em um debate foram decisivas nas eleições.  Como resultado os partidos firmaram pacto se comprometendo com mudanças e evitando a exploração eleitoral da questão.

Recentemente, Hillary Clinton ponderou que diante do populismo, que enfrentou com Trump e Sanders, talvez faça mais sentido campanhas baseadas em discursos inspiradores e grandes ideias. Detalhes técnicos e pragmatismo seriam deixados para o processo legislativo.

É um risco que corremos. Há espaço para mais exploração populista do assunto, uma vez que mesmo os candidatos contrários à PEC reconheceram de 2016 para cá a necessidade de reforma. O pior cenário talvez seja o de repetição de 2014, quando o problema não foi discutido e as propostas de ajuste da chapa vencedora acabaram deslegitimadas.

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico de 8 de fevereiro de 2018, sob o título “O que pensam os candidatos sobre a reforma da Previdência”.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3176 2
Em que Congresso e Judiciário discordam na reforma trabalhista? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3165&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=em-que-congresso-e-judiciario-discordam-na-reforma-trabalhista Thu, 15 Feb 2018 16:37:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3165 Foram anunciados no dia 19/10 os enunciados aprovados pela 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho sobre como o Judiciário deve “interpretar” a reforma trabalhista, que entrou em vigor em novembro. A jornada teve a participação de centenas de advogados, juízes, procuradores e auditores e até de ministros do TST, e chegou a ser classificada de guerrilha trabalhista.

A jornada ocorreu no vácuo de medida provisória para regulamentar aspectos controversos da nova Lei nº 13.467. A edição da MP fez parte de acordo para que o Congresso acelerasse a tramitação da reforma em vez de emendá-la, o que poderia atrasar demasiadamente a aprovação. O próprio Presidente se comprometeu por meio de carta com as mudanças. A MP, de número 808, foi editada em 14 de novembro.

Em que pese a incômoda participação de advogados na Jornada – com óbvio conflito de interesse em relação a uma reforma destinada a reduzir a litigância – e as dúvidas se a resistência de Ministério Público e Judiciário revela apenas corporativismo de parte da classe, é visível que a maioria dos juízes, procuradores e auditores estão bem-intencionados. De fato, vários dos pontos que constam dos enunciados aprovados na Jornada compunham o acordo para a edição da MP.

Quais são estes pontos? Um deles é a permissão de realização da jornada de 12 horas com 36 de descanso (12 por 36) por meio de acordo individual. A mudança decorreu de mobilização de profissionais do setor de saúde do terceiro setor, para quem a jornada é vantajosa, mas a possibilidade de acordo coletivo não existe meramente porque entidades do terceiro setor não podem fazer negociação coletiva.

Dessa forma, ficou acertado que a jornada 12 por 36 por acordo individual deveria ser exceção, e não regra, para evitar abusos. Há também uma controvérsia sobre a própria constitucionalidade da 12×36 por acordo individual: o Congresso entende que quando a Constituição diz que jornadas maiores que 8 horas só são possíveis “mediante acordo ou convenção coletiva” ela distingue a convenção coletiva do acordo – que pode ser individual ou coletivo. Não é esta a tradição do Judiciário, que entende que o referido acordo só pode ser coletivo, e a mudança, inconstitucional. A MP deve resolver a questão.

Uma segunda controvérsia se refere à prevalência do negociado sobre o legislado. A Jornada entende que as negociações coletivas não podem “piorar” a situação do trabalhador. Já a visão subjacente à reforma aprovada pelo Legislativo é de que cabe aos trabalhadores, organizados em sindicatos, decidir o que é melhor para a categoria – e não ao Poder Judiciário.

Assim, se os trabalhadores preferem um intervalo de almoço de 30 minutos para poderem sair mais cedo do trabalho e pegar menos trânsito, não poderia um juiz revogar o acordo por entender que o melhor para os trabalhadores é descansar mais durante o intervalo.

É intuitivo que a resistência neste caso origina-se na ideia de que muitos sindicatos são fracos e com menor poder negocial dos que os empregadores, provocando acordos indesejáveis. Por esta ótica, o fim da contribuição sindical, sem o fim da unicidade para estimular a competição entre os sindicatos, completaria o cenário de risco para a captura dos sindicatos – cuja atividade tem característica de bem público e poderia acabar subfinanciada. A MP mitigou a incerteza sobre o financiamento da atividade sindical no país, e contrariamente ao que foi especulado ao longo do ano, não introduziu nova forma de financiamento.

Um terceiro ponto controverso é a terceirização e a situação dos autônomos. Se a terceirização da atividade-fim é considerada por economistas absolutamente normal e desejável em uma economia de mercado que busca a especialização e o aumento da produtividade, a burocracia trabalhista receia que a terceirização da atividade-fim legitime a sonegação de encargos e a precarização.

Para a resistência, a terceirização objetiva a redução do custo do trabalho, já que na contratação direta há a incidência de uma série de tributos, incluindo uma das contribuições previdenciárias mais altas do mundo.

A MP aqui é relevante por acabar com a figura do autônomo exclusivo, permitida no texto original, que gerou o receio de pejotização em massa. Afasta-se o reconhecimento de vínculo apenas para categorias reguladas por leis específicas, como caminhoneiros e corretores de imóveis. O reconhecimento do vínculo, porém, será reconhecido se houver efetiva subordinação jurídica entre as partes.

Em relação à terceirização, é particularmente preocupante o enunciado da Jornada de que terceirizados devem ter a mesma remuneração dos funcionários contratados diretamente – uma vez que a lei não foi alterada neste ponto. Se o enunciado pegar, a terceirização periga acabar: todo empreendimento ficaria sujeito à interpretação de pessoas externas, que podem determinar que a função de um empregado em uma contratada é a mesma de alguém que trabalha ali.

Isso faz tanto sentido quando exigir que analistas e técnicos dos tribunais ganhem o mesmo que juízes, afinal, eles podem ajudar a escrever decisões. Esta seria uma interpretação leiga da atividade judicial, assim como pode ser leiga a interpretação de um funcionário público alheio ao funcionamento de milhares de setores da economia.

Entretanto, cabe observar que o Judiciário continuará podendo coibir a terceirização espúria, fraudulenta, que visa a sonegação. A permissão da terceirização da atividade-fim é frequentemente noticiada como “terceirização irrestrita”, o que não é verdade. Vínculos empregatícios continuam podendo ser reconhecidos, só não sob o argumento de atividade-fim.

Por fim, existem vigorosas críticas do Judiciário contra a tarifação do dano moral. A reforma, na tentativa de criar parâmetros e reduzir a insegurança jurídica, tornou o dano proporcional ao salário do empregado. É emblemática a infame anedota de que com a reforma mais vale assediar a secretária do que a gerente. Novamente, a MP buscou o equilíbrio entre a previsão da reforma e a situação atual – em que procuradores chegam a pedir como indenização 10% do lucro líquido de um banco durante 5 anos por conta da dispensa discriminatória de dois funcionários.

É essencial, portanto, que o diálogo e o debate continuem. O espaço para convergência é maior do que parece e a tão almejada segurança jurídica no mercado de trabalho precisa do convencimento dos operadores de direito sobre pontos incompreendidos da reforma. A medida provisória do Poder Executivo foi o último passo nessa direção.

 

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 7 de novembro de 2017 sob o título “Pontos de discórdia na reforma trabalhista”.

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
O fator e o favor previdenciário https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3161&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-fator-e-o-favor-previdenciario Wed, 07 Feb 2018 17:45:30 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3161 Em 6 de dezembro, o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), José Robalinho Cavalcanti publicou no JOTA o artigo Previdência: prendam os suspeitos de sempre. Contrário à reforma da Previdência discutida atualmente no Congresso, Robalinho reconhece que há um ‘problema’ previdenciário no País, mas ele estaria no Regime Geral (INSS).

O artigo critica as medidas que afetam os servidores públicos, especialmente os que ingressaram antes de 2003, já que reformas anteriores já teriam deixado a trajetória do Regime Próprio da União equilibrada no longo prazo. Assim, para Robalinho, os servidores teriam sido escolhidos como “espantalho” pelo governo, que desejaria criar um “inimigo externo”. O procurador também acusa o objetivo das medidas de irem “muito além da previdência”, uma vez que afetariam servidores de carreiras de estado que investigam forças políticas: teria a reforma da Previdência, portanto, “o objetivo final de manter o sistema político corrompido”.

Apesar de algumas considerações apropriadas – especialmente em relação à ausência dos militares da proposta -, há muito que ressaltar no texto do presidente da ANPR. Se é verdade que a situação futura do Regime Geral é muito mais grave do que a do Regime Próprio da União, também é verdade que os regimes próprios dos servidores dos entes subnacionais – na ausência de reformas – vão transformar vários Estados brasileiros em novos “Rios de Janeiros” nos próximos anos.

Igualmente, se é verdade que o menor desequilíbrio em longo prazo entre todos os regimes é mesmo o do Regime Próprio dos servidores da União, também é verdade que reformas anteriores ainda levarão tempo para surtir efeitos – o que diante do teto de gastos ameaça diversos investimentos e políticas públicas do governo federal. Os efeitos regressivos do ponto de vista da distribuição de renda também continuarão existindo por muito tempo: embora alcance poucas famílias, os regimes próprios seriam sozinhos responsáveis por 7% de toda a desigualdade de renda do país, segundo Pedro Souza e Marcelo Medeiros, os pesquisadores que estão na fronteira desta linha de pesquisa.

Para que o leitor entenda com mais clareza quais são as regras atuais do Regime Próprio (RPPS) dos servidores e como elas mudam na reforma, contemos a história de Antônio e Victor. Consideremos Antônio e Victor “gêmeos” para todos os fins: são trabalhadores que ingressaram no mercado de trabalho com a mesma idade, com uma mesma qualificação e em uma mesma profissão, receberam sempre a mesma remuneração, contribuíram sobre iguais valores e se aposentaram na mesma data: aos 55 anos, com 35 de contribuição.

Adicionalmente, suponha também o leitor que a média salarial ao longo da carreira de Antônio e Victor tenha sido de R$ 3 mil, e o último salário, de R$ 4 mil. Agora, suponha uma única diferença entre Antônio e Victor: Antônio trabalhava na iniciativa privada e está sujeito às regras do Regime Geral, Victor trabalhava no setor público e está sujeito às regras do Regime Próprio.

Antônio estará sujeito ao fator previdenciário, que aplicado a sua média salarial de R$ 3 mil, resultará em uma aposentadoria de cerca de R$ 2 mil1. Victor estará sujeito ao favor previdenciário, chamado de “integralidade”: se aposentará com os R$ 4 mil de último salário.

A integralidade ignora a média salarial de R$ 3 mil e a expectativa de sobrevida contida no fator previdenciário. Note que o termo integralidade pode confundir: ao contrário do que os segurados do INSS estão acostumados, o “integral” aqui se refere ao último salário, não à média salarial: com efeito, a aposentadoria não é a média integral, mas um valor maior do que a média.

No exemplo simples colocado, as regras diferentes entre os regimes levam a uma redução de R$ 1 mil sobre a média salarial de Antônio e um aumento de R$ 1 mil na média salarial de Victor, resultando em uma aposentadoria com o dobro do valor. Ressaltemos: Victor e Antônio sempre tiveram os mesmos salários e contribuíram sobre os mesmos valores.

A integralidade, ou o favor previdenciário como chamamos neste texto, é a principal fonte de iniquidade entre os regimes, e de pressão no gasto público. Contrariamente ao que algumas corporações veicularam nas redes sociais na última semana, o fato de servidores mais bem remunerados contribuírem sobre salários acima do teto do INSS não gera a contrapartida proporcional à integralidade. Se Victor ganhasse R$ 10 mil ou R$ 20 mil, certamente contribuiria com mais do que Antônio, mas o favor continuaria embutido.

Voltando à opinião de Robalinho, é verdade que servidores que ingressaram depois de 2003 não tem direito à integralidade, e os que ingressaram depois de 2013 (na União) possuem regras inclusive mais restritivas do que as do INSS (mesmo teto, idade mínima maior). O desafio é que o contingente de servidores com direito a esta vantagem – que o governo e os jornais chamam de privilégio – ainda é e será muito significativo, especialmente na próxima década. Em 2015, 93% dos servidores que se aposentaram na União tinham integralidade.

Diante do teto de gastos (Emenda Constitucional no 95, de 2016), os altos gastos com aposentadorias e pensões do Regime Próprio comprimem despesas de políticas públicas e investimentos na União, inclusive os voltados à população mais pobre – ainda que a tendência partir da década de 2030 tenda ao equilíbrio. Frisa-se que diante do teto e sem reformas, o próprio reajuste do funcionalismo de servidores ficará pressionado, o que adiciona complexidade à atuação corporativa de entidades como a ANPR: os interesses de servidores pré-2003 definitivamente se conflitam com os dos que ingressaram posteriormente.

Neste sentido, é pertinente olhar os indicadores de deficit atuarial dos diversos regimes.  O resultado atuarial – superavit ou deficit – é considerado o indicador mais relevante para a saúde de um regime previdenciário. Ele se contrapõe ao resultado financeiro, que é um indicador corrente, do presente; enquanto o resultado atuarial indica o equilíbrio futuro. Simplificadamente, este é a soma dos fluxos futuros de receitas e despesas, trazidas a valor presente. Em um sistema estritamente equilibrado, não há deficit (ou superavit) atuarial.

O deficit atuarial do regime próprio na União é de R$ 1,4 trilhão. Observe que enquanto Robalinho tem razão de que a trajetória no Regime Geral (INSS) é muitíssimo pior (R$ 7,9 trilhões!), o valor não é nada desprezível. Em especial, o Regime Próprio da União possui as mesmas regras dos regimes próprios de Estados e Municípios, com deficits atuariais somados de R$ 5,4 trilhões, em entes que não podem emitir moeda e tem restrições a se endividar.

A alarmante situação previdenciária dos Estados é parcialmente explicada pela integralidade, conjugada com regras especiais de aposentadoria que afetam a maior parte dos funcionários, como professores, policiais e profissionais de saúde. Segundo o Banco Mundial, mesmo o rico Estado de São Paulo terá ao redor de 2030 o mesmo comprometimento da receita com previdência que o Rio, falido, tem hoje. Os Estados – e a prestação de serviços básicos à população – não resistirão a mais uma década com as atuais regras previdenciárias. Não há sentido em se opor a esta reforma porque haverá equilíbrio nos regimes próprios em 2035 ou 2040.

Então o que muda na polêmica versão atual da proposta? A mudança é simples. Servidores que ainda têm direito ao favor previdenciário, a integralidade, continuarão tendo direito a ela – desde que esperem até os 65 anos de idade (homem) e 62 anos (mulher) para se aposentar. Podem se aposentar antes disso? Sim, mas sem a integralidade. Neste caso, este servidor leva “só” 100% da média salarial.

Voltando ao exemplo de Antônio e Victor, Victor continuaria tendo direito à integralidade se esperasse até os 65 anos. Se ainda quisesse se aposentar antes disso, teria direito a 100% da sua média, de R$ 3 mil. O valor é certamente inferior ao último salário (R$ 4 mil), mas ainda muito acima do da aposentadoria de Antônio (R$ 2 mil). Por quê? Se não incide mais o favor previdenciário aumentando a média, tampouco incide algo parecido com o fator previdenciário: pode-se levar 100% dela.

Note que é, portanto, absolutamente falsa a afirmação de Robalinho em seu texto de que não há regra de transição para servidores (“quer-se que a nova idade mínima seja fixada no dia seguinte à eventual promulgação”). Sustenta o presidente da ANPR, antes de concluir com a frase “prendam-se os suspeitos de sempre” que batiza o artigo, que haveria um tratamento diferenciado e desrespeitoso com o servidor que tornaria a proposta inconstitucional. Perceba: só é necessário continuar contribuindo até os 65/62 anos para manter a integralidade. Isso não é necessário para quem quiser sair antes levando 100% da média.

Agora imagine Victor, chateado com a proposta, explicando para Antônio a injustiça de levar como aposentadoria sua média salarial, sem fator previdenciário ou qualquer outro índice que considere sua (longa) expectativa de sobrevida. Ademais, a possibilidade de aposentadoria com 100% da média só existirá para servidores que ingressaram antes de 2003 – uma clara concessão a quem já foi afetado por reformas anteriores e feito seu planejamento familiar de acordo com elas –, enquanto os servidores que ingressaram posteriormente ficam sujeitos ao mesmo cálculo que valerá para os trabalhadores do INSS.

Há outros pontos a discordar no artigo aqui comentado. De menos relevante, soa incorreta a afirmação que “na verdade, é banal e intuitivo que a despesa previdenciária é anticíclica”: ela parece acíclica, pois cresce vigorosamente independentemente da atividade econômica. Talvez alguns ainda a considerem prócíclica, porque os reajustes do salário mínimo (o valor da maior parte dos benefícios) são influenciados pelo crescimento do PIB, mas com uma defasagem de mais de 1 ano. Anticíclica dificilmente ela é – como podem ser benefícios da Seguridade como o Bolsa Família e o seguro-desemprego –, se não se reduziria quando o PIB voltasse a crescer, o que coadunaria com o argumento de Robalinho de que os deficits altos são conjunturais.

De mais relevante, é extremamente controversa a afirmação de que “o governo mente quando diz que a reforma não atinge os mais necessitados” e que irá “reduzir em 40% a aposentadoria dos que chegarem aos requisitos com o tempo mínimo de contribuição (15 anos)”. De fato isso seria extremamente preocupante, porque possui razão o procurador quando diz que os trabalhadores mais pobres têm dificuldade de comprovar tempo de contribuição.

No entanto, a proposta atual, contrariamente à versão original, mantém o mínimo atual de 15 anos de contribuição, não mudando em nada o requisito para estes trabalhadores. Principalmente, a PEC não propõe a desvinculação do piso previdenciário do salário mínimo. Esta vinculação faz com que a maior parte dos beneficiários da Previdência, especialmente os mais pobres, recebam como valor do benefício mais do que a média salarial com que contribuíram. Para eles, é irrelevante a fórmula de cálculo do benefício, pois sempre tende a estar abaixo do salário mínimo atual – o piso previdenciário pela Constituição – que foi muito valorizado nos últimos 20 anos, especialmente nos governos do Partido dos Trabalhadores.

Ilustrativamente, um trabalhador que tenha recebido sempre o salário mínimo desde os anos 90, e contribuído sobre ele, teria média salarial atualizada em 2017 de pouco mais de R$ 600. Qualquer fórmula de cálculo de aposentadoria, seja a da reforma ou seja a vigente, leva a um valor inferior ao salário mínimo atual. Com 15 anos, o menor tempo de contribuição exigido para aposentadoria, ele já tem a média salarial integral como benefício, ou mais que integral, uma vez que o piso previdenciário é de R$ 937. Quase 70% dos benefícios do INSS são de 1 salário mínimo.

Desta forma, a tese do presidente da ANPR em relação aos trabalhadores pobres do INSS não apenas contrasta com o fechamento de seu artigo (“É no regime geral que está o problema”), como não tem amparo à luz da PEC e da realidade previdenciária.

Finalmente, chama atenção o argumento de que objetivo final da reforma da Previdência é manter o sistema político corrupto, uma vez que ela afeta servidores de carreiras que “investigam, fiscalizam, processam, incomodam as forças políticas que estão no poder”.  Não seria o caso então de possibilitar logo a aposentadoria destes servidores, permitindo a corruptos que se livrem de seus investigadores? Grandes personagens da luta recente contra a corrupção no País estão se aposentando pelas regras atuais, como o delegado ex-diretor da Polícia Federal Leandro Daiello (51 anos), o procurador da Lava Jato Carlos Fernando dos Santos Lima (53 anos, que anunciou aposentadoria para o ano que vem), e o próprio ex-Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot (61 anos) que se aposentadoria após deixar o cargo.

Ademais, a estranha lógica que relaciona a reforma da Previdência com o combate à corrupção poderia induzir o leitor menos esclarecido a inferir como corolário –equivocadamente – que ações anticorrupção são usadas contra a reforma: um infeliz argumento que já foi usado por opositores da Lava Jato.

A lembrança do ex-PGR Rodrigo Janot, aliás, é oportuna para encerrarmos este texto. Em agosto, o PGR ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 476, relativa ao Plano de Seguridade Social dos Congressistas (também afetado pela atual reforma). Esta previdência parlamentar, que contrariamente ao senso comum exige tempo de contribuição de 35 anos, possui na prática idade mínima maior do que a do Regime Próprio dos servidores e não conta com integralidade, pagando valores médios que são pouco mais da metade das aposentadorias do Regime Próprio no Judiciário, no MP e no Legislativo. Ressalta-se que a ação do PGR não se refere ao Instituto de Previdência dos Congressistas (IPC), este sim com regras mais vantajosas, mas extinto em 1997.

Os argumentos trazidos na ADPF são extremamente pertinentes na discussão da reforma que aproxima o favor previdenciário do Regime Próprio ao fator previdenciário do Regime Geral. Peço licença ao leitor para encerrar o texto reproduzindo três trechos, convidando-o a refletir se os argumentos se mantêm se substituirmos os termos “agentes políticos” por “servidores”.

  1. “Além de igualdade de oportunidades, o princípio republicano busca assegurar tratamento igualitário a todos os cidadãos e repudia privilégio ou regalia que beneficie, sem fundamento jurídico suficiente, determinado grupo ou classe em detrimento dos demais. É refratário à instituição de privilégios, pois se baseia no
    reconhecimento da igual dignidade de todos os cidadãos, donde a temporariedade do exercício do poder, precisamente para impedir perpetuação de privilégios.”
  2. “Concessão de benefícios previdenciários com critérios especiais distingue indevidamente determinados agentes políticos dos demais cidadãos e cria espécie de casta, sem que haja motivação racional – muito menos ética – para isso”.
  3. “Os princípios republicano e da igualdade exigem que, ao final do exercício de cargo eletivo, seus ex-ocupantes sejam tratados como os demais cidadãos, sem que haja razão para benefícios decorrentes de situação pretérita, muito menos de forma vitalícia. Mesmo durante a ocupação de cargos é desejável que os mandatários do povo sejam tanto quanto possível tratados com direitos e deveres idênticos aos de seus compatriotas”.

Publicado originalmente no JOTA em 11 de dezembro de 2017.

_____________

1 R$ 2.124, com o fator previdenciário de 0,708.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
Contos da Reforma Trabalhista https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3157&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=contos-da-reforma-trabalhista Mon, 05 Feb 2018 14:17:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3157 Miranda queria comemorar a causa que ganhou: ele aproveitou a sexta-feira e chamou os colegas do escritório para um bar badalado. A noite não foi tão divertida: reclamou com o dono do estabelecimento, Emanuel, que o atendimento do grupo foi ruim e não conseguiam fazer seus pedidos porque faltavam garçons.

João acaba de sair do ensino médio em uma escola pública, sem boas perspectivas. Quer ingressar em uma faculdade, mas não tem dinheiro para pagar uma particular ou o cursinho para passar no Enem. Sem experiência, não consegue um emprego. Na verdade, gostaria de pelo menos um bico, que o ajudasse a pagar as despesas e que também permitisse que tivesse tempo para os estudos.

Emanuel gostaria de contratar mais garçons para o fim de semana, para atender clientes como o advogado Miranda. Porém, a lei o impede: se contratar, tem que ser pra semana toda, dinheiro que ele não tem. Pensou então em contratar garçons informalmente apenas para as sextas e sábados. Desistiu porque da última vez que tentou recebeu uma condenação da Justiça que pesou em suas despesas.

Consumidores tais quais Miranda continuarão mal atendidos, Emanuel continuará sem funcionários para parte da semana e João continuará sem trabalho. Como João, um a cada quatro jovens procurando não têm empregos. A taxa de desemprego entre eles é mais do que o dobro da média nacional.

*

Renato está feliz: concluiu um ano no emprego com carteira assinada em uma pequena empresa e tem recebido elogios de clientes e patrões. O trabalho finalmente deu a segurança que faltava para sustentar sua filha pequena sem contar só com o Bolsa Família, e as perspectivas no emprego são boas.

Sua chefe Dora reconhece seu esforço e as metas que bate na firma, e pensou em promove-lo para a função de Mauricio – um empregado mais antigo que está desmotivado no posto. Entretanto, como Mauricio tem 10 anos na função não pode mais perde-la. Não existe lei com esta obrigação, mas a determinação de um tribunal superior. A pequena empresa não consegue pagar duas pessoas para o trabalho de uma, e, portanto, Renato não receberá a gratificação.

Dora pensou então em dar um adicional a Renato pela boa avaliação que recebe dos clientes. Porém, da última vez que tentou fazer isso recebeu uma condenação da Justiça. Como Renato ocupa formalmente o mesmo cargo que outros funcionários, Dora poderá ser processada pelos colegas de Renato, ou funcionários da outra filial, ou funcionários que a empresa eventualmente contratar no futuro.

Renato não receberá o aumento. Com o tempo, ficará desmotivado como Mauricio. Dora não vai ouvir mais elogios das famílias que usam o estabelecimento.

*

Cristina finalmente terminou o curso de técnica em enfermagem. Foi em boa hora: se casou há pouco tempo e agora quer ter filhos. Cristina tentará uma vaga em um hospital.  Ela disputará a vaga com um colega do mesmo curso, com o mesmo nível de experiência e qualificação.

Luiz, responsável pelo RH do hospital, nota a aliança no dedo e a juventude de Cristina. Luiz sabe que se Cristina engravidar o hospital deverá pagar o afastamento dela durante a gestação e simultaneamente arcar com outra pessoa em seu lugar. A exigência existe há pouco tempo para gestantes em locais com qualquer nível de insalubridade. Luiz também sabe que Cristina tem restrições legais a fazer horas-extras.

Esses impeditivos não existem para o colega do curso de Cristina, que é homem. Ele levará a vaga.

No Brasil, o desemprego entre mulheres é quase 30% maior que dos homens. O grupo mais afetado pelo desemprego é o de mulheres jovens, como Cristina.

*

José está animado. Depois de anos trabalhando no setor de construção, virou um reconhecido especialista em terraplenagem em Fortaleza. Limpeza de terreno, locação topográfica, escavação, corte, aterro, compactação, fundação. Nada escapa a perícia de José, que consegue fazer o serviço de modo mais eficiente, poupando custos para a construtora e reduzindo o tempo de entrega das obras para os consumidores.

Por isso, José se demitiu para criar um pequeno negócio especializado na tarefa. Quer que sua firma de terraplenagem preste serviços para várias construtoras cearenses. Confiante, José investiu em equipamentos e contratou o primo e o cunhado para ajudá-lo.

José confia no seu taco: acha que contratar seu serviço será mais vantajoso para as empresas do que manter pessoal pouco especializado ou um quadro fixo que só trabalha algumas vezes durante o ano.

