José Eustáquio – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Fri, 25 Nov 2011 14:29:50 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 A desigualdade de gênero no Brasil é maior do que a do Burundi? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=860&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-desigualdade-de-genero-no-brasil-e-maior-do-que-a-do-burundi Fri, 25 Nov 2011 14:29:50 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=860 O Brasil ficou em 82º lugar no Índice Global de Desigualdade de Gênero (Global Gender Gap Index – GGGI), de 2011, do Fórum Econômico Mundial. O índice varia de 0 (total desigualdade) a um (total igualdade). Liderando o ranking, com a menor desigualdade de gênero, está a Islândia com índice de 0,8530. O Brasil ficou com índice de 0,6679.

Na frente do Brasil ficaram, por exemplo, Lesoto em 9º lugar, com índice de 0,7666; África do Sul em 14º lugar (0,7478); Burundi em 24º lugar (0,7270); Moçambique em 26º lugar (0,7251) e Uganda em 29º lugar (0,7220). Estes países citados também ficaram na frente da França, que apareceu em 48º lugar, com índice de 0,7018 no GGGI 2011.

Mas será que esta posição brasileira no ranking global do GGGI reflete a real situação de gênero no país? Por exemplo, a desigualdade de gênero no Brasil (82º lugar) é realmente muito pior do que a situação existente no Burundi (24º lugar)?

Para qualquer pessoa minimamente informada, parece evidente que a situação da mulher não é pior no Brasil e na França em relação a países como Lesoto, Burandi e Uganda. O problema, na minha maneira de ver, reside no objetivo e na metodologia utilizada no Global Gender Gap Index (GGGI), bem como na forma de utilização dos dados dos diferentes países.

No relatório do Global Gender Gap Index está explicitado o seguinte: “O Índice é projetado para medir hiatos de gênero no acesso a recursos e oportunidades em cada país ao invés de níveis reais dos recursos disponíveis e oportunidades. Fazemos isso para tornar o Global Gender Gap Index independente dos níveis de desenvolvimento dos países” (p.3). Isto quer dizer que o índice está buscando medir a desigualdade (hiato) e não o nível de desenvolvimento ou a situação dos direitos econômicos, sociais e políticos da mulher.

Em outras palavras, não é objetivo do índice responder à pergunta “onde as mulheres têm melhor padrão de vida?” mas, sim, “onde o padrão de vida das mulheres é mais semelhante ao padrão de vida dos homens?”.

O problema do objetivo do índice é que um país com enorme exclusão social para os dois sexos e totalmente carente em termos econômicos, politicos e de qualidade de vida pode aparecer com bom indicador de gênero, enquanto  um país com maior inclusão social  e com direitos humanos básicos atendidos para toda a população pode aparecer em posição ruim no ranking se houver diferenças relativas entre os sexos.

Adicionalmente, mesmo nos limitando ao objetivo do índice, de captar a diferença entre gêneros, independentemente do grau de desenvolvimento do país, encontramos falhas metodológicas que distorcem a real discrepância entre homens e mulhers.

Vejamos o caso do Brasil e de Burundi.

De acordo com dados da Divisão de População da ONU, a esperança de vida ao nascer no Brasil, no quinquênio 2005-10, foi de 72,2 anos (75,9 anos para as mulheres e 68,7 para os homens). Os dados de Burundi, para o mesmo período, são 48,8 anos de esperança de vida ao nascer (50,1 anos para as mulheres e de 47,5 para os homens). Portanto, as condições de saúde da mulher, em relação aos homens, são muito melhores no Brasil do que em Burundi. Aqui, as mulheres têm expectativa de vida 7,2 anos maior que os homens, enquanto em Burundi a diferença é de apenas 2,6 anos a favor das mulheres.

Porém, o Global Gender Gap Index não leva em consideração as desigualdades reversas. Ou seja, quando as mulheres apresentam melhores indicadores do que os homens, o GGGI só considera a existência de uma igualdade, atribuindo índice 1, como se houvesse paridade de gênero e não vantagem pelo lado feminino (assim, tanto o Brasil quanto o Burundi ficariam com índice 1 no quesito diferença de expectativas de vida, ainda que a vantagem das mulheres no Brasil seja muito maior). Evidentemente esta maneira de abordar as desigualdades de gênero não é capaz de retratar a realidade das relações entre homens e mulheres e reduz o indicador dos países em que as mulheres avançaram com maior rapidez na obtenção de direitos e condições de vida.

