César Mattos – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 03 Feb 2021 15:51:16 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Por que não vacinas para a Covid-19 fora do SUS? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3400&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-nao-vacinas-para-a-covid-19-fora-do-sus Wed, 03 Feb 2021 15:50:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3400 Por que não vacinas para a Covid-19 fora do SUS?

Por César Mattos[1]e Cleveland Prates[2]

“Um comerciante é um homem que  …não dá nem toma o imerecido”

Ayn Rand – A Virtude do Egoísmo

 

  1. Introdução

Com a aprovação de duas vacinas no Brasil, Astrazeneca e Coronavac, entrou definitivamente no debate nacional a oferta privada de vacinas contra a Covid-19, como uma complementação à aquisição realizada pelo Estado via SUS.

No entanto, já apareceram reações negativas, até mesmo de onde não se esperava. O pPresidente médico do Hospital Albert Einstein de São Paulo, por exemplo, declarou que “Não acho correto vender vacina no setor privado enquanto estiver faltando na rede pública. Estamos vivendo uma pandemia, não podemos privilegiar quem pode pagar pela vacina.”[3].

Em matéria no Nexo, Bortoni afirmou que “a possibilidade de que empresas comprem vacinas e imunizem seus funcionários é vista por alguns especialistas como imoral, pois pessoas saudáveis estariam passando na frente das que mais necessitam[4]. Na mesma matéria, é citado o professor de bioética Alcino Eduardo Bonella, da Universidade Federal de Uberlândia, que “disse ser condenável do ponto de vista ético que clínicas privadas pudessem vender os imunizantes “sem que exista no setor público a vacina disponibilizada para todo mundo”. Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da ANVISA também se manifestou dizendo que a “compra de vacina contra o coronavírus pelo setor privado não é proibida, mas é antiética”.[5]

Em entrevista a Renata Lo Prete no G1, o médico sanitarista Adriano Massuda, pesquisador do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da FGV, por sua vez, até reconhece que a vacina fornecida pelo setor privado, com fins comerciais, pode ter um “efeito coletivo”, mas que não justificaria o “efeito negativo sobre a inequidade” do acesso às vacinas, o que se constituiria em um problema moral e ético[6].

Mesmo o economista Armínio Fraga se posicionou contrariamente à provisão privada de vacinas pois não seria “justo alguém entrar num leilão [de vacinas] para algo que é um bem público”[7]. Ademais, o economista seria contrário “devido ao temor de que ela pudesse inflacionar o mercado (já que as empresas pagariam muito mais pelas doses)”, o que acreditamos que seria a única motivação plausível, mas neste caso equivocada.

Nosso objetivo aqui é expor porque estas reservas em relação à provisão privada e comercial da vacina não fazem sentido e mostrar a razão da utilização de mecanismos de mercado se constituir em uma ação complementar fundamental na estratégia de vacinação.

Do ponto de vista econômico, há de fato sentido no Estado entrar e até mesmo assumir a liderança na distribuição de vacinas, especialmente em uma pandemia como a da Covid-19, dado que, como veremos mais à frente, estamos tratando de um caso clássico de geração de externalidades positivas. Não obstante, esta conclusão não autoria afirmar que o setor privado deva ser excluído deste processo. Ao contrário, ele poder ser fundamental na elevação da oferta no país e agilizar o fim da pandemia.

Visando dar maior clareza à linha de argumentação aqui desenvolvida, decidimos segmentar em oito tópicos os principais aspectos desta discussão, conforme pontuado ao longo da continuação do texto.

  1. Vacina como uma forma de gerar externalidades positivas

Vacinas são um exemplo clássico de um bem que gera o que se denomina em economia, de externalidade positiva. Mais precisamente, qualquer um que se vacina se torna um canal de transmissão a menos do vírus, o que beneficia todo o resto da sociedade. Em outras palavras, o ato de se vacinar afeta positivamente todos os demais indivíduos (gera externalidades positivas), mesmo àqueles que ainda não se vacinaram. Entretanto, o benefício gerado (a externalidade) não é internalizada por todo mundo, o que até poderia criar um incentivo para que algumas pessoas não se vacinem, caso tenham que pagar por isso. Portanto, há sentido que o Estado corrija esta “falha do mecanismo de mercado” induzindo a esta “internalização”, por cada pessoa, dos benefícios coletivos gerados pela imunização.

Em outras palavras, o mecanismo de mercado, de forma isolada, geraria uma quantidade de vacinação inferior ao socialmente desejável. Isso, no entanto, não quer dizer que a alternativa ao mercado seja uma imunização exclusiva pelo Estado. Ao contrário, o argumento da externalidade positiva não internalizada apenas aponta que o mecanismo de mercado sozinho não é suficiente, mas não implica que ele não seja útil e nem relevante na estratégia global de vacinação.

Tomando por base esta discussão inicial, a conclusão óbvia é que quanto mais vacinas conseguirmos trazer para o país, mais rapidamente ampliaremos o número de pessoas vacinadas e mais a coletividade se beneficiará do aumento marginal da quantidade de pessoas vacinadas.

  1. Vacina é um bem privado sob o ponto de vista econômico

Algumas pessoas têm usado o argumento de que as vacinas seriam bens públicos e que, portanto, deveriam ser fornecidas exclusivamente pelo Estado. A definição clássica e econômica de bem público pressupõe dois critérios: (i) não rivalidade no consumo; e (ii) não exclusão. A não rivalidade no consumo implica afirmar que o consumo de um bem ou serviço por uma pessoa não impede que outra pessoa também consuma o mesmo produto. Já o critério de “não exclusão” indica que qualquer um que crie um determinado produto não tem condições de impedir que terceiros também façam uso dele. Neste sentido, se alguém, por exemplo, tiver intenção de investir no desenvolvimento de um dado bem ou serviço, não terá como impedir que outros “peguem carona” no seu investimento. O grande dilema que se forma, portanto, é que todos gostariam de ter disponível este produto ou serviço, mas ninguém individualmente estaria disposto a investir na sua consecução, uma vez que teriam como impedir que outros usufruíssem dele sem pagar para assim recuperar o investimento realizado. Neste sentido, só o Estado teria condições de prover ou coordenar o provimento deste serviço. São exemplos clássicos, iluminação pública, exército e justiça.

Note-se, entretanto que as vacinas não preenchem os dois critérios aqui descritos. Em primeiro lugar porque o consumo de uma dose por uma pessoa compromete o consumo da mesma dose por outra pessoa, ou seja, a vacina é um bem que envolve “rivalidade no consumo”. No mesmo sentido a vacina não atende ao critério da “não-excludabilidade”. Se o detentor do produto desejar excluir quem não pagar no consumo, ele pode fazê-lo sem qualquer dificuldade.

Em realidade, as vacinas assumem interesse público pelo efeito sobre um bem vital, que é a saúde da população, e mais ainda pela questão da externalidade positiva acima apontada. Mas a vacina não é um “bem público”.

A questão que resta, portanto, é se a vacina privada e paga por meio do mecanismo denominado “mercado” reduziria a quantidade de vacina disponível para a rede pública dentro do mecanismo “fila” ou se ela se tornaria mais uma opção para a população brasileira, contemplando, inclusive, as preferências dos vários grupos da sociedade.

  1. Há heterogeneidade do produto pelo lado da demanda e da oferta

Nas discussões públicas apontadas até o momento passou despercebido o fato de que há diferenças consideráveis tanto pelo lado da demanda quanto pelo lado da oferta.

Visto pelo lado da demanda, as pessoas têm preferências próprias ou temores específicos com relação ao processo de vacinação. Existem grupos que simplesmente não pretendem se vacinar (os negacionistas). Há outros cuja opção por vacinar pode ser deixada de lado ao longo do tempo, principalmente sabendo-se que o benefício marginal pode se reduzir na medida em que mais gente vacinada pode reduzir o número de contaminados e tornar-se algo menos preocupante para alguns. Há ainda outros que mesmo pretendendo vacinar, têm medo de ter alguma reação adversa com um tipo ou outro da vacina disponibilizada. Em outras palavras, a preferência individual de cada pessoa pode não coincidir com as escolhas do governo, sendo que algumas delas podem estar dispostas a pagar para ter acesso a algo que o Estado não fornecerá.

A preferência do consumidor pode ainda estar associada à urgência que gostaria de tomar a vacina. Pessoas que não necessariamente estão em algum grupo de risco ou aquelas que estão, mas em um lugar na fila pública mais atrás, podem estar dispostas a tomar a vacina antes por qualquer razão que seja. Uma delas, e bastante razoável inclusive sob o ponto de vista público, é o caso de pessoas que têm que sair par trabalhar todos os dias e tem maior probabilidade de contrair a doença, seja no caminho do trabalho, seja no próprio ambiente de trabalho. Como é de conhecimento público, não há como se prever, com certeza absoluta, a reação de cada pessoa à doença e pessoas mais avessas ao risco podem estar dispostas a pagar para não ter que passar por isso.

Neste aspecto, é interessante perceber que o Estado, ao arbitrar a construção da fila, se preocupou com pessoas de mais idade (plenamente justificável pelo risco do agravamento), mas deixou de lado o risco de que profissionais que trabalhem em setores de maior risco (vide o caso dos frigoríficos em Santa Catarina[8]) possam contrair a doença e morrer, deixando desamparadas crianças cujo sustento e futuro possa se comprometer substancialmente por essa perda familiar. A questão posta é: será que esta fila arbitrada como está representa de fato as preferências individuais e principalmente da sociedade como um todo?

Podemos ainda estender este argumento para o caso no qual os demandantes sejam empresas que pretendam comprar a vacina para proteger seus funcionários. Algumas delas podem entender (por ter um conhecimento mais claro do seu negócio) que o risco de manter as pessoas no ambiente de trabalho é elevado e/ou que mantê-las em casa implique perda de produtividade elevada com impacto sobre seus resultados. Quanto mais isso for verdade, mais dispostas essas empresas estarão em pagar pela vacina e reduzir as perdas incorridas, que envolve não só a questão financeira, como também a vida de seus funcionários.

O que parece que também não está sendo visto nesta discussão é que a redução da atividade econômica associada à pandemia e à falta de vacinação implica perdas de emprego e elevação da pobreza, que traz consigo outras doenças e também perdas de vidas. Fato é que o Estado não tem condições de gerenciar e arbitrar todos os casos que podem ser encontrados em nossa sociedade, por se tratar de uma situação de “preferência revelada” (preferência dos consumidores), que só pode ser resolvida pelos mecanismos de mercado via ajuste de preços.

Este aspecto se soma ainda à heterogeneidade pelo lado da oferta. É fato que estamos tratando de um mercado oligopolístico com diferenciação de produtos. As vacinas têm, muitas vezes, processos de produção diferentes, com nível distinto de eficácia e efeitos adversos, além de preços variando de laboratório para laboratório. E tudo isso nos dias de hoje é claramente entendido pela sociedade, sendo que muitas pessoas poderiam se sentir mais confortáveis em tomar uma vacina de um laboratório e não de outro. Se lembrarmos que as compras do governo brasileiro estão concentradas em apenas duas vacinas (a Coronavac e a da Astrazeneca), a possibilidade do setor privado trazer novos tipos de vacina, longe de atrapalhar as compras governamentais, será uma forma de atender às diferentes preferências das pessoas e acelerar o processo de vacinação.

  1. A entrada do setor privado não restringirá a oferta do setor público brasileiro

Principal argumento para não permitir que o setor privado compre vacinas neste momento é o de que há uma forte restrição de oferta neste momento e que isso traria uma questão ética no sentido de quem o Estado brasileiro teria menos condições de elevar a oferta e que as pessoas que teriam dinheiro se vacinariam antes. Em nosso entender esta é uma não discussão pelos condicionantes observados neste mercado.

Em primeiro lugar, há que se destacar que os laboratórios que estão desenvolvendo as vacinas não têm uma “quota” fixa por país. O número de vacinas disponível para os setores público e privado conjuntamente no Brasil, portanto, não pode ser tomado como constante. Ou seja, não é um “jogo soma zero” entre vacinas SUS e vacinas setor privado, ainda que reconhecendo haver uma restrição global momentânea de oferta.

Astrazeneca e Pfizer recentemente anunciaram que ainda não iriam disponibilizar vacinas para o setor privado neste momento da pandemia. Mas isso não implica que elas sempre recusariam ou recusarão o “cliente” no setor privado, mas sim que já fizeram acordos com vários “clientes governos” pelo mundo afora. Ademais, só há muito pouco tempo as vacinas começaram a ser liberadas pelos respectivos órgãos reguladores, o que constitui um risco próprio de Estado, dado requerer ação de governo.

Mas será que o setor privado estaria disputando com o setor público brasileiro neste momento de escassez global de oferta de vacinas? Não há dúvida de que, considerando o mercado mundial como um todo, no presente momento, já existe uma disputa ocorrendo. Mas ela não é entre setor público e privado de cada país, mas sim entre países (incorporando a soma de setor público e privado para cada país), mas apenas em relação ao que ainda não foi contratado pelos vários governos dos vários países. Ou seja, pela oferta futura ainda não contratada.

A grande parte dos países desenvolvidos já contrataram até mais do que precisavam para imunizar toda a sua população. Para esta parcela já contratada não há mais disputa entre setor público e privado nem no plano global.

Reforce-se, o que existe hoje é uma disputa entre países. A Astrazeneca há pouco tempo, por exemplo, avisou que não iria cumprir o cronograma de liberação das vacinas e a presidente da Comissão Europeia (CE), Ursula von der Leyen, afirmou em 26/01/21[9] no Fórum de Davos, que os laboratórios devem honrar os compromissos assumidos pela Europa, que investiu “bilhões para desenvolver as primeiras vacinas contra a Covid-19”.

A Presidente da CE chegou a ponderar que “a aliança Covax, a UE, junto com 186 Estados, garantirá milhões de doses para países de baixa renda”. No entanto, deixou também claro que o mecanismo “fila” priorizará naturalmente, em primeiríssimo lugar, os cidadãos europeus. Não à toa, Von der Leyen asseverou que “por isso, vamos montar um mecanismo de transparência nas exportações de vacinas”, visando a identificar as entregas fora da UE de doses produzidas na Europa[10]. Ou seja, nada diferente de mais uma aplicação do “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Assim, a disputa “estado x estado” é, muito de longe, a restrição relevante para definir a restrição de oferta de vacina que o Brasil enfrentará; principalmente se compararmos a uma eventual disputa com o setor privado brasileiro ou estrangeiro, que por um acaso deseje ofertar comercialmente a vacina aqui dentro do país.

De qualquer forma, a população mundial hoje é de 7,8 bilhões de pessoas, com a população brasileira representando cerca de 2,7% deste total. Ou seja, o Brasil representa menos de 3% da demanda global pela vacina em um mercado que é mundial. Não há qualquer sentido em se afirmar que é a demanda do setor privado brasileiro que fará faltar o produto “vacina para covid-19” para o setor público brasileiro, mas sim a pressão dos outros mais de 97% de demanda que ocorre agora no mundo, e tudo isso fortemente concentrado nos clientes “governos”. Mesmo para aqueles que argumentam que preço se elevaria para o governo, a entrada do setor privado brasileiro seria muito residual para encarecer o produto; sem falar que os preços já foram previamente definidos pela, respectivas indústrias farmacêuticas.

  1. A irrazoabilidade dos argumentos apontando sobre a falta de ética

Há especialistas da área de saúde fazendo alegações de que a entrada do setor privado representaria um problema de ordem ética. O médico Adriano Massuda, por exemplo, chegou a fazer o paralelo da fila da vacina contra o covid-19 com a fila de transplantes de órgãos em que a alocação é regida exclusivamente pelo mecanismo “fila”, respeitando as compatibilidades entre doador e recebedor[11]. Em sua visão, o processo de vacinação deveria seguir o mesmo rito.

Nada mais falacioso. A oferta de órgãos não ocorre pela decisão voluntária de um empresário produzir, mas sim pelo acaso da morte de alguém, o que não pode ser comparado com o mercado mundial da vacina da covid-19, mesmo sob um ambiente de restrição de oferta.

Há pouco tempo houve revolta na mídia acerca da requisição do Supremo Tribunal Federal (STF) para a Fiocruz em priorizar os funcionários do Tribunal. Começavam ali as tentativas de “fura-fila”. A Fiocruz felizmente recusou esta priorização e o próprio STF voltou atrás, inclusive com punição do servidor requisitante, que nunca ficou claro se agiu sozinho ou com a “benção” de cima.

A resposta da Fiocruz se baseou na ordem de prioridade estabelecida pelo Ministério da Saúde. Como o objetivo principal da estratégia de vacinação é minimizar o número de pessoas que pegam a doença e, principalmente, o número de mortes, o Ministério da Saúde concentrou a sua estratégia em vacinar “profissionais de saúde da linha de frente” (que têm naturalmente maior chance de serem contaminados e de transmitirem a doença para seus pacientes), “idosos com mais de 75 anos ou institucionalizados”, com mais chances de efeitos severos e morte na população[12], indígenas e quilombolas[13].

De fato, é eticamente questionável que um grupo qualquer passe na frente dos outros quando há um mecanismo de “fila” com priorização definida por “chance de pegar” e “morbidade” adotado pelo Ministério da Saúde em um contexto momentâneo de restrição de oferta. Mas aqui, repita-se, estamos falando do mecanismo “fila”, e não do mecanismo “mercado”. Daí que cabe indagar se o mesmo argumento utilizado para negar aos servidores do STF a vacina gratuita intermediada pelo SUS poderia ser utilizado para negar a vacina a quem pode e deseja pagar pela vacina paga e intermediada pelo setor privado?

Aqui, novamente, há que se entender que não está se verificando disputa neste momento entre setor público e privado brasileiros. A importação do setor privado para comercialização não ocorrerá se não for permitido o “mecanismo mercado”, o que infelizmente poderá implicar perda de oportunidade para o setor público (que poderia até economizar neste processo) e de bem-estar para a população.  Isto porque, por exemplo, cidadãos brasileiros mais ao final da fila, mas dispostos a pagar, simplesmente vão perder a oportunidade de se vacinar mais rapidamente, sem que isso afete aqueles cidadãos brasileiros que estão no início da fila do Estado e continuarão a ser igualmente vacinados.

Ficam piores também os próprios cidadãos que foram considerados prioritários, que têm mais risco de se contaminar ou morrer, porque eles podem ser contaminados por aqueles que foram impedidos de pagar para se vacinar. Ou seja, é o Estado impedindo o setor privado de, além de vacinar mais pessoas, acelera o processo de geração de externalidades positivas da vacina, inclusive para os que considera prioritários.

Daí se tem o argumento pretensamente ético da “iniquidade” que distingue “quem pode pagar” de “quem mais precisa”. Qualquer mecanismo via mercado, fora da fila, seria “injusto”, “antiético” e “egoísta”? Ora, por que pagar por uma vacina no setor privado, que não diminuirá a oferta disponível para o setor público, apresenta tais adjetivos?

  1. Eficiência pública e privada e questões de ordem prática

Em economia, é conhecido o critério de bem-estar de Pareto: Se você pode melhorar alguém, sem piorar outrem, por que não fazê-lo? É precisamente o mesmo caso aqui. Mais do que isso, se alguém está em 5º na fila e opta por não esperar e pagar para vacinar, ele sai da fila e a vacina chega mais rápido para todos na fila do 6º em diante.

Ademais, o Estado gasta menos com a mesma política pública. É o mesmo que temos hoje entre a população que paga um plano de saúde e não entra nas filas do (ou recorre bem menos ao) SUS. Resolve o seu problema mais rápido e desafoga o sistema para os mais pobres. Será que há um problema ético também em se pagar um “plano de saúde” para si mesmo e sua família?

E isto é completamente distinto de agentes públicos aproveitarem sua posição para conseguir a vacina de graça ou mesmo por um preço menor do que seria no mercado, além de passar na frente de todos dentro da “fila”. O fato de se estar disposto a pagar o que o mercado está pedindo e de isso não reduzir a quantidade de vacina para a “fila” do setor público afasta plenamente o argumento de “injustiça”, falta de ética ou o que for.

Resta aos defensores da tese da “iniquidade” o mesmo argumento que Margaret Thatcher chamava à atenção no parlamento britânico quando um membro do partido trabalhista a questionou sobre o “aumento da desigualdade”, ainda que reconhecendo os efeitos positivos da política econômica sobre o crescimento econômico e redução da pobreza: “As pessoas em todos os níveis de renda estão melhores do que estavam em 1979”. O honorável cavalheiro está dizendo que ele preferiria que os pobres estivessem mais pobres, desde que os ricos estivessem menos ricos. Dessa forma, nunca seria gerada riqueza para melhores serviços sociais como nós temos hoje. Que política?”[14]

Mas a situação está bem pior na prática. Um conjunto de 72 empresas estavam negociando aquisição da vacina da Astrazeneca com o objetivo de conseguir 33 milhões de doses, sendo que 50% seriam doadas ao SUS e 50% ficariam com as empresas participantes, que poderiam imunizar seus empregados. Com a resistência assinalada acima que também resultou em divergências quanto ao percentual a ser doado ao SUS, várias empresas parecem estar dispostas a sair da iniciativa[15]. Ou seja, se já seria um absurdo impedir que empresas privadas comprem vacinas já autorizadas pela Anvisa para imunizar seus empregados e a quem mais desejassem, imagine-se havendo qualquer percentual de doações para o mecanismo “fila” do próprio Estado!?

Outro ponto relevante da hesitação do setor privado em fechar negócios com os laboratórios estrangeiros nas novas vacinas, pelo menos no caso brasileiro, é que, tal como ocorreu com equipamentos para tratamento da pandemia como respiradores, agulhas e seringas, havia (como ainda há) grande probabilidade de expropriação pelos governos nos três níveis da federação. Se o próprio governo federal cogitou fazer isso com as vacinas em relação ao governo paulista (com atitude bem bloqueada pelo STF), mais provável seria isso ocorrer com as empresas privadas. Ou seja, qualquer iniciativa do setor privado em ofertar vacinas tem que ser muito conversada com os governos antes, para evitar que haja este tipo de expropriação.

De outro lado, a Associação Brasileira das Clínicas de Vacina (ABCVAC) e a importadora Precisa Medicamentos fecharam cinco  milhões de doses da vacina Covaxin, desenvolvida pelo laboratório indiano Bharat Biotech contra a Covid-19, a serem destinadas às clínicas privadas no Brasil. Esta vacina, no entanto, ainda está realizando testes na fase 3 e precisa passar pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que têm demandado testes em brasileiros, o que já tem atrasado desnecessariamente a aprovação da Pfizer e Sputinik Russa[16].

  1. Considerações finais

Conforme apontamos ao longo deste texto, parece haver um equívoco consolidado na opinião pública de que a provisão de vacina pelo setor privado implicaria uma competição indesejável com o setor público. Em nossa visão, este equívoco está associado a uma intepretação equivocada, principalmente de profissionais da área saúde, de que o Estado é a única forma de prover um bem que eles consideram “público” em um ambiente de restrição de oferta.

O que procuramos demonstrar aqui foi que apesar de estarmos tratando de uma questão pública de saúde, a vacina, em si mesma, não deve ser entendida como um bem público no sentido clássico econômico. Reforçamos que ela pode e deve ser ofertada pelo Estado não só por uma questão de imunização individual, mas também e principalmente pela externalidade positiva que gera, na medida em que cada indivíduo a mais vacinado reduz o risco dos demais de contrair a doença.

Não obstante, a entrada do setor privado brasileiro, conforme apontamos ao longo do texto, longe de competir com o setor público nacional, só elevará a quantidade de vacina disponível no Brasil e acelerará o processo em curso. Isto porque a competição na realidade já vem ocorrendo entre países e não entre setor público e privado. Vale destacar ainda que muito da demanda dos países desenvolvidos já foi contratada e que estamos tratando de uma oferta futura ainda não disponibilizada e negociada.

A possibilidade de que novas vacinas de outros laboratórios sejam também trazidas para o país é um argumento a mais a favor da atuação do setor privado, na medida em que a diversificação (além da ampliação) da oferta poderá contemplar demandas específicas.

Desta forma, consideramos que neste momento de escassez, em que urge uma rápida resposta de incremento de oferta interna, os mecanismos “fila” e de “mercado” devem caminhar juntos. Renegar o mecanismo de mercado terá seu custo medido em mais vidas desnecessariamente perdidas.

 

[1] Doutor e em Economia e consultor da Câmara dos Deputados.

[2] Economista especializado em regulação, defesa da concorrência e áreas correlatas. Atualmente é sócio-diretor da Microanalysis Consultoria Econômica, coordenador do curso de regulação da Fipe e professor de economia da FGV-Law/SP.

[3]https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/01/27/nao-podemos-privilegiar-quem-pode-pagar.ghtml.

[4]https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/01/26/A-corrida-por-fora-de-empres%C3%A1rios-pela-vacina-contra-a-covid-19.

[5] https://www.fm.usp.br/fmusp/noticias/compra-de-vacina-contra-coronavirus-pelo-setor-privado-nao-e-proibida-mas-e-antietica.

[6] https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2021/01/27/o-assunto-377-publico-x-privado-fila-paralela-da-vacina.ghtml.

[7]https://valor.globo.com/live/noticia/2021/01/28/busca-de-vacinas-pelo-setor-privado-e-compreensivel-mas-nao-acho-boa-ideia-diz-arminio.ghtml.

[8]https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/bbc/2020/07/22/covid-19-se-alastra-em-frigorificos-e-poe-brasileiros-e-imigrantes.htm.

[9]https://veja.abril.com.br/mundo/uniao-europeia-cobra-que-pfizer-e-astrazeneca-entreguem-vacinas-sem-atraso/

[10] Von der Leyen inclusive encrencou com as vacinas a serem destinadas ao Reino Unido. Ver https://veja.abril.com.br/blog/mundialista/fiasco-total-a-chefona-da-europa-queima-largada-na-guerra-das-vacinas/

[11] O que não implica que não se poderia melhor otimizar o mecanismo “fila”, introduzindo-se princípios de mercado sem que seja requerida qualquer transação financeira. O prêmio Nobel Alvin Roth explica no capítulo 3 “Trocas que salvam Vidas” em seu livro “Como funcionam os mercados: a nova economia das combinações e do desenho de mercado” Porfolio Penguin, 2016 como as filas de transplantes podem ser aprimoradas para ampliar a oferta de órgãos para pacientes à espera de transplantes.

[12]Em reportagem de 19/12/20, o Poder360 (https://www.poder360.com.br/coronavirus/pandemia-volta-a-ter-mais-mortes-mas-faixa-etaria-da-letalidade-se-mantem/#:~:text=A%20maior%20propor%C3%A7%C3%A3o%20de%20v%C3%ADtimas,13%2C6%25%20da%20popula%C3%A7%C3%A3o) mostra que as pessoas com mais de 60 anos representavam 74% do total de mortos pela pandemia, mesmo sendo apenas 13,6% da população.

[13] Dependendo da localização, estes dois grupos podem ter, de fato, mais ou menos acesso aos recursos do SUS. A depender do grau de integração de aldeias e comunidades com pessoas de fora, também têm menos contato com pessoas contaminadas, reduzindo sua vulnerabilidade. Também não encontramos evidência de que tais grupos seriam realmente mais vulneráveis que outros grupos de cidadãos pobres, especialmente nos aglomerados urbanos das grandes cidades brasileiras. Particularmente as pessoas que utilizam transporte coletivo nas cidades devem ter uma chance de pegar e de transmitir maior (e sua vacinação gerar mais externalidades positivas) que estes grupos teoricamente mais isolados.

[14] https://blog.acton.org/archives/53033-what-margaret-thatcher-understood-about-income-inequality.html

[15] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/01/28/empresas-reveem-posicao-sobre-negociacao-para-compra-de-vacina.ghtml

[16] https://oglobo.globo.com/sociedade/vacina/covid-19-clinicas-privadas-fecham-acordo-por-5-milhoes-de-doses-de-vacinas-da-india-diz-valor-24857066

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A Vacina para a Covid-19 e a Regulação de Riscos no Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3388&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-vacina-para-a-covid-19-e-a-regulacao-de-riscos-no-brasil Thu, 07 Jan 2021 20:03:21 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3388 A Vacina para a Covid-19 e a Regulação de Riscos no Brasil[1]

 Por César Mattos

Nunca estivemos tão atentos a um processo de autorização de vacinas e medicamentos na Anvisa como no caso da prevenção à Covid-19.

Os últimos lances deste drama estão ocorrendo no processo de autorização das vacinas da Pfizer[2], Coronavac e Astrazeneca. No caso da Pfizer, a empresa alega que a Anvisa está demandando requisitos mais rigorosos que seus congêneres americano, europeu e britânico, para os quais já foi concedida a autorização, tendo, inclusive, iniciado a imunização. O Instituto Butantan, que está produzindo a Coronavac, a “vacina chinesa”, anunciou que iria começar a vacinar em janeiro de 2021, mesmo sem a autorização da Anvisa[3]. Já a Astrazeneca, com a chamada “vacina de Oxford”, já conseguiu a aprovação no Reino Unido e, tendo parceria com a Fiocruz, está com perspectiva de apresentar documentos para autorização à Anvisa em janeiro. A agência reguladora já sinalizou até 10 dias para a aprovação[4] após protocolo, apesar de o ministro da Saúde ter falado de 60 dias[5].

O ponto que desejamos desenvolver aqui diz respeito aos trade-offs ou escolhas feitas pela agência nas análises de medicamentos e vacinas e suas implicações para o bem-estar social. Primeiro, por que se requer a intervenção de uma agência reguladora para autorizar ou não a aplicação de uma vacina? A necessidade de intervenção do Estado aqui é evidente pela elevada assimetria de informação do consumidor de produtos de saúde em relação à sua eficácia e segurança, uma falha de mercado a ser corrigida por um órgão sanitário, no caso do Brasil, a Anvisa. A questão aqui qual o grau de exigência sobre os testes e estudos sobre a eficácia e segurança dos produtos realizados pelas empresas farmacêuticas deve ser exigido pelo regulador?

A partir da década de 60, os países passaram a ser mais rigorosos nos requisitos de segurança. Nos EUA, em 1962, as Emendas Kefauver-Harris ao Federal Food, Drug and Cosmestic Act fortaleceram os requisitos de segurança em razão da tragédia da talidomida que resultou no nascimento de crianças com malformações em virtude de ingestão durante a gravidez. Vários países desenvolvidos também adotaram regulações similares. Isso implicou aumento substancial dos custos de desenvolvimento de vacinas e medicamentos. Não à toa o assustador tamanho das bulas nos capítulos sobre “efeitos adversos”.

Se, de um lado, este aumento no rigor dos testes levou a uma maior garantia para os pacientes sobre a eficácia e os riscos de efeitos adversos, também aumentou muito o período requerido de estudos e testes, adiando significativamente o tempo para que as pessoas pudessem usufruir dos benefícios de vacinas e medicamentos. Ou seja, há um “custo da espera” que pode ser muito caro quando há mortes decorrentes da doença que se pretende tratar com medicamentos ou prevenir com vacinas como na Covid-19.

O World Economic Forum[6] publicou um artigo em junho de 2020 mostrando o tempo médio atual de desenvolvimento de uma vacina em cinco estágios[7]. São entre 2 e 5 anos só para a pesquisa de descoberta, 2 anos para testes pré-clínicos, entre 1 e 2 anos para saber se a vacina é segura, 2 a 3 anos para saber se ela ativa uma resposta imune no corpo humano, 2 a 4 anos para saber se ela protege mesmo o corpo da doença e, enfim, entre 1 e 2 anos para a aprovação regulatória. São pelo menos 10 anos de desenvolvimento com um custo médio de US$ 500 milhões em que se parte de cerca de 100 vacinas potenciais para se chegar a apenas uma efetiva.

O fato é que desde a década de 90 as principais agências sanitárias no mundo começaram um movimento inverso ao da época da talidomida, passando a considerar o “custo da espera” em que se aguarda para disponibilizar uma vacina ou remédio em função do elevado rigor dos requisitos dos reguladores. Em função desse custo, houve pressão sobre a Food and Drugs Administration americana (FDA) para acelerar a autorização do coquetel de medicamentos antirretrovirais da AIDS na década de 90 e que acabou por ser autorizado com substanciais atalhos na via crucis burocrática usual. Como o “custo da espera” estava muito evidente pela quantidade de pessoas morrendo, a aceleração da autorização se tornou inevitável.

Em 1997, o FDA Modernization Act de 1997 criou um Fast Track para medicamentos “cuja intenção seja o tratamento de uma condição séria e que ameaça a vida”, o que claramente tinha sido o caso dos antirretrovirais. Isto reduziu o tempo de desenvolvimento em cerca de 2,5 anos. A União Europeia também introduziu procedimentos Fast-Track quando os benefícios esperados compensam os riscos e pacientes precisam ter acesso mais rápido ao medicamento devido a uma “necessidade médica não preenchida de outra forma”. A aprovação será condicional, tornando-se definitiva após mais estudos.

O dilema da agência reguladora pode ser compreendido como uma escolha entre as probabilidades de dois tipos de erros que ocorrem quando se desacelera (acelera) o processo de autorização, sendo mais (menos) rigoroso nos testes exigidos para a autorização de um medicamento ou vacina.

O erro tipo I ocorre quando o regulador é muito rigoroso, fazendo atrasar o cronograma de liberação do medicamento ou vacina. Pessoas que ficam doentes ou mesmo morrem e que poderiam ter sido imunizadas (curadas ou com sintomas atenuados) pela liberação mais tempestiva de uma vacina (um remédio) são custos associados a este erro.

O erro tipo II ocorre quando o regulador é menos rigoroso, tornando mais célere o cronograma de liberação do medicamento ou vacina. Envolve não apenas a probabilidade de constatar a não eficácia da vacina ex-post, mas também efeitos adversos. Estes últimos podem ocorrer em um prazo maior e apenas serem identificados com mais tempo de pesquisa. Por exemplo, no caso da vacina contra a dengue[8], pesquisas pós autorização indicaram que os pacientes sem histórico de infecção podiam desenvolver quadros mais graves se tomassem a vacina. Isso limitou a aplicação da vacina apenas àqueles que já tiveram a doença.

O quadro a seguir resume o dilema decisório da Anvisa.

Quadro I – Balanço de “Tipos de Erros” no Rigor da Anvisa no Processo de Autorização

Efetividade e Segurança da Vacina ou Medicamento
Vacina ou medicamento é eficaz e seguro Vacina ou medicamento NÃO é eficaz e seguro
Rigor da Anvisa no Processo de Autorização Menor Decisão correta Erro tipo II
Maior Erro tipo I Decisão correta

Elaboração própria.

 

O problema é que toda vez que se procura diminuir a probabilidade de um dos tipos de erros, aumenta-se a probabilidade do outro tipo de erro. É um trade-off ou uma escolha que se faz ex-ante com base na informação disponível. É possível que se constatem custos significativos gerados pela realização de qualquer um desses erros ex-post. Assim, é possível que uma vacina da Covid-19 gere problemas de saúde até agora não detectados? Claro que sim. E esta probabilidade é tanto maior quanto menor o tempo de testagem da vacina.

No caso da imunização contra a Covid-19, assim como em qualquer pandemia, o “custo da espera” decorrente do erro tipo I é simplesmente gigantesco, devendo ser medido não apenas nas pessoas que ficarão doentes e eventualmente morrerão, mas também no elevado custo econômico que a quarentena tem gerado e que se torna exponencial com o alongamento da crise sanitária na presente segunda onda do vírus.

De outro lado, a probabilidade de erro tipo II não é pequena. Se o tempo de desenvolvimento destas vacinas da Covid-19 foi reduzido da média de 10 anos para menos de um ano, é evidente que o risco de efeitos adversos também é mais elevado. A não ser que tenha havido um salto gigantesco na tecnologia de testagem das novas vacinas, este risco não é desprezível. No caso da vacina da Pfizer, em meados de dezembro de 2020 se detectaram casos de reações alérgicas graves à vacina[9], mas sem mortes. Isto levou os reguladores de EUA e Reino Unido a indicarem para os pacientes com histórico de grave reação alérgica a medicamentos e alimentos não tomar a vacina. Este custo associado ao erro tipo II, no entanto, parece pequeno relativamente à eficácia deste imunizante que chegou a 95%.

Baseado em uma avaliação custo/benefício de que, na epidemia da Covid-19, o erro tipo I é mais relevante que o erro tipo II, o Brasil criou dois importantes instrumentos: I)a Lei 14.006, de 28 de maio de 2020 permitiu uma autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde, sem registro na Anvisa, mas considerados essenciais na pandemia do coronavírus, desde que registrados por pelo menos uma das seguintes autoridades sanitárias estrangeiras: Food and Drug Administration (FDA) americana, European Medicines Agency (EMA), Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (PMDA) britânica e a National Medical Products Administration (NMPA) chinesa e ; II) o Guia 42/2020 da Anvisa sobre os requisitos mínimos para submissão de solicitação de autorização temporária de uso emergencial, em caráter experimental, de vacinas Covid-19[10], para acelerar as autorizações.

Note-se que esta aceleração do processo de autorização do Guia 42/2020 para a Covid-19 não implicou a Anvisa abrir mão da análise da vacina. Como destacado no Guia, o órgão regulador fará, ainda que de forma muito expedita, uma análise custo/benefício que tem por base o reconhecimento da matriz de erros do quadro I, considerando “os dados apresentados, a população-alvo, as características do produto, os resultados dos estudos pré-clínicos e clínicos e a totalidade das evidências científicas disponíveis relevantes para o produto, ou seja, os resultados provisórios de um ou mais ensaios clínicos que atendam aos critérios de eficácia e segurança para o uso pretendido, devendo os benefícios da vacina superar seus riscos, de forma clara e convincente”.

Mais do que isso, o Guia 42/2020 requer que a empresa farmacêutica fará uma “avaliação contínua de seus benefícios e riscos em manter o uso da vacina na condição de uma autorização temporária e emergencial” e terá “um plano adequado para a coleta de dados de segurança entre indivíduos vacinados sob a referida autorização”. Ou seja, a eventual detecção de um erro tipo II deve ser realizada o mais rápido possível, minimizando os custos associados.