Nenhuma construtora contratará o serviço de José. Ele vai falir e seu negócio jamais existirá. José, o primo e o cunhado entrarão para a fila de desempregados no Nordeste, onde a taxa de desemprego é quase o dobro da do Sul e mais de 20% acima da média nacional.

As construtoras temem ser processadas. Dr. César é um dos juízes que proibiu construtoras de terceirizar este serviço. Ele entende que, embora eventual, o serviço faz parte da “atividade-fim” dessas empresas, não de sua “atividade-meio”. Embora não exista lei com esta proibição ou distinção, existe uma determinação de um tribunal superior, que Dr. César acatou.

O gabinete de César tem muitos processos. Para ajudá-lo, ele conta com o auxílio de assessoras como Kátia. Compete a Kátia fazer a pesquisa de jurisprudência, aplica-la ao caso concreto e redigir os votos que César assinará.

Seu trabalho, com o de outros assessores, é supervisionado por César, que assim pode dedicar seu tempo e energia a outras atividades que considera mais importantes para o trabalho eficiente do gabinete.

A decisão escrita por Kátia e assinada por Dr. César diz que as construtoras não podem contratar com terceiros atividades que lhe são inerentes, que há subordinação estrutural entre as partes e ordena então que desembolsem uma determinada quantia para equiparar os terceirizados.

*

Miranda está irritado. Com o escritório de vento em popa, ele está sem internet no celular logo no meio da semana. Ligou para o call-center da empresa de telefonia, que atende Miranda com lentidão e não consegue resolver o seu problema.

O call-center é de responsabilidade de Helena. Engenheira, ela era na verdade uma promissora profissional da área de mercado digital e inovação. Porém, a empresa optou por transferi-la da área onde pesquisava novos aplicativos e big data para que montasse uma estrutura para atender os clientes por telefone. Uma decisão judicial obrigou a empresa a ter seu próprio call-center.

Com a ajuda de Kátia, Dr. César foi o responsável pela decisão. Nenhuma lei obriga empresas telefônicas a terem seu próprio call-center, mas César entende que a atividade-fim de uma telefônica inclui falar ao telefone, ao contrário de outras firmas, que podem terceirizar a tarefa.

Sem poder contratar empresas especializadas para fazer o serviço, coube a Helena gerenciar o novo setor sem profissionais com know-how para auxiliá-la. Os novos aplicativos disponibilizados aos consumidores pela equipe especializada do antigo setor de Helena vão ter que esperar, e o atendimento da companhia por telefone demorará para ter a mesma eficiência.

Miranda não vai ser atendido hoje – como outros milhares de consumidores que perderão tempo de trabalho e convívio familiar com a inoperância do novo call-center.

*

A reforma trabalhista entra em vigor em novembro. Se ela já valesse, João poderia ser contratado formalmente por Emanuel, o dono bar; Renato poderia pegar a função de Mauricio ou receber o adicional por produtividade; Cristina talvez fosse contratada pelo hospital em vez de seu colega homem; José poderia abrir sua empresa de terraplenagem; Helena poderia se dedicar a produzir para a sociedade aquilo que ela faz melhor; e Miranda seria um consumidor mais satisfeito.

Nem todos ganham com a reforma. Mauricio terá que competir com trabalhadores mais jovens. Miranda teria menos para comemorar no bar porque ações trabalhistas não poderão ser disparadas a esmo, a Justiça do Trabalho terá menor poder para legislar, e a nova lei impede algumas criações judiciais – como a “equiparação em relação ao paradigma remoto” que impede o aumento de Renato. (Advogados e o Judiciário trabalhista continuarão a ter um papel essencial no combate a ilegalidades, como a de Emanuel – aliás, a multa para empregar trabalhadores informais subiu 7 vezes.)

Os personagens representam uma parcela da população que é difusa e desorganizada, invisível neste debate. Essa massa contrasta com a organização e articulação de grupos como os que representam os trabalhadores já inseridos no mercado de trabalho formal (sindicatos) e os que representam o status quo da estrutura judicial.

Rara exceção neste debate foi a campanha dos trabalhadores da Guararapes contra o Ministério Público do Trabalho – evidentemente apoiada pela empresa e por um movimento político – mas que serviu para mostrar o rosto de uma massa prejudicada pela regulação atual do trabalho no Brasil e que é tipicamente invisível.

Um mercado de trabalho que funcione bem é vital para redução da pobreza e das desigualdades. A reforma trabalhista não é bala de prata para solucionar todos os seus problemas, mas permite a inclusão de excluídos com novas formas de contratação; dá segurança jurídica para a criação de empregos formais; e estimula o crescimento da produtividade (renda). Mesmo no bom momento do mercado de trabalho na primeira metade da década, a produtividade permaneceu estagnada e a informalidade muito alta, enquanto a baixa taxa média de desemprego escondia os indicadores piores para jovens, mulheres, negros e estratos mais pobres da população.

É fato conhecido que a pobreza no Brasil se concentra desproporcionalmente nas crianças e jovens, que moram em famílias com inserção precária no mercado de trabalho e sem pessoas mais velhas (que comumente recebem benefícios da Seguridade Social). Entre os 20% mais pobres da população, o desemprego é 7 vezes maior do que entre os mais ricos, e a informalidade cerca de 4 vezes maior. São estas as famílias que mais tem a ganhar. Estimativas iniciais sugerem entre 1,5 e 2,3 milhões de novas vagas apenas por conta da reforma.

É evidente que a reforma também beneficia os empregadores, afinal o empresariado apoiou a proposta. Não é por benevolência deles que os empregos formais ou a renda aumentarão. Toda contratação faz parte da busca por lucro pelo empresário. Cabe à legislação estabelecer regras do jogo para que, em sua procura pelo lucro, os patrões também maximizem os níveis de emprego e salários – e não que os prejudiquem. Afinal, a escolha da sociedade brasileira em sua Constituição foi por uma economia de mercado, e a regulação do trabalho deve ser ciente disso.

Além dos casos dos personagens do artigo, a reforma ataca muitas outras situações em que a CLT ou o Judiciário estabelecem condições que à primeira vista parecem favoráveis ao trabalhador, mas acabam não o sendo porque ignoram a premissa de um empregador que se comporta racionalmente e objetiva o lucro. O comportamento do empregador não deve ser idealizado.

Por exemplo, decisões bem-intencionadas de juízes para que o tempo no transporte oferecido voluntariamente pelo empregador aos empregados seja contado como horas-extras provocam a reação defensiva do empresário que, para preservar o lucro, desiste de fornecer o transporte. A situação do trabalhador piora: perderá mais tempo e dinheiro na rede de transporte pública, normalmente pior.

Autorização médica

Para o Prêmio Nobel indiano Amartya Sen, autor de Desenvolvimento como Liberdade, a pobreza é a privação de oportunidade. A reforma precisa ser melhor compreendida para vencer os esforços contrarreformistas de algumas entidades sindicais, da advocacia trabalhista e de parte do Judiciário/MP. No mesmo sentido do caso Guararapes, as pequenas fábulas aqui contadas precisam chamar atenção para um imperativo: a necessidade de defender os mais pobres de seus defensores.

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 20 de outubro de 2017.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
Reforma trabalhista rumo ao ‘planalto’ https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3148&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=reforma-trabalhista-rumo-ao-planalto Mon, 29 Jan 2018 13:59:27 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3148 Rússia, Moçambique, Ucrânia, Comores, Venezuela, Panamá, Angola e Bielorrússia são alguns do grupo de apenas 12 países com legislação trabalhista mais rígida que a brasileira. Entre 144 nações, o Brasil ocuparia a 132ª posição em ranking de flexibilidade da legislação, segundo índice criado em anos recentes por pesquisadores do Institute of Labor Economics (IZA)1.

O indicador compara o tratamento das diferentes legislações para temas como a possibilidade de modalidades alternativas de contrato (como o trabalho intermitente); custos de contratação; custos e procedimentos de demissão; e jornada anual (que considera férias e feriados).  É pacífica na literatura a noção de que indicadores como este, em vez de serem usados para identificar causalidade entre a legislação e o crescimento econômico ou a taxa de desemprego de um país, são mais úteis quando analisados conjuntamente com medidas sobre o mercado de trabalho.  Se o índice aponta uma legislação trabalhista rígida, mas para um país que dispõe de bons dados para emprego, formalização e produtividade, não haveria problema.

Não é o caso do Brasil. O novo conjunto de indicadores divulgados pelo IBGE a partir de setembro de 2016 revela que cerca metade da força de trabalho não está abrangida pela legislação trabalhista. São os milhões de desempregados, informais e os integrantes da “força de trabalho potencial”, isto é, os desalentados que não apareciam nas estatísticas de desemprego porque já desistiram de procurar uma ocupação, embora quisessem uma. Nos Estados Unidos ele compõem uma taxa chamada de “taxa de desemprego real”.

Essas medidas ruins se somam aos indicadores de produtividade, estagnados há décadas, e ao índice de rigidez da legislação trabalhista para manifestar a necessidade de reforma nas leis do trabalho.

O Banco Mundial aponta os desafios de desenhar uma legislação trabalhista em países emergentes. Uma bem-intencionada legislação trabalhista, generosa, mas alienada, pode prejudicar exatamente os trabalhadores que tenta proteger, ao impedir a criação de vagas formais e o crescimento da produtividade (e da renda). Por outro lado, uma legislação exageradamente flexível pode levar à desproteção do trabalhador.

Esses dois extremos de regulação excessiva ou insuficiente são chamados de abismos. Não se sugere uma legislação “ideal”, ou a existência de um pico único para a performance do mercado de trabalho, mas sim a presença de múltiplos picos. Entre os abismos, há um planalto de possibilidades para esta legislação, que não levem o mercado de trabalho ao abismo do desemprego e da pobreza, nem ao abismo da precarização. Neste espaço, a regulação adereça as falhas de mercado sem prejudicar a eficiência. É neste planalto que o legislador quer chegar.

Figura 1 – Planalto e abismos da legislação trabalhista

Fonte: Betcherman (2014). Disponível em: https://wol.iza.org/uploads/articles/57/pdfs/designing-labor-market-regulations-in-developing-countries.pdf

 

Os dados sugerem que a regulação do mercado de trabalho no Brasil, pela CLT e pela jurisprudência trabalhista, nos coloca hoje em um desses abismos. Queremos subir ao planalto, mas sem correr o risco de cair no outro abismo2.

Este é o desafio da reforma trabalhista. A possibilidade que o negociado tenha a força do legislado contribui para que tenhamos contratos mais eficientes, com novas condições mutuamente benéficas para empregadores e empregados. É preciso, no entanto, ter a sensibilidade para reconhecer a desigualdade de poder negocial que pode existir nessa relação. A reforma impõe uma série de requisitos para as negociações coletivas, mas cortou subitamente a principal fonte de financiamento dos sindicatos (a impolular contribuição obrigatória).

Na teoria, se essa desigualdade leva uma das partes (o empregador) a conseguir termos mais favoráveis do que a outra, a liberdade contratual deixa de ser real e o resultado é uma falha de mercado, dando ensejo à proteção do arcabouço jurídico. Para que uma transação seja de fato mercado, é essencial a autonomia para veto em uma negociação.

Por sua vez, a incompreendida terceirização pode melhor entendida como um mecanismo para que a informação flua melhor no mercado de trabalho. Em A Reinvenção do Bazar: Uma história dos mercados, o falecido economista de Stanford John McMillan ensina que este mecanismo é um dos requisitos para o bom funcionamento de qualquer mercado, sob pena de reduzir quantidade e valor de transações.

No mercado de trabalho, isso significa desemprego e salários menores. A terceirização minimiza os custos de transação, entre eles o custo de busca. O desafio aqui para a regulação deste mecanismo é fazê-lo ser veículo de redução justamente desses custos, e não de custos com encargos trabalhistas (sonegação). O Judiciário aqui terá um papel fundamental: contrariamente ao que é divulgado, a reforma não liberou a terceirização “irrestrita”, mas sim a terceirização da atividade-fim: fraudes continuam sendo proibidas.

Há um mito no debate sobre a legislação e a Justiça trabalhistas no Brasil: o de que beneficiam e protegem demais o trabalhador. A pergunta é qual trabalhador. Se contribuem para nos levar ao abismo do desemprego, da informalidade e da renda baixa, não podem ser consideradas benéficas ao conjunto de trabalhadores. Cabe à reforma trabalhista mudar essa situação sem levar nosso mercado de trabalho ao abismo da precarização, mas sim ir rumo ao planalto.

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 26 de abril de 2017 sob o título “Para a reforma trabalhista ir do abismo para o planalto”.

 

________________

1 Pelo Instituto Frasier, estaríamos em 144 de 159 países.

2 Note que este arcabouço também contempla a própria oposição à reforma. Para opositores, a legislação já estaria no planalto, mas a reforma nos levaria ao outro abismo. Um importante argumento divulgado é o de que o Brasil teria tido pleno emprego no início dos anos 2010 com legislação anterior. Cabe frisar que neste período convivemos com altos níveis de informalidade e produtividade estagnada, bem como que a taxa global esconde o alto nível de desemprego entre mulheres, jovens, negros e pobres. No melhor dos casos, tivemos um “pleno emprego do homem branco”. Ademais, o argumento, mesmo que aceito, não implica negar que as taxas poderiam ser ainda melhores sob outra legislação. Por fim, o argumento é valido ao apontar que o nível de emprego depende de outros fatores, como a atividade econômica e políticas de emprego ativas.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
Ministério Público e os voos de galinha https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3097&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=ministerio-publico-e-os-voos-de-galinha https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3097#comments Thu, 16 Nov 2017 14:17:28 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3097 Recentemente o Procurador-Geral da República Rodrigo Janot respondeu a críticas de que o trabalho do MPF criava instabilidade e prejudicava a retomada do PIB e a agenda de reformas.  O PGR reconheceu que a atuação trazia um custo, mas que em contrapartida a prosperidade futura do país seria erguida em base sólida e consistente. Não sendo assim, estaríamos condenados a “voos de galinha” na economia.

Os esforços do MPF pela melhoria das instituições e da governança e pelo combate ao capitalismo de compadrio são elogiáveis, mas contrastam com uma marcante atuação da instituição pela manutenção do status quo, contra a agenda de reformas. Em junho, o PGR ajuizou ação para derrubar a Lei da Terceirização no STF. Antes, áreas do MPF se posicionaram institucionalmente contra a Emenda do teto de gastos e a reforma da Previdência, enquanto o Ministério Público do Trabalho foi um dos mais ativos opositores da reforma trabalhista.

O comportamento contrarreformista do MPF não é novo. No passado, a Procuradoria-Geral da República se manifestou no Supremo no sentido de reverter aspectos essenciais da 2ª reforma da Previdência, como a contribuição dos servidores inativos, sem sucesso. Na Lei de Responsabilidade Fiscal, a PGR deu parecer pela inconstitucionalidade de dispositivos que permitiam a redução de salários e de jornadas quando ultrapassados os limites de gasto com servidores. Não tivessem sido derrubados, o atual drama dos Estados teria a mesma dimensão?

Neste ano, os debates realizados pela Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR) no processo de eleição da lista tríplice para novo PGR jogam luz sobre o pensamento da cúpula da instituição sobre temas estratégicos para a economia. Entre os integrantes da lista tríplice existe a opinião que o MPF tem de ter iniciativa para melhorar a política previdenciária porque “grande parte dos benefícios são sonegados a quem deles precisa”. Também no trio há quem opine que a reforma da Previdência é assustadora e muito drástica.

Entre os que não integraram a lista final, uma subprocuradora-geral da República sugere rever o teto de gastos caso a economia cresça. Outro subprocurador, a respeito da Emenda do teto, reclama sobre “dignidade remuneratória”. Entre os eleitos para a lista tríplice, há quem critique a “defasagem” e quem afirme que o MPF já é espartano em seus gastos. Dados do IR mostram que em 2016 a remuneração média de um membro do MP foi 46 vezes maior que o salário mínimo, acima do teto salarial da Constituição.

Também há críticas à situação dos procuradores aposentados. Eles são beneficiados pela integralidade e paridade, privilégios subsidiados pelo contribuinte que não existem no INSS. Porém, a crítica é que recebem pouco.

Um dos eleitos fala em “grave discrepância” porque os da ativa recebem indenizações que o inativo não recebe, de R$ 130 mil ao ano. Uma subprocuradora lamenta que muitos não se aposentam porque não tem “condição de viver com o que receberão”, e exemplifica:  “aposentados têm filhos na carreira que recebem muito mais do que eles”. Já o Ipea aponta que a previdência dos servidores é sozinha responsável por 7% da desigualdade de renda do país, já descontada as contribuições pagas. Nos termos do professor José Márcio Camargo, seria o maior programa de transferência de renda do Brasil.

Mesmo após um impeachment por pedaladas, houve nos debates também inclinação por contabilidade criativa. Uma candidata propôs achar solução para incorporar o auxílio-moradia às aposentadorias “obviamente sob uma outra rubrica”. Um dos escolhidos defende que a gratificação eleitoral seja computada no limite de pessoal do Judiciário, não do MP, pra evitar as consequências da LRF.

Para além do corporativismo, há uma atuação mais geral contra as reformas. Em nota ao Congresso o MPF foi contra a reforma da Previdência com um conjunto de alegações frágeis – se opondo a idade mínima com base na expectativa de vida ao nascer. Por sua vez a ANPR e outras associações de membros do MP assinaram notas afirmando não haver déficit na Previdência, alegando haver um confisco, e garantindo que a reforma não se sustentará no Judiciário (“fique alerta o País disso”).

Na PEC do teto, o MPF enviou ao Congresso durante a tramitação nota afirmando que a proposta era inconstitucional e deveria ser rejeitada, por ofender a separação de Poderes. Já o Ministério Público do Trabalho argumentou, no Parlamento e até em revistas em quadrinhos distribuídas pela instituição, que a reforma trabalhista não gerará empregos.

Exceção na campanha da lista tríplice foi a menção ao papel do MP em reduzir o custo Brasil. Entretanto, quem a vocalizou também argumentou repetidamente que o problema do Brasil são as desigualdades, porque rico ele é. Na verdade, estamos entre a 77ª e a 85ª posição na comparação do PIB per capita: mais pobres que o Iraque e a Botswana.

Em suma, se a atuação do MP na área criminal pode ser modernizadora para a economia, na área cível (tutela coletiva) não é possível dizer o mesmo. Em vez de proteger interesses difusos, na agenda de reformas a atuação do MP é meramente concorrente ao lobby de grupos organizados como as centrais, as corporações e as organizações de advogados.

É de alguém para defender as maiorias mudas que o país precisa. Não há quem advogue pelas crianças e jovens pobres excluídos do orçamento e que contarão com cada vez menos recursos sem mudanças na Previdência, ou pela multidão de desempregados e informais – onde as minorias prevalecem – à espera de oportunidades que não se viabilizarão com a atual legislação trabalhista ou o crescimento explosivo da dívida pública.

São grupos sem capacidade de mobilização para eleger representantes, que poderiam se beneficiar da estrutura bilionária e da missão constitucional do MP de proteger os interesses difusos e coletivos. Se, ao contrário, a instituição que é cada vez mais protagonista na definição dos rumos do país insistir e prosperar na luta contra as reformas estruturais, estaremos condenados a mais voos de galinha.

Este texto foi originalmente publicado no jornal Valor Econômico, em 12 de julho de 2017.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3097 3
Quem protege o trabalhador da Justiça do Trabalho? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3088&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quem-protege-o-trabalhador-da-justica-do-trabalho Mon, 06 Nov 2017 14:38:37 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3088 É comum o argumento de que a legislação e a Justiça do Trabalho são exageradamente pró-trabalhador. A afirmação é falaciosa: sempre se deve querer o bem do trabalhador. A questão é que na verdade esta estrutura normativa o prejudica com frequência, especialmente quando peca por idealizar o comportamento dos patrões. A Justiça do Trabalho é uma justiça de decisões bem intencionadas e efeitos adversos.

A CLT prevê que o empregador pode oferecer transporte aos empregados, sem que isso conte como tempo da jornada. O transporte dado livra o empregado de passar mais tempo em deslocamento e de usar o precário sistema de transporte público. Há duas exceções: o transporte será computado como tempo de jornada se o local de trabalho for de difícil acesso ou não servido por transporte público regular.

Muitos juízes reinterpretam estes dois termos. A intenção pode ser boa, uma vez que o empregado ganha uma indenização. O resultado não é: diante da insegurança jurídica, as empresas ficam na defensiva e deixam de oferecer o transporte. Quem perde?

Outro bom exemplo é o engessamento de políticas de remuneração. Quando um juiz decide pela incorporação definitiva de um adicional eventual de produtividade, o empregador tende a resistir em conferir este tipo de prêmio.

Representativa desta miopia é a Súmula 277 do TST, derrubada pelo STF. Ela previa que condições benéficas concedidas temporariamente aos trabalhadores em negociações coletivas deveriam ser incorporadas definitivamente ao contrato individual. Quantos empregadores vão estar predispostos a negociar essas concessões temporárias?

A teoria microeconômica não é romântica ao descrever o comportamento de uma firma: seu objetivo é o de maximizar o seu lucro. Assim, a escolha racional de empregadores diante de decisões trabalhistas como essas será prejudicial justamente aos empregados. O Judiciário trabalhista tem sido pródigo em, ao julgar ações, decidir de maneira que nos casos concretos parece favorável os trabalhadores, mas que acaba sendo deletéria a eles. Este resultado ocorre, ironicamente, por idealizar o comportamento (natural) das empresas.

Individualmente, os julgamentos podem fazer sentido. No agregado, não. Mesmo o TST, que poderia ter uma melhor visão do todo, não tem os insumos do Parlamento para legislar, e também falha ao não antecipar a reação empresarial. A regulação do trabalho no Brasil precisa trabalhar com esta restrição: buscar o melhor para o trabalhador ciente que o DNA da empresa é visar o lucro.

Um segundo problema que existe no arcabouço que rege o trabalho no Brasil é o seu confinamento na lógica de mais valia e na oposição entre capital e trabalho. Outra oposição, talvez mais relevante, é a oposição tácita entre incluídos e excluídos. Cerca de metade de força de trabalho está incluída na legislação trabalhista, e metade está excluída, desempregada ou informal. O instinto protetor sobre o primeiro grupo pode penalizar o segundo.

Pelo dilema “insider-outsider”, o ganho do incluído pode significar perda para o excluído, e vice versa. Um exemplo presente na reforma trabalhista é a inovação do trabalho intermitente, uma controversa nova forma de contratação, por hora. Um bar poderia ampliar o número de garçons contratados no fim de semana, permitindo a inclusão de excluídos: como desempregados para quem trabalhar algumas horas por mês é um avanço em relação a não trabalhar hora nenhuma.

Por outro lado, a mudança permitiria que o bar tenha menos empregados no seu quadro fixo, pela menor demanda nos outros dias. Isso seria perda para incluídos contratados por toda a semana que passariam a trabalhar apenas no fim de semana. Este dilema ainda aparece pouco no debate sobre a legislação e Justiça trabalhistas, em que predomina a visão do conflito capital-trabalho, sem que se perceba que existe um terceiro grupo afetado por estas normas e decisões e sem que se note o conflito invisível entre incluídos e excluídos.

Um terceiro raciocínio que precisa ser aprimorado nesta discussão é o que defende que não precisamos de mudanças na CLT ou no Judiciário, uma vez que mudanças não aconteceram nos últimos anos, nem quando o desemprego caiu, nem quando o desemprego subiu. O argumento, expressado nas redes pela atriz Camila Pitanga, tem lógica: uma mudança na legislação não é uma varinha de condão que resolve sozinha os problemas de renda do país. Entretanto, mesmo quando esteve bom, o funcionamento do mercado de trabalho era muito ruim.

Até no período de boom, com desemprego em baixa, convivemos com informalidade alta e produtividade estagnada, negativa em alguns setores. As estatísticas também escondiam o desemprego oculto pelo desalento, o que se refere ao “desempregado raiz”: o desempregado que já desistiu de procurar ocupação e não aparece mais nos dados oficiais. A baixa taxa oficial também não revelava a “desigualdade de desemprego”: os indicadores muito piores para mulheres, negros e jovens, grupos normalmente esquecidos nesta discussão.

Cabe ao Juiz do Trabalho ativista entender melhor que os indicadores do mercado de trabalho – que não se resumem à taxa de desemprego – são sensíveis às suas decisões; que a soma de decisões individuais bem-intencionadas pode gerar a exclusão de largas parcelas da população; e que o empresário tende a reagir racional e defensivamente ao seu ativismo, transferindo riscos para o trabalhador (inclusive o excluído, quando foge da contratação formal).  Sem essa visão mais ampla, a Justiça do Trabalho periga continuar sendo vista como o elefante na loja de cristais.

 

* Este texto foi publicado sob o título “Boas intenções, efeitos adversos” no jornal O Estado de São Paulo, de 24 de junho de 2017.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
Jurimetria: como decidem os juízes que vão julgar Lula? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3068&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=jurimetria-como-decidem-os-juizes-que-vao-julgar-lula https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3068#comments Mon, 30 Oct 2017 14:24:46 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3068 1. Introdução

A ciência política americana desenvolveu nas últimas décadas úteis ferramentas para analisar o histórico de votações no Legislativo, permitindo traçar um “mapa” dos votantes, resumindo a informação de dezenas ou centenas de votações em um único gráfico.

Nestes chamados modelos espaciais, estimam-se pontos ideais que são designados para cada parlamentar e permitem reproduzir as divergências ocorridas no passado. Um óbvio resultado nos parlamentos de outros países é a visualização de como parlamentares se dividem no espectro esquerda-direita, por exemplo.

É possível pegar emprestada esta metodologia e analisar colegiados também no Judiciário, tentando mapear a divergência entre juízes. Neste artigo fazemos este exercício para os desembargadores da 8ª Turma do TRF4.

Exemplo: mensalão

Como exemplo, apresentemos antes o resultado desta metodologia para o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Penal no 470 (mensalão) – discutida anteriormente aqui no blog.

A Figura acima apresenta a dispersão entre os Ministros de acordo com as dezenas de divergências votações ocorridas naquele julgamento. Nesta metodologia, cada votante recebe um ponto no espaço (um círculo unitário variando de -1 a 1 nos eixos horizontal e vertical). .

Entre as infinitas possibilidades de alocar estes pontos no espaço, apresenta-se aquela que melhor reproduz as divergências na amostra de votação – produto de um estimador de máxima verossimilhança.

Assim, quanto mais os votos do ministro A tiver coincidido com os votos do ministro B, mais próximos eles estarão no espaço. Igualmente, quanto mais divergências um votante possui com outro, mais distante eles estarão.