O Brasil cai bastante nesta metodologia do GGGI, pois apesar de as mulheres brasileiras viverem sete anos a mais que os homens, mais do dobro da diferença observada em Burundi, o índice relativo à saúde brasileiro é de 0,9796 contra 0,9685 do Burundi (apenas 1% a mais). Adicione-se o fato de as brasileiras terem uma esperança de vida de 25,8 anos superior às mulheres do Burundi (50% a mais).

Há um problema semelhante no indicador de educação, que dá peso muito grande ao analfabetismo. Isso prejudica o Brasil porque, apesar de as mulheres estarem à frente dos homens em todos os níveis de educação, inclusive no nível de doutorado, quando se consideram as mulheres mais idosas, de coortes mais velhas, o percentual de mulheres analfabetas é maior do que o percentual de homens. Isso reflete as desigualdades educacionias de gênero do passado. Contudo, houve reversão do hiato de gênero na educação brasileira nas últimas décadas no Brasil. E este hiato está aumentando em favor das mulheres. Portanto, o GGGI deveria apresentar um indicador de gênero para a educação no Brasil acima de 1 (um), ou no mínimo 1 (um) e não de 0,9904, como faz.

Novamente, se nossa preocupação é com a qualidade de vida, é importante lembrar que, segundo dados da UNDP, a população adulta do Brasil tinha, em 2010, 7,2 anos médios de estudo, contra apenas 2,7 anos de estudo em Burundi (o Brasil com 167% a mais do que o Burundi). Porém, o GGGI, que não capta essas diferenças de nível, apresenta um índice relativo à educação para o Brasil apenas 16% mais alto que os 0,8565 atribuídos ao Burundi.

No quesito participação econômica e renda os problemas não são menores. Segundo dados da UNDP, a renda per capita de Burundi em 2010 foi de meros 430 dólares (medidos em poder de paridade de compra – ppp) e de 10.847 dólares no Brasil (também em ppp). Portanto, a renda per capita brasileira é 27 vezes maior do que a da população do Burundi. Contudo, o GGGI apresenta um índice de 0,7270 para Burundi e de 0,6679 para o Brasil porque, apesar das péssimas condições de renda no Burundi,  com ambos os sexos sofrendo baixo nível de renda e pequeno acesso aos bens e serviços necessários para uma boa qualidade de vida, a desigualdade de gênero é pequena. Já no Brasil, embora o padrão de renda e consumo das mulheres brasileiras seja muito superior ao das mulheres de Burundi, a maior desigualdade em relação aos homens brasileiros faz o Brasil ficar atrás do Burundi neste ítem. A maior igualdade de gênero no Burundi, neste caso, não tem qualquer correlação com obtenção de direitos das mulheres e de fortalecimento da autonomia feminina.

No quesito participação econômica os problemas do GGGI também são enormes, pois não consegue mensurar adequadamente sequer a discrepância de gênero que pretendia captar. O Burundi apresenta um índice de 0,8355 (a quarta melhor igualdade de gênero no mundo), e o Brasil apresenta um índice de 0,6490. Porém, as mulheres brasileiras entram mais tarde no mercado de trabalho porque ficam mais tempo na escola e possuem escolaridade superior à dos homens brasileiros e saem mais cedo porque aposentam, em média, cinco anos antes dos trabalhadores do sexo masculino.  Evidentemente, existe no Brasil, como também no Burundi, uma divisão de trabalho que atribui às mulheres as tarefas da reprodução social. No Brasil isto significa que uma parte das mulheres não consegue conciliar o trabalho no mercado com o trabalho doméstico e outra parte acumula uma dupla jornada de trabalho. Porém no Burundi, a dupla jornada de trabalho é um fenômeno mais corrente e agravado pela sobrecarga das altas taxas de fecundidade e da alta mortalidade infantil.

