Edmundo Montalvão e Marcos Mendes – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 27 Feb 2012 12:57:48 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Faz sentido impor tributação tão elevada sobre o consumo de energia elétrica? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1095&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=faz-sentido-impor-tributacao-tao-elevada-sobre-o-consumo-de-energia-eletrica https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1095#comments Mon, 27 Feb 2012 12:57:48 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1095 Do valor total de uma conta de luz paga pelos consumidores residenciais e comerciais, aproximadamente 45% são recursos destinados ao governo (tributos e encargos). Ou seja, somente 55% representam a remuneração das empresas de geração, transmissão e distribuição de energia[1]. O Brasil, em perspectiva internacional, impõe elevada carga tributária sobre a energia elétrica, como pode ser visto nos dois gráficos abaixo.

Gráfico 1 – Carga tributária sobre energia elétrica (exceto encargos setoriais) – consumidores industriais (2004)


Fonte: Instituto Acende Brasil – Carga tributária consolidada setor elétrico brasileiro 1999 a 2008. Fonte primária: OCDE.

Gráfico 2 – Carga tributária sobre energia elétrica (exceto encargos setoriais) – consumidores residenciais (2004)


Fonte: Instituto Acende Brasil – Carga tributária consolidada setor elétrico brasileiro 1999 a 2008. Fonte primária: OCDE.

A Tabela 1 mostra que a maior tributação ocorre no nível estadual: o ICMS[2] representa em torno de 20% da receita bruta das distribuidoras de energia, ou 46% de todos os tributos e encargos, como mostrado no Gráfico 3. Em seguida vêm os tributos de competência do Governo Federal, com destaque para o crescimento da importância do PIS/PASEP[3] e COFINS[4] ao longo dos anos (para uma análise do aumento do PIS/PASEP e COFINS, ver neste site o texto Por que é tão elevada a carga tributária sobre os serviços de saneamento básico?). Em terceiro lugar aparece uma miríade de “encargos setoriais” (para uma análise desses encargos ver, neste site, o texto O que é subsídio cruzado e como ele afeta a sua conta de luz?).

Tabela 1 – Carga tributária sobre a receita bruta das empresas distribuidoras de energia elétrica


Fonte: Instituto Acende Brasil – Carga tributária consolidada setor elétrico brasileiro 1999 a 2008. Fonte primária: Instituto Acende Brasil e Price Waterhouse & Coopers.

Gráfico 3 – Carga tributária sobre a receita bruta das empresas distribuidoras de energia elétrica: participação dos principais tributos (2008)


Fonte: Instituto Acende Brasil – Carga tributária consolidada setor elétrico brasileiro 1999 a 2008. Fonte primária: Instituto Acende Brasil e Price Waterhouse & Coopers.

Os motivos da alta tributação

Por que é tão intensa a tributação do consumo de energia elétrica? O primeiro motivo é a pressão exercida pelos crescentes gastos governamentais, tanto no nível federal quanto no nível estadual. Desde a redemocratização, o Estado brasileiro vem elevando o nível de gasto público em função de diversos fatores de ordem política. Criou-se um modelo em que, ano após ano, aumenta-se o gasto público, o que exige que os governos Federal, estaduais e municipais busquem mais e mais receitas para equilibrar suas contas. Tal fenômeno já foi analisado em três textos deste site (Como o gasto público elevado desequilibra a economia brasileira?, Como as eleições afetam a economia? e Por que é importante controlar o gasto público?). Essa pressão exercida pelos gastos crescentes exige que os três níveis de governo (Federal, estadual e municipal) façam grande esforço de arrecadação e encontrem no setor elétrico uma suculenta base tributária.

O fornecimento de energia elétrica é bastante propício à tributação por vários motivos. Em primeiro lugar, é fácil para os fiscos federal e estaduais coletar seus tributos: basta arrecadá-los junto às empresas distribuidoras de energia, que representam apenas sessenta e três empresas em todo o país. Tais empresas dispõem de dados precisos a respeito da quantidade de energia fornecida, dados esses facilmente acessíveis aos fiscos. Compare essa situação, com a tributação de produtos fabricados por inúmeras indústrias, que passam por uma longa cadeia de fornecedores e distribuidores, para os quais é difícil conferir dados e notas fiscais. Obviamente é muito mais simples e produtivo para o fisco ir direto a uma grande empresa, que tem uma grande base tributária, com informações claras e precisas sobre essa base tributária. É por esse mesmo motivo que outros setores são alvo de tributação mais intensa, como o de bebidas (que dispõe de contadores de litros produzidos) e automóveis (poucas e grandes indústrias, alto valor unitário do produto vendido).