O risco e incerteza, por sua própria natureza, são relacionados à ansiedade e ao medo, com elevada carga emocional que detona uma reação de irracionalidade na avaliação do público e dos políticos em relação às ações dos reguladores quando a percepção (e não obrigatoriamente a sua realização) de qualquer um desses erros acontece. Na área da saúde esta reação é particularmente exacerbada, havendo sempre uma grande necessidade de encontrar culpados pela realização destes riscos, especialmente em um quadro de excessiva politização da vacina como no caso do Brasil da Covid-19.

Pode-se simplesmente alcunhar o regulador de incompetente por não ter sido capaz de prever tudo que iria acontecer. Ou seja, o público e, principalmente, os políticos têm a expectativa de um regulador “deus ex machina”, infalível, desconsiderando a existência (e inevitabilidade) de ocorrer pelo menos um dos dois tipos de erros, o que acaba por comprometer a decisão acertada ex-ante. A ciência não dá respostas 100% confiáveis, especialmente com tão pouco tempo como no caso presente das vacinas para a Covid-19.

Se, de um lado, o regulador não tiver qualquer rigor na aprovação de vacinas e medicamentos, corre um grande risco de incorrer no erro tipo II, aprovando um produto sem efeito e/ou com substanciais efeitos colaterais negativos. De outro lado, se o regulador desejar prevenir todo efeito adverso, ele demorará demais em aprovar medicamentos ou vacinas e incorrerá no erro tipo I. Não há como e nem é desejável prevenir todo efeito adverso sob pena de aumentar demasiadamente o “custo da espera”, o que é especialmente válido na pandemia que vivemos.

O comportamento do regulador em relação aos dois tipos de erros em seu processo decisório depende bastante também do quanto o efeito de cada um deles é mais visível para a sociedade. O viés do regulador será maior na direção de evitar aquele erro cujos efeitos aparecem mais, que não obrigatoriamente são os que apresentam a pior combinação de probabilidade de ocorrer X consequências negativas.

Podemos afirmar que erros tipo II, em grande parte dos casos, têm maior visibilidade quando se realizam. Isso gera um viés ex-ante do lado de evitar erros tipo II. Já no caso atual das vacinas para a Covid-19, o erro tipo I adquiriu uma visibilidade incomum dado i) ser uma pandemia, ii) um número de mortes alto[11], iii) um delongado período com medidas de distanciamento social em que se constata uma segunda onda do vírus e iv) vários países já iniciaram a vacinação.

O fato é que a existência de vieses decorre muito fortemente do grau de visibilidade das consequências dos erros, em uma típica aplicação de economia comportamental, o que está longe de ser uma característica apenas brasileira. E isso decorre de dois fatores. Primeiro, a “vaidade burocrática” do regulador faz com que este possa estar mais preocupado com a sua reputação evitando os erros mais visíveis do que a maior proteção à saúde da população.

O segundo fator é, de longe, o mais relevante. Diz respeito à capacidade do regulador de se proteger da acusação de que teve culpa nas consequências negativas geradas em alguma decisão, especialmente frente a órgãos de controle. Conforme Black (2010)[12], o Better Regulation Commission – BRC- (2008) britânico destaca que “a natureza do “jogo de acusação” torna os reguladores excessivamente avessos ao risco, sendo que os incentivos são viesados no sentido de prevenir todo o risco possível. O BRC reporta que a grande parte dos servidores ingleses contatados foram céticos de que, em uma inquirição por um órgão de controle, eles poderiam contar com a defesa de que “naquele momento parecia um risco gerenciável e eu decidi tomá-lo”.

Este tem sido um problema dramático para os gestores do Poder Executivo brasileiro em sua relação com os órgãos de controle, Tribunal de Contas da União, Ministérios Públicos Federal e Estaduais, Controladoria Geral da União ou mesmo direto no Judiciário.

A despeito da percepção do erro tipo I ter ficado muito aguçada na Covid-19, é plausível que o custo percebido pelo erro tipo II para o regulador frente ao órgão de controle continue maior que o custo percebido pelo erro tipo I, mesmo com as consequências para a população sendo tão severas neste último.

Vamos considerar apenas os efeitos da vacina sobre o número de mortes para exemplificar como isso pode funcionar. Suponha que se estime que possa ocorrer um efeito adverso grave pela vacina que cause a morte em uma pequena parcela dos vacinados, digamos 70 pessoas[13]. Suponha que se estima que se a Anvisa tivesse aguardado mais um ano de testes, antes de autorizar a vacina, este problema poderia ter sido identificado e prevenido.

Agora suponha que se estime que adiantar a autorização da vacina antes de concluídos estes testes por um ano evite um número de mortes de cerca de 70 mil pessoas por Covid-19. Apesar das dificuldades éticas em comparar a vida de indivíduos, é razoável postular que, com os dados ex-ante, a antecipação da autorização, com a estimativa de 70 mil pessoas salvas, compense a estimativa de morte de 70 pessoas por efeitos adversos. Daí que a antecipação seria a decisão correta ex-ante, buscando evitar um erro tipo I, ainda que haja também um erro tipo II, só que com consequências bem menos desastrosas.

No entanto, se houver percepção dos reguladores da Anvisa que os órgãos de controle poderão responsabilizá-los por aquelas 70 mortes em função da antecipação, independente dos 70 mil salvos, pode haver um viés convencional de evitar a ocorrência do erro tipo II, mesmo à custa do erro tipo I.

Mais do que isso, estimativas podem estar erradas. Se o número de mortos pelos efeitos adversos acabar sendo bem maior, por exemplo, gerando 1000 mortos, a possibilidade de responsabilização pelos órgãos de controle aumenta. Torna-se mais plausível que os órgãos de controle entendam, com base em um número de mortos pelos efeitos adversos maior, que os reguladores da Anvisa poderiam sim ter previsto que a probabilidade de efeitos adversos era, na realidade, maior. Como não se vê o número de pessoas salvas com a antecipação, os órgãos de controle podem também ex-post questionar a estimativa ex-ante de 70 mil salvos.

Ademais, de um lado, com a decisão da antecipação, as 70 vítimas dos efeitos adversos são identificáveis, têm um nome, família conhecida. As 70 mil vidas poupadas são uma estimativa, sendo todas anônimas. Ninguém sabe a princípio quem seriam elas, nem elas próprias. Sendo assim, é plausível que os órgãos de controle responsabilizarão os reguladores pelas 70 ou 1000 vítimas dos efeitos adversos. Quanto maior o número de fatalidades com os efeitos adversos, maior a possibilidade de contestação de uma antecipação da autorização da vacina.

De outro lado, é possível também que se a Anvisa atrasar a antecipação também haja reação dos órgãos de controle. Nesse caso, o regulador fica na tradicional sinuca de bico: se avançar o bicho pega e se ficar o bicho come. A questão é qual o risco maior para o regulador da Anvisa frente aos órgãos de controle, as vítimas dos efeitos adversos com a antecipação ou as vítimas da Covid-19 com a postergação da antecipação?

A visão convencional é que os órgãos de controle não devem punir a Anvisa por seguir os protocolos burocráticos estabelecidos, mas terão um espaço maior para questionamento com novidades como é o caso de uma antecipação de autorização de uma vacina ou mais vacinas com menos de um ano de testes. Especialmente considerando que este tipo de contestação será realizada mais tarde, fora do atual calor do momento da “segunda onda”, quando tudo parece valer a pena pela imunização à Covid-19, a sensibilidade do órgão de controle para os trade-offs erro tipo I x erro tipo II, se torna menor. Mais uma vez, isto pode gerar um viés na direção de aceitar mais o risco do erro tipo I e menos o risco do erro tipo II. E isto independe das reais consequências de cada um destes erros sobre a saúde e bem-estar da população.

Este problema ficou popularizado no Brasil como o “apagão das canetas” em que há várias situações em que o regulador opta por burocratizar/dificultar a atividade econômica do privado visando reduzir ao máximo a probabilidade do erro tipo II, o que eleva a probabilidade do erro tipo I.

O rigor a mais que as farmacêuticas estão indicando nas demandas da Anvisa sobre os estudos e testes das vacinas, ainda que com um procedimento extraordinário como o Guia 42/2020, pode ser um reflexo deste problema.

E este balanço equivocado também se aplica a outras áreas da política pública como no licenciamento ambiental, por exemplo: é melhor para o burocrata ser excessivamente rigoroso e atrasar obras de enorme impacto social (gerando erro tipo I) do que arriscar que alguma contingência que realize um erro tipo II gere uma contestação de um órgão de controle que implique um processo que o comprometa financeiramente. De fato, o que mais se ouve no Poder Executivo federal com o “apagão das canetas” é “no meu CPF, nem pensar”.

Mudanças recentes na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Decreto-Lei nº 4.657, de 1942, procedidas pela Lei nº 13.655, de 2018, constituíram um grande avanço e podem mitigar este problema de desvalorização do erro tipo I. O novo art. 28, por exemplo, restringiu os casos em que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas apenas para os casos de dolo ou erro grosseiro. Isso afasta, em tese, o caso em que o burocrata do órgão de controle simplesmente discorda da avaliação ex-ante do regulador sobre o balanço de erros tipo I e tipo II com base na realização do erro tipo II ex-post e insiste em responsabilizá-lo.

Outra mudança relevante ocorreu no art. 20 do Decreto-Lei nº 4.657, de 1942, em que se determinou que cabe decidir com base nas consequências práticas da decisão e não em valores jurídicos abstratos sem vínculo com o mundo real, o chamado “consequencialismo” bastante advogado na disciplina de “Direito e Economia”. É fundamental que os órgãos de controle considerem que a aplicação relevante destes dispositivos deve ser realizada com base nos dados e análises à disposição do regulador ex-ante, ou seja, no momento da decisão.

Não é claro ainda se estas inovações “pegaram” ou não nos órgãos de controle, remanescendo o medo e, portanto, o viés favorável dos reguladores a enfatizar o erro tipo II, com todo o seu custo em termos de erro tipo I ou o “custo da espera”. Na terrível pandemia da Covid-19, a aplicação destes dispositivos poderá representar muitas mortes a menos.

 

César Mattos é doutor em Economia e consultor da Câmara dos Deputados.

[1] Agradeço a Gabrielle Troncoso da Anvisa por comentários a versões preliminares deste artigo. Erros remanescentes (tipo I e tipo II) são de minha exclusiva responsabilidade.

[2] Segundo a Pfizer (https://static.poder360.com.br/2020/12/Pfizer-uso-emergencial-Brasil-28dez2020.pdf), a Anvisa requereu “a análise dos dados levantados exclusivamente na população brasileira, sendo que “outras agências regulatórias que possuem o processo de uso emergencial analisam os dados dos estudos em sua totalidade, sem pedir um recorte para avaliação de populações específicas”. A Anvisa, por sua vez, replica que não exigiu (e não exige) estudos específicos para a população brasileira. A decisão de conduzir estudos com brasileiros teria sido da própria Pfizer (3 mil dos 44 mil voluntários eram brasileiros). O que a agência teria solicitado seria uma análise em separado dos 3 mil brasileiros, já que os testes já haviam sido realizados. Se, de um lado, não é claro como uma amostra de 3 mil voluntários brasileiros permitirá alguma inferência útil para o Brasil diferente dos 44 mil cidadãos voluntários do mundo, o atendimento da demanda da Anvisa, por sua vez, também não demandaria mais tempo ou recursos relevantes da empresa.

[3]https://www.terra.com.br/noticias/brasil/coronavac-sera-aplicada-sem-registro-da-anvisa-diz-doria,2122298ff79addd47818f462aee1a7510n3kyigq.html.

[4] https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/anvisa-vacina-coronavirus/.

[5] Se a agencia reguladora chinesa conseguir aprovar em até 3 dias, como destaca a reportagem (https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/12/14/sao-paulo-documentos-registro-coronavac-anvisa.htm), o prazo da Anvisa ficaria de 72 horas também.

[6] https://www.weforum.org/agenda/2020/06/vaccine-development-barriers-coronavirus/.

[7] No caso de medicamentos são quatro fases que estão bem resumidas no INCA https://www.inca.gov.br/pesquisa/ensaios-clinicos/fases-desenvolvimento-um-novo-medicamento.

[8] https://saude.abril.com.br/medicina/anvisa-muda-indicacao-da-vacina-contra-dengue-quem-deve-tomar-agora

[9] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55346473.

[10] https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2020/anvisa-define-requisitos-para-pedidos-de-uso-emergencial-de-vacinas/guia-uso-emergencial.pdf.

[11] No início de 2021 chegando muito próximo a 200 mil mortos no Brasil.

[12] Black,J.: “The role of risk in regulatory processes”. In Baldwin, R, Cave, M e Lodge, R.: The Oxford Handbook of Regulation. Oxford Economic Press, 2010.

[13] Note-se que, neste exemplo, trocamos as probabilidades entre os dois tipos de erros pelas consequências dos dois tipos de erros em número de mortes. Assim, em lugar do trade-off entre as probabilidades de cada tipo de erros, podemos pensar em termos do trade-off entre as consequências dos dois tipos de erros, sendo que espera-se que ambos vão ocorrer.

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A Resposta Fiscal à Crise do Covid-19 no Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3362&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-resposta-fiscal-a-crise-do-covid-19-no-brasil Mon, 16 Nov 2020 20:04:27 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3362 “Ao Infinito e Além” 

Buzz Lightyear   

Personagem do Cartoon da Pixar “Toy Story”

 Por César Mattos

 

  1. Introdução

 

A reação das políticas econômicas no mundo à inusitada crise do Covid-19 tem sido o principal tema econômico de 2020. Conforme o FMI (2020)[1]:

“A magnitude e a velocidade do colapso na atividade que se seguiu é diferente de qualquer coisa que experimentamos em nossas vidas. Esta é uma crise como nenhuma outra, e há substancial incerteza sobre o seu impacto na vida das pessoas”

Nesse artigo procuramos analisar a resposta econômica que está sendo dada à crise do Covid-19 no Brasil. Partindo de uma estratégia de austeridade fiscal em 2019, a equipe econômica desviou a trajetória na direção de uma abordagem expansionista, tal como ocorreu no resto do mundo. As duas perguntas chave são: 1) em que medida esta resposta foi na dose correta e 2) isso deveria constituir um retorno, no período pós-Covid, à “nova matriz econômica” executada entre 2008 e 2016[2], ampliando gastos públicos com intuito de reativar a economia?

Não há dissenso de que uma mudança de direção da política econômica foi urgente e imprescindível no curto prazo em resposta a um evento imprevisível e fora de controle como o Covid-19. Conforme o Banco Mundial (2020)[3]:

Ante um choque face ao qual não se pode fazer um ’seguro‘ como a epidemia Covid-19, somente os governos podem servir como os “seguradores” de último recurso. Todavia, dada a restrição de recursos, é importante explicar claramente como as perdas serão gerenciadas. Uma declaração desse tipo coordenaria as expectativas e ajudaria os agentes econômicos a se adaptarem ao novo ambiente, numa espécie de pacto social sobre como gerenciar a crise”.

No caso do Brasil, como veremos, buscou-se mitigar as perdas de empresas e governos subnacionais, assim como preservar empregos e garantir renda às famílias mais afetadas pela paralização da atividade econômica, mas a circunstância política acabou gerando um significativo aumento de renda para os mais pobres pelo Coronavoucher e não uma redução de perdas. Em ambos os casos, é possível que a ação do governo tenha, de fato, diminuído o tempo de recessão e contribuído para a tão desejada recuperação em “V” na economia.

No entanto, este ganho social do Coronavoucher pode se constituir tão somente em um “voo de galinha social”. De fato, as medidas expansivas, principalmente a do Coronavoucher, não podem se estender muito, dado o limite de sustentabilidade da dívida pública brasileira.

Afinal, o cenário fiscal piorou muito com as medidas adotadas, fazendo a relação dívida/PIB crescer a níveis ainda mais perigosos do que antes. A crise do Covid-19 nos revela o valor que deveríamos dar à disciplina fiscal nos momentos normais da economia, para quando choques negativos gerados por eventos imprevisíveis como este ocorrerem. Ter graus de liberdade no orçamento para conter os efeitos de crises como essa é fundamental,. O Brasil entrou na crise sem ter esse espaço fiscal.

A linha de expansionismo fiscal da “nova matriz econômica”, adotada no passado recente, infelizmente, diminuiu essa margem de manobra.

Findo o período mais crítico da pandemia, será essencial retomar a agenda de ajuste fiscal e reformas econômicas. Elas serão essenciais para evitar que o país tombe por conta de uma crise da dívida pública e, ao mesmo tempo, aumentarão a concorrência e a produtividade, que são cruciais para acelerar o crescimento e a reabertura de empregos.

Na próxima seção fazemos uma síntese do movimento de rápido declínio no segundo trimestre e célere recuperação no terceiro trimestre da economia brasileira. A seção III sumaria a mobilização de recursos pelo governo para o enfrentamento da crise do Covid-19, destacando a magnitude do Coronavoucher e seu impacto na crise fiscal e na melhoria da renda dos mais pobres, a importância dos programas de mitigação do desemprego e de crédito para pequenas e médias empresas e a ajuda aos entes subnacionais. A seção IV mostra que a reação fiscal do Brasil foi proporcionalmente maior que em outros países e grupos de países similares. A seção V apresenta o atual debate em outros países e no Brasil sobre a Nova Teoria Monetária que tem servido de argumento para defender uma política fiscal ainda mais expansiva no pós-pandemia. Decididamente o Brasil não conta com esta margem de manobra, arriscando-se ao total descontrole da dívida pública. Discute-se ainda a necessidade absoluta de manter a regra do teto de gastos como ela se encontra, sem exceções adicionais. A seção VI conclui.

  1. Covid-19: A Pior Recessão Mundial desde a Grande Depressão

 

Inicialmente considerado como um rápido choque de oferta mundial, entendia-se que a crise repentina do Covid-19 gerada pela necessidade da quarentena geraria uma trajetória da economia em forma de “V”[4]: uma queda inicial seguida por uma rápida recuperação. Este otimismo inicial foi revertido rapidamente em grande parte dos países com a perspectiva de prolongamento da quarentena, gerando choques gêmeos de oferta e demanda, dado que muitas pessoas não poderiam trabalhar e produzir[5] e, ao mesmo tempo, parou-se de consumir vários bens e serviços.

A crise do Covid-19 gerou um impacto significativo e repentino na economia brasileira, mais fortemente sentido a partir do mês de março de 2020. Conforme o IBGE, a retração do PIB no 2º trimestre de 2020 foi de 9,7% em comparação ao 1º trimestre de 2020, com ajuste sazonal, com fortes retrações de 12,3% na indústria e 9,7% nos serviços. Foi a queda mais abrupta do PIB desde o início da série em 1996, conforme pode ser visto na figura I.

Fonte: IBGE

O mais impressionante foi a rapidez e amplitude da deterioração das expectativas do mercado em relação ao PIB do Brasil, conforme a pesquisa Focus do Bacen, à medida que foi se percebendo a real magnitude da crise. De uma mediana das expectativas de mercado de crescimento do PIB no Brasil de +2,3% para 2020 em 07/02/2020, passou-se a uma expectativa de queda no PIB de -5,89% em 22/05/2020[6]. Este pessimismo tem arrefecido em função da percepção de que o pior da recessão gerada pela quarentena já passou, com a retomada da atividade econômica que parece se consolidar no segundo semestre de 2020. De fato, a pesquisa do Boletim Focus de 23/10/2020[7] alterou a perspectiva mediana do mercado para o PIB de 2020 para -4,81%.

O indicador dessazonalizado do comércio ampliado do IBGE até agosto de 2020 mostra, de fato, uma recuperação em “V”, inclusive indo para um patamar superior ao pré-pandemia.

Fonte:IBGE

Conforme a Sondagem da Indústria da CNI de setembro de 2020[8]a indústria operou acima do usual para o mês, com utilização da capacidade instalada acima do registrado nos últimos anos” com altas na produção industrial desde junho e na contratação de trabalhadores desde julho também corroborando, por enquanto o comportamento em “V”.

Como mostra a Secretaria de Política Econômica em 10/09/2020[9] tanto o comércio quanto a indústria apresentam uma retomada em “V”, o que derivaria das “políticas de proteção do governo federal implementadas para o curto prazo”, apesar de o setor de serviços ainda apresentar retomada mais lenta. De fato, as projeções mais pessimistas como a do FMI de junho de 2020[10] que previam uma queda de -9,1% no PIB brasileiro se mostraram exageradas, mas a consolidação desta recuperação no quarto trimestre pode ser atenuada em função da redução do auxílio emergencial de R$ 600 para R$ 300[11] e depois sua remoção.

O impacto da crise do Covid-19 é global. O FMI estimava, em junho de 2020, uma queda do PIB, neste mesmo ano, no mundo de -4,9%[12], o que, em outubro se tornou mais ameno em -4,4%[13], mais agudo nas economias mais avançadas de -5,8% e mais leve nas economias emergentes de -3,3%.

  • A Mobilização de Recursos Fiscais para o Covid-19

III.1) Visão Geral

O total de recursos mobilizados pelo Governo Federal em resposta à Covid pode ser visualizado na Figura III a seguir.

Figura III – Recursos Mobilizados pelo Governo Federal no Enfrentamento ao Covid-19 Até 22 de Outubro de 2020 (em R$ bilhões)

Com Impacto no Resultado Primário de 2020 (I + II) 614,2
Redução de Receitas (I) 27,5
Despesas (II) 587,5
Auxílio Financeiro Emergencial (R$ 600,00 mensais por 5 meses) – Coronavoucher – MPV 937, 956, 970, 988; Lei 13.982 , MP 999, 1000 321,8
Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda – MPV 935; Lei 14.020 51,6
Programa Emergencial de Suporte a Empregos (Folha de Pagamentos – PESE Funding União) – MPV 943; Lei 14.043 17,0
Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe) – MPV 972, 997; Lei 13.999, 10.042 27,9
Programa Emergencial de Acesso a Crédito (PEAC – Fundo Garantidor para Investimentos – FGI) – BNDES – MPV 975, 977, Lei 14.042 20,0
Programa Emergencial de Acesso a Crédito (PEAC) – Maquininhas – MPV 1.002; Lei 14.042 10,0
Medidas de suporte direto aos Entes Subnacionais com Impacto no Primário 105,6
Sem Impacto no Resultado Primário (III + IV + V + VI + VII) 3.813,5
Alteração na programação financeira sem impacto no resultado anual (III) 442,8
Extraorçamentários (IV) 68,4
Apoio a Estados e Municípios (V) 85,1
Medidas de Crédito (VI) 232,0
Regulatórias – Liberações de Liquidez e Capital –  (VII) 2.985,2
Total (Com e sem impacto no primário) 4.427,7

Fonte: Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia[14].

O governo mobilizou, até início de setembro de 2020, um total de R$ 4,4 trilhões entre recursos que impactam (R$ 614,2 bilhões) ou não (R$ 2.985,2 bilhões) o resultado primário. Este esforço a mais no resultado primário, nos cálculos do Ministério da Economia (ME), corresponde a 8,6% do PIB. Note-se que este valor cresceu em relação aos R$ 349,4 bilhões inicialmente projetados de impacto no resultado primário pelo ME em abril de 2020, um incremento de 75,8%. Vejamos estes itens nas próximas seções.

III.2) Coronavoucher: O Bolsa Família Turbinado da Covid-19

O item mais relevante, que responde por mais da metade do efeito total sobre o resultado primário, foi o Coronavoucher de R$ 600,00 por beneficiário, que inicialmente tinha prazo de dois meses, mas foi estendido por mais dois meses pelo mesmo valor, e depois por R$ 300,00 de setembro até o final de 2020. Foram destinados R$ 321,8 bilhões a este item o que representou até agora 52,4% do efeito sobre o primário. Esse valor é quase 2,6 vezes a estimativa inicial do Coronavoucher de R$ 123,9 bilhões originalmente prevista.

Não há dúvida que o Coronavoucher foi fundamental para a proteção dos mais vulneráveis, além de ter compensado o choque de demanda, fazendo com que a mitigação de um grave problema macroeconômico de curto prazo se encontrasse com a questão social.

No entanto, o custo fiscal é muito elevado. Como mostra Duque(2020)[15], o programa atingiu o expressivo número de 66 milhões de beneficiários em agosto de 2020, sendo metade da população brasileira morando com pelo menos um membro que recebia a transferência. Foram despendidos inicialmente cerca de R$ 50 bilhões por mês, um valor muito significativo frente aos R$ 30 bilhões por ano do Bolsa Família, R$ 56 bilhões por ano do Benefício de Prestação Continuada e R$ 17 bilhões anuais do Abono Salarial. O benefício foi tão elevado que implicou um considerável incremento de renda dos 40% mais pobres, que chegou a 200% entre “os mais pobres dos mais pobres”. Veremos que este incremento pode ser bem maior.

Apesar de ser desejável uma melhora na distribuição de renda e redução na pobreza, o efeito simplesmente dramático nas contas públicas faz com que essa transferência não possa continuar indefinidamente. Nesse contexto, o Coronavoucher se constituiu em uma “revolução temporária” na distribuição de renda do país. O aumento de renda justamente no meio de uma crise, que inevitavelmente faz o Brasil e o mundo mais pobres, é uma contradição. É como se o(a) chefe de família ficasse desempregado(a) e chegasse em casa anunciando aumento de mesada para todos os filhos!

O importante em uma crise é mitigar os seus efeitos nos mais pobres e não promover uma revolução social. Pior, criou expectativa de perenidade impossível de se manter a não ser por reduções expressivas muito difíceis de realizar em outras despesas[16]. Aqui inverteu-se a lógica Maquiavélica: um grande “bem” de uma vez só que será retirado a conta gotas.

A intenção inicial na área econômica com o Coronavoucher em 18/03/2020 parecia ser de simplesmente estender para todo o grupo de trabalhadores informais[17] o benefício financeiro do bolsa família que hoje é de R$ 41,00 por pessoa, podendo uma mesma família chegar a R$ 205,00 se tiver cinco ou mais pessoas[18][19]. Este valor, no entanto, acabou crescendo, e de forma acelerada, com o governo passando a anunciar que ia liberar um auxílio de R$ 200, a equipe econômica admitindo ampliar para R$ 300, o Congresso anunciando que iria deliberar sobre um projeto de lei de 2017 que resultava num benefício de R$ 500 e, finalmente, o Poder Executivo “cobrindo a aposta” e subindo o valor para R$ 600. Todo esse incremento na prodigalidade da política social em uma semana[20]. Um exemplo da lógica de Buzz Lightyear – citada na epígrafe – na política fiscal brasileira: a política do “Ao Infinito e Além”.

Assim, o benefício passou de R$ 41,00 para R$ 600,00 por pessoa, um aumento de mais de 13 vezes. Cada família pode acumular até dois benefícios, ou seja, R$ 1.200. No caso da mulher que sustenta o lar sozinha, o benefício seria de R$ 1.200. Ou seja, para esta mulher sozinha o incremento do benefício em relação às pretensões iniciais da equipe econômica seria de mais de 28 vezes! Além da informalidade, o requisito seria de ter uma renda familiar mensal por pessoa de até meio salário mínimo (R$ 522,50) ou renda familiar mensal de até três salários mínimos (R$ 3.135,00).

Naturalmente que não faria sentido conceder um benefício social de R$ 600,00 para os informais que não estão no bolsa família e, portanto, teoricamente com maior renda que o grupo do bolsa família, e manter estes últimos com o mesmo benefício anterior de R$ 41,00. Assim, foi dada a opção de o beneficiário do bolsa família ficar com este último benefício ou optar pelo Coronavoucher, que é obviamente mais vantajoso. Assim, o grupo do bolsa família e, especialmente, as chefes de família sozinhas do bolsa família, tiveram incrementos de renda durante a pandemia de até 28 vezes.

De outro lado, a implementação de um programa desta envergadura em período tão curto de tempo foi notável. Esta rapidez extremamente necessária, no entanto, abriu brechas para fraudes. O Tribunal de Contas da União (TCU) apontou em processo votado em 26/08/2020[21] que o total de pagamentos indevidos poderia chegar a R$ 42,1 bilhões, o que derivaria das dificuldades para a identificação da real composição familiar nos domicílios, inclusive para comprovar a existência ou não de uniões conjugais com a coabitação dos casais.

A extensão do Coronavoucher, com redução do  benefício para R$ 300,00[22] trouxe regras mais restritivas que o programa original. Foram excluídos da elegibilidade ao programa pessoas que estavam morando no exterior, presidiários e quem conseguiu emprego formal com carteira assinada após receber o auxílio. A questão relevante é por que estes grupos já não foram excluídos desde o início com um mínimo de respeito à escassez de recursos?

Enfim, um valor muito alto do benefício e um número de beneficiários excessivo podem ter criado, tal como o Brasil já se acostumou na seara econômica, um “voo de galinha” na política social, gerando uma ilusão desnecessária, justamente no meio de uma crise como a do Covid-19.

Outro ponto relevante é que o Coronavoucher[23] reduziu o incentivo à procura de emprego. Apesar deste ser um efeito em geral negativo, neste momento específico induziu as pessoas a cumprirem a quarentena.

III.3) Os Programas Direcionados às Micro e Pequenas Empresas

A dificuldade de cumprir as obrigações tributárias com a súbita crise de demanda trazida pelo Covid-19 era evidente. Assim, implementaram-se renúncias fiscais no valor de R$ 20,6 bilhões, especialmente diferimento de tributos.

Dada a falta de demanda e de liquidez, o governo também implementou um conjunto de programas de crédito para a manutenção do emprego e para a sobrevivência das empresas durante a pandemia, especialmente pequenas e médias. De fato, nesse contexto, é bastante razoável presumir que a maior parte das falências recairá de forma desproporcionalmente elevada sobre as empresas menores e o foco nessas últimas foi correto[24].

A figura a seguir resume as principais características dos cinco programas de crédito e garantias com impacto no primário criados para a crise do Covid-19.

Figura IV – Programas de Crédito para o Enfrentamento ao Covid-19 com Impacto no Resultado Primário

 

  Benefício pela Manutenção de Emprego Programa de Suporte a Empregos (PESE) Pronampe PEAC – Maquininhas PEAC FGI
Lei 14.020/20 14.043/20 13.999/20 14.042/20 14.042/20
Hipótese de Aplicação Redução da Jornada ou contrato suspenso Manutenção de empregos Garantia de operações de crédito para Investimentos e capital de giro. Financiamento e Garantia de operações de crédito Garantia de operações de crédito
Elegibilidade Empresas com receita bruta anual entre R$ 360 mil e R$ 50 milhões Empresários, Sociedades simples, Sociedades empresárias e Sociedades cooperativas, organizações da sociedade civil e empregadores rurais Microempresas e  Empresas de pequeno porte Microempreendedores individuais, a microempresas e a empresas de pequeno porte que possuam volume faturado nos arranjos de pagamento das maquininhas Empresas de pequeno e médio porte, associações, fundações de direito privado e sociedades cooperativas que em 2019 tenham receita bruta entre R$ 360 mil e R$ 300 milhões
Recursos R$ 51,6 bilhões R$ 17 bilhões R$ 27,9 bilhões R$ 10 bilhões R$ 20 bilhões
Financiamento e Alocação de risco Financiados 100% pela União. Não há risco pois é a fundo perdido 85% financiados pela União com o risco da União,15% custeados pelas instituições financeiras, com o risco delas Garantia de 100% da União por cada operação garantida por meio do FGO. Garantia limitada a até 85% da carteira de cada agente financeiro. Financiado 100% pela União.Garantia da União deduzidos os 8% de recebíveis pelo arranjo de pagamento Garantia de até 30% do valor total liberado para o conjunto das operações de crédito no PEAC-FGI
O que financia ou permite financiar? Cálculo será realizado com base no valor mensal igual ao seguro desemprego que o empregado teria direito. Até 100% da folha de pagamento do contratante, mas apenas até duas vezes o valor do salário mínimo por empregado Até 30% (trinta por cento) da receita bruta anual de 2019 O valor do crédito por contratante é limitado ao dobro da média mensal das vendas de bens e prestações de serviços do contratante liquidados por meio de arranjos de pagamento, observado o valor máximo de R$ 50 mil Garantia de até 30% do valor total liberado para o conjunto das operações de crédito no PEAC-FGI
Condições de Pagamento Fundo perdido Juros de 3,75% ao anoCarência de 6 meses e 36 meses para pagamento Selic mais 1,25%.36 meses para pagamentoCarência de 8 meses Juros de até 6% ao ano, prazo de 36 meses, carência de 6 meses. Carência entre 6 e 12 meses. Prazo total entre 12 e 60 meses. Taxa de juros conforme regulamento.Taxa média da carteira de 1%. Acima disso, há redução da cobertura.
Condicionalidade principal e Garantias Garantia provisória do emprego, excetuando pedido de demissão ou justa causa Não rescindir sem justa causa o contrato de trabalho de seus empregados entre a data da contratação e o sexagésimo dia após a liberação dos valores referentes à última parcela da linha de crédito Garantia pessoal do proponente em montante igual ao empréstimo contratado Os contratantes deverão ceder fiduciariamente às instituições financeiras 8% dos seus direitos creditórios a constituir de transações futuras de arranjos de pagamentos Dispensada a exigência de garantia real ou pessoal.Instituição Financeira pode, no entanto, requerer garantia na negociação com a empresa.

Fonte: Leis 14020/20, 14043/20, 13999/20, 14042/20 e 14042/20.  Elaboração própria.

Em um contexto de elevada incerteza gerado pela covid-19, o principal problema identificado foi que, apesar de várias medidas do Banco Central para ampliar a liquidez, o sistema financeiro não estava emprestando, especialmente para as pequenas e médias empresas.

Assim, dois programas, o Benefício pela Manutenção do Emprego e o Programa de Suporte a Empregos (PESE), procuraram evitar demissões, seja custeando a manutenção do emprego no primeiro, seja financiando a redução da jornada e/ou a suspensão temporária do contrato de trabalho no segundo.

O primeiro é um programa a fundo perdido enquanto o segundo conta com 85% do financiamento da União, que assume o risco de default destes 85%. Assumindo que o programa é que viabiliza a que se mantenham empregos, como o valor repassado iguala o seguro desemprego, então é como se a União estivesse pagando este benefício, mas sem precisar que o trabalhador tenha que se desempregar. Assim, adotando esta premissa de efetividade do programa, o seu custo seria despendido de qualquer forma, na forma de seguro desemprego e com a desvantagem de o trabalhador estar desempregado.

Já o PESE não constitui uma transferência a fundo perdido, mas envolve assunção de risco pela União em função de um problema de moral hazard já que a instituição financeira terá menos incentivos (apenas na proporção dos 15% de sua exposição) a avaliar o risco dos tomadores. De qualquer forma, como o alcance do PESE é apenas duas vezes o salário mínimo por trabalhador, a vantagem do empregador era proporcionalmente menor que o benefício pela manutenção do emprego que tem o limite dado pelo que seria pago pelo seguro-desemprego. Daí que foram beneficiados no primeiro programa 9,6 milhões empregados contra apenas 2,4 milhões no PESE[25]. Não à toa o valor originalmente alocado para o PESE foi de R$ 34 bilhões, tendo se reduzido pela metade em favor especialmente do PRONAMPE.

O PRONAMPE e o PEAC FGI já não focam na manutenção de empregos, mas na oferta de garantias às empresas menores, o que se baseou no diagnóstico de que o problema do sistema financeiro não era de liquidez (com as medidas do BACEN, isso não faltava), mas de maior incerteza de repagamento em função da crise. Ademais, atuar por garantias permitiria que o mesmo recurso pudesse apoiar mais de uma operação de crédito[26].

O risco de 100% alocado ao Tesouro no caso do PRONAMPE pode gerar o mesmo problema de moral hazard do caso do PESE, já que a instituição financeira não incorre em qualquer risco por default dos tomadores até 85% do valor total dos financiamentos. Há dispositivos que procuram reduzir este problema quando se define que a instituição financeira deve adotar procedimentos para a recuperação de crédito não menos rigorosos do que aqueles usualmente empregados em suas próprias operações de crédito ou ainda a obrigação de empreender os “melhores esforços” para recuperar o crédito, também existentes nos PEACs.

Alguns “esforços burocráticos” para a recuperação do crédito podem ser observados pelo Estado para efeito de verificar o cumprimento destes dispositivos. No entanto, o moral hazard não ocorre apenas no momento da recuperação do crédito, mas também no momento da seleção dos tomadores pelas instituições financeiras. Quanto mais o risco não for do intermediário financeiro menos ele se esforça para selecionar apenas os tomadores com mais chance de repagamento. O moral hazard, infelizmente, é um custo quase inevitável em programas numa situação de emergência como a da covid-19.

O Pronampe gerou, de fato, grande incentivo à adesão dos bancos. O total alocado neste programa foi de R$ 27,9 bilhões, por meio do Fundo Garantidor de Operações (FGO), mais de 75% em relação ao valor inicial de R$ 15,9 bilhões em função de sua elevada procura. De fato, todo o valor alocado originalmente foi consumido e em muito pouco tempo, e os R$ 12 milhões alocados na segunda fase do programa em setembro também foram rapidamente exauridos.

Tanto o custo menor de não precisar realizar uma análise mais detida do perfil do tomador, dado o risco ser do governo, quanto o escopo muito mais amplo de uso dos recursos (investimento e capital de giro em lugar de apenas manter empregos) contribuíram para a maior atratividade do PRONAMPE.

Por fim, o somatório desses programas direcionados a empresas e empregos com impacto no primário somam R$ 126,5 bilhões, o que representa menos de 40% do total alocado ao Coronavoucher. Como parte desses R$ 126,5 bilhões não serão efetivamente gastos e mesmo o Benefício para o Emprego, a fundo perdido, está economizando pagamento de seguro desemprego na hipótese de que os trabalhadores beneficiados seriam demitidos, tem-se que o custo fiscal real do conjunto destes programas é bem menor que estes R$ 126,5 bilhões.

Decerto que em todos estes programas envolvendo empréstimos e garantias da União, a questão do moral hazard, que é o que revelará o real custo fiscal do programa, apenas poderá ser avaliada plenamente com os dados de inadimplência após o fim do período de repagamento. São “ativos contingentes” que vão depender da diligência dos intermediários financeiros em buscarem o cumprimento do repagamento pelos tomadores. Tal diligência é uma obrigação estabelecida explicitamente nas próprias leis, restando saber como (e se) este dispositivo será aplicado na prática para a União recuperar estes valores[27].