O interesse é na dispersão entre os pontos, e não nos valores absolutos das coordenadas, que não tem qualquer significado relevante a priori.

Uma vantagem evidente de usar este tipo de metodologia para criar uma síntese das decisões é que os pontos são estimados automaticamente a partir dos dados, sem necessidade de conhecer previamente os processos para buscar a origem das divergências ou analisar conteúdo de votos por exemplo.

Os pontos dos Ministros, que na Figura receberam cores diferentes de acordo com o Presidente que os indicou, podem ser interpretados de maneira intuitiva neste exemplo.

Como também levou-se em conta a opinião do Procurador-Geral da  República, fica claro que os ministros mais distantes do PGR foram os que tiveram votos mais pró-réu. Os pontos estimados refletem posicionamentos que foram muito difundidos pela imprensa, com o Ministro Joaquim Barbosa mais próximo do PGR no eixo horizontal, e os Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli mais distantes.

Em uma segunda dimensão, capturada pelo eixo vertical, é possível visualizar o tradicional isolamento do Ministro Marco Aurélio, frequentemente voto vencido sozinho.

Note que o resultado do modelo é a distância entre os pontos, não importando se estão na esquerda, na direita, em cima ou embaixo no Gráfico. Também não é necessário fazer qualquer suposição ex-ante sobre o significado das distâncias. A interpretação é feita posteriormente, e aqui foi mais intuitiva porque se sabe o papel do PGR neste tipo de caso (de acusador).

Uma explicação mais detalhada do método, bem como mais resultados para o Supremo, podem ser encontradas em Nery e Mueller (2014)1 e Nery (2013)2, em que mais de 700 ações diretas de inconstitucionalidade em um período de mais de 10 anos foram analisadas. No blog, a metodologia também já foi aplicada ao Copom na era Tombini.

2. A 8ª Turma

Aplicamos esta mesma metodologia à 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). Identificamos 95 votações no ano de 2017, até meados de agosto, em casos da Operação Lava-Jato.

Uma versão anterior desta pesquisa foi publicada no site JOTA, mas a amostra não era exclusiva da Operação Lava Jato, contemplando casos de tráfico de drogas, contrabando e descaminho – e, logo, casos que vieram de outras varas que não a 13ª (a do juiz federal Moro)3.

A opção neste artigo de analisar somente casos da Lava Jato e do ano de 2017 fornece informações de maior qualidade para entender o caso do ex-Presidente Lula no tribunal. Ainda, permite que se estimem pontos ideais para o juiz Sérgio Moro, bem como uma posição para o conjunto de recorrentes (embargantes, apelantes, impetrantes, pacientes, etc). Anteriormente, no artigo veiculado no JOTA, apenas os desembargadores e o MPF tinham pontos ideais estimados.

Uma vantagem adicional de ter esses pontos estimados é ampliar a amostra: o NOMINATE trabalha apenas com divergências, e não com consensos. Incluir a posição de Moro e dos recorrentes garante que a quase totalidade da amostra será utilizada, uma vez que o próprio recurso ao TRF4 já implica por si ao menos uma divergência (do recorrente ou do MPF).

O ponto estimado para Ministério Público Federal contribui para balizar a interpretação do resultado. Importante observar que na 2ª instância a divergência com o MP tem interpretação menos óbvia do que em uma ação originária como o mensalão. Se na AP 470 o maior grau de divergência com o parquet insinuava uma visão pró-réu, neste caso ela seria menos intuitiva, pois pode sugerir meramente a concordância do desembargador com os termos de uma condenação ocorrida em primeira instância.

Assim, um desembargador A pode discordar do MPF para absolver um réu, assim como pode discordar do MPF apenas porque não concorda com seu pleito por aumento de pena, mas mantém a condenação de 1ª instância. Como o modelo espacial é bidimensional, e não unidimensional, estas diferenças podem ser captadas.

Em relação ao ponto do juiz Moro, cabe ressaltar que Moro não se pronuncia nesta etapa do processo. O seu ponto decorre das suas decisões em 1ª instância. Apenas em uma parte pequena da amostra não foi possível designar um posicionamento para ele, como em questões de ordem.

A Figura 2 apresenta os resultados.

A estimativa dos pontos apresentados acima, feitas com o pacote W-NOMINATE na linguagem R, reproduz corretamente 98% dos “votos” da amostra da forma com que ocorrem nas “votações”, ou 495 de 507 posicionamentos.

Em uma primeira dimensão, capturada pelo eixo horizontal, há em um extremo o Ministério Público Federal, e em outro extremo, o conjunto de recorrentes.  Note que há relativa coesão dos desembargadores, que se alinham mais com a acusação do que a com a defesa, sendo Laus o mais próximo dos recorrentes.

Em uma segunda dimensão, capturada pelo eixo vertical, o espectro acusação-defesa dá lugar a outro, menos claro. Há uma razoável distância entre MPF e Moro, com a maioria dos desembargadores se aproximando mais daquele do que deste. Há também nesta segunda dimensão uma dispersão maior das coordenadas dos desembargadores.

Em especial, há um distanciamento de Gebran, que aparece como o desembargador mais distante de Moro, mas que também possui uma distância relevante do MPF. Este posicionamento que a princípio não é óbvio será analisado mais adiante.

Outro fato de interesse nesta segunda dimensão em que as coordenadas dos desembargadores possuem maior variância é Paulsen, que aparece como o votante mediano. Na literatura, há grande interesse pelo votante mediano, já que é ele que compõe a maioria com maior frequência e é vencedor na maior parte das vezes. Este seria, portanto, o votante “decisivo”.

As coordenadas são apresentadas na Tabela 1, a seguir.

Por fim, não foram estimados pontos para os juízes convocados que eventualmente substituíram os desembargadores da Turma em caso de ausência (ex: férias). São eles os juízes Nivaldo Brunoni e Danilo Pereira Júnior: eles não participaram de votações em quantidade suficiente na amostra para que o modelo conseguisse estimar pontos.

A participação desses juízes convocados é contemplada na Tabela 2, abaixo, que descreve as 95 votações que compõem a amostra e foram sintetizadas no Gráfico anterior. Nela, cada linha representa uma votação, e designamos a cor cinza para posicionamentos ausentes, verde para o posicionamento de Moro e vermelho para posicionamentos diferentes do de Moro.

3. Divergências: entendendo o mapa

Inspecionar a amostra ajuda a entender de maneira mais intuitiva a metodologia aqui usada e a consolidar as informações do mapa. Como os pontos estimados decorrem diretamente das diferenças de posicionamentos, é útil discriminar exemplos específicos em que ocorreram divisões reproduzíveis no mapa.

Este exercício didático é feito nesta seção. Ressalta-se que 98% dos “votos” da amostra tal qual ocorreram nas votações podem ser reproduzidos no Gráfico. Isto é, é possível reproduzir nele quase todas as divergências ocorridas nas 95 decisões da amostra.

Exemplo: apenas os recorrentes isolados

Começemos olhando os pontos que o estimador isolou, como o dos recorrentes, à direita. Trata-se de votações em que os desembargadores foram unânimes em negar pleito dos recorrentes, no mesmo sentido da decisão de Moro e da opinião do MPF, como na Figura 3.

São exemplos das várias decisões com essa configuração, que repercutiram na estimativa, a da APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5039475-50.2015.4.04.7000/PR, de 2 de agosto, em que foram negados os apelos de João Augusto Henriques, supostamente um lobista do PMDB, e Eduardo Musa, ex-gerente da Petrobras.

O mesmo ocorreu com o habeas corpus impetrado por José Roberto Batochio para o ex-ministro Antonio Palocci e outros, denegado em 19 de abril.

Exemplo: apenas o MPF isolado

Em outro extremo, está isolado o Ministério Público Federal. Isso decorre da existência na amostra de um bom número de decisões unânimes do Tribunal, contrariando o pleito do MPF, referendando uma decisão de Moro. A Figura 4 apresenta esta divisão.

Sem razão o parquet” quanto a acusação de organização criminosa feita ao ex-deputado André Vargas, seu irmão Leon Ilário e o publictário Ricardo Hoffmann em uma das decisões na APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5023121-47.2015.4.04.7000/PR, julgada em 4 de junho.

Exemplo: apenas Laus e os recorrentes isolados

Continuando nesta dimensão, passamos agora a olhar divisões dentro do colegiado. Percebemos que Laus é o desembargador mais próximo dos recorrentes. Como a distância dos pontos estimados é tão menor quanto maior tiver sido os posicionamentos em comum na amostra, os pontos estimados sugerem que ele, dentro da Turma, é o com maior inclinação pró-réu.

Estamos falando, portanto, da ocorrência de decisões que Laus foi voto vencido e esteve contrário ao posicionamento do MPF e a decisão de 1ª instância (Moro), se manifestando a favor dos recorrentes – como na Figura 5.

 

É o caso da APELAÇÃO Nº 5012331-04.2015.4.04.7000/PR, decidida em 27 de junho quando Laus votou por conceder habeas corpus de ofício ao ex-diretor da Petrobras Renato Duque. A Turma também negou provimento a outros apelos nesta ação, tendo Laus como voto vencido, relativos a Renato Duque, ao empresário Adir Assad e à sua sócia Sônia Mariza.

Laus também tem um posicionamento divergente em relação a medidas assecuratórias, tendo sido vencido, por exemplo, também na  APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5033700-54.2015.4.04.7000/PR.

Exemplo: Meio a meio (MPF, Moro e Gebran de um lado, Paulsen, Laus e os recorrentes de outro)

Agora chegamos a outra divisão, em que não há “isolados”: os representados no Gráfico são divididos igualmente, ao longo do eixo horizontal.

Esta divisão reproduz a divisão que ocorre quando há divisão no colegiado mas agora em vez de Laus ser vencido, é vencedor. O vencido é Gebran, com voto no sentido da opinião do MPF e da decisão da 1ª instância, e os demais desembargadores se alinham com os recorrentes.

Foi assim em um caso que teve grande repercussão na opinião pública: a decisão de 27 de junho na APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5012331-04.2015.4.04.7000/PR. A turma decidiu “POR MAIORIA, VENCIDO O RELATOR, DAR PROVIMENTO AO APELO DE JOÃO VACCARI NETO, PARA ABSOLVÊ-LO DAS IMPUTAÇÕES APRESENTADAS NA INICIAL.”

Exemplo: apenas Moro e os recorrentes isolados

Em uma segunda dimensão, visualizada na vertical, estão mais acima Moro e os recorrentes. A estimativa destes pontos com essas coordenadas decorre do peso na amostra das votações em que o colegiado foi unânime, acompanhando o posicionamento do Ministério Público Federal, contrário à decisão de Moro na 1ª instância e em desfavor dos recorrentes.

Note que aqui está uma das constatações mais interesses sintetizada no mapa: a de que o colegiado tende a estar ainda mais distante dos recorrentes do que o próprio juízo da 13ª Vara.

Estes casos podem ser visualizados na Figura 7. Um deles foi a decisão em de 5 de abril relativa a Waldomiro de Oliveira, “laranja” do doleiro Alberto Youssef, quando a decisão foi de “por unanimidade, dar provimento à apelação do Ministério Público Federal para afastar o reconhecimento da litispendência em relação ao réu WALDOMIRO e condená-lo pela prática do delito de lavagem de dinheiro”.

Adicionalmente, cumpre observar que não é de interesse analisar os casos em que apenas Moro está “isolado”. Uma decisão assim, por construção, não poderia existir porque MPF e os recorrentes estariam juntos com o mesmo posicionamento contra uma decisão de 1ª instância.

Por que então Moro aparece mais isolado acima no Gráfico, se não existe na amostra casos em que seu posicionamento é diverso de todos os demais ao mesmo tempo? A resposta pode ser visualizada na Tabela 1 e se relaciona com algo que já foi abordado: a ausência de posicionamento de Moro em algumas decisões da Turma, quando não tratam diretamente de suas decisões – como exceção de suspeição relativa ao MPF ou embargos de declaração de decisões da 8ª Turma.

Exemplo: Meio a meio (Moro, os recorrentes e Laus de um lado, Paulsen, MPF  e Gebran de outro)

Agora baixamos a barra um pouco pra incluir Laus: isto é, usar como exemplo um caso em que Laus foi voto vencido no colegiado, estando ao lado dos recorrentes, mas dessa vez, ao contrário do exemplo da Figura 5, no sentido de manter a decisão de 1ª instância de Moro.

Este exemplo ilustra casos na amostra que pesaram para que no Gráfico seja Laus o menos distante de Moro e dos recorrentes.

A Figura 7 apresenta esta divisão que tem, de outro lado, Paulsen e Gebran vencedores, acompanhando posicionamento do MPF.

Esta divisão foi observada em uma das divergências da APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5083351-89.2014.4.04.7000/PR, em 21 de junho, quando Laus reconheceu como autônomos apenas dois delitos (o MPF insurgiu-se contra decisão de Moro que reconhecia continuidade delitiva entre crimes de corrupção ativa e crimes de lavagem de capitais, pleito reconhecido por Gebran e Paulsen).

Exemplo: Gebran e os recorrentes isolados

Uma última divisão de interesse é aquela em que Gebran é vencido, ao lado dos recorrentes. Esta divisão pode ser reproduzida no Gráfico e adiciona complexidade à nossa discussão: agora temos uma reta mais inclinada, isto é, uma divisão que no Gráfico não se dá exatamente na horizontal (esquerda-direita) ou na vertical (cima-baixo)

A Figura 9 revela então que não é possível contemplar todas as divergências da amostra como se dando ao longo de apenas duas dimensões (mais ou menos pró-réu na horizontal; mais ou menos pró-Moro na vertical) – ainda que a maioria possa, o que é um grande vantagem desse tipo de ferramenta.

Um exemplo de divisão reproduzível no Gráfico, como na Figura acima, é o da APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5023121-47.2015.4.04.7000/PR, em que Gebran foi veto vencido para absolver Leon Ilário do crime de corrupção passiva.

Assim, embora seja útil e prático analisar os pontos estimados pela ótica de espectros (dimensões), as divergências em um colegiado como este podem ser mais ricas do que um espaço bidimensional pode captar.

Entretanto, os pontos estimados continuam fornecendo insights por meio das distâncias. A apelação referida exemplifica por exemplo por que Gebran é o mais distante de Moro.

Note , como já colocado, que Paulsen é o juiz mediano, entre Gebran e Laus nas duas dimensões. Isso sugere que ele compõe a maioria com maior frequência. Na literatura, o votante mediano é de grande interesse, até seu potencial de ser o votante decisivo, o que desempata.

4. Pesquisa futura

O modelo espacial utilizado foi concebido para analisar legislaturas e, portanto, grupos de votantes significativamente maiores. A aplicação com poucos votantes sofre do chamado incidental parameters problem4. Pesquisa futura pode estimar os pontos com o IDEAL, um método bayesiano e não-paramétrico que usa um algoritmo Monte Carlo via cadeias de Markov5, mais adequado às capacidades computacionais existentes hoje. Carroll et al. (2009) compararam o NOMINATE e o IDEAL para votos da Suprema Corte americana, concluindo que6:

as estimativas de pontos ideais são altamente voláteis para ambos os métodos quando o número de votantes é pequeno. Nossas simulações revelam não haver clara vantagem de um método sobre o outro de produzir estimativas para legislaturas de qualquer tamanho ou número de votações feitas. Ainda mais, nenhum dos estimadores é mais robusto do que o outro em obter estimativas do processo gerador de dados adotado pelos outros métodos.

5. Conclusão: “A República de Porto Alegre”

A aplicação de modelos espaciais parece promissora no Judiciário brasileiro. Usando uma amostra de 95 votações da 8ª turma do TRF4 no ano de 2017 – até meados de agosto – no âmbito da Operação Lava Jato, estimamos pontos ideais que reproduzem corretamente 98% dos posicionamentos ocorridos nas votações. Eles sintetizam que:

  • O colegiado é relativamente coeso, sem grande dispersão entre os seus membros;
  • O colegiado como um todo é mais próximo do MPF do que dos recorrentes;
  • O colegiado como um todo é ainda mais próximo do MPF do que de Moro – o que, combinado com o item anterior – sugere uma 2ª instância com decisões ainda mais duras do que a 1ª;
  • O desembargador mais próximo dos recorrentes é Laus7;
  • O desembargador mais distante de Moro é Gebran, às vezes a favor da apelação do MPF, às vezes dos recorrentes; e
  • O desembargador mediano é Paulsen, que tende a ser o voto decisivo do Tribunal.

Portanto, sem conhecimento acerca de detalhes dos processos, a absolvição de recorrentes condenados em 1ª instância, como o ex-Presidente Lula, parece improvável.

O veloz avanço recente de métodos estatísticos para captura e análise de informações, bem como a maior disponibilidade de informações dos tribunais, podem permitir o avanço de análises como a deste artigo no país e melhor compreensão da academia, da sociedade e dos operadores do Direito sobre os tribunais brasileiros.

________________

1 http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1517758014000253.

2 http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/13565/1/2013_PedroFernandoAlmeidaNeryFerreira.pdf.

3 https://jota.info/artigos/o-mapa-da-8a-Turma-do-trf-4-29072017.

4 Ver Poole (2005) e Peress (2009).

5 Ver Martin e Quinn (2002, 2009)

6 https://scholar-qa.princeton.edu/sites/default/files/jameslo/files/lsq_nomvsideal.pdf

7 O que é consistente com evidências anedóticas. “Breda brilhou os olhos quando o desembargador Victor dos Santos Laus, 54 anos, abriu o microfone para seu voto final.” http://piaui.folha.uol.com.br/eles-vao-julgar-lula/

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3068 3
Por que desprezamos as crianças brasileiras na Constituição? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3064&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-desprezamos-as-criancas-brasileiras-na-constituicao https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3064#comments Thu, 12 Oct 2017 15:28:13 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3064 12 de outubro é o dia das crianças no Brasil, exatamente 1 semana depois do aniversário da Constituição (que completou 29 anos neste 5 de outubro). A proximidade das datas no calendário contrasta com o fato da juventude ser a grande perdedora do pacto social de 1988. A reforma constitucional da Previdência é um dos caminhos para redimir o problema.

Em tese, as crianças pobres estão abarcadas na Constituição. São mencionadas, por exemplo, no capítulo da Seguridade. Na prática, a Seguridade Social não apenas pouco lhes abraça como gera escassez de recursos nas políticas públicas que podiam lhes atender. Vejamos.

O que é um seguro social?

Um seguro é proteção contra uma perda financeira. Um seguro social – como os previstos na nossa Constituição e que batizam o nosso INSS (o Instituto Nacional do Seguro Social) – é um seguro contra a perda de capacidade de trabalho. Analogamente, um seguro de carro protege contra a perda financeira por acidentes com um veículo, e um plano de saúde contra a perda com despesas médicas.

A aposentadoria é o principal seguro social. Protege contra a impossibilidade de trabalhar por idade avançada. Diante do aumento da expectativa de vida, muitos países tem mudado este seguro. Não é o caso do Brasil, onde sequer existe idade mínima no seguro contra a idade avançada.  Apenas outros 12 países do mundo dispensam este requisito, como Síria, Iêmen e Iraque.

Na verdade, existe idade mínima para os pobres: ela só é dispensada para os que alcançam mais de 30 anos de carteira assinada. Isto é, uma minoria mais escolarizada e rica da população (a idade mínima do pobre por sua vez chega a 65 anos).

Esta previsão constitucional custa caro. A aposentadoria por tempo de contribuição sozinha custou mais de R$ 130 bilhões em 2016, valor que cresce aceleradamente. É mais do que a União gasta com educação.

Outro seguro social importante é a pensão por morte, recebida em um dos piores momentos da vida familiar. Este seguro protege a família contra a perda financeira decorrente do falecimento do provedor. Teoricamente este seguro deveria repor a renda.

Excepcionalmente no Brasil, ele amplia a renda familiar. Na linguagem fria dos seguros, é como se um plano de saúde pagasse ao segurado mais do que o valor que pagou por um serviço médico.

Em outros países, este seguro é desenhado para proteger membros da família que não podem gerar renda, como crianças ou idosos. Por isso, paga-se menos a famílias sem filhos ou em que o cônjuge é novo e tem condições de trabalhar. No Brasil, paga-se o mesmo para uma família com muitas crianças e uma família sem dependentes em que o cônjuge trabalha e tem renda própria.

Além de desafiar o compromisso de um seguro, este benefício também tem valor bem acima da renda média nacional – de onde são extraídos tributos para custeá-los, sequer contribuindo portanto para a redução da desigualdade.

Em 2016, a União também gastou com pensão por morte mais de R$ 130 bilhões, ou mais de 2 vezes o que gastou com o Bolsa Família. Parte deste gasto também é ordenado pela Constituição.

Haverá uma dificuldade cada vez maior de financiar esses benefícios pelo envelhecimento da população, que diminui a arrecadação e simultaneamente aumenta os gastos.  Este processo é muito mais veloz no Brasil do que foi em países desenvolvidos: a transição demográfica que o país está fazendo em 20 anos foi feita durante 115 anos na França.

E as crianças?

Enquanto gastamos muito com seguros constitucionais como as aposentadorias por tempo de contribuição ou as pensões, outros riscos sociais mal são protegidos. O risco de nascer em uma família extremamente pobre sequer é lembrado na Constituição. Os perdedores da “loteria do nascimento” são amparados pelo programa Bolsa Família, infraconstitucional, com benefícios de apenas R$ 39 para cada criança.

O governo já gasta 57% de sua despesa primária com benefícios de natureza previdenciária, seja os operados pelo INSS ou os dos servidores públicos. Nos próximos 10 anos, se nada mudar, esta despesa chegará a 80% deste orçamento, comprimindo todas as demais, como a educação – que já leva só 3% – e o próprio Bolsa Família – que hoje só responde por 2%.

Isso não seria tanto um problema para as crianças e jovens se eles morassem em famílias beneficiadas pela Previdência. Não é o caso: quase 90% dos idosos que recebem aposentadoria ou pensão não moram com jovens de até 15 anos em suas casas. (Tafner et al., 2015)

O quadro é dramático: entre os 20% mais pobres do país, 1/3 são crianças e adolescentes de até 14 anos. Idosos são apenas 6% (Camarano et al., 2014). A situação tende a melhorar com reforma trabalhista, que derruba barreiras à entrada de pais e mães jovens pouco qualificados no mercado de trabalho formal. Mas a reforma constitucional da Previdência continua essencial para reverter as distorções do pacto social de 88 conjugado com o envelhecimento populacional veloz.

As crianças pobres são as mais afetadas pela falta de recursos no saneamento básico (a mortalidade infantil ainda é 5 vezes maior do que em Portugal, o dobro da do Chile) e na educação (gasto por aluno 3 vezes menor no ensino fundamental que superior). Quando estiverem um pouco mais velhas, serão a parcela da população que mais morre violentamente. Isso não vai melhorar com o crescimento desenfreado dos gastos previdenciários.

Os benefícios da Seguridade previstos na Constituição desafiam a lógica de seguro, como preconizada pela OIT e praticada em outros países (pior no caso de servidores públicos). Boa parte desses benefícios são voltados aos mais ricos, especialmente porque os pobres no Brasil são principalmente crianças que não moram em famílias beneficiárias da Previdência. Estes benefícios custam caro em um país endividado e com juros altos, com carga tributária regressiva, e com serviços públicos carentes de recursos. Até quando poderemos chamar de Carta Cidadã um documento que não protege, ou até pretere, os mais pobres do país, justamente suas crianças?

Referências:

CAMARANO, A, A; KANSO, S.; BARBOSA, P.; ALCÂNTARA, V. S. Desigualdades na Dinâmica Demográfica e as suas Implicações na Distribuição de Renda no Brasil. In: CAMARANO, A. A. (Org.).
Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view
=article&id=23975.

TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. Debates sobre Previdência: Confusões, Polêmicas Iniciais e Mitos. In: TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. (Org.). Reforma da Previdência: A Visita da
Velha Senhora. Brasília: Gestão Pública, 2015.

https://data.worldbank.org/indicator/SP.DYN.IMRT.IN

https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td219/view

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3064 8
Seu Jorge e a Previdência https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3044&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=seu-jorge-e-a-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3044#comments Tue, 12 Sep 2017 14:31:13 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3044 Aos 77 anos, Giorgos não imaginava passar por aquela situação. Após trabalhar por anos na mina de carvão e na fundição, ele saíra naquela manhã de verão para sacar a aposentadoria da mulher. Sensibilizou-se com os pedintes que viu pelo caminho. Lembrou-se dos suicídios: não suportava mais ver o seu país assim. Tentou o saque da aposentadoria em uma agência, não conseguiu. Depois foi a mais um banco, nada. Insistiu em fazer o saque em mais outro, mas novamente sem sucesso. Na quarta vez que não conseguiu receber o benefício, Seu Giorgos não aguentou. Sentou no meio da calçada e chorou.

Um ano depois, talvez tivesse algum conhecido seu entre os que manifestavam contra o 15º corte no valor das aposentadorias, que ocorria mesmo após um ano da posse do primeiro-ministro Tsipras, do partido que chegara ao poder com discurso antiausteridade. Naquela ocasião, os manifestantes de cabelos brancos toparam com um ônibus da polícia no meio de sua passeata. Juntaram-se para tentar retirá-lo do caminho. A polícia respondeu à investida dos idosos. Com spray de pimenta.

Irresponsabilidade fiscal e contabilidade criativa foram alguns dos causadores da complicada crise da Grécia. Em um dos países mais envelhecidos da Europa, a crise levou a cortes de aposentadorias e até a feriados bancários, como o que Seu Giorgos Chatzifotiadis enfrentou. A foto do seu pesadelo, “O homem que chora”, correu o mundo.

***

Em alguns anos, Seu Giorgos pode ser Seu Jorge. Um idoso de mesmo nome que acreditou na mesma promessa de seu país de pagar a ele uma aposentadoria como pagou a de outros. Seu Jorge está desesperado com a sua aposentadoria cortada. A idade avançada não lhe permite mais trabalhar, e ele não consegue tratar suas doenças crônicas no SUS, cada dia mais sem dinheiro. É arrimo de família, uma vez que seus parentes jovens estão desempregados. Seu país vive uma crise grega, só que com sua renda per capita de Turquemenistão. Antes dos cortes, Seu Jorge já ganhava a metade do que ganhava Seu Giorgos.

Não acredita no que acontece. Vários anos antes ouviu de novo aquela ladainha de reforma da Previdência, mas recebeu no Whatsapp o vídeo explicando que tudo era mentira: a Previdência não tinha déficit, sobrava dinheiro que o governo desviava pra alguma coisa que Seu Jorge não entendeu muito bem o que era.

Seu Jorge não sabia que o vídeo fora criado por Nelson. Nelson ganhava bem mais que Seu Jorge, tinha direito a uma aposentadoria muito maior e com aumentos mais generosos, custeados não por suas próprias contribuições, mas pelas de pessoas como Seu Jorge. Nelson perderia esses direitos se o governo fizesse uma reforma.