Em segundo lugar, a base tributária é ampla: no ano de 2011, as distribuidoras de energia elétrica faturaram R$ 110 bilhões, excluídos os tributos, o que equivale a aproximadamente 2,5% do PIB. Assim, qualquer pequena alíquota de tributo ou encargo que se imponha sobre tal faturamento já rende uma receita elevada sem que o contribuinte perceba o adicional em sua conta.

Em terceiro lugar, a energia elétrica é um bem essencial tanto nas residências quanto na indústria, comércio e serviços (o impacto do “apagão” de 2001 sobre o ritmo da economia é uma demonstração clara da essencialidade deste serviço). Isso significa que os consumidores não reduzirão o consumo de energia na mesma proporção dos aumentos de preço. É o que se chama, em economia, de demanda inelástica a variações de preços. Não havendo redução acentuada de consumo quando há aumento de preços provocado por aumento de tributos, a receita tributária será maior do que se for aplicado o aumento dos tributos a um bem ou serviço de alta elasticidade-preço, pois, nesse caso, parte da receita tributária será perdida em decorrência da queda do consumo.

Por exemplo, suponha que um produto custe R$ 1, e que são vendidas 100 unidades desse produto. Se o governo cria um imposto de 10% sobre o preço de venda e supondo que o imposto seja integralmente repassado para o preço, o valor final desse produto subirá para R$ 1,10. Se a demanda desse bem tem baixa elasticidade a preços, com o novo preço de R$ 1,10 os consumidores reduzirão pouco o seu consumo. Suponhamos que essa redução seja de 5 unidades, passando o consumo total a ser de 95 unidades. A receita do governo com o novo imposto será de R$ 9,50 (95 unidades X R$ 0,10). Mas se a elasticidade preço do bem for mais alta (um bem de menor essencialidade), os consumidores reduzirão mais intensamente o consumo para, digamos, 70 unidades, o que fará a receita tributária do governo ser menor: R$ 7,00 (70 unidades X R$ 0,10). Daí porque, sob o ponto de vista de arrecadação, é mais interessante para o governo tributar bens e serviços cujas demandas sejam inelásticas a preço.

O quarto fator que estimula a tributação da energia elétrica é que essa tributação é pouco visível. Como todo tributo indireto, ela já vem embutida no preço, e o consumidor não consegue distinguir claramente o que é o custo da energia e o que é tributo ou encargo.

Em quinto lugar, no caso específico do ICMS, a tributação sobre energia cresce como um efeito colateral da chamada “guerra fiscal” (ver neste site o texto O que é guerra fiscal?). Os estados disputam entre si a instalação de indústrias, oferecendo reduções e isenções na cobrança do ICMS que, na maioria dos casos, é pago pelas empresas ao Estado onde ocorre a produção (tributação na origem). Porém, ao contrário do que ocorre com a maioria dos bens e serviços, a tributação da energia elétrica ocorre no estado onde ela é consumida. Assim, não há estímulo aos estados para tentar atrair empresas do setor de energia a instalar sedes em seus territórios, pois a arrecadação continuará a fluir para os estados onde a energia é consumida.

Poderia haver um estímulo à redução da tributação da energia elétrica caso isso representasse queda de custo tão grande para as empresas que compensasse outras vantagens tributárias. Nesse caso, um estado que cobrasse baixos tributos permitiria que as empresas ali instaladas tivessem um custo substancialmente mais baixo. Porém, os altos tributos e encargos criados pelo Governo Federal (que não participa da guerra fiscal) e a agressividade dos incentivos dados aos demais setores da economia, parecem tornar pouco atrativa a opção de atrair empresas via desconto de ICMS na conta de luz.