Em 30 de outubro de 2020, o Senador Jorginho Mello protocolou proposta de novo Pronampe com mais R$ 10 bilhões aumentando a taxa de 1,25% + Selic a.a. para 6% + Selic a.a. e reduzindo o percentual de garantia da União de 85% para 25% por instituição financeira. Nesse caso o moral hazard se torna muito menor, apesar de continuar existindo.

III.4) Ajuda a Entes Subnacionais e Flexibilização da Política Monetária

As medidas de auxílio a Estados e Municípios com efeito no primário atingiram R$ 105,6 bilhões, sendo R$ 76,2 bilhões alocados a transferências não relacionadas diretamente aos gastos de saúde. Soma-se a isto os R$ 81,8 bilhões sem impacto no primário, nenhum deles ligados ao enfrentamento da pandemia e mais ligados à renegociação de dívidas, e teremos um efeito total no governo federal de R$ 190,6 bilhões de ajuda aos entes subnacionais.

De um lado, rubricas como o Auxílio a Estados e Municípios na forma de Transferência ao Fundo Nacional da Saúde, da Medida Provisória 940 de R$ 9 bilhões ou as Transferências adicionais a Estados, Municípios e Distrito Federal para financiamento das ações de saúde da Medida Provisória 969 de R$ 10 bilhões estão, a princípio, diretamente associadas aos gastos adicionais relativos à Covid-19, e deveriam ser repassadas para conter a pandemia e seus efeitos.

De outro lado, não é claro até onde o governo federal, que também contará com grande impacto negativo em sua arrecadação, deveria deslocar recursos escassos de outras atividades mais relacionadas à proteção de vulneráveis, apoio à manutenção de empregos ou à saúde, para renegociações de dívida desconectadas da questão do Covid-19, reforçando o moral hazard federativo do país. Desse total de R$ 182,3 bilhões diretamente transferido para entes subnacionais, apenas 12% foram diretamente relacionados à saúde. À exemplo do do Coronavoucher, estes itens indicam excessiva e custosa politização da crise.

O valor mais significativo de mobilização de recursos para a crise, mas de natureza regulatória sem impacto no primário, foi o da flexibilização da política monetária pelo Banco Central, que incluiu, por exemplo, a redução da alíquota do compulsório sobre os recursos à prazo de 25% para 17%[28], e que injetou um total de R$ 2.985,2 bilhões no sistema bancário, cerca de 67% dos recursos mobilizados.

  1. IV) Reação Fiscal ao Covid-19: Brasil x Mundo

A mudança da estratégia macroeconômica do governo brasileiro em função da crise da Covid-19 foi na mesma direção de outros países ao incrementar repentinamente os déficits e dívidas do setor público. A diferença é que, baseado no World Economic Outlook do FMI de outubro de 2020, o Brasil tanto incrementou seu déficit e sua dívida (em proporção ao PIB) em relação a 2019 mais que outros países similares, como também partiu de uma situação fiscal mais deteriorada tanto em relação a países similares como em relação à média dos países avançados.

Vejamos nas duas Figuras abaixo, sobre déficits (valor negativo) e dívida bruta do Brasil comparativamente à média dos países avançados e grupos de países similares que incluem os outros BRICS, Rússia, Índia, China e África do Sul, além dos latino-americanos Argentina, Chile, Colômbia, Peru e México, os asiáticos Indonésia, Coreia e Filipinas, além da Turquia.

Fonte: World Economic Outlook, October, 2020

Fonte: World Economic Outlook, October, 2020

O Brasil atingirá um déficit maior (-14,7% do PIB) que a média dos países avançados (-11%) e dos países similares . O país similar que mais se aproxima é a Colômbia, com -10,2%. Esse país, no entanto, passou de uma dívida de 52,29% do PIB em 2019 para 68,23%, bem inferior ao Brasil que já atingia quase 90% desta relação em 2020 (metodologia FMI) e passará para 101,4%, sendo o único país da base de comparação com mais de 3 dígitos.

Alguns dos países selecionados tiveram incremento de dívida entre 2019 e 2020 superior ao do Brasil de 11,93%. De fato, a dívida da Colômbia em relação ao PIB aumentou quase 16 pontos percentuais, a da Índia quase 17 pontos, Peru 12,3 pontos e África do Sul 16,6 pontos. O país que terá a maior relação dívida/PIB em 2020, a Índia, chegará a 89,3%, mais de 12 pontos inferior ao nível do Brasil.

A questão é que a relação dívida/PIB brasileira partiu de um nível elevado e crescendo de 87,1% em 2018 para 89,5% em 2019, chegando a 101,4% em 2020.

Note-se que o problema não é apenas a dívida chegar neste valor, mas continuar a crescer no cenário base conforme o próprio Relatório das Projeções da Dívida Pública Brasileira do Tesouro Nacional de 30/10/2020[29], em sua metodologia para a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG). De fato, o Tesouro estima que, no cenário base, a DBGG atinja 96,0% do PIB, 20,2 pontos percentuais em relação a 2019, prosseguirá crescendo nos próximos anos, atingindo seu máximo de 100,8% do PIB em 2026, encerrando a década em 2029 em 98% do PIB.

Passar a marca de 100% da relação dívida/PIB como projetado pelo FMI (ou chegar muito perto como na estimativa do Tesouro) para 2020 e 2021 e não conseguir reduzi-la para menos de 90% constitui uma péssima notícia. O clássico estudo de Reinhart e Rogoff (2010)[30] mostra que, em uma série histórica de 200 anos para 44 países, níveis de dívida/PIB superiores a 90% estão associados a “resultados em termos de crescimento econômico notavelmente mais baixos”.

Com uma situação tão dramática, é surpreendente que se discuta, inclusive dentro do governo, em prosseguir na política fiscal expansiva no período pós-pandemia para ajudar na recuperação da economia. Essa discussão acontece também em outros países como veremos na próxima seção.

  1. A Nova Teoria Monetária (NTM), Dívida Pública e Teto de Gastos

A revista The Economist afirma que, com inflação sob controle e taxas de juros muito baixas no mundo todo, haveria uma tendência de haver políticas monetária e fiscal bem mais expansivas do que antes:

 

“Não se engane que o papel do Estado irá magicamente retornar ao normal depois que a pandemia passar e o desemprego se reduzir. Sim, os governos e os bancos centrais vão reduzir seus dispêndios e os resgates. Mas a nova era da economia reflete o clímax de tendências de longo prazo. Mesmo antes da pandemia, a inflação e as taxas de juros estavam sob controle a despeito de um boom de empregos. Hoje o mercado de títulos ainda não mostra qualquer sinal de preocupação sobre a inflação no longo prazo. Se este mercado estiver correto, os déficits e a impressão de dinheiro podem muito bem se tornar as ferramentas padrão da política econômica por décadas”.  

Se, de um lado, The Economist vê “oportunidades” neste relaxamento para melhorar a infraestrutura e outros gastos urgentes ao redor do mundo, também aponta os “graves riscos” de tal estratégia como uma volta inesperada da inflação, além da constatação de que “the new machinery is vulnerable to capture by lobbyists, unions and cronies”.

Muito da visão positiva de autoridades monetárias e fiscais “mais relaxadas” no mundo tem se baseado na chamada Nova Teoria Monetária (NTM)[31], que está muito longe de um mínimo consenso razoável na academia internacional[32]. No Brasil, Lara Resende (2020)[33] tem defendido a NTM.

Nelson Barbosa[34] vai mais longe defendendo que os limites para esta ou qualquer estratégia fiscal expansionista seriam bem amplos, pois “o restante da dívida pública pode ser pago ou rolado de modo infinito[35], em uma abordagem Buzz Lightyear da dívida pública. Como o Banco Central poderá adquirir títulos do Tesouro, o aumento da demanda de moeda gerado pela recuperação econômica, em situação de desemprego e capacidade ociosa, permitiria que o aumento da quantidade de moeda não gerasse inflação. Assim, relações dívida/PIB bem mais elevadas do que antes teriam passado a ser sustentáveis.

Bacha (2019)[36] crítica a NTM, mas destaca, concordando parcialmente com Lara Resende, que quando a taxa de crescimento econômico supera a taxa de juros, como é o caso de vários países desenvolvidos atualmente, haveria, sim, maior espaço para políticas fiscais expansivas consistentes com a redução da relação dívida/PIB. O autor destaca, no entanto, que este não é o caso do Brasil.

De fato, a variação do PIB nominal nos dois últimos anos foi de 5,75% em 2019 e 4,5% em 2018, enquanto que o custo médio acumulado em 12 meses do estoque da Dívida Pública Mobiliária Federal Interna foi de 9,37% ao ano em dezembro de 2018 e 8,66% em dezembro de 2019[37]. Ou seja, nos últimos dois anos, a condição para que políticas fiscais expansivas possam ser consistentes com a redução da relação dívida/PIB não se verifica. Em 2020, mesmo com a expressiva queda na taxa de juros básica da economia haverá também queda estimada no PIB em mais de 5%, o que inviabiliza a condição.

Para 2021, assumindo a realização da previsão de crescimento econômico do Focus de 23/10/2020 de 3,42%% (e 2,5% em diante) e de um IPCA de 3,1%, podemos ter um crescimento do PIB nominal de 6,6%. Considerando a significativa queda na Selic, o Relatório das Projeções da Dívida Pública Brasileira do Tesouro Nacional projeta um custo médio da dívida pública federal de 5,4% em 2020, aumentando para 5,9% em 2021, o que poderia ser interpretado como uma janela de oportunidade para aumento nas despesas sem ampliar a dívida.

A redução dos juros projetados, no entanto, não se mantém para um prazo maior, o que se infere pelo grande aumento do diferencial entre os juros longos (que capturam melhor a expectativa do mercado quanto à sustentabilidade da trajetória da dívida pública) e os mais curtos[38]. De fato, o Tesouro Nacional projeta a continuidade do incremento do custo da dívida pública federal para 6,7% em 2022, 6,9% em 2023 e 7,1% de 2024 em diante com base em uma expectativa de aumento progressivo da Selic.

Se o déficit primário e a Selic aumentarem e o PIB cair em relação ao cenário básico, se deteriorará ainda mais a percepção acerca da sustentabilidade da dívida pois o custo médio da dívida ficaria ainda maior e as condições para retomar o crescimento da economia piores. O Relatório das Projeções da Dívida Pública Brasileira do Tesouro Nacional estima que desvios de um ponto percentual nessas três variáveis em relação ao cenário base levariam a relação dívida/PIB para uma trajetória explosiva, atingindo 125,2% em 2029 e crescendo.

Adicionalmente, os riscos da dívida brasileira têm crescido com a redução significativa dos prazos da dívida e aumento do percentual de dívida flutuante. De fato, o percentual de títulos vincendos em 12 meses aumentou de 29,9% ao final de 2019 para 38,3% em agosto de 2020, enquanto o percentual de dívida flutuante, que absorve imediatamente os eventuais choques da Selic, aumentou de 49,8% para 54,5% no mesmo período.

Considerando o repique do IPCA em setembro de 0,64%, bem acima das expectativas, e do rápido ajuste para cima da expectativa de inflação para 2020 que passou de 2,05% para 2,99% em um mês e de 3,01% para 3,1% em 2021, é possível que o Banco Central tenha que voltar a aumentar a Selic mais rápido que se imaginava, concretizando cenários piores para a evolução da dívida pública.

Este processo geraria uma espiral negativa da relação dívida/PIB de consequências muito ruins para a economia. Isso implica que continuar elevando despesas no pós-pandemia fará com que o país viva ainda mais perigosamente. Ainda que o mundo reveja as políticas fiscal e monetária mais parcimoniosas como argumentado pela The Economist, a situação fiscal brasileira, que já era crítica antes da crise, ficou ainda mais delicada com o fenomenal incremento de gastos de 2020. A indisciplina fiscal da “nova matriz macroeconômica” pré-2016 e a reação fiscal muito contundente do Brasil à crise do Covid-19 cobram o seu preço

Barbosa (2020)[39] criticou a resposta inicial do governo brasileiro à crise do Covid-19, tendo como principal prescrição a revisão do teto de gastos. Marcio Holland, o criador do termo “nova matriz econômica” também defendeu como parte da estratégia em relação à crise do Coronavirus, a eliminação do teto[40].

A revisão do teto de gastos foi considerada desnecessária por Marcos Mendes[41], pois “a restrição ao aumento dos gastos tem algumas exceções. Uma delas é o envio de dinheiro para despesas imprevisíveis e urgentes, como em caso de guerra, comoção interna ou calamidade pública. O governo, portanto, pode usar esse dispositivo para ampliar os recursos em ações de contenção das transmissões do vírus e tratamento de pacientes infectados, sem pressionar ainda mais o teto”. De fato, ao final de março, o Supremo Tribunal Federal liberou regras fiscais mais flexíveis para a crise[42] e o governo utilizou-as. Ou seja, o teto de gastos não foi obstáculo à muito significativa reação da política fiscal brasileira à crise do Covid-19.

A grande missão do teto de gastos é obrigar o governo a fazer escolhas sobre políticas públicas, um mandamento fundamental da vida dos indivíduos, das famílias e dos países frente às inevitáveis restrições de seus orçamentos. Como argumenta Megale (2020)[43], dada a recusa do país em fazer escolhas, e na “ausência do teto, como acontecia até 2016, a tendência era aumentar gastos em todas as áreas, cabendo ao Ministério da Fazenda buscar uma forma de financiá-los. Essa foi a dinâmica das contas públicas brasileiras por muitas décadas…., quando a despesa cresceu mais do que o PIB….. Determinava-se o orçamento – em geral, deficitário – e estabelecia-se a quantidade de moeda necessária para equilibrá-lo. Mesmo com o fim da hiperinflação em 1994, o crescimento dos gastos continuou.”

Acreditamos ser um equívoco pensar neste momento em rever a regra de teto. Qualquer sinalização no sentido de removê-la ou mesmo ampliar a lista de despesas que constituem exceções ao teto seria um grande risco.

Em especial, a redução havida na taxa de juros nos últimos anos até o menor valor histórico atual da Selic de 2% se deve à previsibilidade e estabilidade futura da dívida, garantida pelo teto. Ainda que já se prevejam incrementos dos juros em um prazo mais longo, o abandono do teto apenas fará acelerar este processo, aprofundando o crowding-out de menos investimentos privados por mais despesas públicas, resultando em menos crescimento econômico.

           

  1. Conclusão

Os choques gêmeos de oferta e demanda de curto prazo gerados pelo Covid-19, ao se estenderem em razão da continuidade das medidas de isolamento social, podiam gerar uma recessão demasiadamente longa e profunda. As empresas menores e menos líquidas foram proporcionalmente mais afetadas pela crise. Assim, o momento excepcional de choques gêmeos repentinos e a necessidade de proteger as pessoas físicas e jurídicas mais vulneráveis gerou na crise do Covid-19 uma convergência das políticas social e macroeconômica, que se basearam em expansão fiscal. O impacto fiscal negativo no curto prazo era, portanto, inevitável.

Isso, no entanto, não implica que a disciplina fiscal deva ser abandonada no longo prazo com medidas como a eliminação do teto de gasto, pois este é fundamental para sinalizar a estabilização da relação dívida/PIB[44]. É errado, portanto, apontar que a crise do Covid-19 deveria reafirmar a continuidade de políticas fiscais ativas no pós-pandemia. Na verdade, sinaliza o oposto: é fundamental que o setor público esteja com suas contas em dia não apenas para evitar desequilíbrios macroeconômicos, mas também para ter mais graus de liberdade para atuar quando esse tipo de crise aparecer.

Afinal, quando aparece uma despesa imprevista e inevitável para qualquer indivíduo, a vida será bem mais fácil se tiver dinheiro em caixa do que se tiver dívida no banco. O desequilíbrio nas finanças públicas, derivadas de anos de irresponsabilidade fiscal, tornam as dificuldades para enfrentar a crise muito maiores. Contrariamente ao afirmado por Nelson Barbosa, de que a equipe econômica teria sofrido nessa crise de “keynesianismo pós-traumático”, seria a própria economia que ainda se ressentiria do trauma da irresponsabilidade fiscal embutida na chamada “Nova Matriz Econômica”.

A resposta da política fiscal brasileira à crise do Covid-19, apesar de estar na direção correta, acabou sendo bem mais forte que a grande parte dos outros países emergentes, o que foi excessivo dada a já delicada situação fiscal do país antes da crise do Covid-19. Os países com maior similaridade ao Brasil que tiveram respostas mais fortes à crise tinham relações dívida/PIB bem mais confortáveis e, portanto, mais graus de liberdade para reagirem assim.

Se, de um lado, é possível que a rápida recuperação econômica do Brasil esteja relacionada a este sobre estímulo, também é razoável postular que isso comprometeu a nossa margem de manobra fiscal daqui para a frente, e que cobrará um preço muito alto, com menor crescimento, de 2021 em diante.

O Brasil seria, portanto, igual a um maratonista que chegou ao 10º Km na frente de todos os outros corredores, só que com quase nenhum fôlego para os próximos 32 Kms. Nosso maior problema agora é chegar ao final da prova sem morrer pelo caminho. O caminho da continuidade da expansão fiscal é a senha para não passar do Km 20.

O programa que, apesar de imprescindível, acabou gerando um custo fiscal elevado demais foi o Coronavoucher. A discussão sobre o valor do benefício foi quase um “quem dá mais”. Infelizmente, a politização excessiva e com pouca reflexão sobre o valor do benefício e o conjunto de pessoas de elegíveis estão impondo um custo econômico muito significativo ao País.

Discutir incrementos de determinadas despesas sem contrapartida na redução de outras despesas de forma a respeitar o teto de gastos no pós-pandemia constitui um delírio pior que o do personagem Buzz Lightyear que desejava ir “ao infinito e além”.

Entrar numa crise de confiança fiscal ou introduzir novos tributos como ocorreu ao longo da década de 90 não deveriam estar no cardápio. Respeitar o teto neste momento faria esta regra demonstrar a sua principal virtude: obrigar o Estado a fazer escolhas das prioridades e não deixar que a inflação ou o acúmulo de dívidas interna e externa façam o trabalho. Seria a prova de fogo da regra do teto e, por conseguinte, da consolidação do amadurecimento da prática democrática no orçamento público no Brasil.

César Matos é consultor legislativo da Câmara dos Deputados, doutor em Economia, ex-secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia e ex-conselheiro do CADE.

Referências

[1] World Economic Outlook. April, 2020. https://blogs.imf.org/2020/04/14/the-great-lockdown-worst-economic-downturn-since-the-great-depression/

[2] O termo da “nova matriz econômica” surgiu de uma entrevista do então secretário Marcio Holland ao jornal Valor em https://valor.globo.com/brasil/coluna/pais-mudou-sua-matriz-economica-diz-holland.ghtml.

[3] A Economia nos Tempos de Covid-19. Banco Mundial – 12 de abril de 2020. https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/33555/211570PT.pdf?sequence=11

[4] Como destacam Baldwin e Di Mauro,B. (Economics in the Time of COVID-19. Eds. Baldwin.R. e Di Mauro CEPR Press., 2020 . https://cepr.org/sites/default/files/news/COVID-19.pdf): “Esta percepção sobre a recuperação em forma de “V” era mais razoável quando o COVID-19 era essencialmente um problema chinês a este país estava lidando com isto a forçawas essentially a Chinese problem and China was dealing with it forcefully. De lá pra cá tudo mudou. Enquanto uma crise curta e aguda ainda é possível, este resultado se configura cada vez menos o resultado mais provável. Ver uma explicação didática sobre as letras possíveis da recuperação realizada por Otaviano Canuto em https://www.cmacrodev.com/qual-sera-o-formato-da-recuperacao-economica-pos-coronavirus/

[5] Conforme Delaporte, I e Pena, W. (Working from home under Covid-19: Who is affected? Evidence from Latin American and Caribbean countries in Covid Economics Vetted and Real-Time Papers Issue 14, 6 May 2020) apenas entre 13% a 27% da força de trabalho no Brasil é capaz de trabalhar remotamente. Ou seja, pelo menos ¾ da força de trabalho no Brasil não produziu, a não ser pelos serviços essenciais cuja quarentena foi aliviada (ver Decreto nº 10.329, de 28 de abril de 2020 http://www.in.gov.br/web/dou/-/decreto-n-10.329-de-28-de-abril-de-2020-254430286?inheritRedirect=true&redirect=%2Fweb%2Fguest%2Fsearch%3FqSearch%3Ddecreto%252010.329).

[6] https://www.bcb.gov.br/content/focus/focus/R20200522.pdf

[7] https://www.bcb.gov.br/content/focus/focus/R20201023.pdf

[8] https://bucket-gw-cni-static-cms-si.s3.amazonaws.com/media/filer_public/03/bb/03bb8f68-af80-4bc7-97ae-9d44841d2bf3/sondagemindustrial_setembro2020.pdf

[9] https://www.gov.br/fazenda/pt-br/centrais-de-conteudos/publicacoes/conjuntura-economica/estudos-economicos/2020/ni-setores-da-atividade-economica-apresentam-recuperacao-em-v.pdf

[10] https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/06/24/WEOUpdateJune2020

[11] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-10/com-recuperacao-incerta-brasil-se-apoia-na-muleta-do-auxilio-emergencial-para-economia-caminhar.html

[12] Conforme o FMI, a queda do PIB mundial havida na crise financeira global chegou a apenas 0,1%.

[13] https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/09/30/world-economic-outlook-october-2020#Full%20Report%20and%20Executive%20Summary

[14] https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/apresentacoes/2020/outubro/apresentacao_wr_tcu.pdf

[15] Duque,D. :“Uma avaliação do Auxílio Emergencial: Parte 1” https://blogdoibre.fgv.br/posts/uma-avaliacao-do-auxilio-emergencial-parte-1

[16] O Instituto Fiscal Independente – IFI – (https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/576808/RAF44_SET2020.pdf), em relatório de 14 de setembro de 2020, é cético em relação a esta alteração do mix de despesas dada a crescente participação das despesas obrigatórias: “ Em termos gerais, a projeção da IFI para a despesa obrigatória é superior à do governo, o que reduz, no nosso cenário, o espaço para realização das despesas com custeio administrativo e investimentos, entre outras necessárias ao funcionamento da máquina”

[17] Atualmente, o público alvo são famílias com renda mensal de até R$ 89,00 por pessoa.

[18] Ver as regras do bolsa família, inclusive valores, em https://www.caixa.gov.br/programas-sociais/bolsa-familia/Paginas/default.aspx#:~:text=Destinado%20%C3%A0s%20fam%C3%ADlias%20em%20situa%C3%A7%C3%A3o,a%20R%24%20205%2C00.

[19] Como mostra reportagem da CNN de 18/03/2020, “Guedes disse que a distribuição começará em até duas semanas, sendo que o valor do cupom “não pode ser maior nem menor do que o do Bolsa Família”. https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/03/18/coronavoucher-tera-valor-do-bolsa-familia-e-duracao-de-4-meses-diz-guedes

[20] A história do incremento prodigioso dos valores do Coronavoucher em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/24/coronavirus-veja-regras-do-auxilio-de-r-200-do-governo-para-informais.htm

[21] https://economia.ig.com.br/2020-08-26/auxilio-emergencial-r-42-bilhoes-foram-gastos-em-fraudes-diz-tcu.html

[22] Ver Medida Provisória 2000, de 2020: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8885822&ts=1599584920386&disposition=inline

[23] Carta de Conjuntura do IPEA nº 48 do terceiro trimestre de 2020 sobre o mercado de trabalho, com base nos microdados da PNAD Covid-19 de 28/08/2020.

[24] Baldwin e Di Mauro (2020) destacam esse efeito desproporcionalmente maior nas pequenas e médias empresas e a necessidade de programas específicos para este alvo.

[25] https://www.bcb.gov.br/app/pese/. Dados verificados em 29/10/2020.

[26] Ver Fernandes (2020) (,C.: Passos para a elaboração de um Programa de Crédito Governamental em situações de emergência: o caso do Covid-19http://www.brasil-economia-governo.org.br/2020/09/04/passos-para-a-elaboracao-de-um-programa-de-credito-governamental-em-situacoes-de-emergencia-o-caso-do-covid-19/)

[27] O BNDES, por sua vez, também está implementando outros programas de crédito envolvendo o setor de saúde, sucroalcooleiro, audiovisual, cadeias produtivas de grandes empresas, dentre outros, sem recursos fiscais. Ver em https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/bndes-contra-coronavirus.

[28] Ver https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2020/03/23/banco-central-reduz-aliquota-de-compulsorio-sobre-depositos-a-prazo-de-25percent-para-17percent.ghtml. Todas as medidas de política monetária e seus respectivos efeitos podem ser encontradas no último slide do balanço das ações do covid-19 da Secretaria Especial de Fazenda em https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/apresentacoes/2020/2020-05-01-transparencia.pdf com impacto total de aumento de liquidez de quase R$ 3,2 trilhões.

[29] https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/apresentacoes/2020/outubro/2020-10-30-rpdp.pdf/view

[30] Reinhart,C and Rogoff, K.: “Growth in a time of debt”. American Economic Review, Vol. 100, nº 2 May, 2010.

[31] Ver Kelton,S.: “The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy”. New York. Public Affairs, 2020.

[32] Ver críticas em Rogoff,K.: Modern Monetary Nonsense. Mar 4, 2019. Project Syndicate (https://www.project-syndicate.org/commentary/federal-reserve-modern-monetary-theory-dangers-by-kenneth-rogoff-2019-03?barrier=accesspaylog) e Yang,E.: Modern Monetary Theory is Playing With Fire  – August 8, 2020 (https://www.aier.org/article/modern-monetary-theory-is-playing-with-fire/?gclid=Cj0KCQjwy8f6BRC7ARIsAPIXOjhtsSXOy68LfzBRB8-miECRKdokrFZWiBANAq6eX2bTwTLtz5ar3OcaAt5YEALw_wcB). Olivier Blanchard também criticou a Nova Teoria Monetária, mas sem descartar a possibilidade de flexibilização da política fiscal em certas circunstâncias (https://www.youtube.com/watch?v=o2uUut7QCT8).

[33] Resende, L.: Consenso e contrassenso: Por uma economia não dogmática. Portfolio Penguin.2020. Em entrevista sobre o livro para o Valor(https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/02/07/livro-de-andre-lara-resende-reune-ensaios-que-criticam-visao-dominante-da-teoria-economica.ghtml), o autor reconhece que a NTM é basicamente a mesma ideia da Teoria Geral de Keynes, defendendo que “essa exigência do equilíbrio fiscal é contraproducente em momentos de recessão e em momentos em que há necessidade de investimentos em infraestrutura”.

[34] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelson-barbosa/2020/04/de-onde-veio-o-dinheiro.shtml

[35] Daí a referência da epígrafe deste artigo à conhecida frase da personagem Buzz Lightyear em Toy Story: “Ao Infinito e além”.

[36] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/03/25/comentarios-ao-texto-de-andre-lara-resende-por-edmar-bacha.ghtml

[37] Ver Relatório Anual da Dívida de 2019 https://www.tesourotransparente.gov.br/publicacoes/relatorio-anual-da-divida-rad/31542

[38] Os dados do Tesouro Direto são bem eloquentes em relação ao elevado diferencial juros longos/curtos.

[39] Em 18 de março de 2020, Barbosa escreveu artigo intitulado “Coronavírus contagia bom senso dos economistas ortodoxos” em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelson-barbosa/2020/03/coronavirus-contagia-bom-senso-dos-economistas-ortodoxos.shtml?origin=folha.

[40]http://blogs.correiobraziliense.com.br/vicente/wp-content/uploads/sites/16/2020/03/artigo_medidas-coronavirusMarcioHollandv2_25_03_2020.pdf

[41] https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/noticia/2020/03/teto-de-gastos-nao-limita-combate-ao-coronavirus-dizem-analistas-ck7umk8k5007401qlvwi0efxp.html

[42] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/ministro-do-stf-libera-regra-mais-flexivel-para-gastos-na-pandemia.shtml

[43] http://www.brasil-economia-governo.org.br/2020/08/21/manter-o-teto-seguir-as-reformas-a-estabilidade-do-brasil-em-jogo/

[44] https://iepecdg.com.br/artigos/estabilizar-divida-a-longo-prazo-importa-mais-que-conter-seu-aumento-na-pandemia/

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A Microeconomia do Controle de Preços e a Cesta Básica no Brasil do Covid-19 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3334&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-microeconomia-do-controle-de-precos-e-a-cesta-basica-no-brasil-do-covid-19 Mon, 28 Sep 2020 18:14:22 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3334 “We must look at the price system as such a mechanism for communicating information if we want to understand its real function—a function which, of course, it fulfils less perfectly as prices grow more rigid” 

Friedrich Hayek 

“The Use of Knowledge in Society” 1945

 

 

I) Introdução 

 

A quarentena gerada pela crise do Covid-19 gerou choques gêmeos de oferta e demanda. De um lado, como muitas pessoas pararam de trabalhar, deixou-se de produzir, resultando em um choque de oferta. De outro lado, as pessoas em casa reduziram seu consumo, especialmente em serviços, resultando em um choque de demanda. 

 

A oferta e a demanda de um bem ou serviço não obrigatoriamente se reduziram na mesma proporção em razão destes choques, o que pode ensejar excessos de oferta com reduções significativas de preços ou de demanda com aumentos significativos de preços. 

 

Em alguns casos, como ocorreu com os itens de alimentação arroz, feijão, leite e óleo de soja, da cesta básica, acabou que o choque de demanda foi positivo, o que implicou incremento de preços em 2020. 

 

O inciso X, do art. 39, do Código de Defesa do Consumidor, a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, por sua vez, veda ao fornecedor de bens e serviços “elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços”. Com base nisso, os Procons passaram a questionar aqueles aumentos em todo o país, buscando avaliar se houve aumento de custos que “justificasse” o incremento. A Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça (Senacon/MJ) também notificou supermercados e cooperativas para explicarem estes aumentos de preços (1). O Ministério da Economia, por sua vez, pediu esclarecimentos à Senacon sobre esta notificação. A Senacon acabou por instaurar uma Comissão para tratar dos aumentos de produtos da cesta básica no âmbito do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor (CNDC) do Ministério da Justiça.

 

Nesse texto, procuramos analisar, com base na microeconomia convencional, o controle de preços abusivos e de reajuste de preços abusivos. Na próxima seção, sumariamos um pouco da experiência brasileira com controle de preços. Na seção III, apresentamos a dificuldade de definir preços abusivos. Na seção IV apresentamos o problema da assimetria de informação do regulador de preços e suas implicações para o bem-estar em mercados competitivos quando se busca controlar preços abusivos. Aqui trazemos a perspectiva de Hayek (1945) (2) do mercado como um mecanismo de processamento de informações eficiente. A seção V trata do controle dos reajustes abusivos de preços. A relação entre concorrência e controle de preços é objeto da seção VI. A seção VII reflete sobre situações em que controles de preços podem ser eficientes em setores não competitivos. A seção VIII avalia a natureza dos incrementos de preços da cesta básica durante a crise do covid-19 no Brasil. A seção IX conclui.  

 

II) Controle de Preços no Brasil

 

Até 1990 havia no Brasil pelo menos dois órgãos encarregados do controle de preços na economia, o CIP (Conselho Interministerial de Preço) e a SUNAB (Superintendência de Abastecimento e Preços). Ambos foram extintos como parte de um conjunto de reformas que alterou o paradigma brasileiro de desenvolvimento para uma economia mais orientada para o mercado. 

 

A história destes órgãos revela um sem número de planilhas de custo que o burocrata analisava para avaliar se podia ou não podia incrementar os preços. Eram várias reuniões com as partes discutindo o que era razoável ou não considerar das planilhas no cálculo do “preço justo”. 

 

Uma coisa é certa: a precificação na economia brasileira era burocratizada. O espaço para corrupção naturalmente era grande. É duvidoso, de qualquer forma, se a capacidade de fiscalização do Estado era suficientemente grande para que tal controle se constituísse em uma restrição real para os empresários. 

 

É possível, na verdade, que o resultado líquido da política de controle de preços, ao contrário do originalmente pretendido, tenha sido capaz de aumentar e não reduzir os preços. Os controles do CIP podem ter, de fato, funcionado como instrumentos para a coordenação de cartéis, estabelecendo pontos focais para limites inferiores (ou pisos) dos preços (3). Isto pode ter se derivado tanto da elevada assimetria de informação dos reguladores quanto de um processo clássico de captura. Uma história anedótica deste processo é contada pelo ex-Ministro da Fazenda Mário Henrique Simonsen: quando tentou extinguir o controle de preços no setor automotivo, a principal resistência veio dos próprios empresários do setor que pediam para continuarem sendo “controlados”!!! (4)

No Plano Cruzado, os controles de preços geraram filas nos supermercados, açougues e outros comércios. Não raramente, o consumidor voltava para casa, após longos períodos de espera, sem ter conseguido adquirir o bem. O ex-ministro Simonsen lançava mão inclusive de um exemplo histórico revelador. Na Babilônia, Nabucodonosor talvez tenha sido o primeiro governante a ter tentado implementar uma política de controle de preços, punindo com a morte na fogueira os infratores. Tal política acabou sendo abandonada simplesmente por ter gerado escassez do óleo utilizado nos sacrifícios!! 

 

III) Definição de “Preços Abusivos” 

 

O primeiro problema relevante é definir “preços abusivos”. Qual deveria ser o referencial teórico para definir se um preço real seria abusivo ou não? 

 

Na teoria microeconômica convencional, o referencial abstrato da estrutura de mercado de concorrência perfeita gera, pelo livre jogo da oferta e demanda, preços iguais aos custos marginais em um prazo mais longo. Tal resultado seria ótimo socialmente por maximizar a soma dos excedentes econômicos na economia. Em um prazo mais curto, os preços poderiam ser diferentes do custo marginal, mas estariam sempre convergindo para este: reduzindo (aumentando) em direção ao custo marginal se o preço de mercado fosse superior (inferior) ao custo marginal com base no movimento de livre entrada e saída de empresas. O fato é que pelo referencial da microeconomia convencional, poder-se-ia pensar no “preço justo” como o custo marginal, sendo tão mais abusivo quanto mais distante (para cima) estivesse deste preço.   

 

No entanto, como dito acima, a estrutura de concorrência perfeita é, tão-somente, uma abstração teórica utilizada como referência para a análise dos mercados reais, sendo o conjunto completo de suas características encontráveis em pouquíssimos mercados. Dessa forma, sendo a concorrência perfeita, na prática, uma exceção, o equilíbrio de preço igual a custo marginal seria, também, uma exceção, o que implica que boa parte dos preços observados na economia seriam abusivos por tal critério, tornando a referência pouco funcional. 

 

Também se sabe que o maior preço que deverá se verificar em um mercado sem interferência do governo é o de monopólio. Este preço resulta da regra de maximização de lucros do monopolista que é a receita marginal igualando o custo marginal. Assumindo que o objetivo principal do monopolista é o lucro, ele nunca deverá fixar preços acima deste valor, mesmo sem interferência do governo. Isto porque um preço maior fará cair a quantidade mais que proporcionalmente ao aumento dos preços. Ou seja, se o monopolista abrir mão deste preço maior em favor de uma maior quantidade, a receita a mais é maior que o custo a mais, aumentando liquidamente o lucro. Simplesmente não é verdade que quanto maior o preço, melhor para o empresário.     

 

Dessa forma, se o limite superior dos preços praticados no mercado é o preço de monopólio, se existir de fato esta categoria de “preços abusivos”, certamente o preço de monopólio terá que ser pelo menos um deles. 

 

Como os monopolistas, caso sejam racionais, praticam, quando não se sujeitam à regulação de tarifas, preços de monopólio, sob o critério de preço abusivo igual a preços de monopólio, eles sempre estarão abusando, por definição. Se este é o caso, entende-se que qualquer preço de monopolista, sem interferência do poder público, é abusivo e, portanto, todo monopolista deveria já ser condenado a priori por qualquer preço que esteja praticando!!!!

Em síntese, há problemas sérios na definição de preços abusivos.

 

IV) Preços Abusivos e a Vantagem Informacional do Mercado em Setores Competitivos

 

Toda a discussão da sessão passada se baseia na premissa de que o regulador de preços conhece as curvas de custo marginal e demanda. Esta premissa, no entanto, não se verifica. Não há um item contábil chamado “custo marginal” que se possa acessar facilmente, quanto mais uma curva de custo marginal que se derive das informações disponíveis da empresa. A curva de demanda também não é algo que o regulador tenha acesso. Pior, mesmo para a empresa não é claro nem o que significa o “custo marginal”, muito menos como calculá-lo. O empresário também não dispõe de um modelo econométrico que calcule, a cada momento, a sua curva de demanda, o que não o impede de ter uma boa ideia por tentativa e erro no mercado na fixação de seus preços. 

 

Ou seja, a falta de informação sobre as variáveis fundamentais para se implementar o arcabouço microeconômico convencional para controlar preços é muito significativa. Nem mesmo o regulado dispõe desta informação.

 

Como nos modelos de economia da regulação (5), a assimetria de informação implica o regulador abrir mão de rents para as companhias controladas. No limite, se o teto de preços que define abusividade for igual ou estiver acima do monopólio, a perda de bem-estar é a mesma da situação sem controle de preços. Nesse caso, a assimetria de informação é tão substancial que os rents deixados para as firmas reguladas simplesmente se igualam aos de monopólio, tornando a intervenção redundante. 

 

Pior, é possível que, ao sinalizar um determinado nível de preços acima do que seria o preço competitivo, o controlador induza um ponto focal de preço mais alto do que seria caso não houvesse o controle. É o regulador se tornando o “maestro” dos cartéis como o ex-ministro Simonsen constatou no passado.

De outro lado, também por desconhecimento das condições de oferta e demanda, os preços controlados podem ser tão baixos que a situação financeira da empresa fica comprometida, podendo, no limite, induzir-se uma situação falimentar. Também, e principalmente, deve gerar um excesso de demanda em um prazo mais longo, em função da diminuição da quantidade ofertada com as empresas saindo mercado em função de seus prejuízos, tornando mais aguda a pressão por preços maiores.

 

O fato é que quanto mais o regulador procura reduzir este risco de preços regulados muito baixos, mais se incorre no risco de preços regulados muito altos e redundância da regulação acima assinalado e vice-versa. Podemos chamarmos o erro de regular “preços muito baixos” como erro tipo I e o erro de regular “preços muito altos”, erro tipo II. Como em qualquer teste de hipóteses estatístico, toda a vez que desejamos reduzir um desses tipos de erro, aumentamos o outro. 