Além disto, a situação da previdência social é completamente diferente nos dois países. No Brasil as mulheres são maioria dos beneficiários da previdência social, embora não sejam maioria da população economicamente ativa. Portanto, o sistema de proteção social das mulheres, no Brasil, mesmo com todos os defeitos, é muito melhor do que em Burundi. O fato do Global Gender Gap Index não levar em consideração a cobertura previdenciária é um problema metodológico sério e que distorce a análise da desigualdade de gênero entre os países.

No quesito participação política o GGGI apresenta um índice de 0,2442 para o Burundi e de apenas 0,0526 para o Brasil. De fato, a participação das mulheres na Câmera dos Deputados é de 9% no Brasil e de 32% no Burundi. Isto explica o baixo índice brasileiro e mostra o atraso que o Brasil possui no quesito de participação parlamentar. Porém, nas últimas eleições o Brasil elegeu uma mulher para a Presidência da República, enquanto o Burundi tem um homem no posto máximo do Executivo. Portanto, se o Brasil está em pior situação de gênero na participação no Poder Legislativo, o mesmo não acontece no Poder Executivo (que também contam com várias ministras). O GGGI dá um peso importante para o número de Chefes de Estado nos últimos 50 anos, porém isso não é suficiente para captar movimentos recentes de igualdade de gênero na política. Assim, apesar da presença de uma Presidenta mulher no Executivo brasileiro, o índicador de participação política do Brasil fica em situação muito inferior ao indicador do Burundi.

Os exemplos acima mostram que, em geral, as mulheres brasileiras possuem muito mais direitos de cidadania do que as mulheres (e também os homens) do Burundi. Ou seja, as brasileiras vivem melhor que as mulheres do Burundi. Contudo, tendo em vista o objetivo do índice, a falta de direitos de uma renda decente e de um nível mínimo de matricula educacional no Burundi, não foi obstáculo para que o país apresentasse indicadores de gênero de melhor nível. Portanto, quando o GGGI diz que o Burundi está bem posicionado, em 24º lugar no ranking de desigualdade de gênero, pode parecer que a situação de suas mulheres é de maior autonomia. Mas os dados mostram que tanto homens quanto mulheres no Burundi carecem dos direitos humanos elementares.

Já no Brasil, pode parecer que a posição 82º do ranking do GGGI signifique que as mulheres brasileiras possuem menor autonomia. Contudo, o sexo feminino no Brasil tem superado os homens na saúde, na educação e no acesso à previdência. Tem avançado no mercado de trabalho e já são maioria da população economicamente ativa com mais de 11 anos de estudo.

Mesmo que ainda falte muito para se avançar na construção de uma sociedade com maior equidade de gênero, a situação das mulheres brasileiras é muito melhor do que a situação das mulheres do Burundi, mas isto não está refletido nos indicadores do Global Gender Gap Index. Países como a Islândia (primeira colocada no GGGI, 2011), que possuem baixa desigualdade de gênero em uma situação social de respeito aos direitos humanos e ao processo de inclusão social para ambos os sexos, podem ter indicador próximo do de Burundi, onde a menor desigualdade de gênero ocorre em uma situação de total exclusão social e de ausência dos direitos humanos básicos e universais. São dois contextos completamente diferentes. Mas o Índice Global de Desigualdade de Gênero, do Fórum Econômico Mundial, apresenta com se fosse possível separar a desigualdade de gênero das condições gerais da cidadania social.

Desta forma, deve-se ter cuidado ao utilizar este índice de desigualdade de gênero do Fórum Econômico Social como indicador da situação das mulheres, pois o que a metodologia do GGGI apresenta em seu indicador sintético é uma comparação entre alhos e bugalhos.