Nelson era um orgulhoso servidor público, membro  da associação que representava a sua carreira. Seu Jorge confiou na informação do vídeo que recebeu porque tinha o selo de uma associação nacional de auditores. É coisa de doutor, pensou. Seu Jorge não sabia que cabia a associação de Nelson representar a carreira de elite com maior número de aposentados e pensionistas da União, 20 mil.

Entre as pautas da associação de Nelson, publicamente apresentadas em seu site em 2017, estavam o direito aos aumentos generosos, o fim da contribuição de servidores aposentados e até o direito desses aposentados receberem bônus de produtividade – de acordo com o aumento da arrecadação de impostos. No momento em que Seu Jorge recebeu o vídeo, este bônus era inclusive negociado pela associação de Nelson com o governo no meio de uma medida provisória. Insatisfeita com a proposta, a associação de Nelson contratou até um ex-presidente do Supremo Tribunal Federal para levar o pleito à Justiça. A associação também mobilizava seus recursos em 2017 para a campanha mostrando que não existia déficit na Previdência ou na Seguridade Social.

Nelson tinha um ponto de vista claro sobre como devem ser apresentadas as contas da Seguridade, mas Seu Jorge não tinha a mesma clareza. No vídeo que produziu, Nelson omitiu que a contabilidade de sua associação exclui as despesas com as aposentadorias e pensões dos próprios servidores públicos, e também não achou necessário mostrar que ainda assim havia um déficit já para o ano de 2016.

Seu Jorge não dava bola para o papo de crise na Previdência. Além do vídeo, ficou tranquilo ao ler no jornal que uma importante entidade da sociedade civil alertava que a reforma do governo era baseada em premissas equivocadas. Não entendia do assunto, mas novamente quem estava afirmando era doutor.

Seu Jorge também não percebia que cabia a esta outra entidade defender advogados como Miguel. O escritório de Miguel lucra ao conseguir benefícios do INSS para seus clientes, retendo em honorários uma parte do pagamento de aposentadorias rurais, aposentadorias especiais e aposentadorias por invalidez. Preocupado não só com seus clientes, mas também com seu negócio, Miguel, como outros advogados, acionou a entidade a que pertence e ela se manifestou contra a reforma da Previdência, pelos seus abusos sociais.

Em uma tarde daquele 2017, Seu Jorge perdeu tempo no trânsito com uma passeata. Porém, ficou resignado e a apoiou, porque se solidarizou com a causa dos trabalhadores do campo prejudicados pela reforma da Previdência. O protesto foi organizado por José. Como Miguel, José também ficou preocupado com as mudanças na aposentadoria rural. José é presidente de um sindicato rural cuja maior parte do filiados só se registrou para conseguir uma declaração atestando anos de trabalho no campo. Essa declaração é essencial para que recebam a aposentadoria rural.

Após a filiação para receber a aposentadoria, parte desses filiados terá mensalmente, e para sempre, descontos nos benefícios para financiar a atividade sindical, conforme autorizaram.  José não é o único presidente de sindicato rural preocupado com a reforma: ao todo, são cerca de 4 mil. Apesar da urbanização das décadas anteriores, existiam no Brasil em 2017 mais sindicatos de trabalhadores do campo do que sindicatos urbanos filiados à CUT e à Força Sindical, juntas. Caso fosse aprovada a reforma do governo, a comprovação de trabalho rural para aposentadoria seria feita com contribuições ao INSS ao longo da vida do trabalhador, e não apenas no momento de pedir da aposentadoria com intermédio de um sindicato como o de José ou de um advogado como Miguel.

***

Prosperando a mobilização de entidades com interesses como os de Miguel e José, sob a desinformação disseminada por entidades como a de Nelson, nenhuma reforma da Previdência será feita. Apesar das aposentadorias serem extremamente protegidas em nosso sistema jurídico, o absurdo cenário de relativização do direito adquirido e corte de benefícios pode aparecer no horizonte. Ele ocorrerá depois da redução em despesas não obrigatórias (mas não desimportantes) e do aumento de impostos, bem como do aumento do endividamento público que reprimirá a economia com juros altos. A outra saída é a hiperinflação.

Tem sido assim no Rio de Janeiro e foi assim em países europeus, como a Grécia de Seu Giorgos, o outro Seu Jorge. O duro corte de aposentadorias nesses países foi de tal forma imperativo que terminou validado pela Corte Europeia de Direitos Humanos. O tribunal foi provocado pela servidora pública portuguesa Maria Alfredina, que não aceitava o desconto da ‘contribuição extraordinária de solidariedade’, que é como se diz corte de aposentadorias em português de Portugal.

O córtex pré-frontal ventromedial é uma região de nossos cérebros que fica ativada quanto pensamos em nós próprios. Estudos mostram que quando pensamos em nós no futuro, porém, a região não se ativa: nossa incapacidade de pensar em nosso amanhã seria tal que é como se o cérebro estivesse pensando em outra pessoa. Enquanto país, talvez enfrentemos dificuldade semelhante. Encaramos uma reforma da Previdência como desnecessária e sequer questionamos a atividade dos grupos de interesse que atuam no debate. Fazer reforma da Previdência é ruim. A questão que devemos nos indagar é se não fazê-la é ainda pior, dando a Seu Jorge o destino de Seu Giorgos. Vamos deixá-lo chorando na calçada?

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3044 4
Por que os advogados estão entre os mais afetados pela reforma da Previdência? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3022&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-os-advogados-estao-entre-os-mais-afetados-pela-reforma-da-previdencia Wed, 16 Aug 2017 15:51:42 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3022 A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) divulgou uma contundente carta contrária à reforma da Previdência, que seria “fundamentada em premissas equivocadas” e conteria “inúmeros abusos contra diretos sociais”. A esta carta, seguiram diversas outras manifestações da Ordem. É pertinente fazer uma provocação. Embora muitas categorias se sintam prejudicadas pelas novas regras de aposentadoria, como policiais e professores, há uma categoria do qual pouco se fala e que é vigorosamente afetada pela reforma: os advogados.

A ambiciosa proposta do governo de reforma da Previdência tem o potencial para reduzir sobremaneira a judicialização no INSS, o maior litigante do Brasil. No início desta década, havia tantos processos do INSS na Justiça quanto paraguaios no Paraguai: cerca de 6 milhões. Conhecendo as particularidades do sistema judicial brasileiro, não é possível descartar que, em número de causas, o INSS seja até mesmo um dos maiores litigantes do mundo, se não o maior.

Essa grande quantidade de ações movimenta milhares de advogados. Das dezenas de bilhões de reais que anualmente o INSS despende por decisões judiciais, pelo menos alguns milhões revertem em honorários para o conjunto desses advogados. Várias dessas causas estão ameaçadas com a reforma da Previdência. É evidente que a entidade de classe que representa esses advogados deve se pronunciar veemente contra mudanças que os prejudiquem.

Uma busca rápida na Internet dá a dimensão do mercado: uma empresa vende mais de 1.200 modelos de petições para advogados previdenciários. Em um jornal, um especialista propagandeia a área como cada vez mais promissora por conta do envelhecimento populacional. Em um site especializado, proclama-se, com algum exagero, que a advocacia previdenciária é a área mais lucrativa de 2016 e que “o leque de atividades é tão grande quanto lucrativo”. Entendamos então como a reforma da Previdência pode mudar esta realidade.

Aposentadoria rural

De cada 100 aposentadorias rurais, 30 são concedidas judicialmente. De maneira geral, esse benefício não exige contribuição. O advogado atua principalmente para comprovar que um segurado trabalhou por pelo menos 15 anos no campo. A reforma altera este desenho para que esta comprovação seja feita periodicamente mediante o pagamento de uma contribuição, e não no momento de pedir o benefício com a ajuda de um advogado. A demanda por advogados também tende a se reduzir uma vez que as exigências de idade e tempo de contribuição convergiriam para as da aposentadoria urbana, deixando o benefício menos atraente para trabalhadores urbanos.

Aposentadoria especial

De cada 100 aposentadorias especiais, 70 são concedidas judicialmente. Esta é uma modalidade similar à aposentadoria por tempo de contribuição, sem idade mínima, que exige apenas 25, 20 ou 15 anos de contribuição, para quem esteve exposto a agentes nocivos no trabalho. Além da possibilidade de se aposentar antecipadamente, o benefício é vantajoso por ser integral, sem a aplicação do fator previdenciário.

O advogado atua principalmente para comprovar o tempo de exposição a esses agentes. A reforma afetará duplamente a judicialização deste benefício: restringe as formas de comprovação e reduz significativamente a demanda por ele ao torná-lo menos vantajoso. Em relação ao primeiro ponto, a reforma veda a comprovação apenas pelo pertencimento a uma categoria profissional. Em relação ao segundo ponto, cria uma idade mínima de 55 anos, altera o tempo mínimo de contribuição para 20 anos e o valor do benefício, que será proporcional ao tempo de contribuição. Novamente, é evidente que assim menos pessoas recorrerão a advogados, e as que recorrerem terão menor chance de sucesso.

Aposentadoria por invalidez

De cada 100 aposentadorias rurais por invalidez, 70  também são concedidas judicialmente. Em geral, o advogado questiona perícias do INSS que negam o benefício ou busca expandir a lista de doenças que dão direito ao benefício independentemente de contribuição, bem como tenta contornar a lentidão da fila das perícias. Medida Provisória anterior à reforma já obrigava os juízes a estimarem o prazo para cessação do auxílio-doença, eliminando uma das vantagens do pleito judicial deste benefício (o recebimento por tempo indefinido).

A aposentadoria por invalidez também não prevê a aplicação do fator previdenciário (benefício integral), e inclusive permite um adicional de 25% para o beneficiário que necessitar de cuidador, ainda que o valor ultrapasse o teto de benefícios – o que só existe nesta modalidade de aposentadoria. A reforma também altera o valor deste benefício, que passaria a ser proporcional ao tempo de contribuição. A demanda por advogados tende a diminuir se esta modalidade de aposentadoria pagar um valor menor do que o segurado receberia se trabalhasse mais alguns anos, se aposentando pela modalidade comum.

A princípio, a afirmação anterior pode parecer por demais fria: afinal, as pessoas procuram este benefício porque estão incapacitadas para o trabalho, e não porque o montante a ser recebido é maior. Entretanto, as situações destes segurados são muito heterogêneas, e os incentivos da legislação desempenham sim um papel importante na demanda pela aposentadoria por invalidez. Ilustrativamente, após a 2ª reforma da Previdência, quando a aposentadoria por invalidez do servidor público deixou de ser integral e passou a ser proporcional ao tempo de contribuição, a sua participação no total de aposentadorias concedidas caiu de 30% em 2004 para apenas 4% em 2016. Em que pese as diferenças na realidade do servidor e do trabalhador do INSS, é provável que a demanda administrativa e judicial pelo benefício se reduza com a reforma.

Benefício de Prestação Continuada

De cada 100 Benefícios de Prestação Continuada (BPC) concedidos, 25 são concedidos judicialmente. Formalmente assistencial, mas materialmente previdenciário, este é um benefício pago à pessoa com deficiência e ao idoso em situação de comprovada pobreza. Cabe ao advogado batalhar pelo benefício para a família que não cumpra os requisitos legais de pobreza, pleiteando, por exemplo, que outros benefícios assistenciais e previdenciários sejam excluídos do cálculo da renda familiar ou que se desconsidere a parcela desta renda gasta com medicamentos. Desconhecem-se ações judiciais semelhantes para o Bolsa Família, apesar da linha de corte mais rígida, provavelmente porque o benefício é muitíssimo menor.

A reforma coloca no texto constitucional a previsão de que a renda familiar seja considerada na totalidade, e que lei disponha sobre outros requisitos do BPC.  Boa parte das ações que hoje são bem sucedidas podem não mais o ser. Adicionalmente, a reforma inicialmente previa que o BPC teria um valor menor do que o das aposentadorias, o que pode também desestimular a procura deste benefício, inclusive pela via judicial.

Desaposentadoria

Por fim, a reforma é a pá de cal na desaposentadoria, talvez a grande causa dos escritórios de advogados previdenciários. A desaposentadoria, que não foi reconhecida pelo Supremo em 2016, é a tese de que aposentados que continuam trabalhando e contribuindo para a Previdência merecem o recálculo dos benefícios como se jamais tivessem se aposentado. Ao afetar principalmente os segurados que podem se aposentar por tempo de contribuição, de maior renda, tratava-se de ações de valor maior.  Ocorre que a desaposentadoria era corolário da própria ausência de idade mínima, que gerava uma grande quantidade de aposentados-contribuintes. Com a idade mínima, este pleito não faz mais sentido.

Se por um lado uma ampla reforma como a proposta pelo governo pode gerar inúmeros questionamentos jurídicos, fica claro que a atividade das bancas previdenciárias não será mais como hoje se a reforma passar. Este é o possível conflito de interesse que a OAB possui, como representante desses advogados, e que não é explicitado quando se posiciona de maneira tão contundente contra a reforma da Previdência.

Em um interessante caso de lobby destes profissionais, uma emenda substitutiva à reforma foi apresentada com o timbre de entidades de advogados previdenciários que contam com o apoio da OAB. A proposta chega ao extremo de proibir o Congresso Nacional de fazer reformas por 20 anos, mesmo por Emenda Constitucional, entre outros dispositivos que causam perplexidade por terem sido avalizados por operadores do Direito.

É importante ressaltar que isso não significa que não exista por parte da Ordem uma genuína apreensão quanto às mudanças propostas, até porque o discurso da OAB é compartilhado por várias outras entidades da sociedade civil. Entretanto, é justamente para a sociedade que precisa ficar claro que, neste estratégico debate nacional, os objetivos da OAB podem não ser os mesmos do conjunto da sociedade. Na reforma da Previdência, a atuação da Ordem é marcadamente diferente da sua reconhecida atuação em outros momentos da vida nacional, como as Diretas Já ou o impeachment do Presidente Collor. Como responsável pela defesa da classe dos advogados, prejudicados pela reforma, o provável conflito de interesse está colocado.

Ademais, é oportuno salientar que uma reforma da Previdência pode ser defendida justamente com os argumentos contrários a ela colocados por membros da advocacia nacional nas últimas semanas. O princípio da proteção à confiança deveria nos inspirar a garantir um sistema previdenciário sustentável, que não venha no futuro a cortar aposentadorias como no Rio, em Portugal ou na Grécia, rasgando promessas feitas a idosos em um momento em que eles mais nada podem fazer. Já o princípio da proibição de retrocesso social deveria nos motivar a olhar com mais carinho para as políticas públicas que serão comprimidas com o crescimento de uma despesa que ocupa 57% do orçamento federal e passará a ocupar 80% em cerca de 10 anos. E o retrocesso social na saúde, no saneamento básico, na educação?

Como garantir o direito ao emprego com os empreendimentos sufocados pelos juros estratosféricos decorrentes do crescimento acelerado da despesa pública? Como garantir o direito à vida em uma sociedade em que o Estado não tem dinheiro para pagar policiais ou médicos na quantidade necessária? É preciso ficar claro que vários dos direitos individuais e sociais previstos pela nossa Constituição não poderão ser efetivados em um Estado sem recursos e em uma economia no chão, e não podem ser judicializados como os direitos previdenciários podem ser. Não existe ação judicial factível para garantir um emprego, a construção de uma estrada ou o patrulhamento de uma rua.

Os advogados previdenciários prestam um serviço essencial no país, garantindo amparo a famílias necessitadas quando esbarram na lentidão da burocracia ou no desconhecimento do legislador. Muitas vezes não são somente uma opção, mas a última opção.  Todavia, o Estatuto da Advocacia é claro em seu art. 44 que a OAB tem a finalidade não só de defender a Constituição, os direitos humanos e a justiça social (inciso I), como também de promover a representação e a defesa dos advogados em toda a República Federativa do Brasil (inciso II). No debate da reforma da Previdência, o melhor para o país é que a entidade que ele tanto admira e confia admita o conflito entre os dois incisos.

Este texto foi originalmente publicado no JOTA em 6 de abril de 2017, sob o título “Reforma da Previdência e conflito de interesse da OAB”.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
Como a reforma trabalhista pode reduzir o desemprego e aumentar os salários? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3003&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-a-reforma-trabalhista-pode-reduzir-o-desemprego-e-aumentar-os-salarios https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3003#comments Tue, 11 Jul 2017 21:00:33 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3003 No século passado, Getúlio Vargas decretou uma norma sob a premissa de que a situação econômica e a desorganização do trabalho ensejavam a intervenção do Estado em favor dos trabalhadores. O decreto obrigava todos os trabalhadores desempregados a se registrarem perante as autoridades: caso contrário, estariam sujeitos a processo por vadiagem, nos termos das leis penais.

A norma ficou conhecida como lei dos dois terços, e possuía além do espírito autoritário também um espírito xenófobo, ao proibir empresas de terem em seu quadro mais de um terço de trabalhadores estrangeiros.

Este era o Decreto nº 19.482, de 12 de dezembro de 1930. Ele antecede a fase ditatorial do presidente Getúlio Vargas e o decretamento da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O Decreto ilustra o momento histórico que o país vivia e a origem autoritária das normas trabalhistas da época.

Após diversas modificações ao longo das décadas, a CLT é agora objeto justamente de uma “modernização”, termo pelo qual também é conhecida a reforma trabalhista. O desafio da reforma é o mesmo da CLT: regular um dos mercados de trabalho mais desiguais do mundo.

INCLUSÃO DOS EXCLUÍDOS

A proposta de modernização trabalhista é motivada pela inclusão das pessoas excluídas. A taxa de desemprego ronda os 14%, enquanto outros 6% da força de trabalho integram a chamada taxa de desemprego “oculto pelo desalento”, ou seja, abdicaram de buscar ativamente uma ocupação ainda que desejem uma.

Além destes cerca de 20% de pessoas desempregadas, temos ainda, entre as ocupadas, 40% de informais. São pessoas sem direitos, que não contam com as proteções constitucionais previstas pelas legislações trabalhista e previdenciária.

Neste grupo estão sobrerrepresentados os jovens, as mulheres, os negros e os pobres. A eles é necessário um olhar mais fraternal e solidário. Na prática a CLT é uma legislação para o homem branco.

As políticas de seguridade social só conseguem amparar esses grupos precarizados parcialmente. Emprego e salário são vitais para redução das desigualdades e erradicação da pobreza: a inclusão no mercado de trabalho é a melhor política social.

A reforma trabalhista tem o potencial de incluir estes grupos com novas modalidades de contratação e mais segurança jurídica para os contratos. Mercados precisam de boas escolhas institucionais para florescer, e no mercado de trabalho não é diferente.

A possibilidade de contratação em jornadas menores do que a jornada de 44h permite que o ajuste no mercado de trabalho se dê na quantidade de horas contratadas, e não no número de empregos formais (gerando desemprego, informalidade).

Ao contrário do que ocorre em outros mercados, no mercado de trabalho o ajuste à demanda não se dá pelo preço (salários), devido à irredutibilidade salarial e ao próprio salário mínimo (e seus encargos). Sem modalidades alternativas de contratação o desemprego e a informalidade são maiores.

Ainda que estas jornadas não sejam as ideais para parte dos trabalhadores, entende-se que possam funcionar como “porta de entrada” para o mercado de trabalho para trabalhadores mais vulneráveis.

Pela literatura, a resistência às novas formas de contratação pode ser explicada – além de pelo medo e a aversão à perda naturais em mudanças como essa – pela teoria de emprego insider-outsider.

Ela preconiza que no mercado de trabalho o que é ganho para o excluído (outsiders) pode ser perda para o incluído (insiders), que tentam bloquear mudanças, frequentemente por meio de sindicatos.

O trabalho intermitente é anedótico neste sentido, porque pode ser entendido como um jogo de soma zero. Suponha um restaurante cuja demanda nos fins de semana exige 40 garçons, mas durante a semana apenas 20.

Hipoteticamente, a sua função de produção é tal que na legislação atual ele emprega no ponto médio: 30 pessoas. Há, portanto, um excesso de garçons ao longo da semana, mas uma escassez no fim de semana.

Com o trabalho intermitente o restaurante, de fato, poderia contratar apenas 20 garçons de modo permanente (demanda do dia de semana), o que seria prejuízo para 10 de seus garçons. Por outro lado, poderia contratar outros 20 de modo intermitente (para a demanda do fim de semana), o que é vantajoso para 10 trabalhadores, por exemplo, desempregados.

Evidentemente os números do exemplo são arbitrários. Poderíamos considerar que sem o trabalho intermitente o restaurante emprega só 20 garçons (seriam geradas então 20 novas vagas) ou considerar que ele já emprega 40 garçons (nenhuma vaga seria gerada, e 20 pessoas ficariam em situação pior).

Os efeitos dependem da realidade de cada firma, mas este exemplo do trabalho intermitente ilustra a lógica de inclusão dos excluídos e de resistência dos incluídos nas novas formas de contratação – que incluem o fortalecimento das jornadas parciais e trabalhos temporários.

Por sua vez, as alterações propostas que afetam procedimentos na Justiça do Trabalho também têm o objetivo de ampliar o emprego formal. A bem-vinda e necessária conduta protetora do Judiciário não pode ser confundida com voluntarismo. Ao inibir o bom funcionamento do mercado, a incerteza jurídica afeta especialmente os trabalhadores, inclusive o informal ou desempregado. A viabilização de contratos depende do “império da lei”.

SEGURANÇA PARA NEGOCIAÇÕES

Em especial, fica fortalecida a segurança jurídica das negociações coletivas, nos moldes do que já vinha decidindo o Supremo Tribunal Federal (STF). As negociações, previstas na Constituição, são estimuladas em outros países e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), como instrumento para geração de ganhos mútuos entre as partes.

Atualmente no Brasil o que for firmado nessas negociações, que contam com a participação dos sindicatos, pode ser anulado pelo Judiciário – que se autoconferiu o papel de decidir o que é bom ou não para cada grupo de trabalhadores.

É simbólica deste entendimento uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que proclamou que o “o empregado merece proteção, inclusive contra a sua própria necessidade ou ganância”. É um nível de tutela que não tem respaldo nas leis e na Constituição. Deveríamos condenar a busca por prosperidade e melhores condições de vida?

Frisa-se que a prevalência do negociado sobre o legislado não afeta dezenas de direitos indisponíveis, ou seja, que não poderão ser objeto de negociação. Entre eles estão o 13º, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o seguro-desemprego, o número de dias de férias, o aviso prévio e normas de saúde, higiene, e segurança do trabalho.

Um importante argumento que precisa ser esclarecido também é o de que as negociações só serão vantajosas para patrões, porque os trabalhadores não têm condição de negociar. O contraexemplo se dá por aquela que é a talvez variável mais importante do contrato de trabalho: o salário.

A legislação não define o salário de todos os trabalhadores. É permitido negociar, individual ou coletivamente, termos melhores do que mínimo exigido por lei. Fosse verdadeiro o argumento de que todos trabalhadores que buscarem condições mais favoráveis de trabalho serão imediatamente demitidos, todos os brasileiros contratados formalmente receberiam apenas o salário mínimo.

Por sua vez, é intuitivo que quanto mais aquecido for o mercado de trabalho, maior poder de barganha terão os trabalhadores. A tentativa de incluir dezenas de milhões de pessoas no mercado de trabalho formal afeta este poder de negociação, que será tão maior quanto mais alternativas os trabalhadores possuírem.

O fim da contribuição sindical obrigatória, em longo prazo, também pode contribuir nesse sentido. Na visão otimista, a maior liberdade sindical estimula exatamente uma participação mais ativa dos sindicatos. A faculdade de contribuir para um sindicato tenderá a ser exercida quanto mais representativo um sindicato for.

Os bons sindicatos poderão ser fortalecidos. Já a visão pessimista é que o fim da compulsoriedade gere escassez de recursos e facilite a captura do sindicato pelos empregadores, prejudicando as negociações. A atuação do sindicato tem características de “bem público”, por afetar tanto quem contribui quanto quem não contribui, e poderia ser subfinanciada – por esta ótica.

A drástica mudança na forma de financiamento poderia idealmente também ser o prelúdio de uma reforma sindical. O fim da unicidade necessita de emenda à Constituição, enquanto a reforma trabalhista é apenas um projeto de lei. Eventual competição dos sindicatos tenderia fortalecer a representação dos trabalhadores.

PRODUTIVIDADE E RENDA

As novas formas de contratação e o negociado sobre o legislado dominaram este debate, mas outro aspecto essencial da modernização trabalhista tem ficado esquecido na discussão: a busca por ganhos de produtividade. O crescimento da produtividade do trabalho é o que dita a capacidade que os salários têm de crescer de maneira persistente e sustentável.

Grosso modo, não sendo pelo crescimento da produtividade, países tem apenas outra possibilidade para crescer: pelo aumento de quantidade de trabalhadores. A produtividade se refere, portanto, a capacidade de aumentar o Produto Interno Bruto (PIB) sem mudanças no número de trabalhadores1. Nas palavras do Prêmio Nobel Paul Krugman “a produtividade não é tudo, mas em longo prazo é quase tudo.”

Aqui é pertinente fazer uma digressão em relação ao popular argumento que diz que a reforma não gera emprego, porque “o que gera emprego é crescimento econômico”. Por outro prisma, poder-se-ia dizer que o que gera crescimento é emprego e produtividade. Não dá pra considerar o crescimento do PIB como exógeno ao mercado de trabalho.

A ênfase que o aperfeiçoamento das leis trabalhistas dá à produtividade não é redundante: este indicador esteve estagnado no Brasil nos últimos anos, e apresentou até evolução negativa em alguns setores da economia. O desempenho ruim persistiu mesmo no bom momento do mercado de trabalho, de boom das commodities e demografia favorável, que ampliaram o emprego formal.

Nossa performance deixou muito a desejar não só em termos absolutos, mas também relativos. Ficamos muito para trás de economias emergentes, como a China, ou maduras, como os Estados Unidos.

São vários os mecanismos por quais as mudanças na CLT permitirão o crescimento da produtividade e, portanto, da renda. Concede-se maior liberdade para que as empresas remunerem por desempenho, possibilidade hoje travada porque judicialmente estas parcelas temporárias podem ser incorporadas definitivamente ao salário ou estendidas a outros trabalhadores com o mesmo cargo, ainda que em outra cidade ou ano.

Outros instrumentos para ganhos de produtividade incluem a terceirização, que encoraja a especialização, e o estímulo para concessão de transporte pelos empregadores, evitando que as pessoas percam tempo e energia nas caóticas redes de transporte das grandes cidades.