A opção adotada tem sido tributar em excesso a energia para, com isso, gerar uma folga de caixa que permita ao governo estadual oferecer mais subsídios tributários a outros setores. A Tabela abaixo mostra as alíquotas aplicadas a alguns produtos no Estado de São Paulo, destacando-se que o consumo de energia acima de 200 Kwh/mês é tributado com a alíquota mais alta.

Tabela 2 – Alíquotas de ICMS de alguns bens e serviços selecionados no Estado de São Paulo


Fonte: http://www.idealsoftwares.com.br/tabelas/aliquotas_sp.html

Será esta alta tributação eficiente?

Toda tributação reduz a eficiência da economia, porque estimula os consumidores e as empresas a mudarem seus comportamentos (supostamente maximizadores de seus respectivos níveis de bem-estar) para tentar minimizar os impostos pagos, como no exemplo numérico apresentado acima. A diferença entre o que seria arrecadado por um imposto que não provocasse qualquer mudança de comportamento dos consumidores ou das empresas (chamado de imposto lump-sum ) e a efetiva arrecadação do governo é chamado de ‘perda de peso morto” (deadweight loss) (lembre-se do exemplo numérico oferecido acima, em que a redução da demanda pelo bem tributado levou a uma arrecadação de R$ 7,00, ao passo que se não houvesse mudança no comportamento dos consumidores  a arrecadação seria de R$ 10,00).

A teoria da tributação ótima[5] é aquela que busca definir a estrutura tributária que produz a menor reação dos agentes econômicos e, com isso, gera menor perda de eficiência para a economia.  Um resultado dessa teoria indica que, quanto mais inelástica a preços a demanda e a oferta de um bem, menor a perda de peso morto e, consequentemente, menor a perda de eficiência.

O raciocínio é intuitivo: demanda e oferta inelásticas a preço significam que é baixa a reação dos consumidores e produtores a aumentos de preços. Por isso, a criação de um imposto que aumente os preços ao consumidor ou que representem um encargo a mais para o produtor não afetará as decisões de consumo e de produção. Ou seja, o montante consumido e produzido após o imposto é similar ao montante consumido e produzido antes da introdução do imposto. A economia se afasta pouco do seu mix ótimo de produção e consumo.

Já afirmamos acima que, em função da sua essencialidade, a demanda por energia é inelástica a preços. Sob esse ponto de vista, seria melhor tributar a energia elétrica a tributar outros bens de maior elasticidade preço. Da mesma forma, a oferta também tende a ser inelástica a preços. Isso porque a indústria de energia exige um grande investimento em obras e equipamentos, que representam alto custo fixo. Um aumento no custo variável de venda da energia (quanto mais energia vendida mais imposto se paga) não representará um acréscimo significativo no custo total da empresa, pois ela incorrerá no custo fixo independentemente de vender ou não a energia. Outro argumento favorável, em termos de eficiência econômica, à alta tributação da energia é o baixo custo administrativo para se coletar tal tributo, como já foi ressaltado no início do texto: quanto menos o fisco gastar na sua ação de coletar tributos, mais recursos sobram para serem aplicados em políticas públicas, logo, mais eficiente é a economia.Todavia, há outro resultado da teoria da tributação ótima que aponta em direção oposta: um aumento de alíquota de um tributo provoca um aumento da perda de peso morto (queda de eficiência) equivalente ao quadrado do aumento da alíquota. Ou seja, a perda de eficiência da economia é mais que proporcional ao aumento de alíquota. Isso significa que a elevação das alíquotas sobre energia elétrica a nível tão alto e tão superior ao dos demais produtos, como mostrado na Tabela 2, provavelmente gerou grande perda de eficiência.

Outra importante constatação da teoria da tributação ótima é a de que qualquer tributo sobre bens intermediários (bens usados para produzir outros bens) provoca distorções na economia e, consequentemente, perda de bem-estar e de eficiência. A energia elétrica é, obviamente, um importante insumo intermediário. A preferência deveria ser pela tributação sobre o consumidor final de energia elétrica. A tributação dos consumidores industriais e comerciais, com elevadas alíquotas, é certamente um forte gravame que reduz a competitividade desses consumidores.