 

Essa vulnerabilidade natural a ambos os erros de qualquer sistema de controle de preços é bem menor quando se deixa o mecanismo de mercado funcionar livremente. Não à toa, Hayek (1945) enfatizava que uma das principais virtudes do mercado é implementar naturalmente um gigantesco mecanismo de processamento de informações que seria superior à coordenação centralizada. 

 

Os sinais emitidos pelo sistema de preços balizam as decisões de investimento e, por conseguinte, as variações de oferta no médio e longo prazos. Nesse sentido, preços maiores (menores) passam a mensagem para os ofertantes que devem investir mais (menos). O comando desta mensagem contém o próprio incentivo para o aumento de oferta: preços maiores sinalizam rentabilidades maiores e, por conseguinte, maior valor presente dos projetos de investimento. Uma sinalização permanente de preços menores distorce esta cadeia de transmissão da informação, comprometendo o aumento da oferta no médio e longo prazos e o enxugamento espontâneo do excesso de demanda. O corolário é que controles de preços nunca gerarão resultados melhores que o mercado.

 

A análise gráfica de oferta-demanda padrão facilita o entendimento do ajuste de preços em mercados suficientemente competitivos. Quando o mercado funciona livremente, o preço gravitará em torno do equilíbrio Pe, com a quantidade transacionada igualando a chamada “quantidade de equilíbrio” que implica que não há pressões nem para cima e nem para baixo do preço. Mais que isso, a este preço, atinge-se o ótimo social em “qe”, que é aquele que maximiza a soma dos excedentes do consumidor e do produtor. 

 

Agora, vamos introduzir um controle de preços ou de teto de preços em um nível que não seja igual a Pe. Se o preço controlado for Ps<Pe, então a quantidade transacionada será qs<qe, gerando um excesso de demanda dado pela diferença entre a quantidade demanda a este preço “qsd” e a quantidade ofertada a este preço “qs”, “qsd-qs”. Como o regulador não permite que os preços subam, haverá algum mecanismo de ajuste para corrigir este desequilíbrio, tal como filas, alocação do bem ou serviço aos amigos do vendedor, dentre outros, ou mesmo mercado paralelo a um preço superior. 

 

A principal ineficiência é que há agentes demandantes que estariam dispostos a pagar mais para ter o bem ou serviço e agentes ofertantes dispostos a aumentar sua oferta em resposta a um aumento de preços. Os consumidores que conseguem ter acesso ao bem ou serviço são beneficiados em detrimento dos que não conseguem acesso ao bem ou serviço e/ou ao empresário. Isto implica não se tratar de uma questão distributiva apenas entre consumidores e empresários, mas também entre consumidores que têm acesso e os que não têm acesso ao bem ou serviço ao preço Ps. O curioso é que um eventual mercado paralelo é que pode restabelecer a “justiça” entre consumidores.  

 

Vejamos o caso de o preço teto fixado em Pd. O empresário fará preços menores para conquistar clientes. O controle de preços será uma restrição redundante e os próprios empresários deverão puxar o preço para o nível de equilíbrio de mercado Pe, restabelecendo a quantidade ótima “qe”.

 

Não obstante, este processo de ajuste pode acabar não ocorrendo quando o setor não for suficientemente competitivo. Nesse caso, é possível que o regulador induza uma coordenação tácita entre os oligopolistas. O preço Pd pode acabar servindo como um farol (6). É plausível que, na ausência deste ponto focal, os agentes tivessem bem mais dificuldades em, de forma tácita, alcançar preços tão altos, a não ser que apelem para um cartel explícito. O fato é que o controlador de preços estaria induzindo uma colusão tácita na linha do que o ex-ministro Simonsen constatou no passado.

 

V) Reajuste Abusivo de Preços

 

É usual que os reguladores de preços se importem mais com a variação dos preços, até mais do que com seu nível. Seria, portanto, uma política de controle de “reajustes abusivos” de preços. 

 

Esta possibilidade se encontra inscrita no inciso X, do art. 39, do Código de Defesa do Consumidor, o qual proíbe aumentos de preços “sem justificação”. A primeira dúvida é quais justificações são plausíveis? Só aumentos de custos? E se houver um choque positivo de demanda, seria justificativa possível? A própria redação do dispositivo já constitui grande gerador de incertezas.

 

Gráfico I

Controle de Preços em um Regime de Oferta e Demanda Padrão

 

 

O impacto distorcido do controle de preços também pode ser analisado pela dificuldade da autoridade em perceber mudanças nessas curvas e realizar mudanças de acordo enquanto o mecanismo de mercado procede aos ajustes de forma muito mais célere (7). Assuma que o regulador estava definindo um teto de preços em “Pe”. Vamos supor que ocorra um choque de demanda positivo, ou seja, um deslocamento repentino da curva de demanda para cima para D2. O novo preço de equilíbrio de mercado é Pd2, o qual se iguala ao novo custo marginal quando q=qd2. Ou seja, para incrementar a quantidade em resposta ao aumento na demanda, é preciso um preço maior. Se o regulador demora a ajustar as suas expectativas ao novo cenário e ainda pensa que o “preço justo” é igual a “Pe”, então a quantidade permanecerá no valor de “qe” que, após o deslocamento para cima da demanda, deixou de ser ótimo. A principal distorção é que a quantidade atual não responde a alterações na demanda em função do controle de preços. O excesso de demanda gerado será dado pela quantidade demandada na nova curva de demanda, D2, ao preço Pe, “qed”, menos a quantidade consistente a “Pe” na curva de oferta, “qe”, “qed-qe” que terá que ser racionado de alguma forma menos eficiente que o mecanismo de mercado. O controle de preços não permite que os consumidores incorporem (internalizem) em suas decisões de compra o fato de o produto que teve a demanda aumentada está relativamente mais escasso do que antes. 

 

Uma análise muito similar pode ser realizada assumindo um choque de oferta negativo em que a curva de oferta se desloca para O2. Uma quebra de safra em um produto agrícola, por exemplo, pode ser o responsável por este movimento. Vamos supor novamente que o novo preço de equilíbrio também é “Pd2”, mas agora com uma nova quantidade de equilíbrio qsd2, se fosse permitido o livre funcionamento do mercado com aumento de preços. No entanto, o nosso regulador mais uma vez não percebe que o novo preço “justo” agora é maior e mantém a regulação do preço teto em Pe. Mais uma vez se gera um excesso de demanda a este preço regulado “Pe” no valor da diferença da quantidade demandada “qe” na curva de demanda e da quantidade ofertada ao nível de “Pe” na nova curva de oferta O2, “qe-qod”. Mais uma vez, o controle de preços não permite que os consumidores incorporem (ou internalizem) em suas decisões de compra o fato de que o produto que teve a oferta reduzida está relativamente (e absolutamente) mais escasso do que antes. 

 

Muitas vezes o regulador defende a necessidade de controle de preços para evitar que empresários oportunistas gananciosos se aproveitem de catástrofes naturais que gerem choques de oferta para se aproveitar da situação fragilizada dos consumidores e realizem aumentos abusivos de preços. Essa análise demonstra que deixar os empresários realizarem estes reajustes abusivos de preços em resposta ao choque de oferta é a melhor forma de corrigir a escassez do produto o mais rápido possível. 

 

De qualquer forma, em geral, consideram-se aumentos de preços acima da inflação e/ou acima dos aumentos de custos do setor como potencialmente “abusivos”. Este foi o caso do Brasil, no período de alta inflação pré-1994. Alguns economistas até mesmo argumentavam que o principal vilão da inflação seriam os setores oligopolistas e monopolistas (8) e não as políticas fiscal e monetária. 

 

A questão é que se a definição de preços abusivos já é particularmente complicada, o problema com a definição de reajustes abusivos de preços é ainda pior. A teoria microeconômica mostra que mercados monopolistas, concentrados ou cartelizados, geram níveis de preços superiores aos da concorrência perfeita. Mas não se demonstra que estruturas de mercados concentradas geram reajustes sistematicamente maiores que os setores competitivos.

 

A teoria até pode justificar reajustes de preços excessivos precisamente no momento em que os mercados se concentram ou cartelizam. Afinal de contas, se não for de outro jeito, a pergunta relevante é porque o cartel ou monopólio já não aumentou os preços antes, quando já eram monopólios ou cartéis? Nessas estruturas, preços são naturalmente elevados, sendo que o ajuste a ser feito apenas objetivaria manter o valor real daquele preço monopolista. Tudo o mais constante, o reajuste tenderia a se igualar à inflação do período. 

 

O aumento de preços seria maior em uma situação de monopólio ou cartel somente no caso de erros de percepção passados da(s) firma(s) sobre as reais condições de custo e demanda. O problema, aqui, entretanto, não seria de poder de mercado, mas de informação incorreta da própria firma. Este problema pode ocorrer, igualmente, em condições de concorrência ou de poder de mercado.  

 

Se também não for um problema de informação errada, a conclusão é que os empresários não estariam maximizando lucros previamente e, de repente, decidiram fazê-lo, conduzindo os preços para níveis mais próximos ao valor de monopólio. Assumir que os agentes, do nada, passaram a ser racionais, quando não eram antes, não é, de fato, uma hipótese muito confortável analiticamente. 

VI) Preços Abusivos e Concorrência

 

Quando preços sobem espera-se um aumento da quantidade ofertada. Este incremento vem de duas fontes. Primeiro, as empresas que já estão no mercado produzem mais, podendo até aumentar sua capacidade produtiva, em resposta ao incremento da rentabilidade gerada pelos preços maiores. Segundo, empresas que não estavam no mercado se sentem atraídas pela rentabilidade maior e entram. Ou seja, esta segunda fonte de aumento da quantidade ofertada está associada ao aumento da concorrência. 

 

Se o regulador, no entanto, não deixa o preço subir, nenhum dos dois efeitos ocorre, inclusive o da maior concorrência. Não à toa, a OCDE enfatiza em seu toolkit sobre advocacia da concorrência (9): “a existência de um limite máximo de preços pode levar à redução substancial dos incentivos à inovação e à oferta de produtos novos e/ou de elevada qualidade”.

 

Muitas vezes, o regulador, para avaliar preços ou reajustes abusivos, considera as margens do empresário. Quanto mais altas as margens, maior a probabilidade de se concluir pela abusividade. O problema é que quando há altas margens de lucro de um empresário específico, estas podem ser resultado de um custo menor, resultado direto da busca por maior eficiência ou de um poder de mercado adquirido por ter gerado mais qualidade no produto ou serviço, diferenciando-o em relação aos concorrentes. Assim, a verificação de uma margem de lucros alta pode estar associada justamente àquilo que se deseja fomentar concorrência que é a maior eficiência que traz preços menores e/ou mais qualidade aos consumidores.  

 

Na verdade, os agentes buscam ter menores custos e, portanto, menores preços e melhor qualidade, “vencendo” a concorrência para terem maior margem de lucro. Se os “louros” da vitória da batalha competitiva não puderem ser apropriados em função do controle de preços, a competição não será tão vigorosa assim, em primeiro lugar. Ou seja, a expectativa de que o “troféu” da concorrência não será “entregue”, pois o regulador quer margens menores, compromete justamente o processo de concorrência que é o que traz preços menores em um prazo mais longo. Assim, o controle de preços pode estar gerando preços menores no curto prazo, mas comprometendo o processo que os faz menores em um prazo mais longo e de forma sustentável que é a concorrência.  

 

O problema principal é que o “chamuscado” sinal de preços baseado em controles artificiais de preços provê sinalizações equivocadas aos potenciais entrantes. Preços baixos em função do controle desestimulam a entrada, gerando um processo de retroalimentação negativa. Há pouca concorrência no setor, o que gera preços altos que são alvo de políticas de controle de preços, justamente o que garante que aquela competição se manterá restrita. 

 

O problema é que é sempre difícil saber, ao certo, quando a emergência da competição se tornou factível no setor. E isto só será revelado se os sinais transmitidos pelos mecanismos de mercado estiverem autorizados a funcionar. Se o setor se tornar mais competitivo enquanto o regulador setorial permanece considerando-o não competitivo, é possível que o controle tarifário torne a falta de vigor concorrencial autossustentável. Este é o pior dos mundos, no qual o regulador de preços não percebe que é ele quem sustenta a falta de concorrência ao tentar resolver os efeitos do problema com o controle tarifário. 

 

Não à toa na regulação baseada no Poder de Mercado Significativo em telecomunicações na Europa e no Brasil, um critério para o regulador regular é se o segmento tende, dentro de um horizonte de tempo previsível, para uma estrutura concorrencial. Caso positivo, a manutenção da regulação é desnecessária e, pior, disfuncional. Manter este controle pode frustrar a expectativa dessa trajetória esperada do segmento rumo à concorrência. O controle de preços só faria sentido se não houvesse perspectiva de o segmento se tornar competitivo em um horizonte de tempo previsível. 

 

VII) Controle de Preços em Setores Monopolistas: Quando faz Sentido Regular Preços?

 

Quando um setor apresenta características de monopólio natural, um controle de preços pode fazer sentido. Em vários setores de infraestrutura como gás, saneamento, energia elétrica, dentre outros, este é o caso. Vejamos o gráfico clássico da teoria do monopólio abaixo. 

 

Suponha que o mercado tenha uma estrutura de monopólio ou um cartel que mimetiza perfeitamente o resultado do monopólio. O preço de monopólio é Pm. A área FHD constitui a perda de peso morto ou perda de eficiência gerada pelo monopólio. Uma política de controle de preços bem-sucedida é aquela que estabelece um preço entre Pc e Pm, de forma a diminuir o peso morto. No limite, quando o preço controlador por igual ao que seria o preço competitivo em Pc, o peso morto será igual a zero (10)

 

Assuma um controle de preços em Pr. A primeira parte da nova curva de receita marginal do monopolista com preço controlado torna-se a linha horizontal a partir de Pr até tocar a curva de demanda em “A”. Isto porque, até este ponto, se o monopolista estivesse sem restrição, ele sempre desejaria cobrar um preço maior que “Pr” (até Pm). A partir deste ponto “A”, a curva de receita marginal com controle de preços apresenta uma descontinuidade e volta para o seu traçado original a partir de Qa e que destacamos com uma linha cheia no gráfico. O equilíbrio será a intersecção da curva de custo marginal com a linha vertical A-curva de receita marginal. No entanto, como até “A” não se precisa reduzir o preço para aumentar a demanda (que está controlado em Pr), há incentivo a produzir até Qa>Qm, gerando uma soma de excedentes do produtor e consumidor maior do que no monopólio, incrementando o bem-estar.

 

Gráfico 2

Perda de Peso Morto em Monopólio e Controle de Preços

 

 

Aqui, no entanto, pode haver também os mesmos problemas do mercado competitivo com assimetria de informação. Se o regulador acreditar que as curvas de custo marginal e demanda estão mais deslocadas para cima do que elas são, ele pode acabara definindo um preço teto acima de Pm, o qual se torna redundante do ponto de vista regulatório. Igualmente, se o regulador definir um preço abaixo de Pc, a quantidade ofertada cai abaixo da quantidade demandada em Pc, definindo uma quantidade abaixo daquela que otimiza o bem-estar social em Pc. Os riscos tipo I e II são os mesmos.

 

Uma outra hipótese na qual o controle de preços pode aumentar bem-estar é quando há um elo não competitivo em uma cadeia produtiva de forma a evitar que um agente verticalizado discrimine seus rivais em outros elos mais competitivos da cadeia. Assim, um operador verticalmente integrado de gás, por exemplo, pode cobrar preços muito elevados para que seus concorrentes tenham acesso ao seu gasoduto que constitui monopólio natural. Deixar que isso aconteça equivale a comprometer a concorrência nos elos mais competitivos da cadeia como a produção e comercialização, justificando que se controle o preço de acesso. Além de gasodutos, pode-se pensar em monopólios em elos não competitivos nos segmentos de portos especializados, ferrovias, transmissão de energia elétrica, entre outros.   

 

Não obrigatoriamente a perspectiva de não haver concorrência em um horizonte de tempo previsível, torne desejável um controle de preços. Peguemos, o caso da concessão de patentes. O Estado concede um monopólio temporário que funciona como um esquema de incentivo para incentivar a inovação. Neste monopólio, o dono da patente pode cobrar os preços de monopólio, sem ser ameaçado pelos concorrentes potenciais. No curto prazo, este monopólio claramente compromete o objetivo de preços menores e, por conseguinte, a eficiência alocativa. Essas rendas e preços de monopólio são a recompensa que a sociedade aceita dar ao inovador. Se o regulador, no entanto, resolve manter o monopólio, mas vai controlar preços para gerar benefícios à sociedade no curto prazo, a recompensa esperada pelo inovador e, portanto, o incentivo a inovar, se reduz. A economia terá menos inovações do que teria se não houvesse a perspectiva do controle de preços. Isso acontece com frequência no setor de medicamentos. 

 

VIII) Comportamento do Preço dos Alimentos em 2020 e Abusividade

 

O comportamento dos preços dos alimentos, de fato, apresentou trajetória acima da inflação. O quadro abaixo traz os dados da média do IPCA acumulado no ano até agosto de 2020 compilado pelo IBGE em várias áreas metropolitanas, com destaque para itens de alimentação. Enquanto o IPCA em geral apresentou um aumento médio de 0,7% no Brasil, o item “alimentação e bebidas” teve um aumento maior que atingiu 4,91%, com mais destaque ao subitem “alimentação no domicílio” de 6,1% contra um incremento bem menor do subitem “alimentação fora do domicílio” em 2,18%. Esse diferencial está claramente relacionado à quarentena: muitas das pessoas que trabalham passaram a comer em casa o que antes comiam fora de casa. Ou seja, o incremento de preços está muito provavelmente relacionado ao choque de demanda da crise do covid-19 

 

Dos itens da cesta básica mencionados há um incremento maior no caso do arroz (19,25%), mas com alguma variação entre as regiões metropolitanas entre a maior alta detectada em Salvador (27,855) e a menor em Porto Alegre (11,72%). O preço do feijão variou conforme o tipo, sendo menor para o carioca (12,12%) e maior para o fradinho (35,91%). No caso do feijão carioca, houve inclusive uma redução de preço de 12,21% em Campo Grande.

 

Frutas (13,86%), Leite e derivados (11,28%), óleo de soja (18,63%) e hortaliças e verduras (11,61%) também tiveram altas expressivas no período. Esses movimentos altistas sugerem um elemento comum do lado da demanda que estaria relacionado à quarentena e com o incremento da renda gerado pelo Coronavoucher. Com mais de 66 milhões de pessoas recebendo R$ 600,00 por seis meses e dado o comportamento da grande parte dos preços de alimentação, é razoável que tenha havido e continua havendo uma pressão temporária na demanda. Dado que esse incremento atingiu especialmente as faixas de renda mais baixas, é plausível que haja uma elasticidade renda positiva para alimentos a despeito de serem considerados bens com elasticidade preço baixa. 

 

Quadro I 

Variação de Preços de Alimentos em 2020 (Acumulado até Agosto)

 

 

Há, no entanto, pelo menos dois elementos destoantes deste padrão de alta que foram as carnes (-1,89%), especialmente filet mignon (-18,44%) e macarrão (0%), mas estes não são comentados. Há um viés comportamental natural de focar no que aumentou mais e negligenciar o resto.

 

Na verdade, quando colocamos alimentação e bebidas junto com os outros itens do IPCA, descobrimos que o padrão altista foi muito particular deste item como podemos ver no quadro a seguir. 

 

De fato, houve quedas nos itens de transporte (-3,46%) e vestuário (-3,21%) e variações pequenas nos outros itens, inclusive saúde e cuidados pessoais que no meio de uma pandemia teve variação de apenas 1,6%.

 

 

O ponto importante é que não há uma tendência generalizada de alta da inflação. Ao contrário, como mostra o último comunicado do Copom (11), tirando os temores sobre o regime fiscal pós-pandemia, a inflação, em geral, está sob controle e abaixo da meta, havendo apenas uma alta temporária no preço dos alimentos gerada por um choque positivo e transitório de demanda. 

 

Dois elementos sugerem que esta alta dos alimentos deverá ser revertida em tempo não muito longo: 1) a redução gradual do escopo da quarentena com as pessoas fazendo menos refeições em casa, o que deve reduzir o item da alimentação no domicílio; e 2) a remoção gradual do auxílio emergencial que resultou em aumento de renda substancial para as classes de menor renda. 

 

Para se ter uma ideia, para alguém que recebia bolsa família, o benefício passou de R$ 41,00 para R$ 600,00 por pessoa, um aumento de mais de 13 vezes. Cada família pode acumular até dois benefícios, ou seja, R$ 1.200. No caso da mulher que sustenta o lar sozinha, o benefício seria de R$ 1.200. Ou seja, para esta mulher sozinha o incremento do benefício em relação ao bolsa família seria de mais de 28 vezes!!   

 

De acordo com Duque (2020) (12), o benefício do coronavoucher foi tão elevado que implicou um considerável incremento de renda dos 40% mais pobres, que chegou a 200% entre os mais pobres.

 

Dificilmente este incremento não se reverteria em pressão de preços. Com a redução de R$ 600 para R$ 300 e sua eliminação a partir de janeiro de 2021, os preços dos alimentos não terão mais combustível para queimar. 

 

  1. IX) Conclusão

Como vimos na seção V, seja por choques de oferta como de demanda, entender o preço inicial (Pe da parte teórica) como o “justo” e aumentos de qualquer magnitude como abusivos e que devem ser reprimidos gerará excesso de demanda e mecanismos não eficientes de alocação do produto. Pior, o ajuste por excelência do mercado, por aumento na quantidade ofertada resultante do incremento de preços não ocorrerá, postergando-se a correção do desequilíbrio.

 

O inciso III do art. 3º da Lei de Liberdade Econômica (LLE), em tese, busca evitar esta ineficiência ao definir como direito “definir livremente, em mercados não regulados, o preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda”. Esta definição está plenamente de acordo com a análise desenvolvida na seção V deste artigo. Quando há deslocamentos nas curvas de oferta e demanda, a tentativa do Estado de fazer com que preços não subam gera perdas de eficiência econômica e posterga o desejável ajuste da oferta com base na sinalização de preços.    

 

O inciso II do § 3º do art. 3º, por sua vez, define que este dispositivo não se aplica “à legislação de defesa da concorrência, aos direitos do consumidor e às demais disposições protegidas por lei federal”. Esse dispositivo deixa claro que o inciso III do art. 3º da LLE não compromete a implementação do comando do inciso X do art. 39 do Código do Consumidor. 

 

No entanto, como destacado em nossa análise neste artigo, se entendermos como “justa causa” para o consumidor também o direito de não enfrentar métodos de racionamento ineficientes como filas, alocação do bem ou serviço aos amigos do vendedor ou de não precisar recorrer ao mercado paralelo criado por se bloquear o incremento de preço de curto prazo, os reajustes deixam de poder ser caracterizados como abusivos.   

 

No caso presente de tentativa de contenção dos reajustes da cesta básica, dado o choque de demanda que ocorreu, aquela apenas terá o condão de atrapalhar o processo de ajuste que inevitavelmente ocorrerá após a mitigação dos fatores que originaram o problema. O desincentivo à ampliação da oferta gerado por controles desse tipo poderá, inclusive, fazer com que os preços não voltem aos patamares anteriores. 

 

Os Procons não parecem desconhecer essa dinâmica básica das economias de mercado. O Presidente do Procon de São Paulo falou que em circunstâncias normais a mão invisível do mercado “resolve o problema com o tempo: os preços sobem, mais produtores entram no mercado, a oferta aumenta e os valores nas etiquetas retrocedem. Em alguns momentos, porém, é preciso que a mão invisível do mercado seja substituída pela mão visível das autoridades. Não para controlar preços, mas para evitar abusos econômicos” (13)

 

Ora, a crise do covid-19 não gerou qualquer tipo de “revogação” da lei da oferta e procura e nem de seus mecanismos de ajustes. Houve um choque de demanda positivo que afetou alguns preços da cesta básica e não há nada que vá impedir que os incrementos de preços sejam revertidos com a reversão dos fatores causadores daquele choque. E se por um acaso estes fatores não reverterem, é fundamental manter a sinalização para que haja incentivo ao aumento de oferta dos produtos, ou seja, manter os preços mais elevados. 

 

Não há qualquer razão para desconfiar da mão invisível neste caso. Mas há muitas razões para desconfiar que a mão visível dos Procons trará algo de bom, a não ser um ganho político para os seus dirigentes.

 

 

César Mattos é Doutor em Economia e Ex-Secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade da SEPEC do Ministério da Economia.

 

(1) https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/ministerio-da-justica-e-seguranca-publica-notifica-cooperativas-e-supermercados-para-que-expliquem-elevado-aumento-de-produtos-da-cesta-basica.

(2) Hayek,F.: “”The Use of Knowledge in Society”. The American Economic Review, Vol. 35, No. 4. (Sep., 1945).

(3) O ex-ministro Simonsen, em artigo na Revista Exame de 14/04/93, defende que o “CIP ..de 1968 a 1980 funcionou de fato como um administrador governamental de cartéis privados”.

(4) A dúvida aqui era quem controlava quem?

(5) Laffont, J.J. and Tirole, J.: A Theory of Incentives in Procurement and Regulation. The MIT Press, 1993.

(6) Abusando da teoria dos jogos de oligopólio repetidos, pelo teorema Folk, quando os competidores em um oligopólio possuem taxa de desconto intertemporal suficientemente baixa ou, de forma equivalente, quando os competidores são suficientemente “pacientes”, qualquer estratégia dos jogadores de escolherem cobrar valores entre os preços de cartel e os de oligopólio de Cournot são sustentáveis, havendo infinitos equilíbrios.

(7) Ver essa mesma análise, menos pormenorizada, na Nota Técnica n.º 8/2020/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ.

(8) Tavares, M. Conceição e Belluzzo, L. G. (1985). “As Ilusões da Inflação”, Revista Senhor, 206. 27 fev.

(9) https://www.oecd.org/daf/competition/46969642.pdf.

(10) Note-se que, em um oligopólio, o preço de equilíbrio estaria entre Pm e Pc, de forma que o conjunto de tetos de preços que representariam uma política de controle de preços bem-sucedida tende a ser menor.

(11) https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/17188/nota.

(12) Duque,D. :“Uma avaliação do Auxílio Emergencial: Parte 1” https://blogdoibre.fgv.br/posts/uma-avaliacao-do-auxilio-emergencial-parte-1

(13) Isto É dinheiro. 18/09/2020.

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A Crise Econômica do Covid-19 no Brasil: Como Estamos Reagindo? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3260&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-crise-economica-do-covid-19-no-brasil-como-estamos-reagindo Thu, 28 May 2020 18:24:52 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3260 ⦁ Introdução

A resposta adequada da política econômica à crise do Covid-19 tem sido o tema mais relevante do debate atual sobre economia no mundo e no Brasil.

Nesse artigo procuramos analisar a resposta que está sendo dada pela equipe econômica no Brasil. Partindo de uma estratégia de austeridade fiscal, a equipe econômica optou por uma abordagem mais expansiva com vistas a compensar as consequências da Covid-19.

A pergunta que se faz é em que medida tal mudança constitui um reconhecimento da equipe econômica de que a austeridade anterior estava errada e que é preciso migrar para uma abordagem de gosto mais Keynesiano, na linha da “nova matriz econômica” executada entre 2008 e 2016?

Se o entendimento do que for “keynesiano” é simplesmente gastar mais no curto prazo para fazer frente à crise do Covid-19, a resposta é positiva. No entanto, voltar a uma abordagem de gastos públicos que continuamente ativem a economia, seja “cavando e enchendo buraco” (a eterna metáfora keynesiana), seja investindo ou consumindo, a resposta é claramente negativa. Não há dissenso de que uma mudança de direção temporária é necessária no curto prazo em resposta a um evento totalmente imprevisível e fora do controle como o covid-19. Mas isto não implica que se deva reverter a linha de austeridade para um prazo mais longo. Na verdade, indica a necessidade de reforçar aquele caminho, passada a tempestade.

A Revista The Economist reconheceu a necessidade de rápida e coordenada ação do Estado para fazer frente à emergência do Covid-19:

“Governments might have stumbled in the pandemic, but they alone can coerce and mobilise vast resources rapidly. Today they are needed to enforce business closures and isolation to stop the virus. Only they can help offset the resulting economic collapse.”

De fato, enquanto não há dúvida da necessidade da resposta rápida do governo no enfrentamento da crise do covid-19, esta estratégia não pode se estender muito dados os limites de sustentabilidade da dívida pública brasileira.
Como discutiremos abaixo, a resposta de curto prazo que está sendo implementada pela equipe econômica envolve convergir dois tipos de ações em resposta à crise: 1) proteger os mais vulneráveis e 2) compensar os súbitos choques de oferta e demanda gerados pela quarentena, evitando que eles se inercializem e gerem uma recessão desnecessariamente duradoura.

No longo prazo, no entanto, a convergência destes mesmos objetivos se realizará apenas com a volta da austeridade que permitirá retomar a meta de reduzir a relação dívida/PIB. Afinal, continua não se podendo gastar nas funções básicas do Estado, saúde, educação e segurança, em função não apenas da dívida muito elevada como do orçamento comprometido. A crise do Covid-19 nos revela, na realidade, o contrário, ou seja, o valor que deveríamos dar à disciplina fiscal para quando choques negativos gerados por eventos totalmente imprevisíveis ocorrerem. Ter mais graus de liberdade nas finanças públicas para conter os efeitos de crises como essa é fundamental,. A linha de expansionismo fiscal da “nova matriz econômica”, infelizmente, foi o que diminuiu esse espaço de manobra das finanças públicas brasileiras.

Ademais, não há qualquer contradição entre a resposta à crise no curto prazo e as reformas microeconômicas estruturais no longo prazo. Nesse caso, a maior produtividade que se espera com mais concorrência e desregulamentação da economia permite não apenas um melhor padrão de vida a todos, mas também uma maior capacidade de enfrentar eventuais crises como a atual com menos sacrifícios. Afinal, produzindo mais com menos em função da maior produtividade e com preços menores devido à maior concorrência se tem melhores condições de reduzir o sacrifício requerido durante este tipo de crise.

Na próxima seção fazemos uma síntese dos efeitos da crise nas economias mundial e brasileira pelas estimativas e indicadores disponíveis. Na seção III colocamos a pergunta sobre qual a melhor estratégia de enfrentamento da crise, proteger os mais vulneráveis ou aumentar investimentos públicos?

Na seção IV abordamos a natureza dos choques gêmeos de oferta e demanda, gerados pela crise do covid-19 e as reações da equipe econômica tanto na política fiscal quanto na monetária em cada um daqueles. Entendemos que, além destas políticas convencionais, há necessidade de manter o esforço de reformas microeconômicas de longo prazo. De fato, não há qualquer contradição, ao contrário, complementaridade, entre as políticas monetária e fiscal expansivas de curto prazo, o retorno o mais rápido possível ao ajuste gradual que vinha sendo seguido anteriormente e as políticas estruturais de longo prazo.

Na seção V, discutimos, do ponto de vista da teoria econômica, porque há necessidade de políticas fiscais e monetárias expansivas para uma crise desta envergadura. Cabe evitar que os choques de curto prazo se propaguem para o longo prazo e gerem efeitos permanentes na economia, ou seja, se inercializem. Aqui a magnitude elevada dos dois choques gerados pela quarentena repentina se torna uma variável chave para justificar o breve desvio da política econômica anterior de austeridade, especialmente para evitar a presença de tipping points que joguem o país em uma recessão desnecessariamente prolongada.

Na seção VI, destacamos a necessidade de se evitar um terceiro choque, o de concorrência, que ocorreria por uma maior concentração de mercado pós-Covid em função da saída permanente de empresas do mercado. Assim, evitar a crise de liquidez que afeta especialmente as pequenas e médias empresas é crucial. Os movimentos que o governo tem implementado nas políticas fiscal, monetária e de crédito são fundamentais neste aspecto.
Por fim, a seção VII conclui.

 

⦁ Covid-19: A Pior Recessão Mundial desde a Grande Depressão – “O Grande Lockdown”

A crise do Covid-19 gerou um impacto significativo e repentino na economia brasileira, mais fortemente sentido a partir do mês de março de 2020. Conforme o IBGE, o consumo aparente de bens industriais registrou uma queda de 11,9% na comparação entre março e fevereiro de 2020, na série com ajuste sazonal. O Indicador Ipea de Formação Bruta de Capital Fixo recuou 8,9% na comparação entre março e fevereiro de 2020, na série com ajuste sazonal.
O mais impressionante foi a deterioração das expectativas do mercado em relação ao PIB do Brasil em 2020 e 2021, conforme a pesquisa Focus do Bacen, à medida que foi se percebendo a real magnitude da crise do covid-19. De uma mediana das expectativas de mercado de crescimento do PIB no Brasil de +2,3% para 2020 em 07/02/2020, passou-se a uma expectativa de queda no PIB de -5,12% em 15/05/2020. O gráfico a seguir, tirado do Boletim Macrofiscal de 13/05/2020, apresenta a queda abrupta dos indicadores de serviços (PMS), industrial (PIM) e comércio (PMC).

Quadro I – Evolução Recente de Indicadores de Atividade no Brasil

O impacto da crise do Covid-19 é global. O quadro a seguir mostra as estimativas do FMI para a recessão esperada no mundo. Estima-se uma queda do PIB das economias mais avançadas em -6,1%, chegando a área do Euro a – 7,5% e os EUA a -5,9%. A China cai de um crescimento de 6,1% em 2019 para 1,2% em 2020. Para a América Latina e Caribe junto dos países ex-socialistas europeus, estima-se uma queda também de -5,2%, próximo ao estimado para o Brasil em -5,3%.

Quadro II – Estimativas de Crescimento do FMI no Mundo e Brasil para 2020/21

Com base nesses números, o FMI assim caracterizou a dimensão da crise econômica gerada pelo Covid-19 no mundo:
“The magnitude and speed of collapse in activity that has followed is unlike anything experienced in our lifetimes. This is a crisis like no other, and there is substantial uncertainty about its impact on people’s lives and livelihoods……… Under the assumption that the pandemic and required containment peaks in the second quarter for most countries in the world, and recedes in the second half of this year, in the April World Economic Outlook we project global growth in 2020 to fall to -3 percent. This is a downgrade of 6.3 percentage points from January 2020, a major revision over a very short period. This makes the Great Lockdown the worst recession since the Great Depression, and far worse than the Global Financial Crisis…….. the cumulative loss to global GDP over 2020 and 2021 from the pandemic crisis could be around 9 trillion dollars, greater than the economies of Japan and Germany, combined.”
Vejamos como o Brasil está reagindo a isso na próxima seção.

⦁ Investir ou Proteger os Vulneráveis na Crise?

Nelson Barbosa criticou a resposta inicial do governo brasileiro à crise do Covid-19. Em 18 de março de 2020, o ex-Ministro da Fazenda do governo Dilma apontava que a equipe econômica estaria excessivamente “focada em ações de longo prazo –“reformas, reformas, reformas”– sem qualquer medida de curto prazo”. Sua principal prescrição seria rever o teto de gasto e aumentar o investimento público.

A revisão do teto de gastos foi considerada desnecessária por Marcos Mendes, pois “a restrição ao aumento dos gastos tem algumas exceções. Uma delas é o envio de dinheiro para despesas imprevisíveis e urgentes, como em caso de guerra, comoção interna ou calamidade pública. O governo, portanto, pode usar esse dispositivo para ampliar os recursos em ações de contenção das transmissões do vírus e tratamento de pacientes infectados, sem pressionar ainda mais o teto”. De fato, ao final de março, o Supremo Tribunal Federal liberou regras fiscais mais flexíveis para a crise do covid-19.

O aumento do investimento público esbarra nos problemas do endividamento do setor público brasileiro. Em 2020, a necessidade de financiamento do setor público e a dívida bruta do governo central, como proporção do PIB, podem chegar a, respectivamente,13,8% do PIB e 93,1%, com as despesas extras para mitigar os efeitos da crise do Covid-19. Claramente se está em um limite das despesas públicas em que cabe escolher prioridades, ou retomar a estratégia de investimentos públicos de um lado ou mobilizar recursos para a saúde e ajudar os mais vulneráveis a atravessarem essa difícil fase do outro.

A eficiência da estratégia de investimentos públicos no Brasil é, em geral, bastante duvidosa. Segundo Frischtak e Davies (2015), por exemplo, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que contava com investimentos públicos, teve recorrentes problemas de custos elevados, atrasos sistemáticos e resultados ruins. O relatório de obras paralisadas do programa mostrou que em 30 de junho de 2018, 4.738 empreendimentos se encontravam paralisados, o que correspondia a 41% da carteira e um valor despendido de R$ 69 bilhões que até agora não gerou qualquer retorno à sociedade. Em Relatório de Assistência Técnica de dezembro de 2018, o FMI, mostra que de cada Real gasto em investimento público no Brasil, R$ 0,39 são desperdiçados. No caso específico de rodovias, a pesquisa da Confederação Nacional dos Transportes em 2019 mostrou que 74,7% da extensão das rodovias brasileiras em regime de concessão estavam em estado geral ótimo ou bom contra apenas 32,5% das rodovias geridas pelo poder público.

Dessa forma, não faz sentido, a não ser de forma residual, retornar à estratégia de investimento público. Independente da crise do covid-19, há um grande número de referências indicando que o caminho de parcerias com o setor privado por meio de concessões e PPPs é o mais adequado. E não apenas pela falta de eficiência relativa do investimento público, mas também pela falta de recursos públicos disponíveis.
A estratégia da equipe econômica, tomada com base em recursos despendidos pelo Tesouro Nacional pode ser avaliada a partir do quadro III a seguir. O Tesouro Nacional destinou um total de R$ 349,4 bilhões para o enfrentamento da Covid-19, sendo R$ 344,1 bilhões de recursos novos (98,48%) e o resto de realocações de outras rubricas de despesas do orçamento. Ou seja, o enfrentamento foi todo realizado com base, até agora, no incremento do déficit primário de 2020, sendo que 23,01% ainda está sem dotação (especialmente recursos novos para os estados). R$ 31,9 bilhões (9,13%) foram alocados para apoiar empresas, sendo R$ 16 bilhões (4,58%) de desonerações fiscais e R$ 15,9 bilhões (4,55%) de apoio a pequenas e médias empresas no Pronampe.