A própria prevalência do negociado sobre o legislado tende a permitir ajustes que propiciem condições de trabalho mais amigáveis à produtividade, assim como as novas formas mais flexíveis de jornada tendem a aumentar a permanência nos postos de trabalho e diminuir a rotatividade, outra grande inimiga da produtividade.

A rotatividade é cronicamente elevada no Brasil, e os trabalhadores permanecem pouco tempo em um mesmo posto de trabalho. Ninguém investe em vínculos que tendem a durar pouco, com graves prejuízos para qualificação profissional.

Por sua vez, o problema do desemprego também tem uma intersecção com o problema da produtividade: a inclusão dos excluídos permite o crescimento da produtividade pela via da experiência (on-the-job learning). Trabalhadores que estariam fora do mercado de trabalho passarão a ter mais experiência, ainda que não em contratos permanentes de 44 horas.

EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL

Uma das principais polêmicas da tramitação da proposta se refere ao efeito no emprego de reformas trabalhistas em experiências internacionais. Se do ponto de vista teórico da economia do trabalho a fundamentação é sólida de que a flexibilização das leis trabalhistas vai ao sentido de mais emprego, o resultado de experiências internacionais é objeto de disputa.

Uma primeira controvérsia se refere aos estudos que aplicam técnicas econométricas para estimar a relação de causalidade entre rigidez da legislação e desemprego (ou crescimento). Nesta metodologia estatística esta relação é isolada, ou seja, são controlados os efeitos de outras variáveis que afetam o emprego. A rigidez é medida por um índice – que é arbitrário por construção.

Os críticos da reforma trabalhista apontam estudo publicado pela OIT em 2015, com dados de 63 países para 20 anos, que não detectou relação entre o índice de rigidez e o nível de emprego, mantidos outros fatores constantes2.

Os autores do estudo são mais cautelosos a respeito das conclusões do que os seus entusiastas brasileiros, afirmando que uma legislação trabalhista rígida pode não afetar o nível de emprego se cuidadosamente desenhada. Ainda, o desenho desta legislação deveria levar em conta as condições específicas do mercado de trabalho em cada país. Reconhecem também que o efeito sobre o emprego pode variar entre grupos da população (ex: jovens).

Com metodologia semelhante, outros estudos chegaram à conclusão divergente daquela do estudo da OIT, isto é, concluíram que a rigidez trabalhista afeta negativamente o nível de emprego. Entre eles podemos destacar o de Andrei Schleifer, o economista mais citado do mundo na academia, que com seus co-autores analisou 85 países3; e o do Prêmio Nobel James Heckman, que teve amostra de 43 países e ênfase na América Latina4.

A ausência de um resultado consensual entre estudos de fontes respeitadas é frustrante, mas pode ser explicada. Fora a dificuldade de controlar estatisticamente o impacto de outras variáveis nesta relação, os próprios indicadores de rigidez trabalhista e de desemprego são pouco apropriados para esse tipo de estudo.

Os índices de rigidez trabalhista são construídos artificialmente: embora muito interessantes para fazer comparações no tempo e entre países, são menos pertinentes para identificar causalidade entre variáveis. São atributos que outros índices também possuem, como o de desenvolvimento humano (IDH).

Por sua vez, análises comparadas de desemprego são sempre questionáveis porque as definições de desemprego variam em cada país, e compatibilizá-las não é trivial.

Outro objeto de disputa no debate sobre a reforma trabalhista se refere a experiências individuais de alguns países. São populares os casos de economias grandes que fizeram reformas em anos recentes, como Espanha, México e Alemanha.

Com frequência, se apontou que estas reformas “precarizaram” as relações de trabalho sem trazer ganhos no desemprego. Porém, desta vez, não é apontada evidência empírica como base.

No caso da Espanha, que fez sua reforma em 2012, foram identificados efeitos positivos, e rápidos, da reforma trabalhista sobre o emprego, por estudos de pesquisadores espanhóis5 e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)6, entre outros. Para o caso mexicano, ainda há carência de estudos.

Já em relação às reformas trabalhistas na Alemanha feita na década passada, a OCDE apontou em 2016 que elas tornaram o mercado de trabalho mais forte e que, graças a elas, a taxa desemprego continuou a cair e é agora a mais baixa da União Europeia7.

Em outra oportunidade, a OCDE defendeu que o desempenho macroeconômico alemão acima de seus vizinhos, inclusive em relação ao desemprego, teve como “base” as reformas trabalhistas feitas a partir de 20028.

Há uma série de outros trabalhos empíricos reconhecendo os efeitos positivos das reformas trabalhistas alemãs, inclusive atribuindo a elas o bom desempenho durante a crise econômica mundial – comumente chamado de “milagre”9.

Na França, que também se prepara para uma reforma trabalhista sob o presidente Emmanuel Macron, publicação dos Ministérios da Economia e Finanças e do Comércio Exterior explica que a maior parte dos milhões de empregos criados na Alemanha foram em contratos em regime de tempo parcial ou temporários – que são fortalecidos na proposta brasileira10.

Adicionalmente, há estudos apontando que a partir de 2010 a expansão do emprego pelas jornadas parciais foi dando espaço a uma expansão de empregos em tempo integral11.

Note que as novas modalidades de contrato previstas pela modernização brasileira são, junto com o fortalecimento da segurança jurídica, o principal mecanismo pelo qual se espera incluir os excluídos. São modalidades que em outros países são usadas por jovens e mulheres. Na Holanda, 60% das mulheres empregadas trabalham menos de 30 horas semanais (e apenas 18% dos homens), segundo a OCDE.

Essas evidências de outros países não integraram o debate da modernização trabalhista no Brasil nos últimos meses. Experiências individuais de outros países foram usadas em geral para se opor à reforma, com base em evidências apenas anedóticas.

Evidentemente que experiências de país A ou B não devem vincular qualquer opção de política pública no Brasil. Mesmo as conclusões dos estudos sobre reformas trabalhistas, sejam positivas ou negativas, precisam ser vistas com cautela, uma vez que o teor das reformas pode ser em muito diferente da proposta para o Brasil.

Portanto, parece ser mais conveniente a abordagem de Gordon Betcherman, preconizada em estudo do Banco Mundial, que reconhece a existência de um amplo espaço para as legislações trabalhistas de países emergentes no espectro “flexibilidade-rigidez”12. Desde que se evitem os extremos, seja de flexibilidade (baixo desemprego e informalidade, mas alta precarização) seja de rigidez (pobreza, com muitos “direitos” que não saem do papel), haveria muitas opções para o legislador.

Também é promissor o tratamento sugerido pelos professores Nauro Campos e Jeffrey Nugent para os índices de rigidez da legislação trabalhista. A comparação de um país com outros deveria ser cotejada com os dados domésticos de desempenho do mercado de trabalho13.

Na comparação internacional, temos uma das legislações menos flexíveis do mundo, com a 132a posição entre 144 países (LAMRIG, publicado pelo Instituto de Economia do Trabalho (IZA)) ou a 144ª entre 159 países (Instituto Fraser).  Nos dois rankings, Japão, Hong Kong, Nova Zelândia, Estados Unidos e Canadá aparecem na liderança, e Angola e Venezuela nas últimas posições.

A comparação por si não é um problema, mas infelizmente no Brasil temos também altas taxas de desemprego e informalidade, e uma baixa taxa de crescimento da produtividade. O conjunto desses indicadores cronicamente ruins sugere a necessidade de mudanças.

PREVIDÊNCIA E TERCEIRIZAÇÃO

Há no debate uma genuína preocupação de que as inovações da modernização trabalhista prejudiquem a Previdência. Ela se somaria a outras tendências estruturais de economias modernas, como a indústria 4.0, que tendem a enfraquecer a arrecadação previdenciária.

Isso seria especialmente deletério no Brasil, cuja previdência, com uma das tributações sobre a folha mais pesadas do mundo, é especialmente dependente da contribuição patronal tradicional.

Por outro lado, se existem mudanças estruturais ocorrendo no mercado de trabalho, não seria melhor justamente permitir a formalização de outras formas de contratos de trabalho? Desde que não sejam usadas de maneira espúria, a segurança jurídica para o trabalho intermitente e o autônomo exclusivo, por exemplo, poderiam, ao contrário, ampliar a arrecadação.

Cabe observar também que, sendo a reforma bem-sucedida em incluir os excluídos (desempregados e informais), aumenta-se a massa salarial sujeita à tributação. Ainda no âmbito da arrecadação previdenciária, é louvável a majoração da reforma da multa por empregado informal, que sobe em até 7 vezes, para R$ 3.000.

Da mesma forma, há um sincero medo de que a terceirização da atividade-fim também prejudique a arrecadação. Este é um debate que foi mal embasado, a partir de estudo rudimentar que apontava que o terceirizado ganha 25% menos do que o contratado diretamente.

No mercado de trabalho, os salários são determinados pelas forças da demanda por trabalho pelos empregadores e da sua oferta pelos trabalhadores. Eles não deveriam ser afetados pela forma de contratação, se direta ou indiretamente.

Em verdade, a pesquisa, da Central Única dos Trabalhadores (CUT), meramente comparou a remuneração média de funcionários em setores classificados como tipicamente de terceirizados e tipicamente de contratação direta. Não foi comparada a remuneração de trabalhadores terceirizados e trabalhadores contratados diretamente com as mesmas funções.

Seria o mesmo, portanto, que comparar o salário de um juiz e de um faxineiro do fórum, e explicar a diferença pelo fato do faxineiro ser terceirizado. Estudos que realmente fizeram a comparação apropriada identificaram diferenças muitos menores, e até positivas em ocupações de maior qualificação14.

Também não é consistente a lógica do argumento de que a terceirização da atividade-fim permitirá que trabalhadores contratados diretamente sejam demitidos para que outros mais baratos sejam contratados.

Sendo os salários determinados pelas forças de mercado, não haveria razão para que, por exemplo, o porteiro João fosse demitido para que um terceirizado José seja contratado com um salário menor. Se José já estava disponível e aceitava um salário menor, porque o condomínio esperaria a terceirização para o contratar?

Há duas exceções a este raciocínio: a terceirização no serviço público, uma vez que os salários não são determinados pelo mercado, e a terceirização espúria: a mera intermediação de mão de obra com o objetivo de sonegar encargos. Assim, há um importante argumento de que a vedação à terceirização da atividade-fim é principalmente um instrumento para evitar que se fuja da tributação.

Cabe, porém, refletir sobre as perdas decorrentes da insegurança jurídica que a vedação à terceirização gera, diante da impraticalidade de exigir que burocratas distingam o que são atividades meio e fim de milhares de empresas.

A terceirização em atividades-fim é amplamente adotada fora do país. Empresas terceirizam desde o estabelecimento de seus preços (McDonalds, Coca-Cola, General Eletric, Nestlé) até o desenho dos produtos (Samsung, Ford, Intel, Lufthansa). A gigante Ikea até faz o desenho dos móveis que vende, mas não fabrica nenhum deles.

Esses arranjos, que potencialmente geram emprego e incrementam a produtividade, e por isso, a renda, teriam segurança para nascer no Brasil?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante salientar que os mecanismos por meio das quais a reforma trabalhista tem potencial para aumentar o emprego e a renda não são explicados por suposta benevolência dos empregadores. Ao contrário, a regulação do mercado de trabalho deve ser consciente de que a motivação das firmas é de expandir seus lucros.

Qualquer contratação pressupõe a busca do empresário pelo lucro. Não é possível esperar que os empregadores vão empregar mais porque são “bonzinhos”. A legislação e a jurisprudência trabalhistas devem, portanto, ser elaboradas com ciência dessa restrição que opera em uma economia de mercado.

A aversão que temos aos patrões não pode ser maior do que o desejo de melhorar a vida dos brasileiros. A reforma gera os mecanismos para que o emprego formal e a renda floresçam dentro da lógica do capital.

A regulação do mercado de trabalho não é trivial e nossos anseios por proteção podem justamente prejudicar quem se busca proteger. Ilustrativamente, estudo econométrico sobre a PEC das Domésticas concluiu que em decorrência da medida o emprego se reduziu e mulheres de baixa qualificação foram movidas para fora da força de trabalho ou para empregos piores15.

Evidentemente que a reforma trabalhista não é capaz de, sozinha, propiciar o desenvolvimento e a redução das desigualdades, e nem terá fortes efeitos imediatos no emprego e na produtividade. É preciso desfazer o nó fiscal, que tanto reprime a economia com redução de investimentos público, elevada carga tributária e juros altos.

São necessárias reformas, também microeconômicas, que melhorem o ambiente de negócios, a qualidade da educação e deem mais eficiência e progressividade às despesas do Estado e ao sistema tributário.

Por outro lado, é natural que um projeto de lei com tantas mudanças sofra resistência, porque é difícil concordar com todos os seus dispositivos. Por exemplo, talvez pudessem ser deixadas para negociações coletivas itens que integrarão o texto da lei (salvo veto) e consistem em demanda de profissionais de áreas específicas, com ganhos menos evidentes para o conjunto de trabalhadores.

É o caso das demandas de médicas e enfermeiras (possibilidade de gestante e lactante trabalharem em local de baixa insalubridade) e bancárias (fim do intervalo de 15 minutos antes das horas-extras).

Outra reflexão é se a velocidade da tramitação da proposta, conjugada com tantos eventos políticos relevantes no país nos últimos meses, não prejudicou a sua assimilação – e até aceitação – pelos operadores do Direito. A almejada segurança jurídica depende também do convencimento deles, e não apenas de dispositivos em uma lei.

De todo modo, é urgente que o debate sobre as normas trabalhistas, que irá continuar depois de apreciação da reforma, perca o seu componente maniqueísta, em que os que são favoráveis à manutenção do status quo atual possuem o monopólio das boas intenções e do interesse no bem-estar dos trabalhadores.

 

Versão deste texto foi originalmente publicada no portal JOTA, em 2 de julho de 2017, sob o título “Reforma trabalhista é aposta para o crescimento do emprego”.

 

Sugestões de leitura:

Ao longo da tramitação da reforma trabalhista, o Senado ouviu os principais especialistas do Brasil em Economia do Trabalho, cujas apresentações seguem abaixo:

André Portela

Sérgio Firpo

José Pastore 1 e 2

José Márcio Camargo

Hélio Zylberstajn

A respeito especificamente do tema produtividade, também é de interesse o estudo dos professores Roberto Ellery, Ricardo Paes de Barros e Diana Grosner, publicado pelo Ipea e coletâneas organizadas recentemente por Regis Bonelli, Fernando Veloso e Armando Castelar Pinheiro, do IBRE, FGV; e Luiz Ricardo Cavalcante e Fernanda DeNegri, do Ipea.

Parecer da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal.

 

_______________

1 Rigorosamente, essa seria na verdade a produtividade média do trabalho, que se distingue da produtividade marginal do trabalho. Para os fins deste texto não diferenciamos os conceitos.

2 FENWICK, C.; MARTINSSON, S.; PIGNATTI, C.; RUSCONI, G. Labour Regulation and Employment Patterns. World Employment and Social Outlook. Genebra: OIT, 2015.

3 SCHLEIFER, A.; DJANKOV, S.; LA PORTA, R.; LOPEZ-DE-SILANDEZ, F. The Regulation of Labor. National Bureau of Economic Research Working Paper nº 9756. Junho de 2003.

4  HECKMAN, J.; PAGÉS-SERRA, C. The Cost of Job Security Regulation: Evidence from Latin American Labor Markets. Economia 2, 109-154. 2000.

5 AGUIRREGABIRIA, V.; ALONSO-BORREGO, C. Labor Contracts and Flexibility: Evidence from Labor Market Reform in Spain. Economic Inquiry, volume 52, issue 2, pp 930-957. Abril de 2014.

6 OCDE. The 2012 Labour Market Reform in Spain: A Preliminary Assessment. OECD Publishing, 2014.

7 OCDE. OECD Economic Surveys: Germany. Abril de 2016.

8 OCDE. Germany Keeping the Edge: Competitiveness for Inclusive Growth. Fevereiro de 2014.

9 BURDA, M. C.; HUNT, J. What Explains the German Labor Market Miracle in the Great Recession? Brookings Papers on Economic Activity. The Brookings Institution, 2011.

10 BOUVARD, F.; RAMBERT, L.; ROMANELLO, L.; STUDER, N. How have the Hartz reforms shaped the German labour market?. Trésor-Economics, nº 110. Ministère de l’Économie, et des Finances et Ministère du Commerce Extérieur  março de 2013.

11 BURDA, M. C. The German Labor Market Miracle, 2003 -2015: An Assessment. SFB 649 Discussion Paper 2016-005. Fevereiro de 2016.

12 BETCHERMAN, G. Labor Market Regulations: What do we know about their Impacts in Developing Countries?. The World Bank Research Observer, vol. 30, no. 1. Fevereiro de 2015.

13 CAMPOS, N. F.; NUGENT, J. B. The Dynamics of the Regulation of Labor in Developing and Developed Countries since 1960. IZA Discussion Paper No. 6881. Setembro de 2015.

14 STEIN, G. ZYLBERSTAJN, G.; ZYLBERSTAJN, H. Diferencial de salários da mão de obra terceirizada no Brasil. Working Paper 4/2015. Center for Applied Microeconomics, São Paulo School of Economics. Agosto de 2015.

15 PIRES, P. O. M. Labor Rights, Formality and Spillovers: Evidence from Brazil. Dissertação apresentada à Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Orientador Rodrigo dos Reis Soares. São Paulo, 2016.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3003 2
O que a mulher que mais sofre com a tripla jornada ganha da Previdência? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3000&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-a-mulher-que-mais-sofre-com-a-tripla-jornada-ganha-da-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3000#comments Mon, 26 Jun 2017 15:58:03 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3000 Deodorina chegou atrasada ao trabalho. A patroa, Dona Carmen, não deu atenção: estava vidrada na TV, atenta ao jornal. Reclamou da retirada de direitos na Previdência, mas percebeu que a reforma não a afetava tanto. Carmen terá de adiar em 6 meses os seus planos de se aposentar ano que vem, aos 52 anos.

Servidora pública, Carmen receberá para todo o sempre o maior salário da sua vida, ainda que não tenha feito contribuições no montante correspondente, e terá aumentos reais sempre que os funcionários da ativa tiverem1. Ficou com pena de seu filho, também funcionário público, porque ele não vai receber nada disso e ainda se aposentará mais tarde que a mãe: vai trabalhar até morrer, diz ela. Carmen acha um retrocesso, e se queixa da reforma: “imagina como fica o pobre”.

Carmen defende ser um absurdo a aposentadoria para homens e mulheres na mesma idade, porque sabe que os compromissos da casa e com o filho sempre sobraram mais para ela do que para o marido.  Felizmente, Carmen teve condições financeiras para continuar trabalhando, 30 anos seguidos, sem precisar largar o emprego para cuidar da criança. Usou parte do seu salário para pagar uma creche, e depois sempre pôde contar com a ajuda de mulheres como Deodorina, sua empregada.

Deodorina também completará 52 anos, mas não vai se aposentar ano que vem. Tampouco nos seguintes. Embora trabalhe desde a adolescência, não vai conseguir juntar os 15 anos de contribuição que o INSS exige para uma aposentadoria. Durante as últimas décadas, conseguiu por poucos anos ter a carteira assinada. Por um período ficou desempregada, por outro precisou ficar em casa cuidando dos seus cinco filhos.

Deodorina quase sempre buscou emprego. Sem diploma, praticamente só conseguia fazer diárias, como na casa de Dona Carmen. Foi difícil, mas ela conseguiu criar as cinco crianças. Deodorina não sabe o que significa tripla jornada, mas não vai receber nenhuma compensação da Previdência pelas suas décadas como profissional, mãe e dona de casa. Resta a ela pedir um benefício assistencial, na mesma idade de seu marido, aos 65 anos.

Carmen recebeu uma ligação do sindicato da sua carreira para uma manifestação. Ficou animada e irá protestar com seu filho contra a perda de direitos, contra retrocessos sociais e pela dignidade da pessoa humana.            Na passeata falarão de isonomia, paridade e integralidade.

Deodorina não pertence a nenhuma carreira, e, portanto, a nenhum sindicato. No protesto que Carmen vai participar, ninguém irá reclamar que o benefício com que Deodorina contava ficou mais difícil de se obter. Ela tem a mesma idade de Dona Carmen e trabalhou até por mais tempo do que ela, mas por ser “informal” não terá a mesma regra de transição e não estará isenta de mudanças2.

Deodorina teme ter que chegar atrasada de novo no serviço amanhã. Ela levava duas horas pra chegar ao trabalho, mas a obra do BRT que iria melhorar o seu deslocamento está parada, e até piorou o trânsito. O governo estadual, que mal consegue pagar os salários em dia, diz não ter dinheiro para terminar a obra. Carmen diz não haver déficit na Previdência.

Para piorar, Deodorina ainda terá de arranjar tempo para levar o neto na UPA. Desde que o menino se mudou para a sua casa, após o pai ser demitido no ano passado, a criança passou a ter diarreias e febres frequentes. Deodorina acha que tem a ver com o esgoto, mas precisa perguntar ao doutor. Ela não irá encontrar pediatra amanhã, nem um médico pra falar sobre as dores que vem sentindo. Carmen diz que o governo desvincula o dinheiro da Previdência para pagar outras coisas.

Foi o filho de Deodorina, desempregado, que pediu a ela pra levar o garoto no médico, porque tem uma entrevista de emprego amanhã. A empresa vai gostar dele, mas perceberá que os juros no banco estão proibitivos e desistirá de pegar um empréstimo para sua expansão. O banco considera mais conveniente aplicar seu dinheiro em títulos do Tesouro do que no negócio desta empresa. Carmen diz que em vez de fazer reforma o governo deveria é gastar mais, para aquecer o consumo.

Com o filho e o neto em casa, Deodorina está com dificuldade de fazer a feira do mês. Ela não sabe, mas parte do seu salário gasto no supermercado servirá para pagar “contribuições sociais”. Este dinheiro não pode ir para a obra do seu BRT, mas poderia ir para o saneamento da sua rua ou para contratar médicos para a UPA. Carmen não sabe, mas quando protestar contra a reforma dizendo não haver déficit na Previdência porque “a seguridade precisa ser analisada como um todo” estará dizendo que sua empregada deve gastar mais no supermercado para pagar a sua aposentadoria.

Deodorina e Carmen são apenas personagens ilustrativos dos conflitos embutidos na discussão sobre a reforma da Previdência. A reforma tem potencial para reduzir as desigualdades de acesso aos benefícios entre os mais ricos e os mais pobres. Os mais pobres atualmente financiam um sistema previdenciário a que tem acesso limitado, enquanto sofrem com o ônus do baixo investimento público (como em mobilidade ou saneamento), da carga tributária crescente (que incide sobre as compras do mês) e dos juros altos (que desemprega os jovens).  Sem reforma, este ônus tende a aumentar.

Estes personagens ilustram ainda a miopia em relação à discussão sobre as mulheres na reforma da Previdência.  São as mulheres mais pobres quem têm maior taxa de fecundidade, e é evidente que maior número de filhos torna a parte doméstica da jornada ainda mais difícil.  É evidente também que a mulher mais pobre, menos escolarizada, tem também menos acesso a emprego formal, bem como que a mulher com mais filhos ficará mais ausente do mercado de trabalho.

Esta mulher mais pobre tem menos recursos financeiros e é mais dependente dos serviços públicos, enfrentando dificuldade de colocar seus filhos em creches ou em educação integral. Ela também tende a morar mais longe do trabalho e a perder mais tempo com deslocamentos na sua tripla jornada. Se esta mulher não completa 15 anos de contribuições à Previdência, ela não se beneficia do diferencial de 5 anos na idade. Se não completar 30 anos, não se beneficia do diferencial no tempo de contribuição.

Neste sentido, o foco da preocupação com a mulher neste debate não deveria ser o fim das diferenças nas regras entre homens e mulheres, tema mais caro às mulheres mais bem posicionadas na distribuição de renda. Na aposentadoria por tempo de contribuição, apesar do diferencial de 5 anos para mulheres, 67% dos benefícios concedidos são para homens.

O que é de fato relevante para as que mais sofrem com a tripla jornada, merecendo maior discussão, é o aumento do tempo mínimo de contribuição, de 15 para 25 anos, e, especialmente, da idade mínima para o Benefício de Prestação Continuada, de 65 para 68 anos. No Benefício de Prestação Continuada, apesar de não haver diferencial de gênero, 58% dos benefícios concedidos são para mulheres.

De resto, a reforma é essencial para viabilizar a solvência do Estado e permitir uma disponibilidade maior de recursos para políticas voltadas à trabalhadora pobre e sua família, como investimentos em saneamento básico, creches, educação básica e nas transferências de renda voltadas a este grupo, como o Bolsa Família. Ela é essencial também para que a carga tributária e os juros altos não estrangulem o crescimento da economia, facilitando a incorporação no mercado de trabalho das famílias hoje mais excluídas dele, justamente as mais pobres.

Carmen é uma boa pessoa, e acredita que também está defendendo os mais pobres. A pauta de seu sindicato, porém, não levanta os aspectos sensíveis da atual proposta da reforma que realmente podem prejudicar pessoas como Deodorina. Se a agenda das corporações continuar predominando neste debate, será preciso proteger os mais pobres de seus defensores.

Versão deste texto foi originalmente publicada no NEXO Jornal, em 28 de fevereiro de 2017.

______________

1 Conforme o texto original da PEC nº 287, de 2016, mas não conforme o Substitutivo aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Todavia, a imprensa tem noticiado que a situação de pessoas como Carmen deve continuar como está no texto (direito à integralidade e à paridade).

2 Vide nota anterior.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3000 1
Parte 2: O que te contaram errado sobre a reforma da Previdência https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2989&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=parte-2-o-que-te-contaram-errado-sobre-a-reforma-da-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2989#comments Mon, 24 Apr 2017 13:31:50 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2989 Em texto anterior, discutimos no blog os mitos sobre a reforma da Previdência, como o de que ela faria as pessoas trabalharem até morrer (porque é um erro neste debate considerar a expectativa de vida ao nascer); o de que uma idade mínima prejudica o trabalhador mais pobre que começa a trabalhar cedo (porque ele já tem idade mínima hoje); o de que serão precisos 49 anos de contribuição para aposentadoria integral (porque isso só seria preciso para uma minoria da população); e o de que a Seguridade Social em seu conjunto é superavitária (porque essa conta esconde dados do funcionalismo público).

Neste texto, analisamos mais quatro mitos difundidos sobre a reforma.

 

Mito: O problema previdenciário seria resolvido se o governo cobrasse as empresas devedoras da Previdência.

Não há o que defender a respeito de sonegação e inadimplência na Previdência. Entretanto, quando se diz que as 500 maiores empresas devedoras da Previdência devem mais de R$ 400 bilhões, é preciso ficar claro que:

i) boa parte dos grandes devedores não são empresas;

ii) entre as que de fato são, muitas estão falidas, e o montante devido, além de irrecuperável, é alto pela própria incidência de juros e correção monetária;

iii) ainda que fosse recuperável, a dívida pagaria as despesas do INSS por apenas 9 meses.