Downloads:

  • veja este artigo também em versã o pdf (clique aqui).
]]>
O Programa Bolsa Família incentiva a fecundidade no Brasil? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=821&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-programa-bolsa-familia-incentiva-a-fecundidade-no-brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=821#comments Mon, 07 Nov 2011 10:48:35 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=821 O valor recebido pelas famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família (PBF) cresce à medida que aumenta o número de crianças e adolescentes da família. Pelos valores praticados em 2011, temos que uma família em extrema pobreza recebe o benefício básico de R$ 70,00. Para cada criança ou adolescente de até quinze anos, a família recebe um adicional de R$ 32,00, conhecido como “benefício variável”. Cada família pode receber até três benefícios variáveis. Ou seja, uma família que tenha três ou mais membros com até quinze anos receberá 70 + 3*32 = R$ 166,00. Há, ainda, o benefício variável vinculado ao adolescente: as famílias que têm um adolescente entre 16 e 17 anos recebem mais R$ 38. São pagos, no máximo, dois benefícios dessa espécie por família, o que elevaria o valor máximo da bolsa a R$ 166,00 + 2*38 = R$ 242

Surge, então, a pergunta: será que o benefício variável pago para cada criança adicional estimula as famílias beneficiárias do PBF a ter mais filhos? Para responder a essa questão precisamos avaliar como tem evoluído a taxa de fecundidade no Brasil, bem como consultar diversos estudos que buscaram medir o impacto do PBF sobre essa taxa.

A fecundidade feminina no Brasil vem caindo continuamente desde os anos sessenta. A Taxa de Fecundidade Total (TFT) era de 6,3 filhos por mulher em 1960, caiu para 5,8 filhos em 1970, 4,4 filhos em 1980, 2,9 filhos em 1991, 2,4 filhos em 2000 e cerca de 1,9 filho em 2010, segundo os censos demográficos do IBGE.

A taxa de fecundidade caiu em todas as Unidades da Federação. Os Estados da região Norte tinham fecundidade acima de 8 filhos por mulher em 1970, caindo para cerca de 3 filhos em 2000. Os Estados da região Nordeste tinham fecundidade de 7,5 filhos por mulher em 1970, passando para 2,7 filhos em 2000. As demais regiões tinham fecundidade mais baixa em 1970 e chegaram a uma taxa próxima ao nível de reposição populacional (2,1 filhos por mulher) na virada do milênio.

Durante a primeira década do século XXI a fecundidade continuou caindo em todo o País e chegou abaixo do nível de reposição na maioria dos Estados brasileiros, sendo que o Rio de Janeiro apresentou a menor TFT, de 1,6 filho por mulher em 2009. Segundo Faria (1989), as políticas públicas de saúde, previdência, crédito e telecomunicações tiveram papel importante na queda da fecundidade no Brasil. As mudanças estruturais e institucionais do país possibilitaram a reversão do fluxo intergeracional de riqueza, aumentando o custo e reduzindo os benefícios dos filhos (Alves, 1994).

As taxas de fecundidade são mais baixas para os segmentos da população urbana, de maior renda, de maior escolaridade, ou seja, de maior inclusão social no Brasil. O tamanho das famílias é menor nos segmentos populacionais que possuem informações e acesso aos serviços de saúde (públicos ou privados) e, em particular, aos serviços de saúde reprodutiva. Para as mulheres de maior renda e maior nível educacional a taxa de fecundidade está em torno de 1 (um) filho por mulher, o que quer dizer que cada casal deste segmento social está gerando apenas a metade das pessoas necessárias para se repor.

Já as parcelas da população com menores níveis de renda e escolaridade possuem taxas de fecundidade mais elevadas. Mas estas taxas também estão caindo. O segmento social composto pelos 20% mais pobres da população tinha fecundidade de 5 filhos por mulher em 1992 e passou para 3,4 filhos por mulher em 2009. Este é o segmento que faz parte do público alvo do Programa Bolsa Família. Portanto, a fecundidade da população mais pobre do Brasil é mais elevada do que a média nacional, mas não é uma “fecundidade africana” (como retrata certos setores da mídia brasileira) e sim uma fecundidade relativamente baixa e em declínio.

Desta forma, os dados indicam que as taxas de fecundidade da população mais pobre do Brasil caíram na última década. Este fato, já é um indício de que o Programa Bolsa Família (PBF), em vigor desde 2004, não parece ter efeitos pró-natalistas, como é o temor de alguns. Os números e as contas vão ficar mais claras quando o IBGE publicar os dados definitivos do censo demográfico 2010. Porém, já existem estudos indicando que o PBF não tem o efeito prático de aumentar a fecundidade no Brasil.