 

 

Quadro III – Despesas do Tesouro – Ações de Enfrentamento do Covid -19
Medidas Instrumentos R$ Bilhões
I) Suporte Direto às Empresas  31,9 9,13%
I.1) Desonerações Fiscais (II, IPI, PISCofins, IOF) Resoluções camex 17, 22, 28, 31, 32 e 33 16 4,58%
Decretos 10285, 10302, 10318, 10305
I.2)Pronampe (Crédito e Garantia a PMEs) Lei 13.999, de 2020 – Sem Dotação 15,9 4,55%
II)Despesas de Proteção Social Não Saúde 216 61,82%
II.1)Ampliação do Bolsa-Família MPV 929 3 0,86%
II.2)Benef. Manut. Emprego e Renda  MPV 935 51,6 14,77%
II.3)Coronavoucher MPV 937 123,9 35,46%
II.4)Programa de suporte a Empregos (Folha) MPV 943 34 9,73%
II.5)Transferencia para CDE (Tarifa social de energia) MPV 949 0,9 0,26%
II.6)Suplementação à Proteção Social no Sistema Único MPV 953 2,6 0,74%
de Assistência social
III)Despesas de Proteção Social Saúde 23,7 6,78%
III.1)Auxilio Estados e Municípios – Transferência MPV 940 9 2,58%
III.2)Fundo Nacional da Saúde 
III.3)Transferência ao Fundo Nacional de Saúde  MPV 947 2,6 0,74%
Aquisição EPIs e Respiradores
III.4)Auxílio Estados e Municípios – Transferência MPV 941 2 0,57%
Saúde
III.5)Cidadania – Segurança alimentar e nutricional MPV 957 0,5 0,14%
III.6)Transferência  suplementar ao Fundo Nacional  Sem dotação 4,5 1,29%
Saúde 
III.7)Ampliação de Recursos para Aquisição de 
Insumos Médicos Hospitalares (*) MP 924 5,1 1,46%
IV)Créditos a Estados e Municípios Não Saúde  76 21,75%
IV.1)Auxílio Estados e Municípios – Compensação FPE e  MPV 939 16 4,58%
FPM
IV.2)Auxílio Estados e Municípios Recursos Novos Sem dotação 60 17,17%
V)Outros  1,8 0,52%
V.1)Crédito Extraordinário da Presidência, MRE, MCTIC, MPVs 921, 929, 940, 942 1,6 0,46%
Defesa, MEC, Cidadania
V.2)Realocações Covid 19 (*) 0,2 0,06%
VI)Total de Despesas do Tesouro para Enfrentamento
da Covid-19 349,4 100,00%
VII) Total do Impacto Potencial no Deficit Primário de 2020  344,1 98,48%
(VI-III.7-V.2)
VII.1) Com dotação 263,7 75,47%
VII.2) Sem dotação 80,4 23,01%
(*) Resultado de Realocações de Recursos de Outras Despesas

 

As despesas de proteção econômico-social da população não diretamente relacionadas a gastos em saúde são a maior parte, com R$ 216 bilhões (61,82%). O coronavoucher para os mais vulneráveis ocupa mais da metade desse total de proteção social com R$ 123,9 bilhões (35,46%) alocados para três meses (R$ 200 Reais por mês por beneficiário), seguido do benefício pela manutenção de emprego e renda, que é um benefício pago ao trabalhador em caso de redução da jornada ou contrato suspenso direcionado a 24,5 milhões de trabalhadores com carteira assinada com R$ 51,6 bilhões (14,77%) e do Programa de Suporte a Empregos com R$ 34 bilhões (9,73%) para complementação da renda relativo ao financiamento de 2 meses da folha de pagamento de pequenas e médias empresas.

Já o total de recursos que incrementam as ações de saúde, inclusive com transferências para Estados, atingem R$ 23,7 bilhões (6,78%). Somando aqueles valores despendidos com recursos financeiros para proteção social e esses últimos para saúde teremos, portanto, (R$ 216 + R$ 23,7=) R$ 239,7 bilhões (68,6%) de direcionamento de gastos diretamente para a área social (desempregados + trabalhadores formais e informais + saúde) em resposta ao Covid-19. Se acrescentarmos os valores alocados ao Pronampe acima na conta de recursos para a área social, o percentual chega a (68,6%+4,55%=) 73,15%, ou seja, quase ¾ destinado ao objetivo de mitigar os efeitos sociais da crise.
Enfim, a parte IV relativa ao crédito a estados e municípios não relacionados a questões de saúde, que atinge R$ 76 bilhões representa pouco mais de 1/5 do incremento (21,75%). A relação com o covid-19 deriva, em tese, do elevado impacto que a crise terá sobre as finanças dos entes subnacionais, especialmente a frustração do ICMS. Nesse caso, não é claro até onde o governo federal, que também contará com grande impacto negativo em sua arrecadação, deveria deslocar recursos escassos de outras atividades mais relacionadas à proteção de vulneráveis, apoio à manutenção de empregos ou à saúde. Neste item, também não é claro por que transferir aos entes subnacionais é superior à proposta de Nelson Barbosa de investir em obras paralisadas e, principalmente, à ideia de poupar estes valores e evitar a elevadíssima pressão na dívida pública federal.

Mais do que isso, a estratégia utilizada promove uma desejável convergência das ações macroeconômicas de curto prazo com a requerida política social de apoio aos mais necessitados. Como destacado pelo ex-presidente do BACEN, Ilan Goldfajn, o “foco” da política econômica neste momento “em termos de política fiscal (deveria ser) em medidas que dão suporte e mitigam os efeitos da crise, asseguram que os mais vulneráveis conseguirão atravessar este período. Não é o momento de grandes planos, de obras públicas”.

Cabe entender como a crise do Covid gerou choques gêmeos repentinos de oferta e demanda para compreender tais escolhas. É o que faremos a seguir.

⦁ Os Choques Gêmeos de Oferta e Demanda

No início de março o economista Kenneth Rogoff (2020) alertou para uma peculiaridade da crise gerada pelo Coronavírus em relação às últimas duas recessões mundiais do século XXI: o Covid-19 implica um choque tanto de oferta quanto de demanda, ou seja, seriam “choques gêmeos” gerados pela crise. Pior, os choques ocorreram repentinamente pela necessidade de instituição imediata da quarentena. O problema destacado por Cochrane (2020) é que:

“Shutting down the economy is not like shutting down a light bulb. It’s more like shutting down a nuclear reactor. You need to do it slowly and carefully or it melts down”.

Inicialmente considerado como um rápido choque de oferta para a China e economias crescentemente dependentes de insumos daquele país como o Brasil, entendia-se que haveria um comportamento na forma de “V”: uma queda inicial seguida por uma rápida recuperação das economias envolvidas. Este otimismo inicial já foi revertido com a constatação de que o isolamento social naturalmente levou a um forte e repentino “choque de demanda” de curto prazo. E como as pessoas não vão trabalhar e produzir por estarem doentes ou em quarentena, gera-se também um choque de oferta.

Apesar da generalização do impacto dos “choques gêmeos” de demanda e oferta sobre os diversos setores, alguns foram mais rapidamente afetados pela pandemia como viagens aéreas, bares e restaurantes, turismo, academias de ginástica e grande parte do comércio.

Mas o setor industrial também está passando por problemas substanciais. Baldwin e Di Mauro (2020) resumem os três impactos principais sobre a manufatura (dois na oferta e um na demanda):

“The manufacturing sector is likely to get a triple hit. 1. Direct supply disruptions will hinder production, since the disease is focused on the world’s manufacturing heartland (East Asia) and spreading fast in the other industrial giants – the US and Germany. 2. Supply-chain contagion will amplify the direct supply shocks as manufacturing sectors in less-affected nations find it harder and/or more expensive to acquire the necessary imported industrial inputs from the hard-hit nations, and subsequently from each other. 3. There will be demand disruptions due to (1) macroeconomic drops in aggregate demand (i.e. recessions); and (2) wait-and-see purchase delays by consumers and investment delays by firms….. when faced with massive Knightian uncertainty (the unknown-unknowns) of the type that COVID-19 is now presenting to the world.”

No Brasil, do lado da indústria, sondagem da CNI com industriais no início de abril de 2020 aponta que 91% dos empresários reportaram impactos negativos do Covid-19, sendo que para 70% houve queda na demanda.
Mas a face mais delicada do choque de demanda é o impacto sobre os mais pobres do mercado informal como ambulantes que dependem de pessoas na rua para manter o seu negócio. O problema macroeconômico se encontra com a questão social como veremos a seguir, segmentando em medidas para o choque de demanda e para o de oferta.

Mitigação do Choque de Demanda

Na dimensão “mitigação do choque de demanda”, implementaram-se dois tipos de ações. Primeiro, medidas de transferência de renda aos grupos mais vulneráveis, o que inclui os trabalhadores informais e autônomos, que repentinamente perderam suas rendas, permitindo a eles atravessar a tormenta econômica com um mínimo de segurança. A Lei do chamado “coronavoucher” com a distribuição de R$ 600,00 por indivíduo em condição de vulnerabilidade ao longo de 3 meses foi uma importante medida nesta direção, junto à ampliação da possibilidade de saques do FGTS, não havendo melhores exemplos da convergência da macroeconomia e a área social.
Segundo, medidas de incentivo à manutenção do nível de emprego pelos empregadores, flexibilizando o contrato de trabalho de forma a evitar o desemprego e o desaparecimento da renda do trabalhador em um período de crise. Governo, trabalhadores e empresas darão sua cota de contribuição.

Do ponto de vista macroeconômico, estes dois tipos de políticas de sustentação de renda, que também se constituem em importantes políticas de alcance social, contribuem para mitigar o choque de demanda.
Como mostrado no Balanço da Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia de 01 de maio de 2020, o governo federal brasileiro implementou medidas relacionadas ao Covid-19 que resultarão em impacto no déficit primário do governo central de R$ 394,4 bilhões, o que representa 4,81% do PIB, bem maior que a média dos emergentes de 2,3% do PIB ou mesmo dos países mais avançados de 4,3% do PIB. Esta resposta constitui um mix de incremento de gastos com redução/diferimento de tributos. Ou seja, a resposta fiscal do governo brasileiro ao Covid-19, atuando para mitigar os efeitos do choque de demanda, tem sido bastante expressiva. O problema aqui é qual o espaço fiscal que o país tem para dar continuidade a esta estratégia por mais tempo com a relação dívida bruta/PIB passando dos 90% e podendo chegar aos 100% a depender das pressões políticas para tornar permanentes os gastos temporários derivados da crise?

De um lado, Nelson Barbosa defendeu que os limites para esta ou qualquer estratégia fiscal expansionista seriam bem amplos, pois “o restante da dívida pública pode ser pago ou rolado de modo infinito”. Segundo o ex-Ministro da Fazenda, o problema de financiamento da dívida pública é pequeno pois como o Banco Central poderá adquirir títulos do Tesouro, o aumento da demanda de moeda gerado pela recuperação econômica, em situação de desemprego e capacidade ociosa, permitiria que o aumento da quantidade de moeda não iria gerar inflação. Isso equivaleria a uma sustentabilidade de relações dívida/PIB bem elevadas.

De outro lado, Persio Arida é cético em relação aos limites da expansão fiscal, os quais seriam dados pela expectativa sobre a sustentabilidade do crescimento da relação:

“O drama não é o patamar da dívida, mas sim a percepção de que possa estar numa trajetória explosiva. É a perspectiva de um crescimento descontrolado da dívida/PIB que erode a confiança no nosso futuro, afugenta o investimento privado, aumenta a percepção de risco do país e leva à depreciação exagerada da moeda nacional.”

Levando em consideração a experiência brasileira recente de recessão grave com o desequilíbrio das contas fiscais gerados pela “nova matriz econômica”, entendemos esta avaliação de Arida mais equilibrada. Se utilizarmos a comparação do Brasil com outros países emergentes, apresentada no Boletim Macrofiscal de 13/05/2020, vemos que o Brasil estará com a maior relação dívida bruta/PIB (maior que 90%) e um esforço fiscal que está, junto a Peru e Tailândia e Chile, entre os maiores.

Ou seja, o espaço fiscal brasileiro é muito limitado e a resposta, até o momento, de concentrar os esforços de curto prazo na proteção dos vulneráveis e mitigação macroeconômica do choque de demanda é correta. Estender no tempo esta expansão fiscal pode mergulhar o país em uma crise ainda pior, a não ser que se conte com cortes em outras despesas. De qualquer forma, medidas sociais adicionais de proteção requererão maior focalização do gasto e atenção ao custo do programa e/ou redução de outras despesas.

Naturalmente que quanto mais confortável fosse a situação fiscal do país antes da crise, maior poderia ser o tempo de extensão da estratégia de expansão fiscal para o objetivo duplo de acomodação social e macroeconômica do choque de demanda. Com a maior frouxidão fiscal da “nova matriz econômica” até 2016, a capacidade de fazer frente aos problemas criados pelo covid-19 é naturalmente mais limitada. Igualmente, recorrer a aumento da carga tributária para financiar mais gastos poderia ser muito ruim para a recuperação econômica, especialmente para o investimento, a não ser que conte com uma reforma anterior que corrija as distorções existentes. Apesar de a carga tri0butária brasileira como proporção do PIB de 33,1% em 2018 estar próxima da média da OCDE (34,3%), está muito acima da média dos países da América Latina em 10 pontos percentuais (23,1%), estando acima da Argentina (28,8%), México (16,1%) e Chile (21,1%), ficando apenas atrás de Cuba (42,3%).

Quadro III – Relação Dívida/PIB e Gastos fiscais no Combate ao Covid-19: Brasil x Emergentes

Mitigação do Choque de Oferta

Na dimensão “contenção do choque de oferta” há dois tipos de ações requeridas. Primeiro, prosseguir na redução de entraves regulatórios e de barreiras à entrada na economia brasileira. Passar pela tormenta não nos deve impedir de continuar olhando para a frente no esforço de reformas microeconômicas favoráveis à competição e à produtividade. Na realidade, sinalizar a manutenção do compromisso do governo com o destravamento do ambiente de negócios no Brasil se tornou ainda mais essencial para evitar que os choques gêmeos de curto prazo contaminem o processo de recuperação econômica pós-COVID-19. O Brasil continua sendo o penúltimo pior país no índice do Product Market Regulation (PMR) da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE-2018), que mede o grau de barreiras à entrada e concorrência, como pode ser visto no quadro IV abaixo.

Isso restringe em demasia a atratividade do país para investimentos, sendo falso que a crise deveria representar uma reversão da agenda de reformas microeconômica. Rocha (2020), por exemplo, mostra o efeito da qualidade regulatória, que inclui a remoção de barreiras à entrada, no investimento em infraestrutura após a crise de 2008 no Brasil. A autora mostra que se atingíssemos a (melhor) qualidade regulatória do Chile aumentaríamos os investimentos em infraestrutura como proporção do PIB do atual patamar médio de 1,84% do PIB para 3,43% do PIB, abaixo do requerido (4,5% conforme o Banco Mundial), mas já acima do nível de reposição de 2,41%.
A continuidade das reformas gera ainda um efeito positivo sobre as expectativas na economia, o que será importante na disposição a investir, além de uma blindagem maior da economia brasileira a eventuais crises futuras.
Destacamos as reformas tributária e administrativa, o aprofundamento da flexibilização trabalhista, as alterações dos marcos legais do saneamento, ferrovias, petróleo e gás, cabotagem e as iniciativas de privatização da Eletrobras, portos, refinarias de petróleo, correios e o leilão de 5G, dentre outras. A abertura ao comércio exterior é chave nesta agenda.

Ademais, note-se como mesmo algumas das principais respostas ao choque de demanda mostradas acima estão em uma linha liberal. A flexibilização da legislação trabalhista é considerada um dos principais gargalos para aumentar o nível de emprego em tempos normais. No covid-19, flexibilizaram-se as regras trabalhistas para manter o nível de emprego, admitindo-se redução de jornada e de salários. A concessão do coronavoucher, à exemplo do bolsa família, se espelha na ideia do imposto de renda negativo de Milton Friedman. Na saúde houve a aprovação de uma lei de liberalização/flexibilização do uso da telemedicina (Lei 13.989/2020), apesar de só vigorar durante a pandemia. Ou seja, mesmo para o período da pandemia, reconhecem-se as virtudes de medidas liberais para mitigar os efeitos econômicos e sociais da crise.

Quadro IV – Indicador de Regulação no Mercado de Produto da OCDE em 2018

Segundo, o choque de oferta pode se tornar mais dramático no médio prazo em função do prolongamento do isolamento social e, por conseguinte, do próprio choque de demanda. Com o maior período de consumo baixo e de receitas de vendas reduzidas, várias empresas poderão ir à bancarrota se não contarem com outras fontes de capital para se financiarem.

Ainda não é clara a magnitude do comprometimento das empresas a partir do covid-19. Apesar de o SERASA/Experian registrar aumentos dos pedidos de recuperação judicial (46,3%) falências (25%) em abril de 2020 relativamente a março, estes números são inferiores a abril de 2019, especialmente falências (131 em abril 2019 para 75 em abril 2020). Na sondagem da CNI no início de abril, 6 em cada 10 empresas reportaram dificuldades para honrar pagamentos de rotina, ampliando a demanda por capital de giro de terceiros. 55% reportaram maior dificuldade em acessar o capital de giro no mercado após o covid-19.

Se uma falência generalizada ocorrer, vários ativos poderão sair de forma definitiva do mercado. Há a possibilidade de parte deles nem voltarem a produzir os mesmos bens ou serviços quando o coronavírus estiver sob controle e nem serem realocados em outros segmentos. Isso resulta na possibilidade de um choque de oferta mais amplo e duradouro. Segundo Cochrane (2020):

“Firms have to pay debts and wages. People have to make mortgage payments or pay the rent. “Left alone,” he writes, “there could be a huge wave of bankruptcies, insolvencies, or just plain inability to pay the bills. A modestly long economic shutdown, left alone, could be a financial catastrophe.”

Popov e Sundaram (2020) destacam a necessidade de o Estado intervir no caso de mudanças muito repentinas, como na crise do Covid-19 para evitar que o ajuste seja muito “doloroso, demorado e custoso”:
“sudden, large scale structural shifts may be more disruptive as time and effort are needed to reallocate resources. Thus, output drops in declining industries are not immediately compensated by production increases in the emerging new industries. In a market economy, adjustments typically increase unemployment: industries that become less profitable, due to higher costs, may lay off workers; growing unemployment lowers wages, and it may take a while before the lower labour costs make it worthwhile to raise production in other industries. Without government assistance to retrain laid off workers and encourage new investments, adjustment will be more painful, lengthy and costly”.

Assim, cabe evitar prolongamento desnecessário das recessões abruptas e profundas como o caso desta gerada pelo covid-19, que acabem por gerar irreversibilidades importantes na estrutura produtiva do país.

Dessa forma, é fundamental melhorar as condições de liquidez das empresas para evitar que os choques gêmeos tenham efeitos mais persistentes que o necessário. Nesse contexto, o governo federal tem adotado medidas importantes como o relaxamento de condições para empréstimos de instituições financeiras oficiais, com foco em pequenas e médias empresas com destaque para o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), e medidas de política monetária como a redução da taxa Selic pelo Banco Central de 4,5% a.a em dezembro de 2019 para 3% a.a no início de maio de 2020, a terceira queda do ano, e a redução da alíquota do compulsório sobre os recursos à prazo de 25% para 17%. Na arena fiscal, os vários diferimentos/redução de tributos ajudam na liquidez das empresas e atenuam o choque de oferta.

É fundamental, no entanto, garantir que os escassos recursos públicos sejam utilizados com parcimônia e cuidado, refletindo sobre os custos de oportunidade de realizar a operação de suporte com outros usos concorrentes, que na crise são inúmeros. Seguindo Goldberg (2020) podemos derivar alguns princípios a serem seguidos nestas operações:

1) aceitar que estamos mais pobres, ou seja, não faz sentido evitar todas as perdas do setor privado;
2) proteger empresas deveria ser visto como uma forma indireta de proteger pessoas, em particular trabalhadores; assim cabe avaliar se é mais vantajoso proteger pessoas diretamente ou via empresas;
3) avaliar se i) é melhor resgatar a empresa, preservando ativos que, operando em conjunto, valham mais do que quando separados ou ii) não fazer nada, deixando à iniciativa da própria empresa elaborar seu plano de recuperação com venda de ativos ou recuperação judicial ou falência, deixando que o mercado aloque os ativos “liberados” a novas companhias. Afinal de contas, como destacado por Cochrane (2020):

“Bankruptcy of a large corporation does not leave a crater behind. Bankruptcy is reorganization and protection, not liquidation. The point of bankruptcy is precisely to keep the business going. When a corporation files for bankruptcy, the stockholders are wiped out, bondholders lose a lot and become the new stockholders. The company rewrites a lot of contracts — union contracts requiring a plane to fly even with empty seats, contracts to buy fuel at high prices, gate leases, and so forth.”

4) focar em problemas de liquidez gerados pelo covid-19 e não de solvência que já venham de antes, o que tem a ver com a necessidade de reduzir problemas de moral hazard; na crise de 2008 se falou muito que os bancos tiveram comportamento excessivamente arriscado, sendo que o seu resgate, ao validar a indisciplina, geraria incentivos para indisciplinas futuras, o que seria o embrião da próxima crise. Na atual crise do covid-19, ao contrário, a nenhuma empresa ou setor pode ser imputada a responsabilidade pela covid-19. No entanto, isso não implica que as empresas em geral não devem “investir” em seus próprios hedges contra crises imprevisíveis como esta.

⦁ Persistência dos Choques Gêmeos

Há um extenso debate na literatura econômica sobre a persistência/inércia de choques sobre o produto da economia. Remete-se à ideia keynesiana de falhas de coordenação e rigidez no ajustamento de preços e salários, com significativo grau de dependência da trajetória (path-dependence). Kydland e Prescott (1982), por exemplo, mostram que como investir é uma atividade demorada, isso levaria a uma maior persistência dos efeitos de crises no PIB. Blanchard e Summers (1987) mostram que o principal fator explicativo do desemprego seria a trajetória recente do próprio desemprego baseado na diferença de poder de barganha entre trabalhadores empregados e desempregados (insiders/outsiders).
Os choques podem ter efeitos persistentes sobre o PIB e sua taxa de crescimento e da produtividade como destaca Stiglitz (1994):

“During recessionary phases, typically firms also reduce their expenditures in R&D and productivity-enhancing expenditures. The reduction in output reduces opportunities to “learn by doing.” Thus, the attempt to pare all unnecessary expenditures may have a concomitant effect on long-run productivity growth. In this view, the loss from a recession may be more than just the large, but temporary, costs of idle and wasted resources: the growth path of the economy may be permanently lowered”. 

Dosi, Pereira, Roventini e Virgilito (2018) trabalham com três hipóteses nessa linha de efeitos inerciais potenciais do choque de demanda que seriam:
⦁ o efeito sobre a interrupção dos gastos em P&D;
⦁ a redução do volume de entrantes gerando redução do dinamismo nos negócios que chamaríamos de “efeito destruição da concorrência”; e
⦁ a deterioração das habilidades dos desempregados.
Algumas evidências empíricas recentes são importantes acerca dos efeitos de longo prazo das recessões sobre o crescimento econômico. Blanchard, Cerutti e Summers (2015) estudaram 22 recessões nos últimos 50 anos em 23 países e mostraram que em uma grande proporção delas houve impacto não apenas no PIB mas também em sua taxa de crescimento por um bom tempo. Ball (2014) se concentrou no período da crise de 2007/8 e analisou 23 países até 2014, concluindo pela “super-inércia” da queda no produto:

“in most countries the loss of potential output is almost as large as the shortfall of actual output from its pre-crisis trend. This finding implies that hysteresis effects have been very strong during the Great Recession. Second, in the countries hit hardest by the recession, the growth rate of potential output is significantly lower today than it was before 2008. This growth slowdown means that the level of potential output is likely to fall even farther below its pre-crisis trend in the years to come”.

Esta evidência de Ball (2014) é especialmente relevante aqui: quanto mais forte o impacto da recessão inicial, mais persistentes tendem a ser os seus efeitos, o que remete à ideia de “tipping points”. Estes últimos seriam pontos de queda tão expressiva na demanda que induziriam o país a cair numa espiral recessiva mais dramática por um prazo excessivamente longo. Seria fundamental, portanto, não chegar a este “tipping point” no curto prazo sob o risco de se entrar numa recessão desnecessariamente grande e longa. Ou seja, choques muito abruptos predispõem mais a economia a tipping points.

Não foge à percepção o longo período de tempo que o Brasil tem passado para corrigir plenamente os efeitos da recessão que durou de 2014 a 2017. Ou seja, o tamanho e a longevidade da recessão iniciada pelo governo do Brasil de 2014 a 2017 demonstram a possibilidade de tipping points no Brasil que devem ser evitados.

III) Restrições à Liquidez e Impactos à Concorrência na Crise

Como vimos, um dos itens responsáveis pela persistência de uma recessão sobre o crescimento econômico na análise de Dosi, Pereira, Roventini e Virgilito (2018) é a “redução do volume de entrantes”, que representa o impacto da concorrência sobre o crescimento econômico.

O efeito de redução de volume dos entrantes apontado pelos autores, no entanto, pode ter o sinal inverso pois recessões teriam também o efeito de “depuração” dos agentes econômicos menos eficientes numa linha Schumpeteriana. Aghion e Howitt (1998, p. 239) exploram essa linha de quando os maus momentos da economia também podem ser virtuosos:

“This view was summarized by Schumpeter himself: “Recessions are but temporary. They are the means to reconstruct each time the economic system on a more efficient plan”. One can indeed think of several reasons why small recessions could have positive effects on productivity. There is first the “cleaning-up” or “lame-duck” effect emphasized by Schumpeter …whereby less productive firms are eliminated during recessions and average productivity increases accordingly”.

Um ponto importante aqui é que se o governo implementar medidas que ampliem o acesso ao crédito, é fundamental ter cuidado para apenas apoiar empresas realmente eficientes. Aquelas que já passavam por problemas anteriormente à crise do Covid-19 não devem ser beneficiadas ao custo de comprometer justamente aqueles efeitos potencialmente positivos das recessões sobre a produtividade. Ou seja, a crise do Covid-19 não deveria ser utilizada para operações de resgate de empresas pouco eficientes sob o custo de gerar uma retomada menos vigorosa.
Um outro ponto relevante é que o efeito negativo da crise do Covid-19 sobre a concorrência ressaltado por Dosi, Pereira, Roventini e Virgilito (2018) está associado diretamente ao problema da baixa disponibilidade de crédito na presença de choques severos de demanda:

“Constrained access to credit may represent an important barrier to entry, together with the usual setup costs, particularly during crises and the associated tight finance availability”.

É mais que reconhecido na literatura econômica a falha de mercado relacionada à segmentação dos mercados de crédito elaborada por Stiglitz e Weiss (1981). A segmentação de crédito relevante é, em geral, entre pequenas e médias empresas de um lado e as maiores do outro.
Nesse contexto, havendo uma escassez temporária de liquidez dos agentes econômicos, é bastante razoável presumir que a maior parte das falências recairá de forma desproporcionalmente elevada sobre as empresas menores. Como destacado por Baldwin e Di Mauro (2020):

“Given the nature of this shock, small and medium-sized businesses may be among the most exposed to liquidity issues, thus special facilities to keep lending to small businesses may be appropriate.”

E isso pode ocorrer menos por problema de solvência de longo prazo do que por falta de capital de giro que dê liquidez no curto prazo. Essas falências mais prevalecentes nas empresas menores poderão levar a uma maior concentração dos vários mercados da economia no curto prazo.

Em um prazo suficientemente longo, nos segmentos com poucas barreiras à entrada, é razoável supor que os mercados voltem a ser “repovoados” após bancarrotas geradas por falta de liquidez no curto prazo. No entanto, nos setores com maiores barreiras à entrada, esse “repovoamento” pode não ocorrer ou apenas ocorrer em um prazo muito longo quando (e se) ocorrer um ciclo de negócios favorável. Associando isso ao fato que pode ser mais fácil para as empresas maiores evitar a entrada de novos entrantes ou o retorno das antigas empresas que faliram na crise do que induzir a saída antes da crise, é plausível que os mercados pós-covid serão mais concentrados.

Até que novos entrantes consigam vencer estas barreiras no pós-crise, haverá evidentes prejuízos à concorrência. Isso implicará preços maiores no longo prazo, com danos permanentes ao consumidor, o que cabe ser evitado.
Assim, é fundamental que a correção da falha de mercado associada à segmentação do mercado de crédito corrija outra falha de mercado: mercados de produtos e serviços menos competitivos na economia brasileira.

IV) Conclusão

Os choques gêmeos de oferta e demanda de curto prazo gerados pelo Covid-19, ao se estenderem em razão da continuidade das medidas de isolamento social, podem se inercializar, reforçando-se mutuamente com efeitos secundários um no outro.

Isso não apenas tornaria os choques gêmeos mais persistentes no longo prazo, como poderia gerar o que seria um terceiro tipo de choque, este de natureza mais estrutural, de queda na concorrência em vários setores da economia simultaneamente. Isto porque as empresas menores e menos líquidas poderiam ser proporcionalmente mais afetadas pela crise de liquidez.

Afinal, a perda das receitas dos negócios gerada pela queda abrupta da demanda decorrente das medidas de isolamento social e a concomitante retração do crédito no mercado financeiro privado causada pela maior aversão ao risco podem fazer com que várias empresas eficientes e perfeitamente viáveis no longo prazo sejam obrigadas a sair do mercado de forma definitiva. Em particular, as empresas menores, menos líquidas, apresentam tendência maior a ter este destino, inercializando o choque concorrencial do Covid-19.

Assim, o momento excepcional de choques gêmeos repentinos e a necessidade de proteger as pessoas físicas e jurídicas mais vulneráveis gera uma convergência da otimização das políticas social e macroeconômica. É fundamental ainda evitar as irreversibilidades de longo prazo associadas ao risco de um volume de falências sem precedentes na economia brasileira por meio das medidas de incremento do crédito que estão sendo implementadas, especialmente para as pequenas e médias empresas.

O impacto fiscal negativo no curto prazo é inevitável. Mas isso não implica que a disciplina fiscal deva ser abandonada no longo prazo, sendo fundamental cuidar para sinalizar a estabilização da relação dívida/PIB na linha de Arida.

É errado, portanto, apontar que a crise do covid-19 deveria reafirmar a necessidade de políticas fiscais ativas ainda mais audaciosas na linha de Nelson Barbosa. Na verdade, sinaliza o oposto: é fundamental que o setor público esteja com suas contas em dia não apenas para evitar desequilíbrios macroeconômicos, mas também para ter mais graus de liberdade para atuar quando esse tipo de crise aparecer. Afinal, quando aparece uma despesa imprevista e inevitável para qualquer indivíduo, a vida será bem mais fácil se tiver dinheiro na conta do que dívida no banco. As dificuldades que o país tem passado nas finanças públicas, derivadas de anos de irresponsabilidade fiscal, tornam as dificuldades para enfrentar a crise muito maiores do que precisavam ser. Contrariamente ao afirmado por Nelson Barbosa de que a equipe econômica estaria sofrendo nessa crise de “Keynesianismo pós-traumático”, seria a própria economia que ainda se ressentiria do “trauma do Keynesianismo” irresponsável.

Mas, além da questão financeira, a manutenção de políticas fiscais ativas por mais tempo também é ruim pela perspectiva de gerar um indesejável aumento no tamanho do Estado que pode acabar por se perenizar. Afinal, um dos principais problemas para o ajuste fiscal do país é a tendência das novas despesas se tornarem permanentes. E isso torna o Leviathan maior do que nunca. Como destacado pela revista The Economist em 26 de março de 2020:

“For believers in limited government and open markets, covid-19 poses a problem. The state must act decisively. But history suggests that after crises the state does not give up all the ground it has taken. Today that has implications not just for the economy, but also for the surveillance of individuals……”

Por fim, a necessidade de manter a agenda de reformas estruturais no longo prazo continua intacta. Uma crise como a do Covid-19 demonstra como as reformas para promover a concorrência e a produtividade são importantes. Não à toa, em uma dramática conjuntura de busca da recuperação da Alemanha do pós-guerra, o então ministro das finanças alemão, Ludwig Erhard (1958), destacou a importância da competição como o instrumento mais importante na estratégia da política econômica daquele país:

“A competição é o meio mais promissor para alcançar e assegurar prosperidade. A competição torna as pessoas capazes, enquanto consumidores, de obter progresso econômico. Assegura que todas as vantagens que resultam da alta produtividade serão eventualmente aproveitadas por elas. Ao longo do caminho da competição, a socialização -no melhor sentido da palavra- do progresso e do lucro é melhor realizada. Ademais, o incentivo pessoal para a maior produtividade permanecerá vivo”.

Erhard também aponta a plena convergência entre a concorrência e a agenda social de qualquer governo:
“Uma política econômica apenas pode se chamar de “social” se ela permitir que o consumidor se beneficie do progresso econômico, dos resultados do aumento do esforço e da produtividade. E a melhor forma de alcançar este objetivo em uma ordem social livre é por meio da concorrência: este é o pilar central do sistema.”

E mais concorrência é chave como mecanismo de incentivo à produtividade que é o que, em tempos normais, assegura um padrão de vida mais elevado à população. Já na crise, a produtividade é o que garante a resiliência da economia com a recuperação mais rápida e a minimização dos sacrifícios requeridos, especialmente dos mais vulneráveis. Reduzir o custo do empreendedorismo, abrindo mercados e estimulando a concorrência se torna mais importante do que nunca. E espera-se que esta terrível crise deixe isso mais nítido do que nunca para toda a sociedade brasileira.

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Economia da Privatização https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3228&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=economia-da-privatizacao Thu, 21 Nov 2019 19:56:28 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3228 César Mattos é ex-Secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia.

 

“Smith observou que não há personagens mais distantes do que o soberano e o empreendedor no sentido que as pessoas tendem a ser mais generosas com os recursos de terceiros do que com os seus próprios, e de que a administração pública poderia levar ao uso ineficiente dos ativos dado que os servidores públicos não têm um interesse direto em seu desempenho econômico. De acordo com Smith (1776), a venda de propriedade pública (a qual naquele tempo era a própria terra) também tinha um outro efeito: as receitas podem ser alocadas para a redução da dívida pública; e a redução das despesas com juros alivia as finanças públicas em maior medida que a propriedade da terra. Com a privatização, portanto, a eficiência é ampliada. … Como frequentemente acontece, intuições simples possuem um toque de verdade … após vinte anos de experiência, a intuição de Adam Smith tem sido amplamente confirmada. Graças à transferência de direitos de propriedade, as companhias privatizadas têm melhorado amplamente sua eficiência. E os países que têm privatizado, têm reduzido suas dívidas e déficits públicos”.

 

Bortolotti, B. e Siniscalco, D. The Challenges of Privatization: An International Analysis, 2004.

 

  1. I) Introdução

 

A agenda de privatização voltou com carga total ao Brasil após ter “hibernado” desde o final do governo FHC. Enquanto houve alguma atividade de concessão de infraestruturas de rodovias, aeroportos, setor elétrico e portos nos governos Lula e Dilma[1], a venda permanente de ativos do Estado ao setor privado, como foram os casos dos setores siderúrgico, mineral (CVRD), fertilizantes, aeronáutico, entre outros, foi simplesmente interrompida.

 

O Governo Temer enviou ao Congresso o Projeto de Lei nº 9.463, de 2018, que trata da autorização para a alienação do controle da Eletrobrás, mas que acabou não indo adiante. Também criou a Secretaria do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), que contou com ambicioso programa de desestatizações.

Conforme o Boletim das Empresas Estatais Federais do segundo trimestre de 2019, havia um total de 133 empresas estatais federais. No governo Bolsonaro, o programa de privatização ganhou grande impulso, tendo já avançado na alienação da BR distribuidora, dois gasodutos e planejado a alienação de cerca de 50% de seu parque de refino. Planeja-se ainda seguir com a privatização da Eletrobrás, Telebrás, Correios, dentre outras.

 

Neste artigo resgatamos as bases do debate econômico sobre por que privatizar.

 

  1. II) Privatização e Desenvolvimento

 

Segundo Bortolotti e Siniscalco (2004), “a privatização constitui um dos principais eventos da história econômica e financeira mundial do período pós-guerra”.

 

De fato, a racionalidade econômica para a privatização em geral já se encontra bem estabelecida na literatura econômica[2]. Não à toa, foi uma política muito implementada nos países desenvolvidos, que, conforme a resenha de Megginson e Netter (2001), fez com que o peso das empresas estatais se reduzisse pela metade. Já em países menos desenvolvidos, o progresso da privatização ainda apresentava maior dificuldade no início do século XXI.

 

Do ponto de vista teórico, como destacado no já citado Bortolotti e Siniscalco (2004), é conhecido o “teorema da irrelevância da privatização”, que define em quais condições uma empresa ser estatal ou privada não faz diferença. No entanto, os autores destacam que o teorema da irrelevância se baseia em uma hipótese totalmente irrealista: contratos contingentes completos de longo prazo entre o gerente da empresa (estatal ou privada) e o regulador podem ser desenhados e ter o seu enforcement garantido.

 

Como há investimentos específicos afundados que não são contratáveis, tal como a quantidade de esforço empregada pelo gerente para reestruturar uma firma e reorganizar a produção, o volume de investimentos efetuado tende a ser excessivamente baixo, gerando a ineficiência destacada por Adam Smith na ementa. Nesse contexto de “contratos incompletos”, a propriedade da empresa (estatal ou privada) altera dramaticamente o seu desempenho, explicando “porque a privatização importa, i.e. porque as estatais se comportam de forma diferente das firmas privatizadas”.

 

O primeiro grande programa de privatização de sucesso no mundo se iniciou no Reino Unido, sob o governo conservador de Margaret Thatcher em 1979. Curiosamente, a privatização não chegou a ser um tema proeminente da campanha que levou os conservadores ao poder e foi recebida com muitas críticas pela sociedade britânica. Os trabalhistas na oposição chegaram a prometer retornar as empresas à condição de estatais tão logo retornassem ao poder. A privatização mais marcante do Reino Unido foi a da British Telecom em 1984.