As empresas que não são empresas

A respeito do primeiro ponto, há um evidente esforço de desinformação quando se fala sobre as 500 maiores “empresas” que devem à Previdência. A 13ª maior devedora, com R$ 550 milhões, é a Prefeitura de São Paulo. A lista contém ainda outras capitais como Salvador (44ª, R$ 320 milhões) e Manaus (54ª, R$ 280 milhões), e cidades como Guarulhos (11ª, R$ 560 milhões), Barcarena (62ª, R$ 250 milhões), Cabo Frio (66º, R$ 230 milhões) e Campinas (77ª, R$ 210 milhões).

Órgãos da Administração Direta e Indireta de diversos entes também abundam na lista, como o 8º maior devedor, o Instituto Candango de Solidariedade (DF), (R$ 700 milhões), e a 10ª maior devedora, a Agespisa (PI), com R$ 590 milhões.

Até mesmo estatais federais aparecem entre os grandes devedores, como a Caixa Econômica Federal (14ª maior devedora, R$ 550 milhões), os Correios (32º maior devedor, R$ 380 milhões) e o Banco do Brasil (76º, R$ 200 milhões)

Por que isso é um problema no debate? A narrativa de que a dívida (“dívida ativa”) é formada por grandes empresas passa a errônea impressão que o problema previdenciário poderia ser resolvido com recursos do setor privado. Entretanto, a grande participação de entidades do próprio Estado revela que, caso a cobrança da dívida ativa fosse melhorada, parte do fluxo de dinheiro se daria entre bolsos de uma mesma calça: por exemplo, de um ente do Estado para o outro. Evidentemente isso não significa que não seja justo que todos aqueles com dívida reconhecida paguem o que devem, sejam do setor privado ou não.

As empresas falidas

Já o segundo ponto, a grande quantidade de empresas falidas, é ilustrada pelo trio Varig, Vasp e Transbrasil: as três empresas aéreas estão entre as seis maiores devedoras, todas com passivos de mais de R$ 1 bilhão. No caso da Varig, a maior devedora da Previdência, o valor se aproxima de R$ 4 bilhões.

Há uma evidente dificuldade de recuperar recursos de empresas falidas, seja seu credor um banco ou a Previdência.

Figura 1 – Ativos da maior devedora da Previdência

Adicionalmente, é pertinente observar que o valor alto que algumas dessas empresas registram na lista de grandes devedores se deve à própria incidência de juros e correção monetária sobre os débitos, que vão se somando ao longo dos anos, ainda que não sejam recuperáveis. Algumas das empresas da lista não estão falidas há anos, mas há décadas.

Dinheiro para pagar um benefício por um mês

Por isso, é extremamente falacioso comparar o montante de R$ 430 bilhões das 500 maiores devedoras com o déficit da Previdência. Infelizmente, deste montante, apenas R$ 10 bilhões é classificado como de “alta chance de recuperação”. O valor equivale às despesas com aposentadoria por tempo de contribuição: em um mês. Argumento semelhante se aplica à lógica de que a reforma da Previdência deve ser substituída pelo combate à corrupção, uma causa nobre, mas que é incapaz de resolver os problemas do país: o departamento de propinas da Odebrecht movimentou em quase 10 anos o que o INSS gasta em 1 semana1.

Assim chegamos ao terceiro ponto elencado acima. Ainda que toda a dívida ativa fosse recuperada, o valor seria suficiente para pagar todas despesas do INSS por apenas 9 meses. Este é um importante equívoco dos que apontam a dívida ativa como solução para a Previdência: em economês, a dívida ativa é um “estoque”, um valor acumulado referente ao passado, enquanto a despesa previdenciária é um “fluxo”, que se repete no tempo.

As filantrópicas (pilantrópicas?) e o STF

Um complicador adicional deve ser a recente decisão do Supremo Tribunal Federal estabelecendo que os requisitos de imunidade previdenciária para entidades filantrópicas deveriam ter sido estabelecidos por uma lei complementar, e não por lei ordinária como foi feito. Parte dos devedores da Previdência são justamente entidades que se consideravam isentas de pagar contribuição. Elas se consideram filantrópicas para fins previdenciários (ex: uma faculdade privada), mas não são assim consideradas pelos órgãos competentes do governo. Quando não pagavam a Previdência por “terem” isenção, eram consideradas devedoras. Com a decisão do STF, suas dívidas agora poderão não existir mais.

Outros exageros

Outros exageros nas mensagens denuncistas que circulam nas redes sobre os grandes devedores incluem considerar que as dívidas já estão reconhecidas e prontas para cobrança, quando boa parte ainda é discutida na Justiça (como a da Caixa Econômico Federal); e insinuar que o governo não busca recuperar os débitos para não incomodar os devedores. Este último tipo de insinuação tem sido comum no debate (como quando se diz que as contas da Previdência não são auditadas). Na verdade, a soma anualmente recuperada desta dívida subiu de R$ 1,5 bilhão em 2010 para R$ 4,1 bilhões em 2016, quase três vezes mais.

Se este pote de ouro ao fim do arco íris não existe, por que este discurso persiste ao longo dos anos? Uma possível explicação já foi debatida aqui no blog  e se relaciona com promessas de corporações de funcionários públicos feitas a agentes políticos e à sociedade. Neste caso, representantes de procuradores, a quem compete recuperar este dinheiro, sempre exageraram valores referentes à dívida ativa ao mesmo tempo em que defendiam a importância de receberem honorários indenizatórios, isto é, um vantajoso complemento de remuneração que não se sujeita ao teto constitucional ou à incidência de Imposto de Renda. Em troca do aumento salarial, a sociedade recuperaria bilhões da tal dívida.

 

Mito: A reforma é baseada na comparação do Brasil com países ricos, que possuem outra realidade.

As regras de concessão de benefícios previdenciários do Brasil não destoam apenas das de países ricos, mas também de países emergentes. Por exemplo, além do Brasil, apenas 12 países possuem aposentadoria por tempo de contribuição, isto é, uma aposentadoria sem idade mínima.

A idade mínima proposta pelo governo para o Brasil na década de 2030, de 65 anos, já é a idade mínima hoje no Paraguai, no México, na Argentina e no Chile. Isso evidentemente não significa que o país deva “importá-la”, mas mostra que é equivocado afirmar que as regras propostas só são compatíveis com a de um país rico.

Ainda assim, o processo de envelhecimento populacional do Brasil é tal que a OCDE estima que nas próximas décadas a expectativa de sobrevida de uma idosa brasileira será até ligeiramente superior a de uma americana ou de uma dinamarquesa – países muito mais ricos.

Apesar disso, de fato medidas de “expectativa de sobrevida com saúde” dos brasileiros não acompanham a de nacionais de outros países. É evidente que deixam muito a desejar no Brasil a saúde pública, a mobilidade e a acessibilidade, entre outras políticas públicas voltadas aos idosos.

Uma reflexão que é pertinente, porém, é se não reformar a Previdência é de fato o caminho para melhorar essa situação. Com o crescimento do gasto previdenciário, não estamos condenando, por exemplo, o Sistema Único de Saúde (SUS) a ter menos recursos do que poderia para atender idosos, cujas internações são mais frequentes e duram mais? O caminho para a “expectativa de sobrevida com saúde” não pode ser somente o aumento de gastos com Previdência, às custas da saúde ou do saneamento básico, por exemplo.

Finalmente, é útil apresentar a idade para aposentadoria em outros países, comparando-a com uma versão difundida em mensagens pela Internet.

Figura 2 – Idade mínima falsa e verdadeira para países selecionados

 

Mito: A reforma não resolve o problema e melhor seria mudar para um sistema de contas individuais capitalizadas.

Neste debate, frequentemente defende-se que, em vez de modificar os parâmetros do sistema (idade, tempo de contribuição), melhor seria transformar o regime de repartição em um regime de capitalização. Isto é, mudar de um regime em que os trabalhadores em atividade pagam contribuições que financiam os benefícios dos inativos (aposentadorias, pensões, auxílios) para um sistema em que cada um poupa para seu próprio benefício, depositando a contribuição em contas para serem aplicadas no mercado financeiro.  Tal proposta é considerada inviável pelos significativos custos de transição que implica.

O custo de transição ocorre porque, enquanto as contribuições dos trabalhadores da ativa seriam separadas individualmente e capitalizadas, as despesas com os atuais beneficiários (aposentadorias, pensões, auxílios) deveriam continuar sendo pagas. Caso nenhuma transição fosse empregada, a perda de arrecadação seria da ordem de R$ 350 bilhões em 2016. Com a União em delicada trajetória de endividamento e incapaz deproduzir sequer superavits primários, uma mudança abrupta do regime ameaçaria aprópria solvência do Estado brasileiro.

Adicionalmente, como a Previdência Social é caracterizada pela solidariedade entre grupos, um regime de capitalização necessariamente implicaria perdas e regras mais duras do que as da proposta de reforma da Previdência para grupos que são “subsidiados” no atual sistema. Entre eles, mulheres, servidores públicos, professores, policiais, trabalhadores rurais e aqueles que recebem benefícios vinculados ao salário mínimo. Mantidas as alíquotas de contribuição atuais, todos esses grupos provavelmente receberiam menos em um regime de capitalização do que no regime atual.

A principal proposta para um regime de capitalização presente neste debate é a dos pesquisadores da USP, apoiada recentemente pelo Movimento Brasil Livre (MBL). Eles propõem a criação de um sistema misto, mantendo o regime de repartição para valores menores e instituindo uma camada de capitalização obrigatória para valores maiores. Cabe observar que, apesar da transição proposta pelo modelo, ainda há perda de arrecadação (custo de transição).

O professor Hélio Zylberstajn sugere que a transição seja financiada ou pelos jovens que estariam no novo modelo, pagando uma contribuição dobrada (para o modelo antigo e para o novo) ou pelos atuais beneficiários, que teriam descontos em seus benefícios, como aposentadorias. Fica evidente que não há solução fácil para esta transição, seja ela financiada pela União, pelos novos segurados ou pelos atuais beneficiários.

Por fim, cabe ressaltar que o risco demográfico presente na repartição não está totalmente ausente em um regime de capitalização. Uma boa remuneração das contas pressupõe a transferência de ativos da geração que se aposenta para a geração seguinte, ou seja, esse regime também é afetado pela transição demográfica.

 

Mito: A principal despesa do governo não é a Previdência e sim os juros, e é ela que deveria ser combatida.

Respondendo em 2017 por 57% do total, a Previdência é o principal componente da despesa primária da União.  De maneira simplificada, a despesa primária é a despesa financiada com a arrecadação detributos (impostos, contribuições). Já os juros e a amortização da dívida são despesas financeiras, que têm sido na prática financiadas pela emissão de dívida nova e não de tributos.

Como toda despesa da União precisa ser autorizada pelo Congresso Nacional, as despesas financeiras também constam do orçamento, o que leva algumas fontes a equivocadamente concluir que recursos que poderiam, por exemplo, ser usados na Previdência, estão sendo usados para pagar a dívida pública (ou os juros dela). É esta a visão, por exemplo, do movimento “Auditoria Cidadã da Dívida”. No entanto, isso só poderia ocorrer, parcialmente, nos anos em que o governo consegue fazer superávit primário, o que não ocorre desde 2013 e pode voltar a ocorrer somente em 2021 – mesmo com uma reforma da Previdência. Ainda assim, o objetivo destes superavits é justamente reduzir a dívida.

Uma maneira de entender porque é falacioso o infame gráfico do movimento “Auditoria Cidadã da Dívida” denunciando que quase 50% das despesas é usada para pagar juros da dívida é usar a mesma metodologia para criar um gráfico das receitas da União. Caso misturássemos as receitas primárias e financeiras, como a Auditoria faz com as despesas primárias e financeiras, teríamos que a maior receita da União é justamente a emissão da dívida, com uma percentagem do total maior do que tem a própria despesa com a dívida – exatamente por conta dos déficits primários (emissão de dívida financiando despesas primárias como previdência, saúde, etc).

Existe ainda no debate a visão de que a trajetória ascendente da dívida pública federal deveria ser combatida com a redução das despesas financeiras, e não primárias.A esse respeito, sem adereçar as consequências adversas de uma redução forçada das taxas de juros ou de renegociação (calote parcial) da dívida pública, é preciso ficar claro que a reforma da Previdência afeta duplamente as despesas financeiras com a dívida, tendendo a reduzi-las significativamente nos próximos anos. Não apenas a reforma tende a provocar expressiva melhora no resultado primário (dívida nova), como tende a atenuar as taxas de juros que incidem sobre o estoque de dívida, ao reduzir o risco de insolvência do Estado.

 

Considerações finais

Idealmente, em uma democracia madura, uma reforma significativa como a da Previdência seria discutida em eleições gerais, momento em que a sociedade se mobiliza para discutir o futuro. Como essa não foi a opção de nenhuma das chapas disputando as últimas eleições presidenciais no Brasil, restou ao país ter que discutir a reforma de maneira apressada na beira do precipício. A era das redes sociais, em que a informação corre sem filtro, nem sempre ajuda neste caso, contribuindo para rumores e desinformação. Se a qualidade do debate não melhorar, a reforma da Previdência pode acabar sendo aprovada com pouco convencimento do País, e pronta para ser desfeita nos próximos anos.

1 Proporcionalmente, uma vez que os pagamentos do INSS não são diários. A despesa anual com benefícios do RGPS foi de R$ 515 bilhões. O departamento de operações estruturadas da Odebrecht movimentou em 9 anos R$ 11 bilhões.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2989 15
Aprenda a criar um superávit na Previdência https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2981&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=aprenda-a-criar-um-superavit-na-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2981#comments Thu, 30 Mar 2017 15:54:41 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2981 A Previdência é uma gigantesca máquina de redistribuição de renda – nem sempre para os mais pobres – transferindo recursos entre gerações, regiões, categorias profissionais e gêneros. É, portanto, natural que uma reforma desta máquina de redistribuição gere resistências.

***

É difícil questionar a rápida transição demográfica por qual passa o país. Entretanto, se você precisa se opor de maneira contundente a mudanças na Previdência, tem como opção alegar que não existe necessidade de mudanças porque nela sobra dinheiro, ou dizer que “a Previdência tem superávit”. Este pode ser o seu caso se você representa em uma associação uma carreira de servidores públicos com privilégios ameaçados pelo discurso de reforma, ou se você representa advogados cujos honorários dependem de decisões judiciais contra o INSS.  

Este texto ensina quatro manobras contábeis para criar um superávit na Previdência, subsidiando a retórica de que a Previdência não precisa de reforma.

 

1. Pegue o dinheiro da saúde e incorpore à Previdência, dizendo que “a Seguridade Social precisa ser analisada como um todo”.

Quando se diz que a Previdência não tem déficit porque a Seguridade Social é superavitária, a lógica implícita é que as outras áreas da Seguridade devem financiar a Previdência: são elas a assistência social e, principalmente, a saúde.1 

Evidentemente essa lógica não pode ficar clara.

Por isso, use termos complicados para se referir a este dinheiro, como Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, ou de preferência siglas, como CSLL ou Cofins.

Além de siglas, você pode também usar um argumento pretensamente legalista, dizendo que essa manobra era na verdade o desejo do “constituinte originário”.

Porém, você tem um problema: esta conta também apresenta déficit, de cerca de R$ 250 bilhões. Vá para a manobra (2).

 

2. Pegue o dinheiro da educação e incorpore à Previdência, dizendo que “o governo desvincula receitas da Seguridade”.

Quando se diz que a Desvinculação de Receitas da União (DRU) retira recursos da Previdência, ignora-se que a DRU não incide sobre a receita de contribuições previdenciárias, apenas sobre contribuições sociais.

Mesmo no caso dessas contribuições, é preciso lembrar que a DRU na verdade foi criada como instrumento para evitar que o governo federal dividisse sua arrecadação com Estados e Municípios, o que é uma obrigação no caso de impostos, mas não no caso de contribuições sociais (que por sua vez, só poderiam ser usadas na Seguridade).  Desvinculá-las da Seguridade foi a solução, permitindo o aumento de alíquotas e da base de tributação, mas ampliando a arrecadação somente do governo federal.

Simplificadamente, isso quer dizer que, ainda que a DRU não tenha a importância que teve no passado, encerrá-la retiraria uma flexibilidade que prejudicaria ao longo do ano a execução de políticas e investimentos da União em áreas como educação, ciência & tecnologia, cultura, defesa nacional, energia, meio ambiente, habitação, saneamento, segurança pública, transportes, etc.

Evidentemente essa lógica também não pode ficar clara.

Por isso, omita as consequências de acabar com a DRU. Outra opção, mais desonesta, é dizer que a DRU paga juros da dívida pública, ainda que isso seja não seja verdade.2

Infelizmente, você ainda tem um problema: mesmo que você considere a DRU como uma receita da Seguridade, o déficit teima em existir, e é de cerca de R$ 165 bilhões. Passe para a manobra (3)

 

3. Suma com as aposentadorias e pensões de servidores públicos, dizendo que não fazer isso é inconstitucional.

Agora retire do Orçamento da Seguridade Social o Plano de Seguridade Social do servidor, isto é, as aposentadorias e pensões dos funcionários públicos. Este sistema arrecada bem menos do que gasta, e por isso excluir ele da Seguridade vai afetar pouco a receita, mas vai diminuir bastante a despesa.

Além de provocar um superávit, essa exclusão evita questionamentos sobre vantagens deste sistema que ainda existem em relação ao Regime Geral, como o direito à paridade (o direito de receber do contribuinte um aumento acima da inflação que ele mesmo jamais vai receber) e o direito à integralidade (o direito de receber o maior salário da carreira sem ter contribuído para isso).

Essas vantagens podem ser percebidas como privilégios, afinal trata-se, dentre os grandes grupos de despesa da União, do que mais concentra renda. Portanto, é estratégico que essas despesas não se misturem com as despesas dos mais pobres da Seguridade. Não diga nada sobre como financiar estes benefícios.

Você pode apelar novamente ao “constituinte originário”, alegando que ele não queria que esta despesa fosse considerada da Seguridade porque a Constituição trata de servidores públicos no capítulo “Da Administração Pública” e não no capítulo “Da Seguridade Social”.

A lógica é frágil: a aposentadoria de um auditor fiscal de uma prefeitura que não possua regime próprio é feita pelo INSS e entra na conta da Seguridade, mas a aposentadoria de um auditor fiscal da Receita Federal não entraria. Já o regime de previdência complementar pertence na Constituição ao capítulo “Da Seguridade Social” e, nessa lógica, a aposentadoria de um fundo privado deveria entrar na conta.

Releve: a quem questionar este argumento topográfico, diga que não fazer esta manobra é in-cons-ti-tu-ci-o-nal.

Seu problema foi resolvido: foi criado o superávit. Pode preparar um vídeo para espalhar no Whatsapp.

Entretanto, há um pequeno complicador. As três manobras resultam em superávit apenas até 2015. Mesmo com os procedimentos aqui elencados, o teimoso déficit surge em 2016. Vá para o passo (4).

 

4. Esconda o resultado desta conta para 2016 e para os próximos anos.

Não importa que estejamos em 2017 e que a reforma da Previdência trate do futuro do país, especialmente das próximas décadas, e não do passado. É somente com dados desatualizados que você pode dizer que existe superávit.

***

Ironias à parte, o debate sobre financiamento da Seguridade Social poderia ser pertinente e saudável. O déficit é um indicador sujeito a reflexões, como é o PIB de um país (que diz pouco sobre sua qualidade de vida), o peso de uma pessoa (que diz pouco sobre as condições de suas artérias) e o número de gols em uma partida de futebol (que não revela necessariamente quem jogou melhor).

O déficit financeiro da Previdência diz pouco sobre seu equilíbrio ou desequilíbrio atuarial. Em especial, o déficit financeiro, isoladamente, é alheio ao debate sobre qual deve ser a participação do Estado de um país tão desigual em financiar grupos que são subsidiados na Previdência (como vem sendo discutido neste blog).

Todavia, infelizmente esta bem-vinda discussão deu lugar a uma rudimentar teoria da conspiração de que sucessivos governos enganam a sociedade e desviam recursos da Previdência, negando a necessidade de mudanças em uma questão estratégica para o país. Esta retórica alimenta a desinformação no debate nacional, a indignação das famílias brasileiras e provocou recentemente até mesmo uma antológica decisão judicial censurando os dados previdenciários do país3.

Os motivos das entidades que difundem esta tese permanecem pouco claros. O incômodo silêncio sobre o resultado de sua metodologia para 2016, negativo em R$ 39 bilhões pela estimativa da Instituição Fiscal Independente ou R$ 46 bilhões pela estimativa do governo, sugere que o objetivo desses grupos de interesse pode não ser exatamente o de contribuir para a discussão.  O argumento de que a Previdência não tem déficit, cujo corolário é de que a Previdência tem superávit, é sustentado por premissas questionáveis que não são expostas de maneira transparente à sociedade (ou que não aparecem nos vídeos do Whatsapp). Com um pouco de bom humor, foram essas premissas que buscamos discutir neste texto.

_______________

1 Cuja essência não são despesas de caráter continuado, como benefícios previdenciários e assistenciais.
2 Este discurso é remanescente da época em que a União produzia superávits primários, isto é, usava a arrecadação de tributos para pagar a dívida pública. O último ano em que isso aconteceu foi 2013 [supondo que o superávit primário oficial não foi maquiado), podendo acontecer de novo ao redor de 2020 – especialmente caso uma reforma da Previdência seja aprovada.
3 http://portal.trf1.jus.br/sjdf/comunicacao-social/imprensa/noticias/justica-federal-defere-em-parte-liminar-da-fenajufe-para-que-a-uniao-comprove-dados-sobre-deficit-na-previdencia-social.htm.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2981 20
O que te contaram errado sobre a reforma da Previdência https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2964&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-te-contaram-errado-sobre-a-reforma-da-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2964#comments Mon, 06 Mar 2017 18:09:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2964 A reforma da Previdência atinge quase todas as famílias brasileiras, direta ou indiretamente. Seus benefícios são invisíveis, mas as perdas que ela gera são bem palpáveis, sendo natural que provoque rejeição. Entretanto, existe muita contrainformação na rede e, infelizmente, até em grandes jornais. Apresentamos as principais controvérsias brevemente neste texto.

Mito: O brasileiro vai trabalhar até morrer, já que em Estados pobres a expectativa de vida é somente de 66 anos.

É um grave equívoco usar neste debate a expectativa de vida ao nascer. Este indicador é, grosso modo, a idade média com que as pessoas falecem no Brasil. Ele é muito influenciado, para baixo, pela mortalidade infantil e pela morte de jovens por causas externas, como no trânsito e em homicídios. É por isso que em Estados pobres a expectativa de vida ao nascer é tão baixa.

Para a Previdência, o que importa é a expectativa de vida não no nascimento, mas na idade da aposentadoria. Este indicador também é muitas vezes no debate chamado de “expectativa de sobrevida”.  Aos 65 anos, a expectativa de sobrevida do brasileiro é, hoje, de mais 18 anos, totalizando 83 anos e meio. A boa notícia: esta expectativa vem aumentando e varia pouco pelo país (é de cerca de 84 anos no Sul, 82 e meio no Nordeste). Se de fato os aposentados morressem em média com 66 anos, seria um absurdo a reforma da Previdência.

Mito: Uma idade mínima prejudica o trabalhador mais pobre, porque ele começou a trabalhar cedo e teria que esperar anos para se aposentar.

É muito justa a preocupação com o trabalhador pobre. No entanto, precisa ficar claro que ele já se aposenta com uma idade mínima. O Brasil é imensamente desigual, como é desigual o acesso à aposentadoria. Existe uma aposentadoria mais voltada para a classe média e alta, onde não existe idade mínima, e outras voltadas para o trabalhador pobre, com idade mínima.

A reforma da Previdência cria uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição, aquele benefício que o homem recebe com 35 anos de contribuição, e a mulher com 30. Este benefício quase não é pago aos pobres, justamente porque conseguir décadas de emprego com carteira assinada é muito difícil para eles. Por isso, a aposentadoria por tempo de contribuição é a aposentadoria dos mais escolarizados e das regiões mais ricas do Brasil. Homens são seus principais beneficiários.

O trabalhador pobre, penalizado pelo desemprego e pela informalidade, pode até trabalhar 35 anos, mas geralmente sem carteira assinada por todo o período. Ele recorre a outros benefícios em que já existe idade mínima, mas que exigem menor tempo de contribuição (15 anos). É o caso da aposentadoria por idade urbana (65 anos para homens, 60 para mulheres) e rural (60 para homem, 55 para mulheres). Muitos trabalhadores se “aposentam” também pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC), um benefício assistencial, que acaba sendo usado para quem não conseguiu 15 anos de contribuição, e só é pago aos 65 anos (homem ou mulher). Mulheres são as principais beneficiárias.

Por isso, a preocupação com acesso à aposentadoria do trabalhador pobre não é com a idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição, que afeta apenas os mais bem remunerados, seja da iniciativa privada ou do serviço público. A preocupação deve ser com a elevação do tempo mínimo de contribuição, de 15 para 25 anos (com transição), e com a elevação da idade mínima do BPC, de 65 para 70 anos (com uma transição acelerada).

Mito:O trabalhador precisará de 49 anos de contribuição para se aposentar com salário integral.

À primeira vista, a frase acima parece verdadeira, tanto que foi amplamente noticiada pelos jornais.  De fato, com a reforma, o cálculo dos benefícios seria de 51% da média, mais 1% por ano de contribuição, totalizando 49 anos para chegar em 100%. Por que então isso é um mito?

O Brasil é pobre. Apesar de nosso desenho previdenciário ser profundamente desequilibrado, 2/3 dos benefícios são de um salário mínimo.  Ocorre que o salário mínimo passou por uma expressiva valorização real, acima da inflação, desde os anos 90, e especialmente nos governos do PT. Ocorre também que no Brasil, ao contrário de outros países, o salário mínimo também é a “aposentadoria mínima”, independentemente do valor contribuído. A reforma não alterou isso (vinculação ao salário mínimo).

Com esta vinculação, boa parte dos trabalhadores receberá a sua média integral, 100%, apenas com o tempo mínimo de contribuição ou, muitas vezes, muito mais do que os próprios 100%. Como o salário mínimo cresceu acima da inflação, o passado do salário de contribuição deste trabalhador está abaixo do salário mínimo atual. Um trabalhador que tenha recebido apenas o salário mínimo desde 1995,teria em 2017 uma média salarial atualizada pela inflação de R$ 666, bem abaixo da “aposentadoria mínima” de R$ 936 – o atual valor do salário mínimo.