Stecklov et al. (2006), analisando outros programas, que não o PBF, argumentam que há um estímulo pró-natalista nas políticas de transferência de renda, quando a quantidade de recursos transferidos aos beneficiários depende do tamanho da família. Os programas analisados por esses autores foram: Progresa no México, Rede de Proteção Social (RPS) na Nicarágua e Programa de Assistência Familiar (PRAF) em Honduras. Os autores afirmam que o desenho – intencional ou não-antecipado – dos dois primeiros não apresenta estímulo pró-natalistas, enquanto o terceiro geraria estímulo natalistas que dificultam o combate à pobreza.

No documento fundador do Progresa está marcado explicitamente o objetivo de se evitar “fomentar famílias muy extensas”. Já o PRAF, de Honduras, possibilita o aumento de benefícios e a entrada no programa com o aumento do número de filhos.

O Programa Bolsa Família (PBF) tem um desenho parecido com o PRAF de Honduras. Os benefícios do PBF crescem até 5 filhos, sendo 3 crianças de 0-15 anos e até 2 adolescentes de 15 a 17 anos. Assim, teoricamente, o programa de transferência de renda do Brasil teria um desenho pró-natalista.

Contudo, estudos acadêmicos mostram que, na prática, o Programa Bolsa Família não tem provocado o aumento do número de filhos das famílias beneficiadas. Romero Rocha (2009) investiga os incentivos à fecundidade dos programas condicionais de transferência de renda, nos quais a quantidade de recursos transferidos depende do tamanho da família. Usando uma metodología econométrica ele mostra que o PBF não tem provocado o aumento da fecundidade da população pobre no Brasil.

Patrícia Simões e Ricardo Soares (2011) não encontram efeitos pró-natalistas no PBF. Bruna Signorini e Bernardo Queiroz (2011) utilizam dados das PNADs 2004 e 2006 para observar o efeito médio do programa nos beneficiários do PBF, utilizando a metodologia do escore de propensão para identificar os grupos de tratamento e controle. Os resultados encontrados pelos autores indicam que não há impacto significativo do recebimento do BF na decisão de ter filhos.

Alves e Cavenaghi (2011), com base na pesquisa “Impactos do Bolsa Família na Reconfiguração dos Arranjos Familiares, nas Assimetrias de Gênero e na Individuação das Mulheres”, realizada na cidade do Recife em 2007/2008, mostram que não existe diferença significativa no comportamento reprodutivo entre as mulheres que vivem em famílias cadastradas no CadÚnico[1] beneficiadas e não beneficiadas pelo PBF. Embora haja uma tendência de as famílias beneficiadas terem uma fecundidade ligeiramente maior, assim como uma proporção um pouco maior de mulheres com 3 ou mais filhos (22,7% contra 16,4% das não-beneficiárias), o fato é que o maior número de crianças tende a reduzir a renda per capita, aumentando a probabilidade das famílias se tornarem elegíveis aos benefícios do Programa. Dessa forma, a causalidade entre número de filhos e beneficiados pelo PBF seria inversa. A mulher não tem mais filhos porque passou a receber o PBF, mas sim o contrário: por ter mais filhos, e, com isso, reduzir a renda per-capita familiar, a mulher se credencia a participar do PBF.

Fazendo um breve resumo da pesquisa, observa-se que apenas 8,4% (beneficiárias do Cadúnico) e 25,1% (não beneficiárias) das adolescentes e jovens entre 15 e 19 anos, cadastradas no Cadúnico, não tinham filhos, enquanto a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS -2006) indicou um número de 84% de mulheres sem filhos nesta faixa etária no Brasil. No Recife, 50% (beneficiárias) e 33,3% (não beneficiárias) das adolescentes e jovens entre 15 e 19 anos, em famílias do CadÚnico, já tinham tido um ou dois filhos, respectivamente, contra apenas 14% (beneficiárias) e 0,2% (não beneficiárias) do conjunto de mulheres do país que responderam à PNDS-2006. Isto mostra que o padrão de fecundidade é muito jovem e que a maternidade faz parte da vida cotidiana da maioria absoluta das adolescentes e jovens pobres do Recife.