A perda de eficiência é ainda maior porque a tributação não impacta uniformemente as diferentes indústrias. Aquelas que são mais intensivas no uso de energia terão seus custos aumentados mais que proporcionalmente, distorcendo os preços relativos. Isso pode alterar as vantagens comparativas do País. Por exemplo, indústrias que consomem muita energia, como alumínio e derivados, podem perder competitividade.

É verdade que a tributação sobre o uso comercial e industrial da energia, por meio de tributos sobre valor adicionado (ICMS, PIS/COFINS) pode, em tese, ser compensada pelo desconto de créditos tributários acumulados. Mas, quando consideramos detalhes da tributação, vemos que há restrições à plena desoneração tributária (determinados insumos não podem ter seus tributos descontados). Além disso, a base de cálculo do ICMS inclui outros tributos já pagos, configurando bitributação. A prática de alíquotas diferenciadas por setores, isenções e não restituições de créditos do ICMS elevam a alíquota efetiva final paga sobre o insumo. Deve-se considerar, também, que a cobrança do imposto com alíquotas diferentes, por estados diferentes, acabam induzindo empresas a desviarem sua escolha ótima de localização (em função dos custos de produção e distribuição), por levar em conta, também, o custo da energia.

As indústrias mais intensivas em energia perdem competitividade em relação às menos intensivas, e as indústrias nacionais, em geral, perdem competitividade em relação às indústrias de outros países que impõem menor tributação sobre esse insumo.

Qual o impacto distributivo dessa tributação?

A definição da estrutura ótima de tributação enfrenta um dilema entre eficiência e distribuição de renda. Se não houvesse qualquer preocupação do governo com o impacto distributivo dos impostos, bastaria simplesmente criar um imposto lump-sum[6] (não gerador de distorções) que cobrasse um valor fixo por pessoa. Mas obviamente isso seria bastante injusto, visto que as pessoas têm habilidades e capacidades de geração de renda distintas.

Por isso, toda distorção gerada por impostos que uma sociedade aceita suportar decorre de seu intuito de ter tributos que sejam justos do ponto de vista distributivo. Ocorre que tributos sobre consumo[7] são reconhecidamente concentradores de renda, porque as famílias pobres gastam uma parcela maior de sua renda com consumo. Quando se trata de bem essencial, como a energia elétrica, esse efeito é ainda mais evidente.

Temos, então, um contra-senso. Vivemos em uma sociedade que exibe pronunciada preferência pela redistribuição da renda: elege governos com plataforma redistributiva e confere alto valor a programas públicos de redução da pobreza. Porém, o que se dá com uma mão (via gasto público), tira-se com outra, via tributação concentradora de renda.

Conclusão

Não obstante o fato de a tributação do consumo de energia elétrica ser, a princípio, gerador de baixa perda de eficiência da economia, pela inelasticidade-preço de oferta e demanda; as altas alíquotas praticadas e a sua incidência de forma diferenciada sobre empresas situadas em diferentes partes do país possivelmente geram perdas de eficiência e efeito concentrador de renda. Assim, a fúria arrecadadora dos governos federal e estaduais, decorrente do aumento dos gastos públicos (boa parte deles destinados a custear programas de redução de pobreza e redistribuição de renda) acaba tornando toda a economia mais pobre (em menor nível de bem-estar), com menor capacidade de crescimento e geração de renda; além de anular parte da redistribuição de renda feita por meio de programas sociais.

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Para ler mais sobre o tema:

Instituto Acende Brasil (2010) Tributos e encargos na conta de luz: pela transparência e eficiência. White Paper – Instituto Acende Brasil, edição nº 2.

Lago, J.N. (2006) Tributos e encargos na tarifa de energia elétrica: uma análise sob o ponto de vista do consumidor e da política de tarifa social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Ciências Econômicas.

Montalvão, E (2009) Impacto de tributos, encargos e subsídios setoriais sobre as contas de luz dos consumidores. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 62.

Monteiro, E.M. (2007) Teoria de grupos de pressão e uso político do setor elétrico brasileiro. Universidade de São Paulo. Programa Interunidades de Pós-Graduação em Energia. São Paulo.