 

O sucesso do programa britânico foi tão grande que os conservadores acabaram obtendo um largo apoio político, o que explica pelo menos uma parcela da longa era Thatcher no poder. O Reino Unido virou uma referência de experiência em privatização. Seus principais objetivos, ainda segundo Bortolotti e Siniscalco (2004), foram o incremento da eficiência das companhias, a redução do déficit fiscal, a liberdade do consumidor, a liberalização de monopólios públicos, o desenvolvimento de mercados financeiros e a democratização do capital acionário das empresas para a população em geral. Mesmo quando se vendia o controle a investidores estratégicos, em vários casos, uma parte das ações foi pulverizada pela venda nos mercados em bolsa. Conforme os autores, nos países da América Latina, além destes objetivos, caberia um objetivo adicional: atrair capital estrangeiro de forma a facilitar a importação de tecnologia.

 

A Europa Continental, por sua vez, passou a adotar um programa de privatização de larga escala a partir de meados da década de 80. Portugal, Espanha, Holanda e Suécia adotaram a política de privatização em 1989, sendo que Bélgica, Grécia e Irlanda passaram a efetivamente se engajar no processo ao longo dos anos 90, tal como o Brasil. De qualquer forma, as grandes empresas de telecomunicações e energia elétrica apenas iniciaram seu processo na Europa Continental a partir de 1994. A América Latina, a Oceania e a Ásia vieram em seguida, sendo que o Norte da África, o Oriente Médio e a África Subsaariana iniciaram seus respectivos processos de privatização apenas no início deste século.

 

Bortolotti e Siniscalco (2004) sugerem, inclusive, uma sequência lógica do processo de desenvolvimento dos países em geral, na qual a fase inicial requereria uma maior intervenção direta do Estado via empresas estatais no setor de infraestrutura e a fase subsequente contaria com a provisão privada de serviços públicos após processo de privatização: “Com base nestas observações agregadas, pode-se pensar que a privatização seria a consequência espontânea e inevitável do desenvolvimento econômico, e que sua evolução seria largamente independente das especificidades históricas de cada país. Nos estágios iniciais de desenvolvimento, apenas o Estado poderia promover a acumulação de capital na infraestrutura e nas indústrias capital-intensivas. Uma vez que o processo de desenvolvimento foi colocado em movimento, o Estado gradualmente se retiraria da economia por meio da privatização. À fase Colbert[3] se seguiria a fase Thatcherista, uma forma de determinismo que ecoaria, pelo menos no método, a teoria dos estágios de desenvolvimento.”

 

Acreditamos, no entanto, que o “período Colbert” de desenvolvimento guiado pelo Estado via estatais possa ser requerido mais por uma questão institucional da relação Estado/setor privado do que por uma incompetência ou aversão ao risco do setor privado para iniciar negócios nos setores de infraestrutura de um país.

 

De fato, o sucesso de uma política de privatização é muito ligado ao apoio dado pela sociedade civil ao programa. Isto porque os governos em geral, especialmente aqueles de países com baixas dotações institucionais no jargão de North (1990), detêm escassa capacidade de se comprometer a não ter comportamentos oportunistas no futuro. Ou seja, tais governos não são capazes de se comprometer hoje a não adotar uma política futura de expropriação do investimento privado[4] em áreas de infraestrutura, que são, em geral, muito sensíveis do ponto de vista político, especialmente as tarifas do serviço.

 

A incerteza dos investidores sobre as preferências futuras do governo são, portanto, importantes elementos a restringir o processo de privatização. Mais uma vez, ativos específicos afundados de longo prazo de maturação são especialmente vulneráveis a este tipo de expropriação.

Isso explica, em boa parte, a aversão ao risco que acometeu boa parte do setor privado por muito tempo nos setores de infraestrutura em vários países, à exceção dos EUA. Sabendo que os governos dificilmente resistiriam à atração fatal populista de expropriar investimentos nestes setores, especialmente forçando tarifas artificialmente baixas, os próprios agentes privados preferiram se manter à distância, apesar de terem sido os primeiros investidores em setores como telecomunicações e energia elétrica, antes dos governos, inclusive no Brasil.

 

Ou seja, o desinteresse do setor privado nos setores de infraestrutura no mundo todo por um longo período de tempo pode ter se derivado mais do risco de comportamentos oportunistas dos governos com as várias formas de expropriação dos ativos, em um ambiente de escassa blindagem institucional, especialmente por um Judiciário independente e não populista, do que de uma falta de apetite intrínseca do setor privado por estes setores. Em síntese, o risco que os afastou foi mais o político do que o de negócio.

 

As melhorias institucionais havidas em vários países, especialmente na garantia do equilíbrio econômico financeiro dos contratos regulatórios com empresas privadas por Judiciários independentes e minimamente atentos à importância da segurança jurídica para o investidor privado, garantindo-os contra o oportunismo de governos populistas, explicariam pelo menos parte do incremento do interesse privado na infraestrutura mundial nas últimas três décadas[5].

 

Uma das formas encontradas para a blindagem institucional foi a venda das ações das estatais para a classe média, o que, segundo Bortolotti e Siniscalco (2004) “pode criar um grupo da sociedade com interesse em aumentar o valor dos ativos e avesso às políticas redistributivas das esquerdas”. Isso tornaria a eventual tentativa de reestatização ou de outros comportamentos oportunistas mais custosos para o governo. Segundo os autores, na experiência britânica, “a distribuição de ações a um preço descontado fez com que a re-nacionalização (proposta no programa eleitoral do partido trabalhista) ficasse mais custosa e, portanto, menos provável de encontrar suporte popular enquanto simultaneamente aumentou o apoio aos conservadores”.

 

No Brasil, o grosso das privatizações ocorreu ao longo da década de noventa. Não houve reversões após o longo período de hegemonia de um governo de esquerda entre 2003 e 2016, apesar de alguns atos hostis que cheiraram a expropriação, como na discussão sobre tarifas de telecomunicações de 2003[6], na tentativa de indução à redução forçada da tarifa de energia implementada pela Medida Provisória 579, de 2013, e no discurso geralmente hostil à privatização. Entendemos que, de forma geral, o país passou pela “prova de fogo” da blindagem institucional à expropriação do investimento.

 

III) Soft Budget e Take-Overs

 

A empresa estatal tem o que se chama de soft budget, ou seja, o governo tende a resgatá-la quando tem problemas financeiros, gerando um genuíno problema de moral hazard. Isso significa que o acionista “governo”, sem objetivo de lucro, tende a ser mais tolerante que o privado aos prejuízos gerados por má gestão. Nesse caso, o “acionista governo” tende a responder à situação aportando novos recursos para resgatar a empresa com problemas, o chamado bailing-out.

Ou seja, quando a estatal quebra, normalmente não vai à falência, tornando este tipo de empresa relativamente mais inclinada a entrar em investimentos e ações mais arriscados do que a privada. Afinal, se o acionista majoritário é relativamente mais tolerante com os prejuízos do que a empresa privada, por que os dirigentes da estatal deverão se esforçar para serem mais cuidadosos?

A privatização transforma os incentivos gerenciais. Os gestores privados seriam mais “disciplinados” pelo mercado de capitais ao sofrerem maior ameaça de take-overs hostis de outras empresas mais eficientes. Se tais gestores forem ineficientes no setor privado, outros investidores podem acabar comprando ações que impliquem transferência ou nova dinâmica do controle da empresa de modo a equacionar as ineficiências. Provavelmente na transformação da empresa de ineficiente para eficiente, a mudança dos gestores será um ingrediente fundamental. Na estatal este processo é inibido, pois a empresa deve permanecer com controle do governo, que tem uma lógica política e não econômica de indicação dos gestores.

O gestor da estatal tende a perder o emprego mais porque não beneficiou o fornecedor da preferência de algum agente político do que pelo fato de ser incompetente da perspectiva da eficiência empresarial.

Relacionado a isso está o fato de que a função objetivo da empresa estatal é uma variável menos objetiva que o lucro (que é um número), objetivo por excelência da empresa privada. Esta maior subjetividade da função objetivo da estatal torna mais difícil avaliar a competência do gestor relativamente a uma empresa privada. Avaliaremos este ponto com mais cuidado abaixo.

Reconhece-se, de outro lado, que há bail-outs também de empresas privadas pelo governo, como foi o muito citado caso da General Motors à época da crise de 2008/9 nos EUA. A frequência deste tipo de evento, no entanto, é bem menor do que em estatais.

 

  1. IV) Incentivo a Ofertar o que o Consumidor Deseja

 

As empresas privadas têm um maior incentivo a produzir bens e serviços na quantidade e na variedade preferidas pelos consumidores, dado que seguem mais de perto os sinais de mercado para serem capazes de deslocar a curva de demanda para cima, vendendo mais e mais caro.

Isso está diretamente associado ao objetivo de maximização do lucro da empresa privada: como bens e serviços mais associados às preferências do consumidor implicam quantidades e/ou preços maiores, variáveis que contribuem com o aumento do lucro, a utilização dos sinais de mercado tende a ser maior na empresa privada. O deslocamento da curva de demanda para cima, por um aumento da qualidade dos produtos, é incentivado pela busca de maior lucro, característica da empresa privada. Daí que há um maior incentivo, em média, na iniciativa privada, relativamente ao setor público, a buscar o bem ou serviço que mais agrada ao consumidor. E isto será tão mais verdade quanto mais concorrência houver no mercado.

A disciplina do mercado de capitais, por sua vez, acentua este processo de busca do que o consumidor mais deseja na empresa privada. Se a empresa não vender e/ou vender a preços menores por ter produtos/serviços de baixa qualidade, gerando prejuízos, o valor das ações cai. Isso indica, em última análise, que ela não está produzindo o que os consumidores mais desejam comprar.

Em síntese, como argumentado por Beesley e Littlechild (1997) “vender uma empresa estatal substitui a influência governamental pela disciplina de mercado” e isso gera um impacto significativo nos incentivos para a empresa buscar melhor atender o consumidor, ser mais produtiva e inovadora. O maior ganho da privatização, afinal, tende a ser alterar a estrutura de incentivos da empresa e seus gestores.

 

  1. V) Clareza de Objetivos

 

Os objetivos tendem a ser mais claros na empresa privada do que na empresa estatal. Como já destacado, na empresa privada o objetivo é uma variável quantificável muito concreta que é o lucro. Na empresa estatal o objetivo do que se entende por “bem-estar social” tende a ser muito mais difuso e subjetivo.

De fato, as empresas estatais apresentam muitos objetivos não econômicos como a universalização do serviço, o que inclui a exploração em áreas não lucrativas, mas com alegado impacto social (ou político). As empresas privadas também teriam menor apego ao objetivo de evitar demissões de empregados, no que a estatal é bastante sensível. O fato é que a existência de múltiplos objetivos com pouca clareza torna difícil mensurar resultados, obscurecendo a eficácia e eficiência da empresa.

Mas afinal, qual é o objetivo da empresa estatal? O Banco Mundial (1995) afirma que: “Os burocratas tipicamente operam mal os negócios, não porque sejam incompetentes (eles não o são), mas porque se deparam com objetivos contraditórios e incentivos perversos que podem desestimular e desencorajar mesmo os mais capacitados e dedicados funcionários públicos”. Ou seja, a falta de clareza nos objetivos constitui forte comprometedor dos incentivos dos gestores.

Pinheiro (1996), avaliando os efeitos microeconômicos da privatização no Brasil, também destaca a dupla face das empresas estatais com objetivos comerciais de um lado e de política pública de outro: “Esta dupla face tem um impacto negativo sobre a eficiência econômica pois: i) os gerentes das empresas estatais nem sempre têm clareza dos objetivos do acionista controlador, o setor público, o que dificulta a tomada de decisões e a alocação de recursos; ii) os objetivos sociais são usualmente alcançados com o sacrifício dos objetivos comerciais e da rentabilidade da empresa. Esta situação contrasta com a existente no setor privado, onde as empresas e sua direção são orientadas pelo objetivo maior do lucro”.

Cave (1990), discutindo a experiência de privatização britânica, nega que o bem estar social (seja lá o que isto significa) seria o objetivo principal das estatais. Segundo o autor, “empresas estatais maximizam o seu suporte político” e não o bem estar social, o que é corroborado pela evidência empírica de Shleifer e Vishny (1994).

Niskanen (1975), citado por Sidak e Sappington (2003a), destaca que os gerentes das empresas estatais usualmente seriam avaliados não pelos lucros, mas pelo crescimento puro e simples da empresa que eles chefiam. Assim, a função objetivo do agente seria primordialmente maximizar o tamanho das operações da empresa, independente de se os projetos geram retorno ou não. Não é nada claro que uma empresa ser grande é sempre positivo para o bem estar social.

A falta de clareza dos objetivos afeta, naturalmente, os incentivos gerenciais das estatais. Este problema foi endereçado por vários governos e organizações multilaterais nas décadas de setenta e oitenta, conforme Musacchio e Lazzarini (2014). Nesse contexto, o governo francês passou a adotar um plano contratual destinado a “atacar os problemas de objetivos confusos ou mutantes, autonomia insuficiente dos gestores e sistemas de controle demasiado restritivos, que eram percebidos como grandes obstáculos à eficiência e à produtividade das empresas públicas”. O governo francês propunha investimentos, emprego, dentre outros objetivos em troca de maior autonomia e compensações por obrigações impostas pelo governo. Como mostram os autores, tais planos, que também foram adotados em outros países, fracassaram em grande parte.

 

  1. VI) Problema de Agente/Principal, Grupos de Interesse e Captura

 

O problema de agente/principal é uma característica geral das empresas modernas não geridas (parcial ou completamente) pelos seus acionistas. Há um problema de moral hazard entre o acionista principal, que deseja o maior esforço do gestor para gerar o maior lucro possível, e o deste mesmo gestor, que pode ter vários outros objetivos, como mais lazer, mais publicidade (para ele próprio), etc.

Na verdade, pode ocorrer na relação entre o proprietário e todos os seus contratados, gestores ou não. O problema será tão maior quanto mais distante da administração estiverem os proprietários principais[7]. Nesse contexto, o problema de agente/principal tende a ser mais significativo nas empresas estatais em virtude da enorme distância dos “principais” da sociedade com os agentes relativamente às empresas privadas.

De fato, enquanto nas empresas privadas os principais são um conjunto de acionistas, nas estatais os principais são representados por toda a sociedade. O problema de ação coletiva (free-riding) é naturalmente muito mais severo no “grupo da sociedade” do que grupo (menor) dos acionistas.

Na empresa privada há um conjunto de principais de um lado, representado pelos acionistas, e os agentes, representado pelos gestores da empresa, de outro. Já na empresa estatal, há dois níveis de “principais”, o ministério ao qual a empresa estatal está ligada e os “proprietários finais”, que são os cidadãos comuns. Naturalmente a função objetivo do principal “ministério” ou “governo” nem sempre está em sintonia com a função objetivo do principal “sociedade”. Naturalmente, o agente “gestor da estatal” será mais responsivo ao “principal intermediário” “governo”, que não obrigatoriamente (ou quase sempre) é o mesmo da sociedade. Também podemos pensar no ministério ou políticos como “agentes” intermediários da sociedade frente aos “agentes” finais, representados pelos gestores da empresa estatal. Haveria, portanto, diversas camadas de agentes/principais na gestão da empresa estatal.

O ponto principal é que isto torna os problemas de agente/principal muito mais complexos em empresas estatais do que em empresas privadas. Para Aharoni (1982), o problema é tão agudo que as estatais seriam como agentes sem principais bem definidos, o que dificultaria medir o desempenho da empresa: “O principal (a população) seria representado por uma coalizão frouxa de agentes: o ministro da pasta a que está ligada a estatal, o Tesouro, os funcionários públicos, outros ministros, e o parlamento. Suas decisões são influenciadas por todo o tipo de grupos de interesse -consumidores, sindicatos, e outros- todos alegando algum direito de participar no processo de formulação dos objetivos da empresa … A falta de acordo sobre objetivos parece estar na raiz de muitas das dificuldades indicadas nos estudos sobre empresas estatais … O problema de definir objetivos para as estatais permanece em grande medida não resolvido”.

Musacchio e Lazzarini (2014) destacam a ignorância dos próprios gestores sobre quem seria, afinal, o principal: “Muitas atividades do setor público envolvem vários principais dispersos em várias áreas. Ao mesmo tempo, os próprios gestores de estatais podem não saber quem é o principal mais importante e a quem devem prestar contas. Seria o governo, um ministro, uma holding estatal ou a população em geral? Não raro, os empregados das estatais sentem que esses próprios são o principal”.

Aharoni (1982) aponta ainda que: “Em geral, a experiência mostra que quanto maior a firma, mais independente ela é do governo”. Ou seja, o problema de agente/principal das grandes holdings como a Eletrobrás ou Petrobras tende a ser pior do que para estatais menores.

Em síntese, a propriedade extremamente difusa da empresa estatal (sociedade como um todo) comparada à sociedade anônima ou outros arranjos societários privados tende a aprofundar significativamente os problemas de agente/principal entre “acionistas” e gestores. Na verdade, o mais importante “principal” a ser considerado pelos gestores tende a ser um agente político que conta com uma assimetria de informação gigantesca comparativamente ao resto da população em relação à operação da estatal.

Este problema mais agudo de agente/principal das empresas estatais as torna mais propensas à captura por organizações de interesses especiais, o que inclui os sindicatos dos próprios trabalhadores da empresa e os partidos políticos. O exemplo recente da Petrobrás é bastante eloquente quanto a isso. Será que tal empresa teria aceitado ser roubada por tanto tempo da forma que foi se fosse privada?

No caso da Petrobrás, estes agentes (ou principais) intermediários foram chave para entender todo o processo de captura da empresa pelos grupos de interesse, empreiteiros em geral, e dos esquemas de propina envolvidos no Petrolão.

O problema de agente/principal ensejou a discussão e promulgação de uma lei de responsabilidade em empresas estatais (Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016) no Brasil. Isto pode mitigar, mas dificilmente resolverá o problema.

 

VII) Baixa Capacidade de Planejamento e Execução do Estado

 

As dificuldades maiores com os problemas de agente/principal e grupos de interesse e corrupção fazem com que o governo defina um sem número de regras tanto dentro como fora das estatais para limitar a discricionariedade de seus gestores. A complicação de atuar com regras estritas de contratação (tal como as regras mais gerais da administração pública inscritas na Lei 8.666/93) é sobejamente conhecida, afetando significativamente a agilidade e competitividade da empresa. Quando uma estatal precisa de um insumo mais elaborado, abrir licitação com regras com muita ênfase na impessoalidade (típica da administração pública) e no “menor preço” pode comprometer a qualidade do produto ou serviço.

Se de um lado, regras mais estritas de contratação das empresas podem, em tese, dificultar a corrupção, elas também diminuem a margem de manobra dos gestores públicos, complicando excessivamente o processo de tomada de decisão relativamente às empresas privadas.

 

VIII) Impacto nas Finanças Públicas

 

Uma das motivações mais proeminentes, na prática, para privatizar é o impacto positivo sobre as finanças públicas, como observado por Adam Smith na ementa. Há mais de um canal possível dos efeitos da privatização sobre as contas do governo. Primeiro, quando se privatiza com base no maior valor de outorga, ou diluindo a participação acionária da União, como no caso proposto para a Eletrobrás, as receitas de privatização são usualmente utilizadas para abater dívida pública.

Segundo, como a taxa de lucro das estatais é, em geral, inferior aos juros pagos no serviço da dívida pública, o efeito positivo da privatização não é apenas sobre o estoque de dívida, mas também sobre o superávit/déficit nominal do setor público[8]. Para se ter uma ideia, conforme o Boletim das Empresas Estatais Federais de 2019 do Ministério da Economia, foram distribuídos dividendos dos grupos Petrobras, Eletrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica e BNDES no valor total de R$ 11,6 bilhões em 2018. No mesmo ano, a soma do patrimônio líquido destas empresas atingiu R$ 602,5 bilhões. A relação dos dividendos e patrimônio líquido deste grupo de empresas foi de 1,92% em 2018. Já a Selic média neste ano ficou entre 6,40% e 6,65%, dando uma ideia do custo de oportunidade das empresas estatais.

Mesmo que a empresa seja lucrativa, é frequente que a maior eficiência da empresa privada gere, em termos de impostos, mais do que os lucros obtidos. Assim, a privatização influencia as finanças públicas não só pelo lado do estoque (abatendo dívida) como pelo fluxo, reduzindo déficit pela redução de pagamento de juros da dívida mais incremento dos tributos relativamente à redução da transferência dos lucros para o Tesouro.

Como mostram Bortolotti e Siniscalco (2004), vários países vinculam as receitas de privatização com a amortização de dívidas, compensando a redução de um ativo do governo (a empresa) com a redução de um passivo (a dívida), inclusive com a criação de fundos específicos para tal propósito.

Os autores destacam que na Europa muito da motivação para privatizar esteve relacionada ao cumprimento das metas de equilíbrio fiscal do Tratado de Maastrich, podendo-se concluir até que a venda de estatais é mais frequentemente imposta por circunstâncias externas, como o equilíbrio fiscal, do que livremente escolhida por motivações de eficiência econômica.

 

  1. IX) Escassez de Recursos Públicos e a Crise do Investimento em Infraestrutura

 

Associado à questão do impacto da privatização sobre as finanças públicas, há o fato de que o modelo de investimento em infraestrutura baseado em recursos do Estado se esgotou pela crise fiscal. Simplesmente, não há mais recursos disponíveis para investimento público já há muito tempo, sendo indispensável aumentar significativamente a participação privada.

Há um grande consenso de que a retomada do crescimento econômico no Brasil passa obrigatoriamente pela recuperação dos investimentos em infraestrutura. Estache (2012), em um estudo do Banco Mundial, estima que os países da América Latina necessitam de uma proporção do investimento em infraestrutura como proporção do PIB entre 4 e 6% para a sustentação do crescimento econômico.

No entanto, como mostram Frischtak (2012) e Inter B (2016, 2018 e 2019), a proporção do investimento em infraestrutura em relação ao PIB no Brasil tem ficado muito abaixo disso, tendo alcançado uma média de 2,14% entre 2001 e 2012, mantendo-se no patamar de 2,3% no biênio 2013/14 e caindo desde então para 2,1% em 2015, 1,95% em 2016, 1,69% em 2017 e 1,82% em 2018, com estimativas de 1,87% do PIB para 2019. Inter B (2019) estima uma necessidade de investimento anual para modernizar a infraestrutura no Brasil em 4,15% do PIB. Ou seja, estamos mais de 2 pontos percentuais atrás do requerido.

Nesse contexto, o aporte de capital privado se torna fundamental para a urgente retomada dos investimentos em infraestrutura e a privatização constitui uma ferramenta de grande utilidade para tal propósito.

 

  1. X) Poder de Mercado

 

A principal crítica à privatização diz respeito, como destacam Beesley e Littlechild (1997), ao incentivo que uma firma privada tem de explorar todo o seu poder de mercado, o que é especialmente relevante nos setores de infraestrutura, com problemas de concorrência ou até monopólios naturais. Ou seja, a tendência de uma empresa privada cobrar preços de monopólio, com todo o seu custo em termos de perda de peso morto para a economia, seria maior do que em uma empresa estatal que não busca a maximização de lucros.

O problema do potencial exercício do poder de mercado foi talvez o principal ponto indicado pelas teorias do “interesse público” em favor da operação estatal dos serviços de infraestrutura. Esta linha de argumentação, no entanto, basicamente abstraiu os problemas de agente/principal e assumiu que o burocrata sempre agiria em favor do público, maximizando uma função de bem-estar social, a qual inclusive incorporaria objetivos distributivos e de universalização do serviço e geração de empregos, tal como mencionado em Vickers e Yarrow (1988).

A emergência de problemas relacionados ao poder de mercado, que podem também surgir em empresas estatais, indicam que a privatização tende a ser mais bem sucedida se for acompanhada de políticas regulatórias que corrijam a falha de mercado denominada “poder de mercado”, seja estimulando a competição, seja remediando suas consequências como por meio de controle regulatório de tarifas, inclusive de acesso à infraestrutura.

De fato, pode-se afirmar que privatização, regulação e competição são políticas complementares entre si. Como colocado por Vickers e Yarrow (1988)¸ “o impacto de mudanças de cada uma dessas (propriedade pública ou privada, competição e regulação) sobre a eficiência será, em geral, contingente às outras duas”. Conforme esses autores, a privatização e a competição tendem a ser tão associadas que, quando não há concorrência, tende a não existir diferença relevante no desempenho entre empresas estatais e privadas. A diferença significativa ocorreria quando há concorrência, em favor das empresas privadas.

De outro lado, a questão fiscal foi muitas vezes tão proeminente nas privatizações em todo o mundo que o próprio formato da privatização privilegiou a maximização da receita em detrimento da concorrência. Em alguns casos, vendeu-se a empresa como um monopólio (Telecomunicações na Argentina e México) ou com um poder de mercado razoável (duopólio nas telecomunicações no Reino Unido) para torná-las mais atrativas, incrementar os lances no leilão e obter mais receitas de privatização[9].

Há, no entanto, uma grande ineficiência gerada por esta estratégia, pois a privatização, como arguido, tende a tornar o setor mais eficiente quanto maior a concorrência. Newbery (2000), por exemplo, mostra que a produtividade da British Telecom (BT) privatizada, como proporção da produtividade da indústria inglesa, é constante entre o ano da privatização (1984) até o início dos 90s, quando se abre o setor plenamente à competição, após o fim da política de duopólio implementada inicialmente. Após a introdução da política de livre entrada, a produtividade da BT passa a se incrementar acima da produtividade da indústria inglesa, sendo um exemplo da conexão entre competição e eficiência em um ambiente pós-privatização.

 

  1. XI) Objetivos Diferentes de Maximização de Lucros e Comportamento Anticompetitivo

 

Sidak e Sappington (2003ª)[10] destacam que o fato de uma estatal perseguir outros objetivos que não o lucro tornaria, na realidade, o seu comportamento mais agressivo no sentido de empreender comportamentos anticompetitivos, como o preço predatório, por exemplo. Conforme os autores, dado que as estatais tendem a privilegiar o seu crescimento puro e simples e não o lucro, a empresa “se torna menos avessa aos altos custos que emergem de uma produção maior … definindo preços particularmente baixos para os produtos nos quais ela se depara com elevada competição”.

Por exemplo, os autores mostram que estatais possuem maiores incentivos a implementar políticas de preços predatórios, financiadas por subsídios cruzados oriundos de outras atividades da empresa. No caso desta conduta, utiliza-se usualmente na doutrina antitruste para empresas privadas que maximizam lucros, o teste de Joskow e Klevorick (1979) de dois estágios: primeiro avalia-se se a empresa possui capacidade de recuperação futura dos prejuízos incorridos; segundo, comparam-se os preços aos custos variáveis médios.

Defendem Sidak e Sappington (2003a) que, para estatais, seria desnecessário avaliar o primeiro estágio, pois o investimento em predação apenas objetiva a expansão no mercado e não o aumento de lucros. Os autores prosseguem, afirmando que estatais também possuem maiores incentivos para aumentar o custo do rival: “Dado que uma estatal deve ter um grande incentivo a promover práticas anticompetitivas e a desrespeitar relativamente mais a lei antitruste em relação às suas competidoras privadas, cabe implementar uma vigilância mais forte nas atividades de mercado das Estatais. Também é mais apropriado sujeitar uma Estatal a leis de concorrência mais severas, além de penas mais pesadas por sua violação”.

São interessantes, neste particular, as consequências enfatizadas por Brittan (1984), citado por Cave (1990), do problema de soft-budget para a estratégia hostil à concorrência de outras firmas, muitas vezes adotadas por estatais: “Com o Tesouro disposto a cobrir perdas, o autor argumentou que os entrantes provavelmente não entrariam para competir com uma empresa estatal incumbente … também, a atitude governamental de monitoramento da estatal deve certamente afetar a factibilidade de se incorrer em perdas de curto prazo para deter um possível entrante e, portanto, a credibilidade da estratégia de impedimento à entrada.”

 

XII) Abandono de Objetivos de Universalização e Geração de Empregos

 

Empresas privadas estariam menos dispostas que as estatais a, voluntariamente, realizar serviços para clientes ou áreas pouco atrativas economicamente, mas com valor alegadamente “social”. Em geral, a empresa estatal está mais disposta a promover subsídios cruzados das áreas e/ou clientes mais superavitários para os mais deficitários.

Este tipo de conduta da estatal tende a ser vista de forma positiva por alguns. Como as empresas privadas apenas se interessariam pelos serviços superavitários, a privatização poderia comprometer em alguma medida o objetivo de universalização dos serviços, um ponto particularmente relevante para um serviço como energia elétrica. Ademais, uma consequência usual da privatização é a demissão de trabalhadores, o que também pode ser mal visto, ainda que haja, de fato, excesso de trabalhadores e baixa produtividade na estatal.

Apesar de a menor atenção à universalização dos serviços e o possível enxugamento de pessoal serem tomados usualmente como subprodutos negativos da privatização, estes efeitos também têm um lado bastante positivo se considerado o custo de oportunidade da economia no uso dos recursos. De fato, a empresa privada é bem menos propensa a investimentos em projetos sem justificativa econômica, os chamados “elefantes brancos”, que dragam de forma excessiva recursos da economia que poderiam estar sendo utilizados de outra forma, inclusive para projetos de interesse realmente social. A contratação de um número excessivo de empregados nas estatais também drena a disponibilização de recursos humanos para outros setores da economia, onde seriam mais produtivos e/ou com maior impacto social.

De qualquer forma, o governo pode utilizar outros instrumentos para mitigar os problemas sociais decorrentes de demissões ou de abandono da perseguição de objetivos não econômicos pelas empresas privatizadas. Quando passa a regular por um contrato regulatório, o Estado pode impor objetivos de investimento, incluindo a universalização, como obrigações contratuais ou prover subsídios para tal fim, tornando mais transparente o custo do objetivo não econômico.

Programas de retreinamento e seguro desemprego também mitigam problemas relativos ao eventual desemprego de antigos funcionários das estatais. Como a folha de salários de estatais é, em geral, sobrecarregada, este enxugamento de pessoal seria economicamente eficiente e beneficiaria a sociedade como um todo pela provisão de um serviço menos custoso.

De fato, tanto a remoção do ônus dos setores deficitários quanto a demissão de trabalhadores tende a reduzir preços para os consumidores dos serviços superavitários pela eliminação do subsídio cruzado.

No caso da remoção do ônus dos setores deficitários, poderia haver uma redistribuição de renda dos consumidores em serviços/regiões mais deficitários para os mais superavitários. Como os primeiros em geral são mais pobres, haveria um impacto social líquido negativo da privatização.

Obviamente que a política de subsídio cruzado utilizada em empresas estatais para beneficiar setores socialmente vulneráveis pode ser perfeitamente replicada em empresas privatizadas reguladas. A questão é que na empresa estatal o subsídio cruzado para financiar clientes/regiões deficitários pode vir como parte de uma estratégia da própria companhia, enquanto na empresa privada deve sempre ser imposta por um regulador, tornando-se mais transparente, especialmente seu custo.

Laffont e Tirole (2000) criticaram a premissa de que a política de universalização do serviço por meio de subsídio cruzado gerou melhorias do ponto de vista social no caso de telecomunicações. Do ponto de vista teórico, os autores utilizam o resultado clássico de Atkinson e Stiglitz (1996) da teoria da taxação de que um subsídio direto para as atividades alvo é sempre melhor do que o subsídio cruzado viabilizado pela distorção dos preços relativos: “O teorema de Atkinson-Stiglitz simplesmente indica que a melhor forma de redistribuir renda seria a forma direta, por meio da taxação da renda, e que a manipulação (indireta) dos preços relativos de bens e serviços seria uma política ineficiente”.

O subsídio cruzado representa uma discriminação de preços induzida pelo Estado, seja por meio de estatais ou não, para atingir um objetivo de política pública usualmente ligado à universalização do serviço para populações/áreas menos atrativas economicamente. Isto tem um custo, em geral, maior que o benefício se não houver externalidades no serviço. Havendo externalidades, o que é o caso do setor de energia elétrica, cabe computá-las para avaliar se a política compensa ou não.

De qualquer forma, incorporando ou não as externalidades, o subsídio direto, via orçamento, tem a vantagem de ser mais transparente para a sociedade e evitar a perda de peso morto dos consumidores nas regiões superavitárias. Afinal, como não conhecem os custos de fornecimento do serviço, os usuários das regiões superavitárias que subsidiam as deficitárias não sabem usualmente o quanto pagam a mais no preço do serviço para financiar a área deficitária.

Mas talvez o principal problema de uma política de subsídios cruzados no setor de infraestrutura seja o advento da concorrência. Entrantes procuram logicamente mirar os segmentos, regiões e clientes mais lucrativos. Na medida em que em boa parte dos setores de infraestrutura passou-se a promover a competição, a base de financiamento das atividades deficitárias em um sistema de subsídios cruzados fica naturalmente erodida. Simplesmente, o lucro de monopólio dos segmentos lucrativos não mais existe, dada a concorrência dos entrantes, que, ainda por cima, não têm o ônus de operar nas áreas/clientes que geram prejuízo. Esta estratégia de entrar apenas nas áreas atrativas é o chamado cream-skimming. Este problema é ressaltado por Laffont e Tirole (2000): “este mecanismo de subsídios cruzados está acabando nos países desenvolvidos. De um lado, o regime de price caps encoraja as firmas a rebalancearem suas tarifas de uma forma mais empresarial. A firma não está mais disposta a servir áreas de alto custo a preços baixos ou subsidiar usuários de baixa renda … Enquanto a introdução de price caps levou a algumas mudanças na forma que o mecanismo de subsídios cruzados foi implementado, um obstáculo mais decisivo ao mecanismo existente de subsídio cruzado veio do movimento de liberalização. Dado que os operadores devem fazer lucros substanciais nos segmentos que subsidiam de forma a financiar os segmentos que são subsidiados, os entrantes tem um incentivo forte a entrar no primeiro (e negligenciar o último). Este ponto traz duas preocupações. Primeiro, mesmo entrantes ineficientes podem ser seduzidos pelo guarda chuva dos segmentos de altos preços do incumbente. Segundo, a base tarifária sobre a qual alguns serviços são subsidiados é erodida, destruindo todo o sistema de subsídios cruzados.”

 

XIII) Evidência Empírica Internacional e Brasileira Sobre Privatização

 

A evidência empírica internacional tende a validar a visão teórica de que a propriedade privada é mais eficiente que a estatal. Boardman e Vining (1989), em um estudo clássico sobre as 500 maiores firmas industriais não americanas, acharam que empresas estatais puras e mistas tiveram performance “substancialmente pior” que as companhias privadas similares.

Na resenha de Megginson e Netter (2001), comprova-se que a eficiência das empresas privatizadas em termos de produtividade e crescimento foi, na média, superior às empresas que não foram privatizadas.

Pinheiro (1996) apresenta uma tabela sintética sobre vários estudos comparando o desempenho de ambos os tipos de propriedade e, embora achando resultados mistos, conclui haver uma ligeira vantagem para as companhias privadas. Em particular, este autor achou para o Brasil que a privatização aumentou a produção, a eficiência, a lucratividade e o investimento, bem como melhorou outros indicadores de performance financeira. La Porta e Lopez de Silanes (1997) acharam para o México grandes aumentos da eficiência e lucratividade, sendo que os aumentos de preços responderam por apenas 10% do aumento dos lucros. Os autores concluíram que estes aumentos de preços não se deveram ao poder monopolista.

Anuatti-Neto, Barossi-Filho, Carvalho e Macedo (2005) mostram que, de forma geral, as empresas brasileiras tornaram-se mais eficientes com a privatização, com aumento da lucratividade e eficiência operacional. Um ponto importante foi a mudança da estrutura financeira das empresas em função da eliminação do problema de soft budget. As empresas privatizadas brasileiras tiveram sua liquidez corrente ampliada e redução de endividamento no longo prazo.

 

XIV) Privatização Parcial

 

Bortolotti e Faccio (2006) realizaram uma pesquisa ao final do ano 2000 e mostraram que “os governos continuam como os maiores acionistas ou detêm poderes de veto substanciais em quase 2/3 das empresas privatizadas”. Os autores mostram que o valuation das empresas privatizadas não depende de o governo abrir mão de todos os direitos de controle. Na verdade, a participação governamental resultou em valorização até maior das empresas privatizadas, o que os autores acreditam que pode ter se derivado do fato de que foi detectada também uma maior probabilidade de os governos proverem ajuda financeira (bailing-out) às empresas privatizadas que mantiveram participações governamentais do que àquelas em que isto não ocorreu. Ou seja, o maior valuation derivaria não de maior eficiência de empresas privatizadas com participações estatais remanescentes, mas sim de um maior soft budget. Afinal, qual acionista privado não deseja ser sócio de um agente que está disposto a bancar os prejuízos?

Um aspecto potencialmente positivo da manutenção de participações acionárias do governo nas empresas, enfatizada por Bortolotti e Siniscalco (2004), é que os investidores privados podem atribuir uma probabilidade menor de comportamentos oportunistas. Como tais comportamentos afetam não só os sócios privados como também o sócio estatal, os autores argumentam que o próprio Estado não deveria querer prejudicar a empresa: “como a expropriação também reduz o valor do investimento para o acionista público, vendas parciais parecem constituir uma estratégia de sinalização da disposição do governo em suportar o risco residual da atividade e não interferir na atividade operacional da empresa no contexto de alto risco de política”.

Na experiência recente da Eletrobrás, no entanto, a Medida Provisória 579/2012 teve um impacto muito negativo na empresa. Enquanto empresas de distribuição estatais estaduais recusaram a oferta do governo federal de reduzir tarifas em troca da antecipação da renovação da concessão, a Eletrobrás, por ser de propriedade do governo federal, fez o oposto, em claro desacordo aos melhores interesses da empresa. Sendo assim, não parece ser um argumento tão forte a justificar a manutenção de propriedade acionária parcial por parte do governo.

 

  1. XV) Conclusões

 

A privatização pode ser entendida como um meio para realizar uma verdadeira “revolução de incentivos” na gestão das empresas transferidas ao setor privado.

Como muitas outras coisas em economia, a questão dos incentivos diferenciados das empresas operadas pelo governo e pelo setor privado não passou despercebida por Adam Smith, cuja intuição sobre a dramaticidade do problema agente/principal nas estatais ocorreu há mais de dois séculos.