A fecundidade mais elevada entre a população pobre, menos escolarizada, com menor nível de consumo e piores condições habitacionais é uma realidade constatada em todas as pesquisas sobre o comportamento reprodutivo no Brasil. A literatura mostra que, em grande parte, esta maior fecundidade se deve à falta de acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, mas também acontece devido à falta de perspectivas profissionais e educacionais, assim como de um projeto de vida que possibilite o progresso cultural e material destas mulheres.

Os dados da pesquisa também mostram que é alta a percentagem de mulheres que engravidaram sem ter planejado segundo a participação ou não no PBF. De certa forma, isto ratifica a hipótese de que estas mulheres estão no programa porque tiveram filhos e não o contrário, isto é, tiveram filhos porque estão no Programa.

O survey mostrou ainda que mais da metade das famílias obtém os métodos contraceptivos por meio do Programa de Saúde da Família (PSF). As outras fontes de obtenção para as famílias beneficiadas do PBF são os centros de saúde (ou ambulatório) e as farmácias particulares, com 17% e 26%, enquanto as famílias não beneficiadas do PBF conseguem 27% e 20% respectivamente nestes dois locais. O fato de as famílias beneficiadas recorrerem um pouco mais às farmácias particulares pode indicar que o efeito renda do PBF pode estar sendo usado inclusive para a compra de métodos contraceptivos via mercado. Assim, as falhas da política pública de saúde reprodutiva poderiam estar sendo compensadas, em parte, pela política de transferência condicionada de renda.

Como apontado na literatura demográfica, as mulheres com menor nível de renda e educação no Brasil começam a ter filhos mais cedo (rejuvenescimento da fecundidade) e fazem um “controle por terminação” também mais cedo após se atingir um determinado tamanho da prole. Como possuem dificuldades para obter métodos de regulação da fecundidade de forma eficiente e constante, acabam recorrendo às esterilizações. Das quase 90 mil mulheres em idade reprodutiva e que recebiam o benefício do PBF na cidade do Recife, 44% estavam esterilizadas no momento da pesquisa, assim como mais da metade das 14 mil mulheres que estavam registradas no CadÚnico, mas se encontravam em famílias que não recebiam benefícios.

Quando perguntado quem optou por utilizar a esterilização, mais de dois terços das mulheres disseram que foram elas mesmas sem a orientação de ninguém (47%) ou elas mesmas com orientação do médico (25%). Em torno de 10% das mulheres disseram que optaram pela esterilização em comum acordo com o cônjuge e apenas algo em torno de 1% das mulheres afirmaram que optaram pelo método em função do cônjuge ou companheiro. Não houve diferenças significativas entre as famílias beneficiadas e não beneficiadas pelo PBF neste quesito.

A pesquisa mostra de maneira clara que esta parcela pobre da população do Recife registrada no CadÚnico, assim como o conjunto da população brasileira, também tem passado pelo processo de transição da fecundidade. A transição da fecundidade não é um fenômeno exclusivo da população rica. A geração mais velha, formada pelas mães das mulheres entrevistadas, teve um número de filhos bem superior à geração atual, pois quase 80% tiveram 4 ou mais filhos e foi praticamente zero o percentual de sem filhos. Já para a geração atual, formada por todas mulheres que responderam à pesquisa, somente 17,9% tiveram 4 ou mais filhos, 21,8% tiveram 3 filhos e o percentual maior (37,1%) ficou para as mulheres que tiveram 2 filhos. O percentual com um filho ficou em 21,6% e as sem filhos com 1,5%.

Contudo, quando se pergunta sobre o número de filhos desejados (se pudesse escolher o número de filhos, quantos seriam?) as mulheres apontaram um número bem menor do que os obtidos pela geração passadas. Nota-se que o percentual de mulheres que manifestaram o desejo de ter 3 ou mais filhos é bem menor do que o número de filhos que elas ou suas mães tiveram. Em contraponto, no que se refere à fecundidade desejada, cresce a preferência de ter 2 ou menos de 2 filhos, inclusive com 6,4% das mulheres manifestando não desejar filhos (fecundidade zero).