Stiglitz, J. (2000) Economics of the public sector. Terceira Edição. Ed. Norton. Caps. 17 a 20.

Biderman, C. e Arvate, P. (2004) (Orgs.) Economia do Setor Público no Brasil. Ed. Elsevier. Caps. 9 a 11.


[1] Fonte: Instituto Acende Brasil (2010).

[2] Imposto relativo à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.

[3] Programa de Integração Social (PIS) e Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP).

[4] Contribuição para o financiamento da Seguridade Social.

[5] Ver, por exemplo, Stiglitz (2000), capítulo 19, e Arvate e Biderman (2004), capítulo 10.

[6] Impostos lump-sum são impostos baseados em características do indivíduo que não podem ser alteradas. O caso mais clássico são os impostos por pessoa. Mas, em tese, impostos lump-sum poderiam ser instituídos com base na altura, no gênero ou idade.

[7] Observe-se que aqui estamos falando em tributação uniforme, sobre todos os bens de consumo. É claro que tributar bens supérfluos e de luxo pode ter um efeito positivo sobre a distribuição de renda.

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O que é “subsídio cruzado” e como ele afeta a sua conta de luz? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1053&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-e-subsidio-cruzado-e-como-ele-afeta-a-sua-conta-de-luz https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1053#comments Sun, 12 Feb 2012 21:58:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1053 Há diversos preços na economia que são fixados ou submetidos a regras e restrições pelo governo: energia elétrica, tarifas postais, tarifas telefônicas, tarifas aeroportuárias, planos de saúde, ingressos para espetáculos (regra de meia-entrada), passagens de ônibus, etc.

Ao fixar esses preços, o governo muitas vezes procura atingir diversos objetivos, tais como: evitar o lucro excessivo de empresas monopolistas, beneficiar um grupo de pessoas (os mais pobres, os mais idosos, os estudantes, etc.), estimular alguns setores da economia ou ajudar o desenvolvimento de regiões mais atrasadas. É muito comum que o preço mais baixo cobrado de uma classe de consumidores (ou os incentivos financeiros dados a uma classe de produtores) seja compensado por preço mais alto cobrado aos demais consumidores. É a isso que se chama “subsídio cruzado”: uma classe de consumidores paga preços mais elevados para subsidiar um grupo específico, seja ele outro grupo de consumidores ou um grupo de empresas (Para ler mais acerca de “subsídios cruzados” veja, neste site, o texto Quem deve pagar a conta dos subsídios nos serviços de utilidade pública?).

O presente artigo argumenta que, de modo geral, o uso de subsídios cruzados na fixação de preços regulados pelo governo reduz a eficiência da economia, penaliza injusticadamente os consumidores não subsidiados, reduz a transparência sobre quanto custa cada classe de subsídio, distorce a política orçamentária do governo e viabiliza a sobrevivência de subsídios ineficientes com base em pressão política de grupos beneficiários.

Será apresentado o caso da conta de luz paga pelos consumidores brasileiros, na qual há inúmeros itens de custo que representam recursos a serem utilizados para subsidiar diferentes atividades consideradas meritórias, tais como o consumo de energia pela população de baixa renda, o incentivo à produção de energia por fontes alternativas, a eletrificação rural, entre outros.

Inicialmente é preciso considerar os motivos pelos quais o governo interfere na fixação de preços. Este ponto já foi analisado em outro artigo postado neste site (“Por que o governo deve interferir na economia?”).  Um caso importante é o dos setores em que o livre funcionamento de mercado não gera concorrência (ver, no texto acima citado, o conceito de “monopólio natural”),  nos quais a livre fixação de preços pelo mercado daria às empresas o poder de ditar preços elevados, em prejuízo dos consumidores.

A solução para esse problema pode ser a produção do serviço por uma empresa estatal, na qual o governo define o preço do serviço,  ou pode ser a entrega do serviço a uma empresa privada que deverá obedecer à regulação estatal. A regulação fixará preços máximos, metas de investimento e cobertura dos serviços, entre outras exigências.