Isso sem negar que já pode ter havido vantagem em ter empresas estatais em setores de infraestrutura. Em geral, se atribui esta vantagem ao que seria a falta de apetite ao risco do agente privado em investimentos de grande vulto como os de infraestrutura. O mais provável, no entanto, é que a vantagem das empresas estatais na infraestrutura tenha sido relacionada à falta de condições institucionais dos países para o investimento do setor privado em infraestrutura. Ou seja, o problema para o agente privado foi menos o risco do negócio e mais o risco político representado pela falta de capacidade de comprometimento crível do governo em não adotar comportamentos oportunistas, expropriando o investimento, especialmente pela indução à queda forçada de tarifas politicamente sensíveis.

Note-se que a pressão por tarifas menores tende a ser mais eficaz em estatais, o que fez ampliar o suporte político ao uso deste tipo de empresas. Enquanto se acreditava que tarifas menores seriam um reflexo do fato de estatais não utilizarem seu poder de mercado contra os consumidores, a experiência revelou que a tentação populista dos governos prevalecia em tal magnitude que acabava comprometendo a saúde financeira da empresa. Além de se transferir o custo da provisão do serviço do consumidor para o contribuinte (por que isso seria sempre socialmente justo?), comprometia a capacidade de investimento da empresa. Muito da crise brasileira de infraestrutura se deve a isso. A experiência recente do uso da Eletrobrás pela Medida Provisória 579/2012 demonstra que este problema continua muito atual.

No momento atual, no entanto, acreditamos que o país esteja mais maduro institucionalmente, especialmente com um Judiciário independente e com um mínimo de consciência acerca dos efeitos nefastos da incerteza jurídica sobre o investimento. Na tentativa do governo que entrava de forçar a redução de tarifas telefônicas em 2003, por exemplo, o Judiciário deu ganho de causa às operadoras, respeitando os termos do contrato de concessão[11].

A privatização representa, antes de tudo, uma verdadeira “revolução de incentivos” na provisão do serviço público. Tanto gestores como empregados da empresa privada apresentam uma propensão a responder a estes incentivos com um trabalho de mais eficiência e excelência. O cuidado fundamental aqui é fazer uma regulação moderna e eficiente do serviço, mais voltada para incentivar os comportamentos desejados do que para os velhos mecanismos de “comando e controle”. Adicionalmente, é crucial uma regulação que promova o maior dos incentivos, o da competição, um elemento muito presente na privatização da Telebrás em 1998. O mix destes mecanismos de incentivos, passagem do direito de propriedade público para privado pela privatização, ambiente competitivo e regulação inteligente é o que poderá viabilizar esta essencial “revolução de incentivos” que permitirá expressivo incremento da produtividade nesses setores com transbordamentos por toda a economia brasileira.

Adiar a retomada da privatização representa um custo gigantesco tanto para os usuários dos serviços quanto para os contribuintes brasileiros. É fundamental que a privatização do maior número de empresas continue representando uma das diretrizes mais importantes do governo.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

[1] O Governo àquela época insistia na distinção entre privatização, palavra amaldiçoada por implicar transferência permanente do patrimônio público a privados (como se não se pagasse nada por isso), e concessão, que manteria a reversibilidade dos ativos ao Estado. Curiosamente, nos casos dos serviços públicos como telecomunicações, energia elétrica e ferrovias, ocorreram concessões, apesar de terem sido consideradas pela Oposição da época como privatizações. Já no caso da venda da Vale do Rio Doce ou da Embraer, não houve concessão, sendo privatização propriamente dita. Os governos Lula e Dilma, no entanto, chamaram tudo de dilapidação de patrimônio público, mesmo tendo concedido rodovias e aeroportos, mesmo regime de telecomunicações, energia e ferrovias. A grande parte da análise aqui procedida, de qualquer forma, é cabível para concessões.

 

[2] Ver Beesley e Littlechild (1997), Laffont (1995), Vickers e Yarrow (1988), e Pinheiro e Giambiagi (1994), dentre outros.

 

[3] Ministro da Economia Francês de Luis XIV conhecido pelas ideias mercantilistas que incrementaram a intervenção do Estado na economia.

 

[4] Utilizamos “expropriação” aqui no sentido mais amplo de Sidak e Spulber (1998), incluindo a encampação dos ativos, controle de tarifas em níveis irrealisticamente baixos, obrigação de investimentos além dos previamente contratados, entre outros.

 

[5] Ver a importante contribuição de Levy e Spiller (1996) sobre a importância da questão institucional no formato ótimo de regulação no setor de telecomunicações em vários países.

 

[6] Ver Mattos (2003).

 

[7] O conhecido ditado de “o olho do dono é o que engorda o gado” traduz precisamente este ponto.

 

[8] Ver Pinheiro e Giambiagi (1994).

 

[9] Ver Mattos e Coutinho (2005).

 

[10] Ver também sobre o mesmo assunto dos dois autores, Sidak e Sappington (2003b).

 

[11] O que não implica que não tenha imputado algum prejuízo às empresas. Ver https://www.conjur.com.br/2004-jul-01/decisao_stj_eleva_reajuste_tarifas_partir_sexta.

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O Acordo de Leniência Janot/Irmãos Batista: O Crime Compensou? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3014&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-acordo-de-leniencia-janot-irmaos-batista-o-crime-compensou https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3014#comments Thu, 10 Aug 2017 18:19:50 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3014 Recentemente, o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, realizou um acordo de leniência com os irmãos Joesley e Wesley Batista, homologado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Edson Fachin.

A crítica generalizada na imprensa foi de que o acordo teria sido generoso demais aos Batista e que isso seria, ao final e ao cabo, um incentivo ao crime: o crime teria compensado para os dois irmãos que realizaram um assalto de dimensões babilônicas ao erário.

Entendemos que a crítica faz todo o sentido, sendo que a posição de Janot apenas pode fazer sentido em certas condições.

Nos propomos neste artigo a montar um jogo simples na forma extensiva para ilustrar o que aconteceu, colocando alguns parâmetros de como a autoridade judiciária deveria desenhar os pay-offs nos acordos de leniência. Nossa visão é que Janot provavelmente apenas considerou os incentivos ex-post para induzir uma confissão e não os incentivos ex-ante para não infringir. Não entenderam boa parte da essência do jogo da leniência eventualmente por estarem excessivamente focados no curto prazo da delação.

Assumimos que a autoridade não vai realizar qualquer investigação independente sem as delações. De forma equivalente podemos assumir que, sem a delação, não se produzem provas suficientes para a condenação, ou seja, condenar só com delação.

A realização da infração depende da interação entre os dois agentes, podendo ser um cartel ou um acordo entre um agente público e uma empresa privada. Assim, nenhum dos dois é capaz de realizar a infração sozinho. Ou seja, a infração é e só pode ser fruto de um acordo ex-ante entre os dois agentes, sejam eles dois privados ou um privado e um público.

Supomos um jogo entre dois infratores, I e II, que inicialmente decidem se infringem ou não. Assumimos uma estrutura de decisão sequencial em que o infrator I decide primeiro e o infrator II decide em segundo sabendo se o infrator I se ofereceu para a infração ou não. Se pelo menos um deles decidir “não infringir”, a infração não ocorre e ambos ganham o pay-off de não infração, que assumimos simétrico para efeito de simplificação, igual a “a” cada um.

Quando os dois acordam a infração, cada um decide se delata ou não delata no segundo estágio do jogo. Neste ponto, diferente do primeiro estágio, ambos não sabem o que o outro vai fazer ou já fez. Assim, modelamos como o infrator I decidindo se delata ou não delata primeiro e o infrator II, em seguida, escolhe também a mesma coisa. Como ambos não sabem onde estão (se o outro infrator delatou ou não), colocamos o infrator 2 em dois pontos no mesmo conjunto de informação.

Quando os dois infratores delatam, os pay-offs são iguais, pela hipótese simplificadora de simetria, a “α”. Quando ambos não delatam seus pay-offs são iguais a “x”. Quando um delata e o outro não delata, o pay-off do primeiro é igual a “w” e o do segundo igual a “z”.

Nesse jogo, a autoridade, no caso o Ministério Público (MP), não controla os pay-offs quando não ocorre a infração “a” e quando ambos não delatam “x”. Estes pay-offs são um “dado da natureza”1. Já as variáveis “α”, “w” e “z” estão no controle do MP. Ou seja, o MP define os pay-offs dos infratores quando ambos confessam, α e quando um delata e o outro não delata, respectivamente “w” e “z”.

Teremos então o seguinte jogo:

O MP benevolente tem um objetivo duplo aqui. Primeiro, ele deseja gerar incentivos ex-post para o caso dos infratores já estarem na segunda fase do jogo.

Para o problema ser minimamente interessante, assumimos que x>a, ou seja, se os dois infratores infringirem e não delatarem e, portanto, não serem pegos conforme as hipóteses do modelo, conseguem um pay-off melhor do que se não infringirem. Assim temos a hipótese de incentivo do infrator a infringir quando não é pego:

x>a       (hipótese 1)

Segundo, o MP deseja (ou deveria desejar) que ex-ante os dois infratores nem ao menos tivessem incentivos a infringir. Se tivéssemos a>x, era só fazer todas as variáveis de escolha do MP inferiores a “a”, ou seja, a> (α,w,z) que o problema estaria resolvido. Mas aí de fato, não haveria problema real para resolver: se a autoridade não fizer nada, que equivale a remover a fase de delação, a solução é sempre escolher “não infringir” para os dois jogadores. Nesse caso, ter um MP é desnecessário para esta infração. Mas como assumimos um problema interessante (x>a), que é o esperado2, a solução requer mais um pouco de atenção.

Vejamos a decisão do infrator II no subjogo final em que se escolhe se delata ou não. Se estiver no lado esquerdo (infrator I delatou), que não é do conhecimento dele, ele prefere delatar se α>z. Assim, temos a condição 1 de incentivo à delação ex-post:

α>z    (Condição 1)

Se estiver do lado direito, garante-se que ele prefere delatar se w>x. Ou seja, delatar é melhor inclusive quando o outro não delata (w>x). Assim, a condição 2 de incentivo à delação ex-post é:

w>x  (Condição 2)

As duas condições (1 e 2) juntas são suficientes para o infrator I escolher “delatar” seja uma estratégia dominante para ele. Elas são precisamente as mesmas para o infrator II, que também não sabe, quando joga, como o infrator I jogou, dada a simetria do problema.

Ou seja, o MP deve estruturar os pay-offs em suas variáveis de escolha de forma tal a satisfazer as condições 1 e 2. Assim, se houver a infração ex-ante, garante-se que o incentivo será sempre para delatar. As três variáveis de escolha do MP (α,z,w) devem ser definidas de forma consistente entre si de maneira a favorecer a delação ex-post.

O problema aqui, que está no núcleo da crítica ao MP e STF, é que a criação do incentivo a delatar ex-post se deu às custas do aumento do incentivo a infringir ex-ante.

De fato, se o prêmio para confessar for tão alto, independente do outro confessar também que temos α >a, há o incentivo dos dois infratores infringirem, delatarem e saírem melhor do que se nada tivessem feito. É o que tudo leva a crer que ocorreu com os Joesley em seu apartamento na 5º avenida em Nova York, a qual gerou uma onda de indignação (totalmente justificável) na sociedade.

Nesse caso, para garantir que os Joesley e análogos não terão mais incentivos a infringir no primeiro subjogo, cabe, portanto, impor uma terceira condição, que o ganho com a delação premiada quando o outro também delata não pode ser superior ao pay-off sem infração:

a> α   (condição 3)

Se juntarmos as três condições e a hipótese 1 teremos uma condição única que define a relação de todas as três variáveis de escolha (w, α,z) em relação aos dados que vêm das variáveis exógenas definidas pelo estado da natureza aqui:

w>x (Condição 2)
x>a (Hipótese 1)
a>α (Condição 3)
α>z (Condição 1)

Juntando as três condições e a hipótese 1, chegamos à condição agregada que garante tanto os incentivos à delação ex-post quanto à não infração ex-ante:

w>x>a> α>z  (Condição 4)

Ou seja, a condição 4 garante que o equilíbrio perfeito em subjogos, com a estratégia ótima seja sempre ambos os infratores escolherem “não infringir, não infringir” ganhando cada um, o valor de “a”.

Note-se que a condição 4 está plenamente consistente com o jogo estático do dilema dos prisioneiros em que o ganho de delatar enquanto o outro não delata, w, deve ser maior que o ganho de não delatar enquanto o outro delata, z (w>z). Na verdade, este jogo maior define uma distância maior entre os dois dada pelos valores intermediários de “x”, “a” e “α”. Também o resultado de que o equilíbrio sem cooperação (com delação), α, deve ser inferior à racionalidade coletiva do jogo estático em que ambos não delatam ganhando “x” se verifica (x> α). Ou seja, o jogo no formato do dilema dos prisioneiros estático já dá pistas bem interessantes de como desenhar os pay-offs deste jogo.

Tais desigualdades, típicas do jogo estático, apenas são garantidas quando se juntam a hipótese 1, com as condições 1 e 2 e mais a condição 3, resultando na condição 4, do subjogo do jogo inteiro.

Uma observação é importante aqui. Dada a simetria do jogo e dado que se definiu um equilíbrio em estratégias dominantes para o jogador 2 para ele sempre delatar, não faz diferença que o jogador 2 saiba ou não saiba se o jogador 1 delatou ou não delatou. Assim, suponha que os Batista sejam, sem perda de generalidade, o jogador 2, já tendo visto o que o jogador 1 fez. Nesse caso, para garantir que os Batista delatem também, é preciso que as condições (1) e (2) também se verifiquem. Nesse caso, o infrator 1, antecipando a ação dos Batista ao observar o seu movimento, também delata. Assim, na estrutura proposta, assumir que o infrator 2 não sabe o que o infrator 1 fez (mais próximo da ideia do dilema dos prisioneiros, cada um isolado em sua cela sem saber o que ocorre com o outro) não fará diferença na condição (4) de equilíbrio final.

Em síntese, apenas faz sentido o MP oferecer um acordo muito vantajoso com os infratores se não houver outros delatores delatando (W bem grande).

Mas este não parece ter sido o caso, pois havia outros delatores como a diretoria do BNDES, outros políticos ou o próprio presidente da república3. Daí que é fundamental que tal vantagem fosse bem mais reduzida. O pay-off de “delatar,delatar”, α , deve ser inferior ao pay-off sem infração “a”, ao mesmo tempo que é maior que o pay-off quando um infrator não confessa e o outro confessa “z”. Para isso, o pay-off do infrator que não confessa enquanto o outro confessa, z, tem que ser bem baixo.  Como “z” é também variável de escolha do MP, isto não seria um problema.

Como há vários delatores para o mesmo crime, é possível que o MP e o STF tenham dado um valor excessivamente elevado, como se ninguém estivesse delatando de forma concomitante e/ou como se apenas existisse o segundo subjogo da delação e não também o subjogo representado pelo jogo inteiro quando se compara o resultado de não infração, “a” à direita, com os outros à esquerda quando ocorre a infração.

Enquanto este jogo captura a parte mais essencial da crítica ao acordo MP/STF/Joesleys, é possível pensar em extensões interessantes deste jogo que podem identificar outros aspectos da realidade.

Por exemplo, quebra da hipótese de simetria de pay-offs, especialmente quando se trata de um acordo entre dois agentes bem distintos como um corrupto público e um corruptor privado. Pode-se pensar em introduzir explicitamente o MP dentro do jogo e não apenas na definição dos pay-offs quando pelo menos um infrator delata.

Mesmo sem uma ação estratégica explícita do MP, pode-se pensar nos dois infratores atribuindo probabilidades para um início de investigação independente do MP que pode gerar, mesmo com os dois não delatando, uma probabilidade positiva de condenação.

A mensagem mais importante aqui é que o MP e o STF devem prestar atenção a toda a dinâmica do jogo da leniência e estabelecer os benefícios a serem dados, considerando as vantagens que foram auferidas pelos infratores com a infração e a interdependência estratégica entre os agentes.

________________

1 Assumimos a hipótese simplificadora que o “tamanho” da infração não é variável de escolha dos infratores.

2 Infringir e não ser pego é melhor que não infringir. Caso contrário, viveríamos em mundo idílico sem crimes e as autoridades seriam desnecessárias. Um mundo de agentes suficientemente altruístas (sem seletividade no altruísmo) já embasaria melhor a possibilidade de a>x. Desconsideramos esta hipótese.

3 Como no caso do presidente da república e de outros políticos, a delação provavelmente incluiria renúncia, o pay-off da delação seria muito pequeno e a hipótese de simetria seria quebrada, requerendo um jogo um pouco mais complexo. Agradeço sugestão dos revisores sobre este ponto.

 

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Por que custa caro ligar de telefone fixo para celular? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2117&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-custa-caro-ligar-de-telefone-fixo-para-celular https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2117#comments Tue, 04 Feb 2014 12:02:24 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2117 A ampla difusão da telefonia celular levou a alguns comportamentos curiosos dos usuários. Muitos compram telefones que comportam chip  de várias operadoras. Profissionais liberais e prestadores de serviço costumam colocar, em seus cartões profissionais, vários números de telefone celular, cada um de uma operadora diferente.  É comum ver pessoas carregando mais de um aparelho celular, cada um deles com chip de uma operadora diferente. Tornou-se usual o uso da frase: “você tem um número fixo para o qual eu possa ligar?”. Parentes, namorados e amigos que fazem muitas ligações entre si, tendem a escolher a mesma operadora, para aproveitar ligações mais baratas ou promoções de ligação gratuita entre linhas daquela operadora.

Esse tipo de comportamento decorre da política de preços usada pelas operadoras de telefonia móvel, que fixam preços diferenciados, cujo padrão é:

  • Cobrar mais barato por ligações entre linhas móveis da mesma operadora;
  • Cobrar mais caro nas ligações originadas em telefones fixos com destino a telefones móveis;
  • Quando a operadora de telefonia móvel pertence a um grupo econômico que também é proprietário de empresa de telefonia fixa, cobra-se mais barato pelas ligações que provêm da operadora de telefone fixo pertencente ao mesmo grupo do que de ligações de telefone fixo geradas em operadora rival.

Não existe um modelo de custos que apure adequadamente qual a diferença de custos entre uma ligação entre linhas móveis daquela entre linha fixa e móvel; ou a diferença entre ligações dentro de uma mesma rede móvel e ligações entre redes distintas. Não obstante isso, as diferenças de preços cobrados ao consumidor, para esses distintos tipos de ligação telefônica, é bastante grande, na casa dos múltiplos de dez.

Tal diferenciação de preços não é apenas consequência de diferentes custos para viabilizar as chamadas; sendo, também, decorrente de estratégias das operadoras para maximizar lucro e  expandir participação de mercado.

Há, portanto, nessas estratégias de fixação de preços, possibilidade de conduta anticompetitiva e de lesão ao consumidor à qual as instituições reguladoras – ANATEL e Conselho Administrativo de Defesa Econômica – devem ficar atentos.

Para entender o fenômeno é preciso, em primeiro lugar, saber que o regime de tarifação no Brasil é baseado no princípio de que quem paga a ligação é o usuário que fez a chamada: “a parte que chama paga” (calling party pays-CPP).  Além disso, a operadora móvel que recebe uma chamada tem o direito de cobrar pelo uso da sua rede. Trata-se da chamada  “tarifa de interconexão” para a terminação de chamadas da telefonia móvel, o VU-M (Valor de Uso da Rede Móvel) que serve tanto para chamadas originadas em telefones fixos como celulares.

Suponha que João, usuário da operadora (fixa ou móvel) A faça uma ligação para Maria, que tem uma linha móvel da operadora B. No preço cobrado de João por essa ligação estará embutida a “tarifa de interconexão”, que irá para os cofres da operadora B.

Esse sistema de cobrança, usado em diversos países, gera incentivos para que a operadora B fixe uma elevada tarifa de interconexão, encarecendo as ligações feitas para seus usuários a partir de linhas de outras empresas. Isso aumentará a receita da operadora B. Parte dessa receita extra, a operadora pode repassar a seus usuários, sob a forma de descontos na compra de aparelhos,  ligações a baixo custo entre linhas da própria operadora B ou créditos para ligações futuras.

O usuário de uma linha da operadora B, recebedor da chamada, é insensível a preços que são pagos por quem faz a chamada. No momento de escolher a operadora, este não é um preço relevante para ele. Ele vai dar mais atenção aos custos que ele pagará ao fazer suas próprias ligações e ao custo de aquisição do aparelho celular, de modo que a operadora tem incentivos a cobrar barato por isso, para atrair o cliente.

Ao usar essa estratégia, a operadora B atrairá muitos usuários. Por outro lado, uma vez que a operadora B cobra barato por ligações entre linhas da sua própria rede, o consumidor vai se filiar a essa operadora sempre que as pessoas com quem conversa frequentemente também tiverem linhas da operadora B. Ou, então, se essa operadora tiver uma maior fatia de mercado, pois nesse caso será mais amplo o leque de ligações que o consumidor poderá fazer sem sair da própria rede  e, portanto, sem pagar a tarifa de interconexão.

Se todas as operadoras de telefonia móvel raciocinarem e agirem da mesma forma que a operadora B, o resultado será um equilíbrio de mercado no qual: (a) os usuários escolherão suas operadoras de acordo com a operadora usada pelos seus interlocutores frequentes (por exemplo, todos os membros de uma família usando a mesma operadora); (b) pessoas e firmas que usam intensamente o telefone (profissionais liberais, prestadores de serviço) terão celulares de vários chips ou vários aparelhos, para fazer a maioria das suas ligações dentro da rede de uma mesma operadora; (c) os consumidores evitarão as ligações de fixo para celular, pelo menos daqueles que pertencem a grupos econômicos distintos.

Esse equilíbrio, embora não induza à dominação do mercado por uma empresa em particular, preservando a concorrência, é ineficiente, pois gera custos desnecessários como o de adquirir um aparelho mais caro (para vários chips); ou adquirir mais de um aparelho; ou restringir o leque de escolhas de operadora de um indivíduo (eu posso achar que a qualidade das ligações da operadora A é melhor, mas fico na operadora B porque meus interlocutores frequentes estão nela); ou induzir a realização de mais de uma ligação (perco tempo e dinheiro fazendo uma primeira ligação, a partir do meu telefone fixo, para um número móvel, apenas para perguntar se a pessoa tem um número fixo para o qual eu possa ligar e ter uma conversa mais longa).

A cobrança da tarifa de interconexão também pode ser um indutor de comportamento cartelizado das operadoras de telefonia móvel. Elas podem combinar que todas cobrarão uma tarifa de alto valor, de modo que uma não roubará mercado da outra, mas todas as ligações que pagam tal tarifa ficarão caras, elevando as receitas de todos os membros do cartel.

No caso brasileiro existe também um problema de desigualdade de concorrência. Isso porque havendo grupos econômicos que possuem operadoras fixas e operadoras móveis, a estratégia pode ser estendida para induzir a conexão entre fixo e móvel do mesmo grupo. Assim, ligações de fixo para móvel de operadoras de um mesmo grupo econômico tendem a ser mais baratas (com descontos que compensem a tarifa de interconexão) que aquelas de fixo de um grupo para móvel de outro grupo.

As duas principais operadoras de telefonia fixa, Oi e Telefonica, têm seus próprios braços móveis, Oi e Vivo/TIM, respectivamente. A GVT, por outro lado, não tem um braço móvel. Por isso, se tornou a grande prejudicada nesse sistema de tarifação, pois seus usuários pagam altas tarifas de interconexão com as outras redes e ela própria não tem como contratacar, pois não tem operadora móvel para cobrar tarifa de interconexão das demais, nem pode dar desconto nas ligações dentro do próprio grupo.

A GVT reclamou do desequilíbrio à ANATEL e ao CADE. Apesar de a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE/MJ) 1 ter concluído que o valor elevado do VU-M constituía uma ação anticompetitiva de três operadoras de telefonia celular (Vivo, Claro e TIM) para elevar os custos das rivais, o Tribunal da Concorrência 2 entendeu não caber intervenção do órgão. Isto porque as tarifas de interconxão são reguladas pela ANATEL, e as operadoras não estavam desrespeitando os limites de valor impostos pela agência reguladora. Apenas estavam fixando tarifas de interconexão no limite máximo fixado pela ANATEL. Em função disso, como será mostrado adiante a ANATEL anunciou maior rigor no controle de tarifas de interconexão para a terminação de chamadas da telefonia móvel.

Note-se que no estágio inicial de implantação da telefonia móvel uma elevada tarifa de interconexão entre linhas fixas e móveis cumpria o importante papel de estimular a expansão da rede móvel. Imagine uma situação inicial em que poucas pessoas usam telefone celular e quase todo mundo usa telefone fixo. A imposição de uma VU-M encarece a ligação de fixo para móvel. Assim, se eu quero falar com uma das poucas pessoas que tem telefone móvel eu pagarei mais caro, o que me estimularia a ter uma linha móvel. Ao mesmo tempo, como visto acima, o VU-M é um poderoso instrumento para que as empresas de telefonia móvel ofereçam condições atrativas para atrair clientes a uma linha móvel (aparelhos baratos, ligações gratuitas entre linhas da mesma rede, etc.). Isso ajudou na rápida expansão da telefonia móvel, ao atrair um grande número de consumidores para essa modalidade de telefonia.

Todavia, o Brasil, assim como a grande maioria dos países, já ultrapassou essa fase inicial de consolidação da telefonia móvel, de modo que o ônus imposto à telefonia fixa, para incentivar a móvel, torna-se menos relevante. Em dezembro de 2013 havia 271,1 milhões de linhas móveis, representando 136,45 celulares por 100 habitantes3. Estes números sugerem que os benefícios dos subsídios cruzados entre linhas fixas e móveis seriam muito menores que no passado, quando era importante ampliar a rede móvel, gerando economias de escala e impondo concorrência à telefonia fixa.

Este problema está longe de ser exclusividade brasileira, tendo ocorrido em todos os países que usam o sistema de quem chama paga. Nesse sentido, os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) realizaram grandes esforços nos últimos anos para reduzir a tarifa de interconexão da telefonia móvel. A Australian Competition and Consumer Commission (ACCC) desde 1997 supervisiona as tarifas de terminação de chamadas em operadoras móveis. A Comissão Européia em fevereiro de 2003 incluiu a terminação de chamadas das móveis no rol de preços que as autoridades reguladoras nacionais européias deveriam regular.

Como resultado destes esforços, o Relatório da OCDE de 20124 indica que entre 2006 e 2011 houve uma queda média de 53% nas tarifas de terminação de móveis dos países da OCDE.

No Brasil, após uma década de pouco movimento da ANATEL no assunto, resolveu-se seguir a experiência dos países desenvolvidos e definir um cronograma mais significativo de queda da VU-M. Entre 2010 e 2015, prevê-se uma queda de cerca de 62% da VU-M. Na região I do Plano Geral de Outorgas, por exemplo, a VU-M média passaria de R$ 0,42285 por minuto em 2010 para R$ 0,160908 em 2015. O padrão de queda nas outras duas regiões é bem similar. A introdução de um modelo de custos em muito ajudaria a calibrar estas tarifas de forma adequada.

Em resumo, a tarifação de terminação de chamadas constitui um monopólio da operadora a qual o usuário chamado está conectado. Este usuário que recebe a chamada é em geral pouco elástico ao preço de terminação, gerando espaço para exercício de poder de mercado pela operadora. De fato, poucos indagam a operadora, quando escolhem seu plano de celular, qual a tarifa que quem chama paga.

A elevada tarifa de terminação de chamadas no Brasil, a VU-M, gerou várias distorções, entre elas um significativo diferencial entre o custo das chamadas realizadas dentro e fora de uma mesma rede. Isto distorce a concorrência em favor de operadoras grandes ou reduz a escolha dos consumidores, forçando-os a aderir à operadora usada por seus interlocutores frequentes.

Há várias formas de contornar o problema como adotar, pelo menos em parte, i) o regime de quem recebe paga (Receiving Party Pays-RPP) adotado nos EUA, ii) regime de Bill and Keep no qual as operadoras não pagam (ou pagam apenas a partir de certo percentual de diferença entre chamadas originadas e recebidas) interconexão entre si; iii) regular mais vigorosamente as tarifas de terminação em móveis, inclusive com base em uma metodologia de custos.

A ANATEL (2012) optou por uma combinação de ii e iii. Introduziu um bill and keep parcial temporário na relação de interconexão entre operadoras móveis com (Oi, Vivo, TIM e Claro) e sem (todas as outras) Poder de Mercado Significativo, inicialmente na proporção de tráfego de 80/20% e depois na proporção 60/40%. O Bill and Keep entre operadoras móveis com e sem PMS desapareceria após um período de transição. Ademais, a ANATEL definiu um cronograma de redução da VU-M até 2016, que vale para todas as relações de interconexão com terminação em móvel quando se prevê a adoção de uma metodologia de custos.

Acreditamos que o órgão regulador está na direção correta, sendo que o modelo de custos, se apropriadamente implantado, poderá representar grande avanço no tratamento desta importante questão regulatória em telecomunicações. Antes tarde do que nunca.

_______________

1 Ver www.cade.gov.br/temp/D_D000000515371906.pdf
2 Processo Administrativo 08012.008501/2007-91Ver www.cade.gov.br/temp/D_D000000756991343.pdf
3 Os dados do Brasil foram extraídos do site da Telecom, www.teleco.com.br
4 New OECD Report released on developments in mobile termination rates.

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O que é o Plano Brasil Maior? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2029&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-e-o-plano-brasil-maior Wed, 23 Oct 2013 12:11:58 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2029 I) Introdução

O governo atual já adotou três políticas industriais. O Plano Brasil Maior (PBM) do início do governo Dilma sucedeu a Política de Desenvolvimento Produtivo (a PDP), de 2008, e a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), de 2004.

O objetivo deste artigo é fazer uma radiografia dos tipos de medidas do PBM.

II) Objetivos e Diretrizes do Plano Brasil Maior

O PBM está organizado de acordo com cinco “Diretrizes Estruturantes”(DEs).

1)    Fortalecimento das cadeias produtivas com “enfrentamento” do processo de substituição da produção nacional em setores industriais intensamente atingidos pela concorrência das importações.

2)    Ampliação e Criação de Novas Competências Tecnológicas.

3)    Desenvolvimento das Cadeias de Suprimento em Energias.

4)    Diversificação das Exportações e Internacionalização Corporativa.

5)    Promoção de produtos manufaturados de tecnologias intermediárias com consolidação de competências na economia do conhecimento natural.

A Diretriz Estruturante 1 (DE 1) indica uma postura mais reativa à concorrência de importados. As DEs “2” e “4” são as mais associadas a uma política industrial centrada na inovação, o que é considerado uma intervenção mais adequada. A DE 3 diz respeito às questões energéticas/ambientais, não sendo exatamente uma política industrial. A DE 5 é a mais confusa, pois é uma “consolidação de competência na economia do conhecimento natural”, com o objetivo de “ampliar o conteúdo científico e tecnológico dos setores intensivos em recursos naturais”.

Sugere-se que se aplicará ciência e tecnologia às áreas mais extrativas ou agrícolas. No entanto, os exemplos principais de setores citados são comércio e serviços, o que deixa dúvida sobre o seu real propósito.

O PBM também apresenta uma “dimensão sistêmica”, “de natureza horizontal e transversal”. Isto quer dizer medidas cujos benefícios valem para todos ou grande parte dos setores. Esta dimensão sistêmica orientaria ações para “reduzir custos, acelerar o aumento da produtividade e promover bases mínimas de isonomia para as empresas brasileiras em relação a seus concorrentes internacionais”. Aqui se misturam elementos de incremento da eficiência com uma linguagem que pode sugerir simplesmente mais protecionismo.

A “dimensão sistêmica”, por sua vez, estaria conectada à questão da inovação ao buscar “consolidar o sistema nacional de inovação por meio da ampliação das competências científicas e tecnológicas e sua inserção nas empresas”.

A conexão destas dimensões com cada medida concreta do PBM não é muito clara. Menos evidente ainda é como este conjunto de medidas respeita as DEs e se articula entre si de forma a compor esta última dimensão sistêmica. Ou seja, não se vislumbra no PBM um plano integrado de política industrial.

III) PBM Setorial

O PBM Setorial, assim como as medidas anteriores de política industrial, constitui um plano com ênfase em medidas setoriais, o que lhe dá um perfil de uma política industrial clássica. Foram “eleitos” dezenove setores a receber estímulos especiais. São um total de 287 medidas distribuídas conforme o quadro abaixo.

Quadro I – Distribuição do Quantitativo de Medidas segundo os Setores do PBM

Quase ¼ das medidas do PBM são direcionadas à agroindústria. Este foco justamente no setor com reconhecido sucesso exportador pode indicar que o PBM é mais “seguidor” do que “definidor” dos setores economicamente mais competitivos. Em seguida vêm os setores automotivo (10% das medidas) com 29 medidas, e o complexo da saúde (também 10%). Merece destaque também a ênfase no setor de defesa, aeronáutica e espacial, com 9,76% das medidas (28), muito na esteira do bom desempenho do cluster de São José dos Campos com proeminência da Embraer. Por fim, bens de capital com 8,36% das medidas (24) e o setor de tecnologia da informação e complexo eletrônico (TICs) com 8,01% (23) têm papel destacado, em linha com as políticas industriais clássicas.

O PBM, tal como a PDP, vai além de uma política industrial strictu sensu, abarcando comércio atacadista e varejista e serviços. No complexo da saúde, por exemplo, há medidas que dizem respeito ao serviço e não à atividade manufatureira. Os itens 15,17,18 e 19 da tabela acima não pertencem à indústria.

Naturalmente, a quantidade de medidas constitui indicador imperfeito da avaliação da ênfase do PBM, até porque não mede cifras envolvidas de investimento/gasto público ou renúncia fiscal. No entanto, estes números não parecem destoar do que se ouve do discurso oficial sobre a importância relativa dos setores.

IV) Os Tipos de “Medidas” do PBM

As medidas do PBM, em grande parte, integram a agenda natural do respectivo órgão responsável. Isso quer dizer que é possível que boa parte das medidas não tenha sido construída de cima para baixo, como sugere o governo, mas de baixo para cima. As “Diretrizes” do PBM, portanto, seriam mais uma consequência da agenda de trabalho existente dentro de cada ministério do que um farol da atual política industrial brasileira.

Classificamos dois tipos de “medidas” do PBM. Uma parte delas é, na verdade, declaração de intenções,  “objetivos” ou simples “agendas de trabalho” para se fazer algo. Por exemplo, no caso de serviços, há a medida que na verdade é um objetivo muito vago de “implementar projetos direcionados ao setor de serviços”. No caso de “bens de capital’ também há a “medida” de “identificar oportunidades nos segmentos que compõem a cadeia produtiva dos bens de capital”, que naturalmente é mais uma agenda de trabalho. A medida concreta pode decorrer deste trabalho de identificação, mas não se pode confundir com a própria medida.

Há inclusive a programação de estudos ou simplesmente organização de simpósios e seminários. Por exemplo, no caso do setor “serviços” há a “medida” de “elaborar atlas de serviços” e “realizar o II Simpósio de Políticas Públicas para Comércio e Serviços”. As mesmas se repetem para o setor “comércio”, sendo o Simpósio, inclusive, o mesmo (Comércio e Serviços).

Desta forma, separamos o que consideramos como “medidas” do que seriam objetivos, intenções ou agendas, definidos como “não-medidas”.

Quadro II – Medidas e Não Medidas do PBM

Das 287 “medidas” do PBM, 69 ou 24,04% seriam objetivos, estudos ou agendas. Em alguns setores, chega-se a ter mais “não-medidas” do que “medidas” como são os casos do comércio (60%) e serviços logísticos (57,14%). Na indústria de mineração (50%) e no complexo da saúde (48,28%) também há um percentual significativo de “não medidas”. Setores com intervenção mais objetiva por não se verificarem “não medidas” seriam papel e celulose, higiene pessoal, perfumaria e cosméticos e construção civil.

V) Novidades, Extensões e Ampliações nas Medidas do PBM

Nem todas as medidas são realmente novas. Há aquelas que apenas estendem para outros setores, regimes especiais ou benefícios que já existem ou simplesmente ampliam ou mantêm o que já existe no próprio setor. Assim, fizemos uma divisão das medidas em “novos”, “extensões” e “manutenção/ampliação”, gerando o quadro III.

Quadro III – Novidades, Extensões e Ampliações do PBM

Cumpre esclarecer que tudo que não se explicita constituir extensão ou ampliação, foi considerado como “novo”. Implementações de programas que já existem, regulamentações de leis ou decretos também pré-existentes, são todos considerados “novos”. Assim, uma definição mais restritiva do que se considera “novo” pode reduzir bastante o número de novidades.

São 60 medidas (21,51%) que correspondem a extensões para outros setores (8,96%) ou manutenções/ampliações do que já existe (12,54%). Papel e celulose é o setor com mais manutenções/ampliações do que já existe, e petróleo, gás e naval é o que tem percentualmente mais extensões (60%). As novidades, de qualquer forma, compreendem quase 80% do programa.

VI) Medidas com Viés Protecionista

Das 287 medidas setoriais do PBM, 40 (13,93% do total de medidas) contém viés protecionista. O setor de tecnologia da informação (TIC) é o que mais contém medidas protecionistas alcançando 22,5% do total deste tipo (9). Seguem os setores automotivo (8) e bens de capital (8) com 20% das medidas protecionistas cada, seguidos de defesa, aeronáutica, espacial (6) com 15% do total.

Quadro IV Quantitativo de Medidas com Viés Protecionista do PBM

VII) As Medidas de Fomento

O PBM inclui medidas de desoneração tributária e de crédito subsidiado, além do que chamamos de provisão de bens coletivos para um determinado setor como, por exemplo, a implantação de centro de treinamento e qualificação profissional em equipamentos médidos e hospitalares e produtos farmacêuticos. Sua distribuição setorial no PBM é apresentada abaixo.

Quadro V – Medidas do PBM de Desoneração Tributária, Crédito Subsidiado ou Provisão de Bens Coletivos

A grande parte das desonerações (pouco mais de ¼ com 12 medidas) do PBM está na agroindústria, seguida do setor automotivo (19,15% com 9 medidas) e TICs (17,02% com 8 medidas). No caso de crédito subsidiado, o setor com mais medidas é o de “energias renováveis” que representa 15,63% do total. O setor com maior percentual de medidas de provisão de bens coletivos, cujos efeitos tendem a ser apropriados de forma menos particularizada, é a agroindústria, que representa quase metade (48,05%) do total deste tipo de medida.