E o restante dos trabalhadores, que ganha acima de 1 salário mínimo? Trabalharão 49 anos para ter o benefício integral? Também não. O que passou despercebido por parte da opinião pública é que a proposta do governo mantém o cálculo da média salarial que existe hoje, que não é exatamente uma média. Neste cálculo, são excluídos os 20% piores salários da vida do trabalhador. Por isso, uma aposentadoria com 100% de sua média salarial pode ser obtida muito antes de 49 anos de contribuição (por exemplo, com 30 anos de contribuição). O tempo exato depende da trajetória dos salários deste trabalhador.

Só realmente teriam que trabalhar 49 anos para conseguir 100% do salário médio aqueles que ganhavam mais que o salário mínimo e receberam sempre mais ou menos o mesmo salário ao longo de toda vida, sem promoções, aumentos ou mudanças para empregos que paguem melhor. Nestes casos, não faz diferença para o cálculo excluir os 20% piores salários (justamente porque eles são parecidos com os 80% restantes).

Assim, caso o Congresso opte por manter a fórmula de cálculo proposta pelo governo, pouquíssimos trabalhadores teriam que trabalhar tanto para conseguir uma aposentadoria integral. Na verdade, ainda que o trabalhador se aposente aos 65 anos com cerca de 90% de seu rendimento médio, a proporção entre o valor da aposentadoria/salário médio (taxa de reposição) será compatível com a de outros países, ricos ou emergentes.​

Mito: A Previdência só tem déficit quando olhada separadamente, porque o conjunto da Seguridade é superavitário.

O dado apresentado inicialmente pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da  Receita Federal do Brasil (Anfip) e difundido por diversas fontes, mostrando que a Seguridade Social é superavitária, só se mantém diante de premissas bastante questionáveis, que não são expostas de maneira transparente em seu discurso.

O orçamento da Seguridade Social, que inclui além da Previdência, Saúde e Assistência Social, é deficitário em cerca de R$ 255 bilhões. Para chegar ao “superávit da Anfip”, é necessário incorporar como receita a Desvinculações de Receitas da União (DRU), um mecanismo criado para que a União não compartilhasse com Estados e Municípios um dinheiro que financia outras despesas do governo federal (mas não a dívida). Entretanto, ainda que consideremos estes recursos como sendo de fato da Seguridade, a conta ainda é deficitária em cerca de R$ 165 bilhões.

Se até com a DRU a conta da Seguridade é deficitária, como a Anfip chega em um superávit? O pulo do gato é, ao trazer para a conta as receitas e despesas da Seguridade Social, excluir o Plano de Seguridade Social do Servidor, ou seja, as aposentadorias e pensões do funcionalismo. Como este regime é extremamente deficitário, retirar suas receitas não afeta muito o lado da arrecadação, mas retirar suas despesas afeta muito o lado da despesa. Passa a haver então, para o ano de 2015, um pequeno superávit, de R$ 10 bilhões.

Ou seja, mesmo com a DRU, a Seguridade é deficitária e só passa a ter superávit se os servidores públicos forem retirados da conta. É essencial compreender que o problema da Previdência é principalmente devido pelo profundo e veloz processo de envelhecimento da população, ou seja, pelo crescimento da despesa, e não por problemas de lançamento contábil.

Por conta deste crescimento da despesa, e da queda conjuntural da arrecadação decorrente dos efeitos da recessão sobre o mercado de trabalho, até a conta da Anfip passa a ser deficitária em 2016. Não por acaso, este dado atualizado não tem sido apresentado no debate.

Em resumo, mesmo adotando todas as heterodoxas interpretações das corporações do funcionalismo, a Seguridade Social é deficitária até incorporando a DRU como receita. Ela só é superavitária quando se exclui as aposentadorias e pensões dos próprios servidores. Mesmo assim, a partir de 2016, até com esse truque a Seguridade é deficitária.

Considerações finais

Infelizmente, em um debate tão importante para o país, com importantes consequências sobre os objetivos nacionais de crescimento econômico e combate às desigualdades, muitas fontes têm mais desinformado do que informado. Seja por interesses que não são compartilhados pelo conjunto da sociedade (como os de corporações do funcionalismo ou das bancas advocatícias interessadas na indústria do litígio), seja por descuido, os mitos têm predominado na opinião pública. É da boa informação que a democracia precisa.

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2964 36
Por que a saúde e a previdência vão piorar, mas a educação e a segurança vão melhorar? Ou: o que é a transição demográfica? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2938&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-a-saude-e-a-previdencia-vao-piorar-mas-a-educacao-e-a-seguranca-vao-melhorar-ou-o-que-e-a-transicao-demografica https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2938#comments Thu, 22 Dec 2016 14:55:36 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2938 Demografia e Previdência

A proposta do governo de reforma da Previdência é justificada pela transição demográfica (envelhecimento da população). Pode se entender o envelhecimento da população como o aumento da idade média dos brasileiros. Contrariamente ao que é frequentemente vinculado, esse aumento da idade média não se deve apenas ao aumento da expectativa de sobrevida, mas também à redução das taxas de natalidade da população.

A taxa de fertilidade por mulher no Brasil, em queda, já seria a menor da América do Sul1, e, desde 2005, o número de nascidos é insuficiente para repor a população. A queda na taxa de fertilidade (ou de natalidade) é atribuída na literatura internacional, entre outros fatores,ao aumento da escolaridade, à dissociação da sexualidade da reprodução e ao consumismo2. Especificamente para o Brasil, pesquisadores do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) chamam atenção para a redução de natalidade nas décadas de 70 a 90, o que estaria relacionada à ampliação da transmissão de novelas no país3.

A Previdência opera, no Brasil e em boa parte do mundo, pelo regime de repartição, em que as contribuições dos trabalhadores no mercado de trabalho formal financiam os benefícios dos trabalhadores inativos (aposentadorias, pensões, auxílios).  Assim, temos que, em uma ponta, menos pessoas estão nascendo para financiar os benefícios quando estiverem no mercado de trabalho, e, na outra ponta, os aposentados estão vivendo mais e recebendo os benefícios por mais tempo. Nos próximos 25 anos, o país terminará uma transição demográfica que países desenvolvidos fizeram em mais de 100 anos, de acordo com Tafner, Botelho e Erbisti (2014)4.

Neste sentido, por exemplo, o advento da idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição, proposto na reforma, faria com que no futuro os trabalhadores permanecessem mais tempo contribuindo, por um lado, e menos tempo recebendo os benefícios, por outro. O Gráfico 1 ilustra a situação atual  paraesse tipo de aposentadoria. Ela tem sido paga com aidade média de 54 anos (55 no caso dos homens, 52 no das mulheres). De acordo com a Tábua de Mortalidade do IBGE (2013), um homem nessa idade teria uma expectativa de sobrevida de mais 24 anos, vivendo em média até os 79 anos. Uma mulher, na idade média de 52 anos, tem umaexpectativa de sobrevida próxima de 30 anos, chegando em média ao redor dos 82 anos5. Segundo Tafner, Botelho e Erbisti (2015), entre 1980 e 2010, enquanto a expectativa de vida ao nascer cresceu 19% para homens e 18% para mulheres, a expectativa de sobrevida aos 60 anos cresceu muito mais: 42% para homens e 31% para mulheres6.

Tal informação ilustraria o desequilíbrio do benefício.A beneficiária desse tipo de aposentadoria teria como tempo de contribuição 30 anos e como tempo de usufruto esperado do benefício os mesmos 30 anos. Entretanto, a alíquota de contribuição do seu salário é de no máximo 11%, ou 31% quando se considera também a contribuição do empregador7. Fica evidente a dificuldade da Previdência de pagar o benefício sem a aplicação do fator previdenciário ou fórmula de cálculo semelhante.

A reforma da Previdência fará as pessoas “trabalharem até morrer”?

É importante observar nesta discussão que a variável relevante é a expectativa de sobrevida, e não a expectativa de vida ao nascer.  A expectativa de vida ao nascer, que também tem aumentado, reflete, por exemplo, as taxas de mortalidade infantil e mortes por causas externas em jovens (acidentes de trânsito, homicídio). É por isso que, neste exercício, em que usamos a expectativa de sobrevida condicional à idade de 55 anos (homem) e 52 anos (mulher), a expectativa de vida do homem chega aos 79 anos e da mulher aos 82 anos, acima da expectativa de vida ao nascer no país (72 para eles, 79 para elas). A expectativa de vida ao nascer é o equivalente à expectativa de sobrevida condicional àidade zero.

A incompreensão em relação à diferença entre expectativa de vida ao nascer e a expectativa de sobrevida gera um dos argumentos mais populares contra a reforma: o de que com uma idade mínima (ou aumento de outros parâmetros), as pessoas “trabalhariam até morrer” em algumas regiões do país. Um exemplo que foi muito disseminadonas redes sociais consta da Figura 1 abaixo.

De modo geral, a expectativa de vida ao nascer está relacionada com a idade média com que as pessoas falecem.  Ela é especialmente afetada pela mortalidade infantil, mais grave nas regiões mais pobres do país. Desta forma, de modo incoerente no argumento de “trabalhar até morrer”, a mortalidade infantil acaba sendo usada para justificar transferências de renda justamente para grupos de faixas etárias mais avançadas.

De maneira ilustrativa, o Secretário de Previdência do Ministério da Fazenda, Marcelo Abi-Ramia Caetano, aponta que os municípios que possuem as mais baixas expectativas de vida ao nascer no Brasil possuem inclusive uma proporção de idosos acima de 65 anos maior do que a média nacional, como Juripiranga (PB, com expectativa de vida ao nascer de 65 anos e meio) e Jurema (PE, expectativa de vida ao nascer de 65 anos e 10 meses)8.

A expectativa de sobrevida em idades mais altas não é perfeitamente correlacionada com a renda dos países. Parte da falência da previdência na Grécia se explica pela alta expectativa de vida dos idosos: uma das maiores da União Europeia, apesar do país ser um dos mais pobres do grupo. No mesmo sentido, a OCDE estima que nas próximas décadas a sobrevida das brasileiras será maior do que a das americanas ou dinamarquesas, que moram em países muito mais ricos9.

Com a transição demográfica, à medida que as pessoas vivem mais, o tempo esperado de usufruto aumenta para diversos benefícios previdenciários, como as aposentadorias e pensões. No entanto, isso ocorre sem contrapartida, já que há menos trabalhadores no mercado de trabalho, colocando uma pressão ainda maior nas contas previdenciárias. O exercício a seguir ajuda a visualizar este problema.

Como a configuração da população irá mudar daqui para frente?

De acordo com os dados e projeções de Camarano (2014)10, o Brasil teria cerca de 199 milhões de habitantes em 2015, dos quais 22% teriam entre 0 e 14 anos e 12% teriam 60 anos ou mais.  O restante, ou seja, a população entre 15 e 59 anos, somaria 66%.  A Figura 2 retrata essa proporção: em laranja estão as crianças; em azul, os idosos; e em branco, o restante da população.

Já a Figura 3 traz esta mesma proporção com as projeções para 2050. Seremos um país de 206 milhões de habitantes, mas a proporção de crianças teria caído de 22 para 9%, a proporção de idosos quase triplicará de 12 para 33% e o da população “em idade ativa”, cairia de 66 para 58%.

As Figuras 4 e 5, a seguir, são mais pertinentes para ilustrar o conceito de razão de dependência. Nas figuras anteriores, com o intuito de facilitar a visualização da mudança na distribuição etária, a população foi mantida fixa. Porém, na verdade, a partir de meados de década de 2030, ela começará a encolher11. Em 2050, o país não deverá mais ter uma das cinco maiores populações do mundo, sendo ultrapassado por Nigéria e Paquistão, e, ao fim do século, por outros seis países africanos12. As figuras abaixo ilustram, portanto, a transição demográfica também em termos absolutos, e não apenas relativos.

Nas Figuras 4 e 5, os dois grupos dependentes aparecem em azul (crianças e idosos), com o grupo em idade ativa aparecendo em cor branca. Simplificadamente, a razão de dependência relaciona a população em idade ativa com a população dependente: esta é sustentada por aquela. Seu inverso mostra a quantidade de pessoas em idade ativa capaz de financiar os economicamente dependentes. Considerando tanto crianças (0-14 anos) quanto idosos (60+), partiremos de 1,93 ativos para cada dependente em 2015 para apenas 1,37 em 2050, uma queda de quase 30%.Essa informação é relevante para o debate, já que por vezes é apontado que o crescimento da despesa previdenciária poderia ser compensado com a redução de gastos em educação: não só esse gasto per capita é muito inferior àquele, como a dependência total irá se elevar.

Boa parte desses dependentes serão idosos, conforme a Figura 5. O inverso da razão de dependência de idosos passará neste período de 5,36 para 1,75 (três vezes menos).A comparação entre as figuras que retratam a situação de 2015 evidenciam a transição demográfica que daria ensejo à reforma da Previdência. Seriam essas as tendências da população do país a partir de hoje, em que, conforme o Gráfico 1, mulheres beneficiárias da aposentadoria por tempo de contribuição têm praticamente tempo de contribuição e de usufruto do benefício iguais.

Em 2017, mesmo com a atual configuração populacional mais favorável, as despesas previdenciárias já serão responsáveis por 55% de todas as despesas primárias do governo federal. No Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2017, estima-se que a despesa apenas com o RGPS será equivalente a 8% do PIB em 2016, atingindo mais que o dobro desse valor em 2050, conforme o Gráfico 2, abaixo.

Cumpre observar que o ano de 2050 é usado como referência a título de ilustração, já que esta transição se fará sentir não apenas daqui a três décadas, mas a cada ano. Neste período, segundo Tafner (2015), o número de brasileiros recebendo benefícios afetados pela transição demográfica no INSS (aposentadoria por tempo de contribuição, aposentadoria por idade, pensão por morte e BPC-Idoso) passará de 29 milhões de pessoas em 2015 para 85 milhões em 2050. Teremos, em média, 1 milhão e 600 mil novos benefícios sendo pagos a cada ano13.

Economia

A questão da Previdência é emblemática sobre os efeitos de transição demográfica, mas o envelhecimento da população se fará sentir de diversas maneiras. A redução da razão de dependência está associada ao fim do “bônus demográfico”, período em que um país possui uma demografia mais favorável ao crescimento econômico: a força de trabalho (população economicamente ativa) é relativamente maior, o que em tese proporciona ganhos via mercado de trabalho e via incremento da poupança (que tende a se reduzir à medida que as pessoas alcançam a velhice).

Samuel Pessoa descreve, assim, haver dois “tipos” de bônus demográfico. O primeiro, relacionado ao mercado de trabalho, se encerraria em 2023. O segundo, ligado à poupança, “não ocorreu, pelo contrário ela [a poupança] reduziu-se, em função da queda da poupança pública14.

De fato, o termo “bônus demográfico” passa erroneamente a impressão de que há uma relação determinística entre a demografia mais favorável e o crescimento da economia: por isso, muitos especialistas preferem os termos “dividendo demográfico” ou “janela de oportunidades”. No caso do Brasil, é provável que o país envelheça antes de ficar rico.

Adicionalmente, Camarano (2014) descreve a literatura que trata de crescimento econômico e redução da população como um todo. O encolhimento da população desestimularia o investimento e a inovação tecnológica15.

Considerações finais: outros efeitos sobre as finanças públicas

A pressão do envelhecimento populacional sobre as contas do Estado está associadanão só à Previdência, mas também à saúde pública. Para Armínio Fraga, há uma “inexorável trajetória crescente dos gastos com a saúde16Já o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) projeta para as próximas décadas aumentos significativos da incidência na população de diabetes (50%), hipertensão (64%), artrite (66%), doença do coração (75%) e insuficiência renal (100%).

Camarano chama a atenção também para o fato de que a saúde dos idosos seria mais sensível às mudanças climáticas: o agravamento do processo de aquecimento global deve coincidir com o de envelhecimento populacional no Brasil.

Por outro lado, a redução no número de jovens permitiria um aumento mais confortável do gasto por aluno no país, com prováveis ganhos na qualidade da educação. A má notícia é que há pouco tempo para melhorar a educação do país, uma vez que melhorias somente no futuro serão absorvidas por uma parcela pequena da população.

A queda nas taxas de natalidade também tende a atenuar os problemas do país com a violência urbana, uma vez que a maioria dos crimes violentos são cometidos por homens jovens. A literatura dá especial atenção aos jovens nascidos em famílias pobres, relação que foi muito discutida pela opinião pública a partir do polêmico trabalho de Steven Levitt, o autor de Freakonomics1718. Cerqueira e Moura (2014) projetam expressiva redução na taxa de homicídios no país nos próximos anos, mantidos outros fatores constantes, vide Gráfico 319.

Assim, fica claro que o país passa por uma mudança profunda e veloz, que vai lhe afetar em várias áreas, mas que até agora parece ser invisível20 para a sociedade. A reforma da Previdência traz a demografia para o centro do debate nacional, muito embora o problema previdenciário seja apenas uma de suas facetas.

Várias referências deste texto são do livro “Novo Regime Demográfico: Uma nova relação entre população e desenvolvimento?”, organizado por Ana Amélia Camarano, do Ipea, que constitui um impressionante esforço de analisar o impacto da  transição demográfica sobre vários aspectos da vida nacional, e está disponível gratuitamente em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=23975.

 

(Este texto é baseado no Texto para Discussão nº 219 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado, disponível no seguinte link:http://www.senado.gov.br/estudos)

 

_________________

1CIA World Factbook 2016

2 Ver Camarano e Fernandes (2014). CAMARANO, A. A. FERNANDES, D. Mudanças nos Arranjos Familiares e Seu Impacto nas Condições de Vida: 1980 a 2010. CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.

3As novelas afetariam o comportamento das famílias, como a escolha pela quantidade de filhos e até seus nomes. Ver: La Ferrara et al. (2008). LA FERRARA, E.; CHONG, A.; DURYEA, S. Soap Operas and Fertility: Evidence from Brazil. Working Paper #633. Inter-AmericanDevelopment Bank. Junho de 2008.

4 TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. Transição Demográfica e o Impacto Fiscal na Previdência Brasileira. CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.

5 23,6 no caso do homem e 30,2 no caso da mulher.

6TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. Debates sobre Previdência: As Convergências. In: TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. (Org.). Reforma da Previdência: A Visita da Velha Senhora. Brasília: Gestão Pública, 2015.

7 Não se pode descartar ainda que o tempo de usufruto esperado da aposentadoria por tempo de contribuição, por exemplo, seja ainda maior do que a que colocamos no Gráfico 6: neste exercício foram usadas as expectativas de sobrevida calculadas pelo IBGE para todo o conjunto da população. No entanto, o subconjunto da população que se aposenta por tempo de contribuição, por ter renda superior à média, possivelmente goza de diversas condições que aumentam em alguma medida a expectativa de sobrevida deste grupo.

8 Ver: http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-11/expectativa-de-vida-ao-nascer-nao-e-dado-adequado-para-discutir-previdencia.

9Pensions at Glance – 2013: OECD and G20 indicators. Disponível em: http://www.oecd.org/els/public-pensions/

10  CAMARANO, A, A. Perspectivas de Crescimento da População Brasileira e Algumas Implicações. In: CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.

11 Com exceção principal do continente africano, a transição demográfica é considerada fenômeno mundial. Anedoticamente, mesmo a China em 2015 anunciou o fim de sua “política” do filho único.

12 Congo, Tanzânia, Etiópia, Níger, Uganda e Egito. Projeções da Divisão de População da Organização das Nações Unidas (ONU). Disponível em: http://esa.un.org/unpd/wpp/.

13Note que estamos falando de novos benefícios “líquidos”, uma vez que parte dos novos benefícios “brutos” é compensada pela extinção de outros benefícios (como dos aposentados que falecerem no período).

14https://www.insper.edu.br/conhecimento/wp-content/uploads/2015/05/B%C3%95NUS_DEMOFR%C3%81FICO.pdf.

15CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.

16FRAGA, A. Prefácio. Convergências. In: TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. (Org.). Reforma da Previdência: A Visita da Velha Senhora. Brasília: Gestão Pública, 2015

17Donohue and Levitt, “the Impact of Legalised Abortion on Crime” Quarterly Journal of Economics, May 2001.

18http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2510200701.htm.

19CERQUEIRA, D.; MOURA, R. L. Demografia e Homicídios no Brasil. In: CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.

20 Este termo batiza um dos melhores livros sobre a questão previdenciária: Demografia – A Ameaça Invisível, de Fabio Giambiagi e Paulo Tafner.

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2938 4
Por que fazer reforma da Previdência no meio de uma recessão? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2927&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-fazer-reforma-da-previdencia-no-meio-de-uma-recessao https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2927#comments Thu, 15 Dec 2016 15:15:45 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2927 Introdução: a reforma da Previdência

Em 2017, quando o pior momento da crise econômica for sentido no mercado de trabalho, o Brasil estará discutindo uma reforma da Previdência.  A reforma  compreende uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC no 287, de 2016) e projetos de lei (ainda a serem enviados pelo governo), alterando, entre outros, regras de acesso a benefícios, forma de cálculo e financiamento dos regimes previdenciários.

A opção do governo foi por uma proposta de reforma paramétrica, e não estrutural, mantendo as características essenciais dos regimes. Os regimes continuam sendo de repartição, em que os benefícios dos trabalhadores inativos são financiados pelos trabalhadores em atividade no mercado de trabalho. A mudança se dá nos parâmetros do regime, e não em sua estrutura, como seria uma mudança para um regime de capitalização (em que o benefício de cada trabalhador é custeado pelas suas próprias contribuições no passado, capitalizadas), típico da previdência privada no Brasil e da previdência pública em outros países emergentes1, e tipicamente considerado uma opção “neoliberal”.

Segundo o orçamento anual de 2017, as despesas com Previdência em todos os regimes, mais o Benefício de Prestação Continuada (BPC-Loas), corresponderão a cerca de 55% do total da despesa primária. Comparativamente, a participação das despesas com os servidores ativos será de 13%, saúde 7%, educação 3%, PAC 3% e Bolsa Família 2%. A soma das demais despesas corresponde a 17%. Esses dados são apresentados no Gráfico 1, a seguir, e evidenciam que a Previdência não é só uma questão relevante no futuro, mas também no presente, como a crise dos Estados também mostra.

Previdência e economia

A crise econômica, com a queda de arrecadação e a instauração de sucessivos déficits primários, trouxe à tona o crescimento estrutural da despesa previdenciária e abriu uma janela de oportunidade para a discussão sobre a necessidade de reforma. Reformas anteriores foram feitas em 1998 e 2003. Em 2016 também o governo Dilma Rousseff anunciara a intenção de fazer uma reforma, tendo a Presidente afirmado que a Previdência era no momento “a questão mais importante para o país2.

Por um lado, as despesas previdenciárias têm evidentes efeitos em curto prazo sobre a demanda. O efeito multiplicador sobre o PIB de cada real despendido pelo RGPS seria de cerca de 0,5 (equivalente ao do RPPS). Para o Benefício de Prestação Continuada (BPC-Loas), o efeito seria de 1,23.

Por outro lado, a ênfase do governo em priorizar a reforma da Previdência durante a recessão é consoante com o diagnóstico de especialistas de que o crescimento da despesa previdenciária coloca e colocará mais restrições ao crescimento da economia no futuro.

Segundo essa visão, a Previdência estaria associada a um tripé de baixo crescimento4: carga tributária elevada, investimento público baixo e juros altos. Diante da tendência de aumento do gasto, esses efeitos só ficariam mais fortes no futuro.

Carga tributária

Na ausência de mudanças, a carga tributária seria cada vez mais pressionada. Em 2015, ainda no governo Dilma Rousseff, o Ministro da Fazenda Joaquim Levy propôs a recriação da CPMF, desta vez não para custear a saúde, mas a  Previdência. Enquanto isso, especialistas calculavam que na ausência de mudança de regras, já seria necessária a criação de uma nova CPMF por ano para financiar as despesas da Previdência5.

Outro exercício, apresentado em reportagem da revista The Economist, apontava que sem reformas as contribuições de empregados e empregadores sobre a folha de pagamento deveriam subir dos atuais 31% (na soma de empregador e empregado) para 86% em 2050 a fim de cobrir os benefícios6. Tal majoração da carga sobre a folha seria inviável, porque alíquotas tão altas erodiriam a base de tributação (o nível de emprego) muito antes que se pudesse chegar a esse patamar.

Aceitando a noção de que o sistema tributário brasileiro é ineficiente, mais impostos sobre ele apenas acentuariam seu efeito deletério sobre a economia7. Diante da urgência de arrecadação para cobrir o crescimento da despesa previdenciária e de dificuldades políticas, o provável é que as escolhas seriam no futuro elevar (ou criar) tributos com maior potencial arrecadatório, e não aqueles com efeitos distorcivos menores sobre a economia ou efeitos regressivos menores na distribuição de renda.

Investimento público

O segundo item deste “tripé” é o investimento público. Considera-se que é o investimento que aumenta a capacidade produtiva da economia no futuro. No entanto, investimentos, como os em infraestrutura ou ciência e tecnologia, por mais necessários que sejam para o país se desenvolver, constituem despesas “discricionárias”. Esse tipo de despesa se contrapõe à despesa obrigatória, que não pode ser reduzida e integra cerca de 92% do orçamento federal.

São exemplos de despesas obrigatórias a Previdência e os salários do funcionalismo. Diante do crescimento das despesas previdenciárias, o governo tem três opções principais8: elevar os impostos, aumentar o endividamento (que pressiona os juros, o que será visto a seguir) e reduzir outras despesas. Para acomodar o crescimento dos gastos com Previdência, seriam as despesas discricionárias as com maior chance de ser comprimidas, o que atinge o investimento público. Esta questão afeta diretamente não só o governo federal, mas também os subnacionais.

Ilustrativamente, em 2015 – ano de ajuste fiscal – enquanto a rubrica “outras despesas de capital”, que reflete o investimento público federal, teve redução de mais 30%, as despesas da Previdência (urbana e real) cresceram mais de 1% acima da inflação.

Juros reais

Finalmente, de modo simplificado, os juros reais estão associados à percepção de risco em relação à capacidade do governo de honrar seus compromissos9. A chance de insolvência no futuro, por conta de uma despesa estruturalmente crescente, pressionaria os juros para cima. Por sua vez, os juros reais altos sufocariam os empreendimentos que o país precisa para crescer.

A Figura 1 a seguir, sintetiza a lógica entre despesa previdenciária e seus efeitos no crescimento da economia, bem como na distribuição de renda.