Tanto a regulação quanto a operação estatal abrem espaço para que o governo estabeleça preços diferenciados para distintos consumidores ou incentivos a grupos de empresas, instituindo os subsídios cruzados.

Os principais mercados sujeitos à regulação ou produção estatal são os de energia elétrica, telefonia, serviços postais, aeroportos, estradas, saneamento, transporte de combustíveis. Usaremos o caso do mercado de energia para analisar os subsídios cruzados e seus efeitos deletérios.

Montalvão (2009) faz uma análise detalhada dos componentes da conta de luz e lista os seguintes mecanismos explícitos e implícitos de subsídios cruzados, que representam itens de custo somados à tarifa básica de energia elétrica e encarecem a conta de luz paga pelos consumidores finais de energia:

  • Reserva Geral de Reversão (RGR): originalmente foi criada para acumular recursos para indenizar as empresas concessionárias ao final da vigência da concessão e para financiar a expansão do setor elétrico. Concedendo financiamentos a taxas de juros inferiores às de mercado, constitui um subsídio às empresas de energia que usam tal mecanismo de financiamento. Além disso, passou a ser usado como fonte de recurso para financiar o Programa Luz para Todos, representando um subsídio aos beneficiários do programa, em geral moradores de localidades rurais remotas.
  • Conta de Consumo de Combustíveis dos Sistemas Isolados: utilizado para subsidiar a conta de luz dos consumidores localizados em áreas que não estão conectadas ao sistema interligado nacional de energia (Acre, Rondônia, Manaus, Amapá e pequenas cidades nas regiões Norte e Centro-Oeste), cuja energia é obtida principalmente mediante o uso de termelétricas de alto custo.
  • Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (PROINFA): subsídio para incentivar a participação da energia elétrica produzida por fontes alternativas, como a eólica, a biomassa e as pequenas centrais hidrelétricas.
  • Conta de Desenvolvimento Energético: tem por objetivo subsidiar as contas de luz dos consumidores de baixa renda, os investimentos do PROINFA e o transporte de gás natural para alguns estados.
  • Fontes de energia incentivadas: subsídios previstos para energia solar, eólica, de biomassa e pequenas centrais hidrelétricas, mediante desconto de pelo menos 50% nas tarifas de uso dos sistemas de transmissão e distribuição.
  • Aquicultura e irrigação: desconto para essas atividades quando praticadas entre as 21h30 e as 6h00.
  • Consumidores rurais: a despeito de o custo de fornecimento de energia em meio rural ser mais alto, devido à baixa densidade geográfica dos consumidores, a tarifa cobrada é mais baixa, com o desconto variando de acordo com a concessionária.
  • Água, esgoto e saneamento: concessionárias desses serviços gozam de desconto de 15% nas tarifas.
  • Consumidores de baixa renda e Luz para Todos: além da parcela de subsídio financiada por instrumentos acima citados, há parcelas desses subsídios transferidas diretamente ao consumidor como itens de custo das concessionárias.

Cada um dos subsídios acima relatados torna a conta de luz mais cara. Em média eles representam um acréscimo no valor final pago pelo serviço de energia da ordem de 12%, correspondendo a um custo anual de R$ 14 bilhões.

Uma primeira crítica que se pode fazer a esses mecanismos de subsídio cruzado não diz respeito à finalidade do subsídio em si. Não se pretende aqui questionar se é justo ou não subsidiar o consumidor rural, o consumidor de baixa renda ou o consumidor dos Estados não participantes do Sistema Interligado Nacional. O que se deve criticar é que os consumidores não subsidiados tenham que pagar por esses subsídios. Se há uma decisão de governo para subsidiar uma determinada classe de consumidores, o governo deve custear esses subsídios com recursos do orçamento.

Quem financia o governo são os contribuintes, via pagamento de tributos. Se o governo quer fazer gastos em favor de um determinado grupo, mediante decisão democrática aprovada pelo Congresso, deve lançar mão de suas receitas fiscais. Escolher uma determinada parcela da população (no caso, os consumidores de energia elétrica) para financiar os subsídios, significa escolher “perdedores” que deverão suportar um custo que não deveria ser seu.