O que se pode constatar é que mesmo a população de baixa renda tem apresentado redução no número médio de filhos à medida que o país vai se urbanizando e a população vai tendo acesso às políticas públicas de educação e saúde. Tanto as mulheres que recebem quanto as que não recebem os benefícios do PBF desejam ter menos filhos e possuem alto índice de gravidez não planejada. Ainda falta muito para o Sistema Único de Saúde (SUS) universalizar, na prática, os serviços de saúde sexual e reprodutiva.

Em geral, as mulheres beneficiadas vão para o PBF porque têm filhos e, não necessariamente o contrário, têm filhos para entrar no PBF. A presença de cônjuge no domicílio não melhora a renda necessariamente, mas apenas quando este trabalha. O desenho do Programa Bolsa Família pode até ser considerado potencialmente pró-natalista (como sugere Stecklov et al. 2006), porém, o valor da parte variável do benefício é muito baixo (R$ 32,00 mensais para crianças até 15 anos, e R$ 38,00 mensais para adolescentes com 16 ou 17 anos) e dificilmente teria um impacto capaz de alterar a tendência média das taxas de fecundidade que, de modo geral, estão em declínio em todo o Brasil.

As pesquisas mostram que os diferenciais de fecundidade da população tendem a se reduzir e a convergir para níveis baixos quando se universaliza o acesso às políticas públicas e cresce a inclusão social.

Downloads:

  • veja este artigo também em versã o pdf (clique aqui).

Para ler mais sobre o tema:

ALVES, J. E. D. Transição da fecundidade e relações de gênero no Brasil. 1994. 152f. Tese (Doutorado) – Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1994

ALVES, JED. CAVENAGHI, S. O Programa Bolsa Família, Fecundidade e a Saída da Pobreza, Scribd, 2011. Disponível em:

http://pt.scribd.com/doc/69786813/O-Programa-Bolsa-Familia-Fecundidade-e-a-Saida-da-Pobreza

ALVES, JED. CAVENAGHI, S. O Programa Bolsa Família e políticas públicas: saúde reprodutiva e pobreza na cidade do Recife.  IX Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Regionais e Urbanos – IX ENABER, Natal, 19 a 21 de outubro de 2011. Disponível em:

http://200.251.138.109:8001/artigosaprovados/12.61.pdf

ALVES, JED, CAVENAGHI, S. Dinâmica demográfica e políticas de transferência de renda: o caso do programa Bolsa Família no Recife. Revista Latinoamericana de Población. , v.3, p.165 – 188, 2009

Disponível em: http://www.alapop.org/2009/Revista/Articulos/Relap4-5_art7.pdf

FARIA, V.E. Políticas de governo e regulação da fecundidade: conseqüências não antecipadas e efeitos perversos. In: CIÊNCIAS sociais hoje. São Paulo, ANPOCS, 1989.

ROCHA, R. Programas Condicionais de Transferência de Renda e Fecundidade: Evidências do Bolsa Família. PUC/Rio, Rio de Janeiro, 2009. Disponível em:

http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0510700_09_cap_03.pdf

SIGNORINI, B.A., QUEIROZ, B.L. The impact of Bolsa Família Program in the beneficiary fertility. Texto para Discussão, n. 439, Cedeplar/UFMG, Belo Horizonte, Agosto de 2011. Disponível em:

http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td/TD%20439.pdf

SIMÕES, P., SOARES, R.B. Efeitos do Programa Bolsa Família na Fecundidade das Beneficiárias.  CAEN/UFC, Fortaleza, 2011. Disponível em:

http://www.caen.ufc.br/arquivos/dissertacoes_defendidas_mestrado_economia_2009_2010_2011.pd

STECKLOV G, WINTERS P, TODD J, REGALIA F. Demographic Externalities from Poverty Programs in Developing Countries: Experimental Evidence from Latin America. American University, Washington, n. 1, 41 p. january 2006, Disponível em: http://aladinrc.wrlc.org/handle/1961/4969


[1] Cadastro instituído pelo Decreto nº 6.135/2007, para registro das famílias elegíveis para acesso a programas sociais.

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=821 8