Confiança

Ainda, segundo o diagnóstico do governo sobre a necessidade de ajuste fiscal, a reforma contribuiria para ganhos de confiança que induziriam a recuperação da economia. No mesmo sentido, o ex-Ministro da Fazenda Nelson Barbosa, em declaração ao Fórum criado no governo Dilma Rousseff para discutir a reforma, entendia como benefício imediato da reforma a melhora das expectativas fiscais, que “reduz a volatilidade cambial, possibilita a queda das taxas de juros de longo prazo e incentiva o investimento e a geração de emprego10.

Poupança e produtividade

Por fim, outros efeitos no crescimento da economia relacionados ao desenho da Previdência (e não exatamente à despesa previdenciária) discutidos pela literatura incluem a redução da poupança doméstica11 e a retirada precoce de trabalhadores produtivos da força de trabalho12. Adicionalmente, o envelhecimento da população está associado a um menor nível de inovação e de crescimento da produtividade13.

 

Previdência e teto de gastos

A Emenda Constitucional do teto de gastos (antiga PEC no 55, de 201614) congela a despesa total do governo federal em termos reais por 10 anos (Novo Regime Fiscal). O teto será anualmente reajustado pela inflação (passados 10 anos outro indexador será escolhido). Podemos dizer que a reforma da Previdência é irmã gêmea da reforma fiscal.

Isso porque a despesa previdenciária cresce aceleradamente em termos reais. Para as despesas federais caberem no teto, outras despesas deverão ser reduzidas na mesma magnitude. Se cumprir o teto, o governo não poderá mais recorrer ao aumento do endividamento ou da arrecadação para cobrir suas despesas primárias15.

Assim, com o teto, o crescimento da despesa previdenciária obrigaria o governo a cortes profundos em diversas outras áreas, o que tornaria a reforma da Previdência mais urgente. Nas palavras do relator da PEC do teto na Câmara, Deputado Darcísio Perondi, o novo regime fiscal “não sobrevive sem a reforma da Previdência (…) É uma dependência biológica entre os pulmões e o coração, um não vive sem o outro.”16

O Gráfico 3, abaixo, apresenta um exercício do impacto, com a vigência do teto, do crescimento da despesa da Previdência nas outras despesas do governo federal. Consideramos 2017 o primeiro ano da aplicação integral do teto17. Sem mudanças, a participação dos gastos previdenciários no gasto total da União passaria gradualmente de cerca de 55% em 2017 (um valor já alto) para cerca de 75% em 2026.

Isso quer dizer que, com o teto e sem reforma da Previdência, todas as despesas primárias do governo federal (excluída a Previdência), que em 2017 deveriam caber em 45% do orçamento, deverão caber em apenas 25% em 2026 – quase a metade. O corte em várias áreas deverá ser ainda maior, uma vez que outras despesas com elevada participação no gasto da União também não podem ser reduzidas, como a com o funcionalismo18. Este resultado coaduna com a visão de Paulo Tafner, um dos principais especialistas em Previdência do país, para quem o problema fiscal existente no Brasil é na essência um problema previdenciário.

Em verdade, mesmo com a reforma da Previdência o resultado pode ser próximo ao apresentado no Gráfico já que, para respeitar o planejamento das famílias de acordo com as regras vigentes, bem como para atenuar a oposição às alterações, a reforma da Previdência possui regras de transição para que as mudanças sejam graduais no tempo.

A partir de 2026 o teto poderá ser reajustado por outro indexador diferente da inflação, como o crescimento do PIB, atenuando os efeitos do crescimento da despesa previdenciária.  Como ilustração, apresentamos no Gráfico 5, tal qual o Gráfico anterior, a tendência de participação do gasto previdenciário nos últimos 10 anos do teto, caso não haja mudança de indexador.

Ressaltamos que este exercício é meramente ilustrativo, com o intuito de evidenciar a tendência de participação do crescimento da despesa previdenciária no total da despesa primária. A estimativa é sensível aos parâmetros escolhidos pelo governo no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (2017).

Evidentemente o cenário apresentado no Gráfico 4 é improvável: tanto o indexador quanto a legislação previdenciária seriam modificados antes de ele se concretizar. Entretanto, o exercício sugere que sem a reforma o efeito sobre outras políticas públicas e o investimento público seria devastador. Anedoticamente, neste cenário ilustrativo, a partir de meados da década de 2030 chegaríamos ao extremo da União pagar apenas despesas previdenciárias (na ausência de reformas, mudança do indexador e com o teto sendo estritamente cumprido).

Dessa forma, é útil revisitarmos a Figura 1, que apresentava os mecanismos pelos quais o crescimento da despesa afeta a economia. Conforme a Figura 2, a seguir, com o teto respeitado, a pressão sobre a carga tributária e a taxa de juros seria aliviada.

Entretanto, o impacto via redução do investimento público seria exacerbado, bem como se amplificaria a compressão de outras rubricas melhor posicionadas para reduzir a pobreza e a desigualdade de renda. Este seria a concretização do cenário de “canibalização dos gastos sociais”19.

Chegamos a outro ponto sobre a interação do teto do gasto com a Previdência.  Até agora, nesta discussão, consideramos que o teto seria respeitado e que, por isso, o crescimento da despesa previdenciária obrigaria reformar a Previdência e/ou promover profundos ajustes nas políticas públicas e investimentos feitos por despesa discricionária.

Entretanto, outro cenário provável é que a União não consiga cumprir o teto, o que acarretaria as vedações previstas pela Emenda até que o limite fosse reestabelecido. Essas vedações incluem inicialmente reajustes a remunerações do serviço público, criação de cargos e admissão de pessoal, entre outros itens afetos ao funcionalismo.

Todavia, o relatório do Deputado Darcísio Perondi, aprovado na Comissão Especial e no Plenário da Câmara dos Deputados, criou uma última vedação adicional: o aumento real do salário mínimo. Esta possibilidade também constava da proposta de reforma fiscal do Ministro da Fazenda Nelson Barbosa apresentada ainda no governo Dilma Rousseff (Projeto de Lei Complementar (PLP) no 257, de 2016).

Como dois terços dos benefícios previdenciários estão hoje atrelados ao salário mínimo, esta vedação atingiria diretamente a Previdência Social, ao proibir a prorrogação da política de valorização do salário mínimo ou política semelhante. Atualmente, o salário mínimo é reajustado segundo a inflação do ano anterior e o crescimento do PIB de dois anos antes, componente real da fórmula prevista na Lei no 13.152, de 29 de julho de 2015, cuja vigência se estende até 2019.

Assim, caso o teto não seja respeitado e as medidas de contenção de gastos via funcionalismo não sejam suficientes, o reajuste dos menores benefícios da Previdência seria afetado. Dessa forma, sem alterações na Previdência, o que eleva a chance de descumprimento do teto, as vedações impostas Emenda Constitucional do limite dos gastos garantem parcialmente uma espécie de “reforma automática”.

Assim, resumidamente, temos dois cenários de interação entre o teto e a Previdência:

 

Cenário 1: teto é respeitado

  • O crescimento acelerado das despesas previdenciárias obrigará a aprovação de alterações na Previdência; e/ou
  • O crescimento acelerado das despesas previdenciárias reduzirá substancialmente o espaço fiscal para políticas públicas e investimentos financiados por despesas discricionárias.

 

Cenário 2: teto não é respeitado

  • Reajustes reais do salário mínimo são vedados, atenuando parte do crescimento da despesa da Previdência.

 Ainda, como o crescimento esperado para as despesas previdenciárias é decorrente principalmente da transição demográfica, e não apenas do aumento do salário mínimo, é plausível que elementos dos dois cenários sejam observados (reforma da Previdência; redução de despesas discricionárias; e reajustes apenas nominais aos menores benefícios da Previdência).

 

Considerações finais

O impacto da reforma nos dez primeiros anos, acumulado, seria de R$ 678 bi em relação à trajetória anterior, o que pode ser insuficiente para “caber” no teto de gastos20. Para Fabio Giambiagi, um dos principais especialistas brasileiros no tema, a reforma seria adequada em relação ao ano de 2032 em diante, mas insuficiente para os próximos anos: “o governo eleito em 2018 talvez tenha que fazer outra reforma referente às condições de aposentadoria na década de 202021. Já o Ministro-Chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, avalia que a aprovação da reforma apenas moderaria o crescimento da despesa até 2025, que subiria consistentemente dali em diante22.

É certo que a reforma da Previdência não soa como item de uma “agenda de crescimento”, na forma romântica que o termo é normalmente compreendido. Entretanto diante da situação dramática da trajetória do gasto previdenciário no Brasil, ela se apresenta como uma necessária correção de rota para evitar um cenário de instabilidade econômica e social muito pior do que o atual.

 

(Este texto é baseado no Boletim Legislativo nº 52 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado, disponível no seguinte link:http://www.senado.gov.br/estudos)

 

______________________

1 Como no Chile. O regime de capitalização se caracteriza por um menor risco demográfico, mas maiores riscos financeiros, do que o regime de repartição. Ainda, na capitalização os riscos envolvidos são mais individuais, enquanto no regime de repartição, mais solidário, os riscos recaem sobre os trabalhadores da ativa ou, em última instância, sobre toda a sociedade. Uma reforma estrutural que migrasse da repartição para a capitalização envolveria significativos “custos de transição”, decorrentes do fato do regime antigo continuar pagando benefícios enquanto as novas contribuições são vertidas para o novo regime. Há ainda um terceiro tipo de regime, o de contas nocionais, em que as contribuições individuais são remuneradas (como na capitalização), mas por “juros fictícios”, sendo elas na prática vertidas para financiar os benefícios dos inativos (como na repartição). Trata-se de um modelo utilizado há poucos anos, na Suécia, Itália, Polônia e Noruega. Ver, entre outros, Tafner (2007): TAFNER, P. Seguridade e Previdência: Conceitos Fundamentais. In: TAFNER, P.; GIAMBIAGI, F. (Org.) Previdência no Brasil: debates, dilemas e escolhas. Rio de Janeiro: Ipea, 2007.

2Ver: http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-01/dilma-diz-que-previdencia-e-assunto-que-mais-preocupa-governo.

3Comparativamente, os multiplicadores do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), abono salarial, seguro-desemprego e Bolsa Família são, respectivamente, de 0,39; 1,06; 1,06 e 1,78. Ver Neri et al. (2013): NERI, M.; VAZ, F. M.; SOUZA, P. H. G. F. Efeitos Macroeconômicos do Programa Bolsa Família: Uma Análise Comparativa das Transferências Sociais. In: CAMPELLO, T. NERI, M. (Org.) Programa Bolsa Família: Uma Década de Inclusão e Cidadania. Brasília: Ipea, 2013.

4Ver Giambiagi (2007). GIAMBIAGI, F. Reforma da Previdência, o encontro marcado:a difícil escolha entre nossos pais ou nossos filhos. Rio de Janeiro: Campus, 2007.

5 O foco do problema. O Globo. 16 de setembro de 2015. Disponível em: http://blogs.oglobo.globo. com/miriam-leitao/post/foco-do-problema.html.

6Baseado em estimativas do demógrafo Bernardo Queiroz, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Brazil’s pension system: Tick, tock. The Economist. 24 de março de 2012. Disponível em: http://www.economist.com/node/21551093.

7 Ver, entre outros, Afonso (2016). AFONSO, J, R. Ambiente de Negócios: Simplificação da Legislação Tributária. Apresentação no Seminário Ambiente de Negócios: Segurança Jurídica, Transparência e Simplicidade.  IBRE/FGV e Direito-Rio/FGV. Rio de Janeiro,23 de setembro de 2016.

8 Uma quarta opção seria emitir moeda e financiar o aumento do gasto via inflação. Por outro lado, umataxa de crescimento muito alta do PIB poderia atenuar o problema por um período de tempo, ao aumentar a arrecadação sem necessidade de aumento de tributos.

9Aqui, deve-se considerar o conceito de taxa implícita de juros, e não a taxa Selic, que não tem a mesma participação que tinha no passado na remuneração dos títulos públicos.

10Barbosa defende que reforma da Previdência seja feita agora, gradualmente. Correio Braziliense, 17 de fevereiro de 2016. Disponível em: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2016/02/17/internas_economia,518253/barbosa-defende-que-reforma-da-previdencia-seja-feita-agora-gradualme.shtml.

11 Ver, entre outros, Oliveira et al. (1998).  OLIVEIRA, F. E. B.; BELTRÃO, K. I.; DAVID, A. C. A. Previdência, Poupança e Crescimento Econômico: Interações e Perspectivas. Texto para Discussão no 607. Rio de Janeiro: Ipea, novembro de 1998.

12 Ver, entre outros, Paiva et al. (2016). PAIVA, L. H.; RANGEL, L. A.; CAETANO, M. A. O Impacto das Aposentadorias Precoces na Produção e na Produtividade dos Trabalhadores Brasileiros.Texto para Discussão no 2.211. Rio de Janeiro: Ipea, julho de 2016.

13 O que não corrobora o argumento de que o crescimento da produtividade poderia resolver o problema previdenciário. Não só o crescimento da produtividade gera um passivo previdenciário no futuro (como contrapartida do aumento da arrecadação), como ele seria restringido pelo próprio envelhecimento da população. Ver, entre outros, Maestaset al. (2016). MAESTAS, N.; MULLEN, K. J.; POWELL, D. The Effect of Population Aging on Economic Growth, the Labor Force and Productivity. NBER WorkingPaper No. 22452. Julho de 2016.

14Na Câmara, a matéria tramitou como PEC 241/2016.

15Evidentemente que a criação ou aumento de tributos não está proibida, mas elas serviriam, pelo menos nos dez primeiros anos do Novo Regime Fiscal, para melhorar o resultado primário: a princípio reduzindo o déficit e posteriormente gerando um superávit. Em verdade, a estabilização da relação dívida e PIB é o objetivo da proposta.

16Ver: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2016/10/so-nao-vai-ter-ganho-real-mas-e-reajuste-diz-perondi-sobre-pec-do-teto-dos-gastos-publicos-7729952.html.

17Na primeira semana de outubro o governo indicou que o teto só valeria para as áreas de saúde e educação a partir de 2018. Não consideramos essa mudança em relação à proposta original neste exercício, o que afeta os valores absolutos estimados, mas não a tendência do resultado.

18Diante desse cenário, alguns especialistas defendem que a PEC seja modificada para que seja dado um tratamento mais duro às despesas com funcionalismo, incluindo congelamento real de salários. Ver, entre outros http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/09/1817880-para-analistas-teto-precisa-de-limite-para-despesa-com-pessoal.shtml?cmpid=compfb  e http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,em-13-anos-salario-do-servico-publico-subiu-tres-vezes-mais-que-o-privado,10000079369.

19Proposto por Fabio Giambiagi. Ver: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/22/politica/1442935579_665784.html.

20Ver: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/12/1838400-reforma-da-previdencia-pode-gerar-economia-de-r-678-bi-diz-governo.shtml.

21 Ver: http://oglobo.globo.com/economia/mesmo-com-reforma-governo-federal-tera-de-cortar-mais-300-bi-20419663.

22 Ver: http://br.reuters.com/article/domesticNews/idBRKBN12Z2TR.

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2927 2
Morte severina e mitos sobre a reforma da Previdência https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2917&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=morte-severina-e-mitos-sobre-a-reforma-da-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2917#comments Mon, 28 Nov 2016 14:40:33 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2917 “Morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia”. A morte severina do poema de João Cabral de Melo Neto se reflete na expectativa de vida ao nascer. Este indicador é afetado por mazelas nacionais como a mortalidade infantil e a morte de jovens por causas externas (homicídios, trânsito). Grosso modo, a expectativa de vida ao nascer está relacionada com a idade média com que as pessoas falecem no país.

Este dado vem sendo equivocadamente usado para justificar que uma reforma da Previdência faria as pessoas “trabalharem até morrer”. Seria injusto estabelecer uma idade mínima, por exemplo, de 65 anos, se em alguns Estados a expectativa de vida é de 66, 68 anos.

Na verdade, o indicador relevante nesta discussão não é a expectativa de vida no nascimento, mas a expectativa de sobrevida na idade de aposentadoria. É por conta dela que se diz que estamos vivendo muito mais, o que pressionaria a Previdência. A expectativa de sobrevida em idades mais altas não é afetada pela morte severina.

Nas idades médias em que se dão a aposentadoria por tempo de contribuição no Brasil, 55 anos para homens e 52 anos para mulheres, a expectativa de sobrevida é respectivamente de 24 e 30 anos. Assim, a expectativa de vida é de 79 anos para homens e 82 anos para mulheres, bem acima da expectativa de vida ao nascer (72 para eles, 79 para elas), e dos 66 anos do meme “trabalhar até morrer” que circula nas redes.

Figura 1 – “Trabalhar até morrer”

img_2917

De fato, mesmo com ganhos expressivos na redução da mortalidade infantil, a expectativa de vida dos homens ao nascer cresceu nas últimas décadas menos da metade do que cresceu a expectativa de sobrevida dos mais velhos. Junto com a veloz redução da taxa de natalidade no país, é isso que pressiona a Previdência e seu desequilíbrio atuarial (medido em trilhões).

A expectativa de sobrevida em idades mais altas não é perfeitamente correlacionada com a renda de um país. Parte da falência da previdência na Grécia se explica pela alta expectativa de vida dos idosos: uma das maiores da União Europeia, apesar de o país ser o patinho feio do grupo. No mesmo sentido, a OCDE estima que nas próximas décadas a sobrevida das brasileiras será maior do que as das americanas ou dinamarquesas, que moram em países muito mais ricos.

O uso da expectativa de vida ao nascer no debate previdenciário, além de incorreto, é incômodo: usa-se a mortalidade infantil para justificar transferências para grupos de faixas etárias mais avançadas.  Esta não é uma questão trivial, já que a pobreza no Brasil está desproporcionalmente concentrada nas crianças.

A discussão da distribuição de renda se relaciona também a outro mito da reforma da Previdência: o de que uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição prejudica os mais pobres, que ingressam cedo no mercado de trabalho. Diversos estudos tem mostrado que os trabalhadores mais pobres não usufruem da aposentadoria por tempo de contribuição. (tema discutido anteriormente no blog)

A exigência de 35/30 anos de tempo de contribuição desta modalidade de aposentadoria não pode ser cumprida por uma ampla parcela da população, que tem uma inserção precária no mercado de trabalho, alternando em sua vida períodos de desemprego, informalidade e carteira assinada. Na verdade, a maioria da população recorre a outro tipo de aposentadoria, a por idade, que requer 15 anos de carteira assinada, mas idade mínima de 65 anos para homens e 60 para mulheres.

Outra parcela da população, com menos de 15 anos de contribuição, só pode recorrer a um benefício assistencial de um salário mínimo, com idade mínima de 65 anos até para mulheres. Assim, a idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição não pode prejudicar os mais pobres se para eles a idade mínima sempre existiu.

Não só a idade mínima para esta modalidade de aposentadoria afeta mais os com maior escolaridade como as regiões mais industrializadas do país. No Norte e no Nordeste, onde se trabalharia “até morrer”, a quantidade de aposentadorias por tempo de contribuição representa apenas 7% e 9% do total de benefícios pagos (metade do que é no Sudeste, 19%).

Para várias regiões e ocupações do país, outros pagamentos são mais relevantes, como a aposentadoria rural. É neste e em outros benefícios associados ao salário mínimo que deveria se concentrar a preocupação acerca dos efeitos da reforma da Previdência na desigualdade de renda.

Outro tema que merece ser visto com ceticismo é a tese de que a Previdência é superavitária, e de que seu déficit seria uma farsa. Há várias questões legítimas no debate sobre o que deve ser receita ou despesa do INSS, mas dizer que nosso problema previdenciário é resolvido com mudanças na contabilidade seria mito, ou para usar o termo do momento, algo que se aproxima de uma “pós-verdade”. O problema concreto é o crescimento da despesa, que decorre de um problema físico, demográfico.

Disputas em torno da contabilidade do sistema são naturais e ocorreram em outros países, mas não podem tirar o foco da questão principal. Ilustrativamente, até os militares não aceitam a contabilidade do seu regime, defendendo que o déficit deles é de metade do que vinha sendo entendido. Por sua vez, o TCU não aceita a tese de superávit no INSS.

Do lado da receita, deve ser lembrado que a Desvinculação de Receitas da União (DRU) historicamente teve como perdedores Estados e Municípios, não a Previdência. A União precisava de dinheiro: se aumentasse impostos, deveria dividi-los com os entes. O jeitinho, de sucessivos governos, foi aumentar contribuições e desvinculá-las via DRU. Este histórico destoa da “teoria da conspiração” de que o governo desvia recursos da Previdência para forjar um déficit e corte de direitos. Também precisa ficar claro que trazer recursos da DRU para expandir a Previdência significa retirá-los de despesas que já serão significativamente comprimidas com o crescimento da despesa previdenciária diante do teto de gastos a vigorar com uma eventual aprovação da PEC nº 55, de 2016, ora em tramitação no Senado.

Do lado da despesa, deve ser esclarecido que mesmo a clientela urbana do INSS apresentou déficits até 2009, com previsão de voltar a apresentá-los de 2016 em diante1. Este é um ponto importante para os que defendem que, sem os rurais, a Previdência é sempre superavitária.

Nos próximos meses o Brasil passará por um amplo debate sobre sua Previdência. Pelo seu tamanho, ela é uma grande conquista e um grande desafio. Discutiremos se financiá-la nos moldes atuais é insustentável ou se mudar suas regras é retroceder em direitos conquistados: o ideal é partir para este debate livre de crenças equivocadas.

Versão resumida deste texto foi publicada no jornal O Estado de São Paulo, edição de 08/11//2016.

____________

1 O superávit temporariamente registrado teve relação com maior formalização da economia no período, e não com um equilíbrio atuarial estrutural do regime de previdência.

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2917 2
Como as corporações de elite moldam o pensamento econômico do país? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2901&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-as-corporacoes-de-elite-moldam-o-pensamento-economico-do-pais https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2901#comments Wed, 26 Oct 2016 12:41:33 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2901 1. O ajuste fiscal é uma farsa. Não seria preciso se o governo buscasse recuperar a dívida ativa. O rombo de R$ 180 bi é fichinha perto da dívida trilionária dos grandes devedores. Veja o sonegômetro. Em vez de fazer o ajuste, o governo deve investir nos procuradores capazes de recuperar esse dinheiro. Eles devem receber honorários para isso, como no setor privado (mas mantendo o salário fixo).

É preciso aprovar a PEC que torna o salário dos advogados públicos igual a 90% do dos ministros do STF. A Constituição tem que ser alterada para que esses órgãos tenham autonomia financeira. A carreira deve ser valorizada para que a dívida seja recuperada: não precisa de ajuste fiscal. O orçamento do órgão com essa missão deve ser o dobro.

2. Não existe déficit na Previdência: a reforma é desnecessária. Em parte porque há centenas de bilhões de dívida ativa decorrente de sonegação. Deve-se em vez de reformar a Previdência investir no combate à sonegação. Pode-se criar para auditores fiscais bônus por produtividade. Ou, como os advogados, vincular salários aos do STF.

3. A reforma trabalhista não precisa ser feita. A legislação trabalhista não é rígida: a culpa de dezenas de milhões de trabalhadores informais é da falta de fiscalização. Qualquer flexibilização é prejuízo para o trabalhador. Deve-se dotar a carreira de auditores do trabalho de condições para combater o problema. Entre outras, além de mais funcionários, é premente o bônus de produtividade (a fiscalização da informalidade também traz ganhos de arrecadação) e a vinculação do salário ao teto.

4. Querem extinguir direitos trabalhistas da Constituição e também a Justiça do Trabalho. A quem interessa uma legislação trabalhista mais simples e menos litígios? Ao patronato. É natural que para proteger o trabalhador a legislação seja complexa e precise de alta qualificação para ser bem entendida. A Justiça trabalhista deve ser forte e não sofrer cortes orçamentários. É ela, e não a legislação trabalhista, que é capaz de regular as relações de trabalho para que o mercado de trabalho funcione bem.

Argumentos como os desses quatro exemplos são muito populares em Brasília, pois simultaneamente: a) descartam medidas impopulares para fazer o país crescer (ajuste fiscal, reformas); b) apresentam alternativas fáceis (ex: uma reserva de dinheiro prontamente disponível), com uma narrativa de mocinhos contra vilões indefensáveis (sonegadores, patrões); e c) servem aos interesses corporativistas de um grupo de servidores públicos.

Esse é o lado pouco discutido do poder das corporações públicas: o de como podem moldar o pensamento econômico do país (o lado conhecido foi amplamente discutido nos últimos meses, quando dezenas emplacaram aumentos salariais em meio à crise fiscal.)

As soluções apresentadas por corporações são sedutoras: por vezes parecem quase mágicas. Tipicamente não possuem controvérsias, já que, quando apresentam perdedores, normalmente são vilões (quem vai defender sonegador?). Têm apelo também pelo ar científico porque, em tese, são propostas por especialistas da área, embora normalmente não tenham sido avaliadas em revistas acadêmicas ou congressos especializados: saem direto dos sindicatos para a Esplanada, o Congresso Nacional e a imprensa.

Certamente têm méritos. Não há absolutamente nada a se defender em sonegadores ou em patrões que exploram trabalhadores. A questão é a simplificação do debate. Por exemplo, entre os grandes devedores da dívida ativa estão empresas falidas, estatais, ou aquelas que devem porque há alguma relevante controvérsia jurídica não resolvida: não estão lá simplesmente porque uma carreira não é “valorizada”. Soluções mais complexas para um problema, nesse caso medidas do ajuste fiscal, podem ficar em segundo plano ou serem percebidas como mera iniciativa de algum “vilão” (mercado, neoliberais).

Essas soluções servem para, além de justificar os legítimos pleitos das corporações, aproxima-las de agentes políticos. As evidências apresentadas viram insumo para o discurso político, pelo apelo junto aos eleitores. Há uma simbiose. Nos sites das corporações1, é fácil encontrar relatos de reuniões com políticos, com a pauta misturando a defesa de algum direito difuso ou coletivo (contra algum projeto de reforma estrutural) e a valorização da carreira (a favor de algum projeto concedendo vantagens remuneratórias).

Como esses argumentos vão contaminar a opinião pública nos próximos meses? De um lado, as corporações vão surgindo com força como as primeiras vencedoras do impeachment. De outro, as medidas do governo que se avizinham serão impopulares.  Serão mais atraentes propostas maniqueístas que tenham culpados para se apontar, como as da intelligentsia brasiliense. Entre elas, as baseadas em ideias como a de que não existe déficit na Previdência ou a da lenda urbana de que o governo gasta 40% dos impostos com juros da dívida pública – duas ideias populares no debate que são criações principalmente de servidores de carreira de elite. Porém, as soluções realmente destinadas a recuperar a trajetória do país rumo ao desenvolvimento são muito mais complexas. Vamos resistir à tentação do pensamento mágico?

 

_______________

1 Os argumentos 1 a 4 foram diretamente retirados de páginas institucionais.

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2901 16