Por que será que são os consumidores de energia elétrica que devem arcar com subsídios ao transporte de gás natural ou às atividades de irrigação e aquicultura? Por que não cobrar essa conta dos consumidores de cigarro, dos motoristas de táxi, dos donos de bancos ou dos consumidores de goiabada?

O amplo uso de subsídios cruzados parece ser uma opção pelo caminho politicamente mais fácil. Colocar no orçamento público, explicitamente, um subsídio para um determinado setor ou grupo confere transparência ao custo daquela política e permite à sociedade questionar se está disposta a pagar tal valor.

Além disso, cada real de subsídio incluído no orçamento em favor do grupo A é um real a menos que se pode usar para subsidiar o grupo B. Afinal, os recursos do orçamento são limitados em um país comprometido com o equilíbrio fiscal. Logo, a inclusão no orçamento de subsídios para um grupo pode sofrer a oposição dos demais grupos de interesse.

Recorrer ao subsídio cruzado permite fugir à restrição do orçamento: “cria-se” uma nova receita para subsidiar um grupo sem desagradar outros grupos, e se dispersa o custo entre os consumidores de energia elétrica de uma forma não transparente. Os consumidores atingidos pelo novo custo enfrentam dois tipos de dificuldade para reagir a ele: (a) sequer têm informação a seu respeito; (b) quando têm tal informação, o custo individual adicional de um subsídio não é suficientemente alto para induzi-los a arcar com os custos de se organizarem para barrar o aumento da conta de luz.

O eleitorado brasileiro tem demonstrado grande resistência à criação de um novo tributo para financiar a saúde pública, tendo sancionado a extinção da CPMF e induzido recente veto à sua recriação. Isso a despeito de ser alto o desejo por melhorias na saúde pública. Será que esse mesmo eleitorado aceitaria criar um tributo explícito para financiar o PROINFA ou para subsidiar a conta de luz dos consumidores fora do Sistema Integrado?

Em texto publicado neste site (Por que é tão elevada a carga tributária sobre os serviços de saneamento básico?) argumentou-se a favor da redução da tributação imposta às empresas de Saneamento. Essa seria uma medida de política transparente, de incentivo a um setor gerador de grandes externalidades positivas para a sociedade e que mereceria ser subsidiado por todos os contribuintes. Porém, como o Governo Federal enfrenta resistências à criação de novos impostos, ele teme abrir mão daqueles que já conseguiu criar. Por isso, parece preferir subsidiar as empresas de saneamento de forma indireta, jogando o custo de 15% sobre os consumidores de energia elétrica, conforme acima citado.

A segunda crítica que se pode fazer ao uso indiscriminado de subsídios cruzados é que o efeito de um subsídio pode anular o efeito pretendido por outro subsídio. Por exemplo: a redução da conta de luz da população de baixa renda pode ser anulada pelo aumento da conta de luz decorrente dos subsídios à aquicultura, à irrigação ou às áreas fora do Sistema Interligado. No fim das contas, a sociedade arca com o custo de políticas cujo resultado final líquido (descontados os efeitos contrários) ninguém conhece. Lago (2006) demonstra que isso ocorre de fato: em alguns estados brasileiros o desconto dado ao consumidor de baixa renda não compensa a perda imposta a este mesmo consumidor por meio da imposição de diversos outros encargos e impostos em sua conta de luz[1].

Em terceiro lugar, em alguns casos, pode-se questionar o subsídio em si. Tome-se o caso do PROINFA. O objetivo do programa é introduzir na matriz energética brasileira fontes de energia de baixo impacto ambiental. Mas o Brasil, diferentemente dos países que têm uma matriz energética com forte impacto poluidor (carvão, óleo combustível), tem grande potencial hidrelétrico ainda não aproveitado. O País só explorou 33% de todo esse potencial.

Por isso, a forma mais eficiente de aumentar a oferta de energia com baixo impacto ambiental parece ser a construção de hidrelétricas, acompanhadas de medidas bastante conhecidas de mitigação de impacto ambiental. O PROINFA e os leilões de fontes alternativas de energia têm aumentado o custo marginal de expansão do sistema (a energia eólica só se tornou competitiva em 2011 em razão de isenção de impostos e outros incentivos não tributários não disponíveis a outras fontes), pressionando prematuramente as tarifas de energia. Se fossem dados ao consumidor de energia o direito de escolher a fonte de geração e o devido esclarecimento sobre custos e impacto ambiental de cada fonte, ele provavelmente escolheria a fonte renovável mais barata, que é a hidrelétrica.

Em quarto lugar, deve-se observar que, uma vez criado um subsídio, os grupos por ele beneficiados, direta ou indiretamente, resistirão à sua extinção, mesmo quando o auxílio financeiro perde razão de ser. Tome-se o caso da Conta de Consumo de Combustível dos Sistemas Isolados. Como afirmado acima, ela tem por objetivo subsidiar a geração de energia por meio de termelétricas em localidades não interligadas ao Sistema Interligado Nacional. Em 2009 iniciou-se o processo de integração dessas localidades, que passarão, gradativamente, a receber energia do Sistema Interligado e não mais necessitarão de subsídio. Porém, essa mudança, que representa um salto de eficiência para o País, acarretará perda de receitas de ICMS dos governos estaduais, cobrado sobre os combustíveis adquiridos pelas termelétricas. Para atender a pressão dos governos estaduais, a Lei nº 12.111/2009, originária da MP 466/2009, criou um adicional de 0,3% a ser pago pelas distribuidoras aos estados e municípios que tiverem perdas de ICMS.

Mais uma vez vale perguntar: o que os consumidores de energia em todo o país têm a ver com a perda de arrecadação de ICMS no Acre, Rondônia e Amazonas? Os subsídios cruzados, pela sua baixa transparência, permitem que os grupos de pressão obtenham mais facilmente os subsídios que desejam, criando uma intricada teia de relações financeiras.

Outra distorção, já apontada em outro texto deste site (Quem deve pagar a conta dos subsídios nos serviços de utilidade pública?) consiste em jogar parte do custo de ampliação do sistema, que vai beneficiar os consumidores no futuro, na conta dos consumidores do presente. É isso que ocorre, por exemplo, quando os recursos da RGR são usados para conceder financiamento subsidiado à expansão do setor elétrico.

Ademais, como o Governo desconhece, na prática, o valor ótimo de subsídio necessário para viabilizar os diversos setores e programas incentivados, como os subsídios são pouco transparentes, e muitos obtidos em decorrência de pressão política, é possível que eles estejam gerando efeitos adversos indesejados. Em artigo publicado neste site (Quem ganha com a meia entrada?), César Mattos mostrou que o subsídio cruzado com o qual se pretende beneficiar estudantes e idosos pode, na prática, acabar levando à fixação de preços altos que excluem justamente os grupos que se pretendia beneficiar, e/ou pode gerar uma perda de bem-estar geral da economia (perda de receita pelos exibidores de espetáculo sem ganhos para os beneficiários e não-beneficiários da meia-entrada).

Nada impede que o mesmo fenômeno ocorra no setor elétrico, com o alto custo da energia gerando perdas à sociedade muito superiores ao que os grupos subsidiados ganham individualmente.

Como observação final, vale destacar a diferença entre itens da conta de luz que representam injustificáveis subsídios cruzados e os itens que compõem custos importantes do sistema de mercado regulado. Estes últimos podem e devem ser cobrados diretamente do consumidor de energia, pois fazem parte do custo de se produzir e ofertar energia em um mercado regulado, cabendo discutir, apenas, se os valores fixados são adequados ou excessivos. Entre esses encargos podem ser citados: a Taxa de Fiscalização dos Serviços de Energia Elétrica (destinada a financiar a Aneel), o encargo destinado a financiar pesquisa e desenvolvimento por meio da Empresa de Pesquisa Energética e os encargos destinados a financiar as operações do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).

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Para ler mais sobre o tema:

Montalvão, E. (2009) Impacto de tributos, encargos e subsídios setoriais sobre as contas de luz dos consumidores. Centro de Estudos da Consultoria do Senado Federal. Texto para discussão nº 62. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm


[1] Lago, Juliana N. (2006) Tributos e encargos na tarifa de energia elétrica: uma análise sob o ponto de vista do consumidor e da política de tarifa social. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ.

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