Uma grande parte das medidas do PBM está diretamente associada à inovação, investimento, produção, exportação ou emprego. Para efeito do esforço de classificação, colocamos o item “produção” de forma residual, ou seja, toda medida de fomento que não for para apoiar inovação, investimento, exportação e emprego/qualificação.

Quadro VI – Variável Fomentada no PBM

Dessas medidas de fomento, pouco mais de 1/3 (34,59% ou 55 medidas) são direcionadas às inovações, 15,09% para investimentos (24), 20,13% (32) para produção, 23,27% (37) para exportações e 6,92% para emprego e qualificação de mão de obra. Ou seja, há, de fato, alguma ênfase em inovação no PBM, mas que está longe de ser absoluta, pois restam 2/3 de medidas com outros objetivos de fomento.

Nos setores fomentados, em geral, não se constata um foco em uma única variável fomentada. Por exemplo, em petróleo, gás e naval são 20% das medidas para inovação, 20% para investimento, 40% para produção e 20% para exportação. No complexo da saúde há uma maior concentração de medidas (50%) destinadas à inovação, mas há também quase 30% em produção. Nos TICs há proeminência em inovação (50%) como esperado, secundado por medidas em favor do investimento (1/3). Não havendo um foco, torna-se mais difícil definir qual o objetivo principal da política industrial nestes setores. O objetivo genérico parece ser simplesmente o “crescimento” e “desenvolvimento” dos setores contemplados.

De outro lado, em energias renováveis em que se esperava mais inovação, não há nenhuma medida para tal objetivo, sendo metade em investimento e metade em exportações. Será mais relevante exportar do que inovar neste setor?

Curiosamente, todas as medidas de fomento na construção civil são na área de inovação. A maior parte das medidas de inovação vão para a agroindústria (15). Depois da construção civil, o setor com maior percentual de medidas de fomento baseados em inovação é o de defesa, aeronáutico, espacial seguido de, também curiosamente, couro, calçados, têxtil, confecções, gemas e joias e móveis.

VIII) Conclusões

As principais críticas ao PBM são comuns às duas políticas predecessoras. Não há exigência de contrapartida e nem desempenho dos beneficiários, com ausência de qualquer sinalização de que as vantagens serão removidas no caso de uma má performance. Na verdade, não está claro quais variáveis são relevantes em cada setor para o PBM dado, no mais das vezes, haver mais de uma variável sendo fomentada. É possível que o objetivo seja simplesmente “fazer crescer” o setor.

Há pelo menos ¼ das medidas que classificamos como “não medidas” por serem mais objetivos e estudos do que ações concretas. A grande maioria das medidas (80%) são “novas”. Outros critérios mais restritivos de “novidade” podem, no entanto, diminuir este percentual.

Quase 14% das medidas do PBM apresentam viés protecionista. Canedo-Pinheiro (2013) e Almeida (2013) realçam que um dos principais fatores explicativos para o fracasso das politicas industriais brasileiras anteriores teria sido a ênfase em proteção excessiva por tempo indeterminado. Menezes Filho e Kannebley Junior (2013) mostram que a produtividade total dos fatores no país aumentou em período de relativa abertura econômica (1990/97) e declinou no período de fechamento (1985/90). Assim, o conjunto de medidas protecionistas pode acabar tendo um efeito oposto ao esperado sobre o crescimento econômico.

A crítica fundamental parece ser o fato de que o PBM se baseia apenas em incentivos positivos (a cenoura), mas não em negativos (o chicote), originando uma estrutura assimétrica. A criança ganha o doce quando se comporta bem, mas não deixa de jogar vídeo game quando se comporta mal. Pior, a conexão dos incentivos positivos com a performance é fraca. Se a criança ganha sempre o doce, independente de seu comportamento, por que não prosseguir na malcriação?

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Referências

Almeida, M.: “Padroes de Politica Industrial: a velha, a nova e a brasileira”. In “ O Futuro da Industria no Brasil”. Eds. Bacha, E. e Bolle, M. B. Civilizacao Brasileira. Rio de Janeiro. Brasil. 2013.

Canedo-Pinheiro, M.: “Experiencias Comparadas de Politica Industrial no pos-guerra: licoes para o Brasil”. In “Desenvolvimento Economico: Uma Perspectiva Brasileira”. Orgs: Veloso, F.; Ferreira, P.C.; Giambiagi, F. e Pessoa, S. Editora Campus Elsevier, 2013.

Menezes Filho e Kannebley Junior, S. : “Abertura comercial, exportacoes e inovacoes no Brasil”. In “Desenvolvimento Economico: Uma Perspectiva Brasileira”. Orgs: Veloso, F.; Ferreira, P.C.; Giambiagi, F. e Pessoa, S. Editora Campus Elsevier, 2013.

Plano Brasil Maior: www.brasilmaior.mdic.gov.br

Politica de Desenvolvimento Produtivo: http://www.mdic.gov.br/pdp/index.php/sitio/inicial

Politica Industrial, de Comercio Exterior e Tecnologica: http://investimentos.mdic.gov.br/public/arquivo/arq1272980896.pdf

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Em que situações a agência reguladora deve intervir na venda de planos? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1659&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=regulando-a-qualidade-do-servico https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1659#comments Tue, 18 Dec 2012 12:05:03 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1659 (Analisando os casos de Planos de Saúde e Telefonia)

I) Regulação da Qualidade: ReguladorX Usuário

No início de outubro de 2012, a Agência Nacional de Saúde (ANS) suspendeu a venda de 301 tipos de planos de saúde de 38 operadoras. Também a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) suspendeu em meados de julho de 2012, a venda de novas linhas de celulares de três operadoras, cada uma em estados específicos. Em novembro, esta agência novamente suspendeu um plano promocional de uma operadora que permitia ligações ilimitadas pelo valor de R$ 0,50 diários[3].

O que ambos os movimentos, em planos de saúde e telefonia celular, têm em comum é a motivação das respectivas agências regulatórias em garantir a qualidade dos serviços. No caso dos planos de saúde foram constatados sistemáticos descumprimentos dos prazos máximos para marcação de consultas, exames e cirurgias. No caso da telefonia, questionou-se a dificuldade em se fazer chamadas e a sua qualidade.

Nosso ponto principal aqui é discutir se este tipo de intervenção é cabível, pois se trata de bloquear não apenas a atividade da empresa, mas também o exercício da livre escolha pelo usuário na pactuação de um contrato. Como se supõe que dois agentes econômicos racionais apenas contratam entre si se ambos forem beneficiados, isto implica que a proibição da comercialização de novos planos poderia comprometer potenciais ganhos de bem-estar tanto de operadoras como de usuários.

A premissa básica desta assertiva é que os dois agentes estão realizando uma transação bem informada, estando muito claro o que ganham e o que perdem. Presume-se que o usuário conheça minimamente a qualidade do serviço que está adquirindo. Se este premissa é quebrada, no entanto, não é mais garantido que o usuário esteja melhor do que antes do contrato, e os efeitos positivos esperados da livre pactuação do contrato ficam comprometidos.

Como veremos, na prática, a premissa de plena informação do usuário é significativamente quebrada no segmento de planos de saúde. Já no caso de telefonia celular, o grau de informação do usuário é bem maior, lançando dúvidas razoáveis sobre se a proibição da comercialização de planos aumenta ou diminui bem-estar.

A falta de informação do usuário dos serviços regulados é resultado do custo da informação. A começar pelo tempo que o usuário precisa gastar para realmente entender todas as cláusulas dos contratos de serviço, seja em planos de saúde, seja em telefonia. Não basta apenas ler o contrato, mas compreendê-lo, o que para ser realizado plenamente pode depender até de consulta a um especialista. Há custo da informação também em procurar se informar como é a prática da operadora para além do que está escrito no contrato. Ainda que não precise gastar dinheiro, o usuário vai gastar tempo, o que, do ponto de vista econômico, é custo do mesmo jeito. Quanto mais detalhado o plano de serviço, mais custosa é a tarefa de entendê-lo, sendo racional que o usuário limite o seu processo de aquisição de informação antes de estar suficientemente informado para uma decisão plenamente fundamentada. Por isso, o usuário decide com base em uma “racionalidade limitada”, ponderando os ganhos e os custos da informação.

De qualquer forma, mesmo havendo falta de informação ex-ante do usuário, pode não se justificar uma intervenção se o usuário se deparar com um baixo custo de troca ex-post da operadora. Isto porque uma boa capacidade de trocar rapidamente permitiria uma tempestiva correção de eventual erro de escolha da operadora.

Mas, mesmo com um baixo custo de troca, o problema da falta de informação do usuário pode persistir por um razoável período de tempo, mesmo após a aquisição do plano, comprometendo a tempestiva correção do erro. Caberia investigar, portanto, quão rápido o usuário aprende sobre aquele plano de serviço. Quanto menos vezes o consumidor puder verificar a qualidade do serviço em seu plano, mais longo este “aprendizado” e mais extensa a manutenção de um plano que reflete uma decisão equivocada baseada em informações parciais. A naturalmente baixa capacidade de verificar a qualidade do serviço de planos de operadoras as quais não seja usuário também compromete o valor desta “curva de aprendizado” para efeito da realização de decisões bem informadas. Ou seja, aprender a avaliar uma operadora não implica saber avaliar todas operadoras sem usá-los.

Pior, as variáveis de qualidade das operadoras podem variar de forma significativa ao longo do tempo, o que implica que o valor informacional da experiência pretérita com o plano pode se reduzir muito rapidamente.

Desta forma, a intervenção da agência na linha da proibição da comercialização de planos de serviço fará tão mais sentido quanto: i) maior a assimetria de informação do consumidor em relação à qualidade do serviço ex-ante, o que está associado a um custo alto desta mesma informação; ii) mais lenta a “curva de aprendizado” ex-post do usuário no que diz respeito ao próprio plano em relação aos demais, o que também depende do custo da informação; e iii) maiores os custos de troca de operadora ex-post após o usuário constatar seu erro de decisão. De outro lado, o usuário terá melhores condições de decidir, sem o apoio do regulador, quando estes três itens lhe forem favoráveis. O escopo da intervenção deveria ser calibrado principalmente para influenciar estes elementos e facilitar não só o processo decisório ex-ante do usuário, mas também sua capacidade de corrigir ex-post suas escolhas.

Um último ponto importante é que a qualidade dos serviços nos dois segmentos responde à capacidade dos agentes de lucrarem. Em qualquer setor da economia, o objetivo do investimento em qualidade é deslocar para cima e para a direita a curva de demanda, permitindo aumentos na quantidade demandada e/ou no preço, incrementando a receita[4]. Quando há regras regulatórias que mitigam a capacidade de os próprios operadores se beneficiarem dos investimentos em qualidade, este incentivo diminui. Em geral, há constrangimentos à lucratividade, como nos casos em que há controle do regulador diretamente sobre as tarifas ou sobre a capacidade de discriminar preços.

No caso dos planos de saúde, por exemplo, o art. 15 da Lei 9.656 estabelece restrições para reajustes diferenciados com base nas faixas etárias.  O parágrafo único do mesmo artigo, em especial, veda variação discriminatória para consumidores com mais de sessenta anos de idade. Ou seja, é possível também observar problemas de qualidade por mudanças regulatórias que permitam que a rentabilidade responda às variações de qualidade, o que implicaria flexibilizar os diversos tipos de controles de tarifas e de discriminação de preços. Esta desregulamentação, no entanto, pode afetar outros objetivos regulatórios, o que deve ser ponderado em uma análise custo/benefício.

A ameaça de outros competidores também incentiva o operador a incrementar voluntariamente sua qualidade, seja para proteger sua base de clientes, seja para capturar usuários de terceiras operadoras. Assim, medidas pró-competição também podem se tornar medidas pró-qualidade do serviço. Se a informação do consumidor, no entanto, for escassa, a concorrência pode ter efeito negativo sobre a qualidade. Nesse caso, os efeitos positivos da concorrência apenas ocorrerão se suplementados por maior garantia de informação ao usuário. Veremos ser este um ponto relevante no setor de planos de saúde.

Na seção II analisamos a regulação de qualidade no setor de planos de saúde. Na seção III introduzimos a discussão sobre a regulação de qualidade em telefonia celular, comparando-a com a de planos de saúde. A seção IV descreve a atual estratégia de ANS e ANATEL acerca da construção e divulgação de indicadores comparativos de qualidade. A seção V conclui.

II) A Regulação da Qualidade no Setor de Planos de Saúde

No setor de planos de saúde, há uma grande dificuldade dos usuários conhecerem de antemão a qualidade dos serviços de saúde das várias operadoras no mercado. Sua capacidade de avaliação, no momento da aquisição do plano, está baseada na leitura do contrato, nas informações prestadas pelo vendedor e pelo testemunho de outros usuários com suas experiências particulares sobre o serviço.

Os contratos de planos de saúde incluem definições e termos que são, em geral, de difícil compreensão para o usuário médio, o que se aduz à complexidade usual dos contratos de serviços em geral. Os graus de cobertura dos vários planos disponíveis tendem a não ser transparentes para este usuário médio.

A Lei 9.656, de 1998, que dispõe sobre a regulação dos planos de saúde privados no Brasil, procura atenuar este problema. No art. 16, por exemplo, a lei dispõe de alguns dispositivos mínimos que devem constar do contrato, como períodos de carência, a relação das faixas etárias com os percentuais de reajuste do plano, os eventos cobertos e os excluídos, área geográfica de abrangência, dentre outros. Fundamentais são também os artigos 10 e 12, em que se define o plano-referência de assistência à saúde com algumas exigências mínimas sobre as coberturas dos planos. Isto confere ao usuário alguma segurança sobre o básico que está sendo oferecido contratualmente em cada plano, diminuindo o espaço do que poderia não estar coberto sem o usuário perceber.

Assim, por exemplo, se o plano incluir atendimento ambulatorial, deve cobrir “consultas médicas, em número ilimitado, em clínicas básicas e especializadas, reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina” e “serviços de apoio diagnóstico, tratamentos e demais procedimentos ambulatoriais, solicitados pelo médico assistente”. Já quando o plano cobrir internação hospitalar, não pode limitar o prazo de internação, valor máximo e quantidade, incluindo centro de terapia intensiva, ou similar, honorários médicos, serviços gerais de enfermagem e alimentação, exames complementares, medicamentos, anestésicos, gases medicinais, transfusões, quimioterapia e radioterapia, toda e qualquer taxa, incluindo materiais utilizados e remoção do paciente e despesas de acompanhante, no caso de pacientes menores de dezoito anos. Ou seja, a legislação é calibrada para evitar “surpresas” desagradáveis ao usuário nos momentos em que vai utilizar o seu plano.

Note que, de um lado, tais dispositivos realmente engessam o espaço contratual dos planos de saúde, constrangendo o atingimento de arranjos pareto-eficientes para as partes. Podem-se imaginar vários casos. O usuário pode acreditar que seu risco de câncer é muito baixo por não haver histórico familiar, o que justificaria a remoção do procedimento de quimioterapia em troca de um plano mais em conta. Outro usuário pode, por motivos religiosos, não aceitar transfusões de sangue e preferir um plano mais barato que exclua este item. Em ambos os casos, a legislação brasileira não permite que o usuário e o plano de saúde negociem estes tipos de ajustes.

De outro lado, tais limitações da liberdade de contratação também mitigam os problemas de assimetria de informação do usuário, que pode ter como dada a cobertura de procedimentos para os quais não precisará investigar as entrelinhas do contrato, se é que seria capaz de fazê-lo a custos suportáveis.

Os efeitos líquidos no bem-estar das restrições da legislação brasileira são teoricamente ambíguos, mas acreditamos que em função do elevado problema de assimetria de informação existente no setor, a previsão legal de pelo menos algumas exigências mínimas deve ter efeitos positivos.

Enquanto os problemas de assimetria de informação do usuário acerca do contrato podem ser minimamente atenuados pelas vias legal e infra-legal, os problemas de assimetria de informação sobre as diversas dimensões do que será a qualidade do serviço prestado pelo plano de saúde no dia a dia já dependem fundamentalmente das informações de outros usuários que já usaram o serviço. A liberação de um exame ou uma cirurgia demoram muito? O plano bloqueia a realização de procedimentos com muita frequência e sem quaisquer esclarecimentos? Com certeza, há um conjunto grande de fatores relacionados à qualidade do plano que vão além da letra do contrato e que ocorrem bastante na prática.

A qualidade destas informações de terceiros sobre a conduta da operadora para efeito de embasar a escolha usuário, no entanto, é evidentemente sempre muito imperfeita. Os amigos consultados podem ter utilizado planos com coberturas distintas daquela demandada ou podem ter usado serviços diferentes daqueles mais relevantes para o consumidor que requer a informação. A cobertura de uma operadora, na prática, pode ser melhor em algumas especialidades, mas não em outras. Assim, a experiência de outros usuários, apesar de ter um certo valor para informar a decisão do usuário, sempre pode ser muito limitada em função das potencialmente profundas diferenças nas preferências e necessidades de cada consumidor[5].

Como já destacado, estes problemas informacionais podem ser atenuados caso os custos de troca do plano sejam baixos. Ou seja, se o custo de troca for baixo, mesmo que o usuário tenha grande probabilidade de errar, sua capacidade de corrigir este erro com baixo custo é alta.

Uma forma de reduzir os custos de troca neste segmento foi a introdução pela ANS da portabilidade do plano de saúde, a qual permite ao consumidor trocar de operadoras sem carências[6]. A mera possibilidade de se exercer a portabilidade já constitui um indutor de qualidade no setor de planos de saúde. Representa uma ameaça de punição pelo próprio consumidor pela baixa qualidade da operadora. É o usuário sendo “empoderado” pela regulação para se aproveitar da concorrência e exercer parte da função de “regulador da qualidade” ele próprio.

O problema é que ainda assim pode haver significativos custos de troca. Por exemplo, o consumidor pode estar na carência do plano original, o que dificulta a portabilidade. Outro ponto é que a portabilidade apenas pode ser realizada entre planos considerados compatíveis, o que limita a capacidade de o usuário reestruturar sua cobertura em outra seguradora.

Um custo de troca possível de grande relevância para usuários com mais de cinquenta (50) anos é definido pela regra regulatória do parágrafo único do art. 15 da Lei 9.656, de 1998. São restrições de reajustes diferenciados para indivíduos com mais de sessenta anos de idade, que participarem do plano há mais de 10 anos. Caso o usuário troque de operadora neste meio tempo perde esta vantagem.

Por fim, o exercício do direito de portabilidade requer mais pesquisa sobre as opções existentes, o que representa custos para o usuário que podem dissuadi-lo de fazer uma possível troca. Assim, a regulação da portabilidade de planos de saúde, apesar de muito útil, não elimina todos os custos de troca.

Mesmo após a aquisição do plano de saúde, o usuário pode levar anos para perceber que o serviço adquirido não corresponde às suas expectativas, pois se limita a consumir serviços simples como consultas e exames. Justamente quando ele mais necessita do plano como, por exemplo, nos casos de cirurgias mais delicadas e internação, pode ser revelado que a qualidade de serviço é inadequada. Imagine o usuário que se depara com uma fila de seis meses para uma cirurgia de coração! Como o usuário médio não deverá ter tantas experiências deste tipo por um longo período, sua curva de aprendizado pessoal sempre será naturalmente muito limitada, o que faz com que o problema de assimetria de informação se prolongue indefinidamente. O consumidor apenas se dá conta e percebe que comprou gato por lebre depois de muito tempo e tarde demais.

Ou seja, uma baixa capacidade de perceber a qualidade do serviço, seja com base na experiência de outros usuários, seja na própria, associada à verificação de custos de troca relevantes torna as intervenções em planos de saúde, seja pelas exigências mínimas da legislação, seja pela proibição temporária da comercialização, uma intervenção potencialmente benéfica à sociedade.

Não menos importante, a ANS disponibiliza em seu sítio na internet “Dicas” para a escolha do plano de saúde[7], o que orienta o usuário em como fazer uma escolha bem informada de seu plano de saúde. Por exemplo, a ANS chama a atenção para planos aparentemente baratos que, por serem comercializados como planos empresariais, podem trazer verdadeiras “arapucas” para o usuário.

Cabe destacar que a intervenção do regulador não representa obrigatoriamente induzir o usuário a escolher as operadoras de melhor qualidade. Poderão acabar sendo escolhidos pelo usuário racionalmente prestadores de qualidade inferior. O ponto importante é que esta escolha ocorra não por falta de informação do usuário, mas por serem planos mais baratos. Ou seja, o usuário pode estar escolhendo planos qualitativamente piores porque quer ou precisa pagar preços menores, sabendo  que terá uma cobertura parcial ou um serviço de qualidade limitada.

O problema é que, como a variável “preço” é usualmente mais observável ou verificável pelo usuário[8] do que a qualidade do serviço, há uma tendência de se optar por combinações com preços baixos, mas com uma superestimativa da qualidade. Nesse contexto, a competição sem informação pode estimular uma verdadeira corrida por preços menores que requererão custos menores, os quais devem sacrificar a qualidade do serviço (race to the bottom) abaixo do razoável. Quanto mais se informar o consumidor, mais se assegura que aquele que estiver optando por um serviço mais barato estará consciente que a qualidade adquirida é menor e também de quanto ela é menor. O importante é o regulador capacitar mais e mais o usuário a escolher a sua melhor relação preço-qualidade[9]. Este fenômeno do race to the bottom nos parece particularmente válido para o setor de planos de saúde dada a severidade do problema informacional[10].

Aqui cabe uma palavra sobre o papel da concorrência neste setor. De um lado, o número de operadoras e planos disponíveis é bastante significativo. Isto implica mais concorrência o que em geral beneficia o consumidor. Ao mesmo tempo, no entanto, a grande quantidade de operadores, ao ampliar o menu de escolhas, exacerba a dificuldade do usuário em escolher. Ou seja, a grande concorrência do setor amplia o problema informacional. No limite, esta grande competição pode levar a uma redução de bem-estar na medida em que o problema informacional acirra de forma muito significativa este race to the bottom. São gerados preços muito baixos com base em uma diminuição da qualidade pouco observável pelos usuários. As operadoras de melhor qualidade não conseguem suportar os custos maiores dos seus serviços, sendo obrigadas a acompanhar a redução de preços das outras empresas.

Este é um caso interessante em que o vigor da concorrência no setor, além de não ser suficiente para maximizar o bem-estar, pode atrapalhar quando desacompanhada de um adequado suprimento de informações ou mesmo de uma garantia mínima da agência reguladora de que as operadoras em serviço satisfazem um mínimo padrão de qualidade.

Apesar de não ambicionarmos uma avaliação completa da atuação e da legislação da ANS, entendemos que as políticas calibradas para reduzir os problemas de assimetria de informação e custos de troca (portabilidade) aqui reportados apontam na direção certa, sendo uma das principais (senão a principal) linha de ação que uma agência reguladora deveria seguir no setor de planos de saúde.

III)             A Regulação da Qualidade no Setor de Telefonia Móvel[11] e a Comparação com Planos de Saúde

O interessante de se juntar em uma mesma análise dois setores tão distintos como planos de saúde e telefonia celular diz respeito ao diferencial analítico nos três itens principais em cada segmento, assimetrias de informação ex-ante e ex-post e custos de troca.

Nosso ponto principal aqui é que na telefonia celular a capacidade de observação da qualidade do serviço pelo usuário tanto antes quanto depois de contratar o serviço é bem maior em relação aos planos de saúde. Primeiro, a informação prestada por outros usuários sobre a qualidade das chamadas (o que inclui a simples avaliação de se o telefone “pega”ou não) de uma operadora na mesma área geográfica tende a ser muito parecida com a experiência que o usuário terá na mesma operadora. Ou seja, a diferenciação horizontal do serviço é baixa dentro de uma mesma área geográfica. Isto incrementa o conjunto de informações ex-ante sobre o qual o usuário realiza sua escolha com base na informação alheia.

Segundo, em menos de uma semana do início do uso do serviço, o usuário já será capaz de realizar uma razoável avaliação sobre a qualidade do serviço, sinalizando uma curva de aprendizado ex-post mais rápida relativamente a planos de saúde.

Terceiro, a variável “qualidade” no serviço de voz da telefonia móvel é unidimensional. Em todos os planos oferecidos por uma operadora, a capacidade de realizar chamadas e a sua qualidade serão as mesmas. Um usuário que tenha o plano pré-pago mais barato de uma dada operadora terá a mesma probabilidade de que o seu telefone tenha sinal do que outro usuário que tenha adquirido o plano pós-pago mais caro. A qualidade da chamada também não varia entre os planos de uma mesma operadora.

Tal como na regulação de planos de saúde, a telefonia celular também conta com a portabilidade[12], o que diminui significativamente o custo de troca do usuário que constatar qualidade precária do serviço de sua operadora. Este custo de troca menor é o que permite aos usuários punir operadoras que ofertem serviço de baixa qualidade. Os valores de churn[13] da portabilidade numérica em 2010 e 2011 foram, respectivamente, de 1,76% e 1,67%[14] [15].

O maior custo de troca da telefonia celular diz respeito à frequente fidelização do usuário por período determinado, que é em geral a contrapartida por um aparelho e/ou planos mais baratos. Este custo de troca dificulta ou adia a “punição” das operadoras com menor qualidade pelo próprio usuário e pode justificar ações mais intrusivas da ANATEL em favor da garantia de qualidade. Assim, nos planos de celular em que houver fidelização, fazem mais sentido intervenções como a proibição de comercialização de planos e de introdução de novas promoções. O mesmo não vale para os planos sem fidelização.

De qualquer forma, na comparação entre planos de saúde e telefonia, é razoável postular que a justificação para a interferência da agência no caso da ANS é mais forte do que no caso da ANATEL. O usuário de telefonia móvel, de uma forma geral, tem melhores condições que o de planos de saúde de “punir” operadoras que não oferecem uma qualidade adequada. A aquisição de informação sobre a qualidade do serviço tanto ex-ante como ex-post é mais simples e mais precisa sobre o que o usuário está efetivamente demandando.

A despeito de haver uma concorrência acirrada das operadoras de celular por usuários, há um oligopólio de apenas quatro a cinco empresas[16], o que, contrariamente à profusão de operadoras do setor de planos de saúde, facilitam a comparação pelos consumidores. Neste caso, a maior concorrência não confunde o processo de escolha do consumidor no quesito “qualidade”[17].

Em síntese, o processo decisório do usuário é relativamente mais eficaz em regular a qualidade das operadoras de telefonia celular do que dos planos de saúde. Não consideramos que o fenômeno do race to the bottom descrito para o caso dos planos de saúde seja uma questão relevante na telefonia celular.

Isto não implica que a intervenção realizada na telefonia celular tenha sido inútil. Um (ou o) efeito positivo (que também vale para a intervenção nos planos de saúde) foi o fato de a proibição de venda de novos planos ter tido uma divulgação grande o suficiente para chamar a atenção dos usuários para os problemas dos serviços das operadoras, incrementando a capacidade destes realizarem decisões mais bem informadas. O que se pode questionar é se esta seria realmente a forma mais eficaz de informar o usuário.

Um aspecto distintivo, entretanto, da telefonia celular são as externalidades que problemas de qualidade das operadoras geram umas nas outras. Afinal, no caso de interconexão, uma chamada é um serviço produzido por pelo menos duas operadoras. Quando há uma chamada com interconexão entre as operadoras, o usuário pode ter dificuldades em discernir qual delas, ou se mesmo as duas operadoras, está (ão) comprometendo a qualidade da chamada. Como de praxe, tais externalidades não são internalizadas, podendo implicar um subinvestimento em qualidade. Uma das formas de corrigir este problema seria, em tese, a proibição da comercialização de novos planos.

Consideramos a magnitude deste problema, no entanto, limitada. Havendo participações de mercado razoavelmente equilibradas, cerca de 25% para cada uma das quatro grandes operadoras, o usuário sempre conhecerá muitas pessoas que possuem celulares de outras operadoras que podem reportar sua própria experiência diferenciada, especialmente nas chamadas intra-rede que isolam a qualidade específica daquela operadora. Ademais, o usuário de uma operadora com má qualidade que fala com usuários de outras três operadoras de boa qualidade terá sempre que assumir ou que o problema é das outras três e não da sua ou que o problema é de todas, incluindo a sua. Em algum momento ele deveria imaginar que é mais fácil o problema ser de uma só (a sua) do que de todas as outras  três.

Dessa forma, bem fez a ANATEL em realizar uma intervenção apenas temporária que não requeria um ajuste imediato da qualidade do serviço (tal como no caso dos planos de saúde), mas apenas o compromisso das operadoras com um cronograma de investimentos. O mais importante, no entanto, não é o cumprimento deste cronograma por parte das operadoras, mas o fato de a intervenção ter gerado informação aos usuários.

IV) Indicadores de Qualidade: “Empoderando” o Usuário para Escolher

Uma forma alternativa e ou complementar de abordar o problema é as agências investirem em indicadores de qualidade que sejam utilizados diretamente pelos usuários em seu processo de escolha. Definitivamente, as agências reguladoras têm evidentes vantagens de escala em termos de custo em relação aos usuários para coletar as informações necessárias para construir tais indicadores. Felizmente, tanto ANS como ANATEL têm investido fortemente em indicadores de qualidade, sendo estes em grande parte colocados de forma a permitir uma mais fácil comparação entre as operadoras.

A ANS divulga interessantes tabelas comparativas com os índices de reclamações das operadoras[18] de grande, médio e pequeno portes, os quais dizem respeito especialmente a problemas de coberturas dos planos[19]. O importante aqui para aprimorar o processo de escolha pelo usuário é o ranking das operadoras conforme o número médio de reclamações nos seis meses anteriores para cada 10.000 beneficiários do universo de beneficiários analisado. Por exemplo, em outubro de 2012, a operadora de grande porte com maior índice de reclamações chegou a um valor de 5,33 por cada 10.000 beneficiários nos últimos seis meses. No mesmo mês, algumas operadoras conseguiram não ter qualquer reclamação.

A ANS também divulga o Índice de Desempenho da Saúde Suplementar (IDSS)[20], mais complexo, que varia de zero a um (0 – 1) e é composto em 50% pelo Índice de Desempenho da Atenção à Saúde (IDAS); 30% pelo Índice de Desempenho Econômico-financeiro (IDEF); 10% pelo Índice de Desempenho de Estrutura e Operação (IDEO) e 10% pelo Índice de Desempenho da Satisfação dos Beneficiários (IDSB).

Se, de um lado, o IDSS é tecnicamente mais completo do que simplesmente o índice de reclamações, sua maior complexidade, de outro, o torna menos digerível para o usuário médio, o que reduz seu valor informacional. Por exemplo, um usuário menos sofisticado poderia indagar o que o Índice de Desempenho de Estrutura e Operação (IDEO) de uma operadora importa para sua decisão? Já uma quantidade de pessoas grande reclamando pode constituir algo mais inteligível para este usuário. A correta interpretação de um indicador como o IDSS pode requerer um mínimo investimento do usuário sobre o que significa e o que implica da perspectiva da escolha ótima, o que sabemos que muitas vezes não é feito (e pode nem ser racional fazê-lo a depender do custo de obtenção desta informação que varia conforme a sofisticação do usuário).

Tal política da ANS de dar transparência aos indicadores, logo à primeira página de seu sítio na internet, de forma a prover meios fáceis de comparação entre as operadoras para o usuário é muito positiva. Mais do que isso, prover informação para escolhas fundamentadas do usuário deveria constituir uma das principais linhas de ação da agência. Quanto mais a ANS divulgar tais indicadores, inclusive por outras mídias, e mais esclarecer a sociedade sobre o que eles efetivamente informam, mais o próprio usuário será capaz de realizar escolhas bem informadas e, portanto, ótimas do ponto de vista econômico.

Ainda sim a quantidade de informação embutida nos indicadores pode não ser suficiente para uma escolha plenamente bem informada e normalmente não o é. As reclamações de outros usuários podem, por exemplo, simplesmente se derivar de coberturas menos relevantes para aquele consumidor específico. Se a grande parte das reclamações está associada à cobertura de exames, mas o interesse maior deste consumidor é o ambulatório, a comparação entre planos baseada naquele indicador se verá prejudicada.

A existência de contradição entre indicadores também pode complicar ainda mais o processo decisório. Por exemplo, a operadora com o pior indicador no rank de reclamações, está entre os melhores desempenhos do IDSS. Isto apenas reflete o fato que a variável “qualidade” está longe de ser unidimensional no setor de planos de saúde e que quaisquer indicadores definidos pelo regulador inevitavelmente conterão imperfeições ou deverão capturar apenas alguns elementos daquela variável.

A ANATEL, por sua vez, divulga o Índice de Desempenho no Atendimento (IDA)[21] que apresenta o ranking das operadoras com base em um fator de reclamações, das reclamações que são reabertas, das resolvidas em até cinco dias e das resolvidas no período. Outro dado bem interessante da Anatel é a quantidade de “reclamações por motivo ofensor”, como, por exemplo, reparo, cancelamento, habilitação e cobrança (de longe, a maior de todas com mais de 1/3 do total)[22]. O problema é que a Anatel apenas divulga este último dado de forma agregada e não operadora a operadora o que prejudica a utilização da informação como insumo ao exercício de escolha do usuário. Isto porque o usuário pode dar mais valor a alguns problemas, por exemplo, cobrança errada, do que outros, por exemplo, maior dificuldade de cancelamento da linha. Ter esta informação mais desagregada poderia se tornar um insumo informacional valiosíssimo para o usuário quando faz sua escolha de operadora. Na forma em que se encontra, no entanto, é pouco útil para o processo de escolha.

O que falta nos dois casos, planos de saúde e telefonia celular, é a apresentação de indicadores mais regionalizados e não apenas o nacional. Ademais, cabe à agência tornar a informação trazida pelos indicadores mais claros para os usuários, como argumentado acima. Afinal, o desempenho das operadoras nos dois casos pode ser muito diferente conforme a região ou estado do país.

V) Conclusões

A proibição da comercialização dos serviços pode ser uma ferramenta importante do regulador para incrementar a qualidade do serviço. No entanto, como vimos, em planos de saúde, a medida tende a fazer mais sentido do que em telefonia celular, especialmente quando o plano escolhido neste último caso não envolver fidelização.

Como se trata de uma intervenção na liberdade de contratar, a medida deve ser analisada com muito cuidado. Se a informação sobre a qualidade do serviço é disponível e “digerível” a baixo custo para o consumidor, além de custos de troca baixos, a intervenção por proibição de comercialização de novos planos deve ser reavaliada, especialmente quando outras penalidades complementares como multas podem ser acionadas. Já quando o problema informacional é mais grave e o custo de troca mais significativo, as chances deste tipo de intervenção aumentar o bem-estar aumentam.

O aperfeiçoamento de indicadores de qualidade que permitam ao usuário comparações simples e diretas entre as operadoras é sempre uma medida positiva. Investir na divulgação constante destes indicadores e no esclarecimento do usuário com o uso de cartilhas e dicas, inclusive por outras mídias que não apenas o sítio da agência na internet, deve ser um dos focos principais da missão destas agências.

No caso da ANS, as medidas de proibição de comercialização nos parecem inevitáveis, enquanto explorar o uso de mídias alternativas para os indicadores que já existem uma ação complementar chave. Já no caso da ANATEL, a maior divulgação da comparação entre os indicadores qualitativos das operadoras pode ser mesmo uma medida substituta mais eficiente em relação à simples proibição de comercialização de planos. A exceção identificada é quando ocorre a “fidelização” temporária do usuário, abrindo um espaço maior para intervenção.

Se considerada esgotada a estratégia de divulgação de indicadores no sentido que permanece se constatando baixo nível de informação e, portanto, baixa capacidade decisória racional do consumidor[23], além de outras penalidades como multas por descumprimento do padrão mínimo exigido, então aí sim caberia pensar em suspensão da comercialização de planos. Nesse caso, a suspensão poderia incidir sobre mais operadoras, com base em limites mínimos de qualidade pré-fixados pela agência, e não apenas naquela que foi pior. Deixar-se-ia sempre a opção para o novo usuário de pelo menos uma operadora. Também pode ser o caso (e é o que se espera) que todas cumpram os limites e nenhuma, inclusive a de pior indicador, seja penalizada.

O mais importante é que o descumprimento dos limites mínimos seja amplamente divulgado para sensibilizar ao máximo tanto o usuário quanto a própria operadora em seus respectivos processos decisórios. Poder-se-ia, inclusive, pensar em obrigar as operadoras faltosas a colocar uma informação básica sobre isto, em lugar visível, em suas lojas físicas e sítio na internet. O objetivo continua sendo fazer que o consumidor incorpore os indicadores de qualidade como insumos em sua escolha.

Os limites mínimos de qualidade pré-fixados pela agência devem naturalmente ser calibrados para metas realistas para o(s) indicador(es), sendo claro para a agência que intervenções na liberdade de contratar são alternativas muito custosas socialmente. Isto porque reduzem não apenas os lucros das operadoras, mas também o bem-estar do consumidor, que têm restringido o seu espaço de escolha. Assim, para que a agência bloqueie tal transação, o benefício da intervenção deve ser realmente compensador.

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3 O problema identificado pela Anatel se restringiu ao serviço de voz. A análise deste artigo restringe-se a este último, não se estendendo à internet móvel.

4 O ofertante apenas investe voluntariamente em qualidade quando o custo de fazê-lo é inferior ao aumento de lucro esperado.

5 Em teoria econômica esta é a distinção entre as diferenciações de produto (ou serviço) vertical e horizontal. A vertical se refere a diferenciais de qualidade considerados de forma unânime por todos os usuários. Por exemplo, se todas as liberações de exames demoram mais em uma operadora que em outra, a segunda terá uma superioridade qualitativa unânime neste item. No caso da diferenciação horizontal, há diferenças relevantes entre as preferências dos indivíduos. Um plano pode apresentar, por exemplo, melhor cobertura na área cardíaca, incluindo médicos e hospitais conveniados do que um segundo plano que apresenta uma rede conveniada relativamente mais forte nas doenças do aparelho digestivo. Enquanto cardíacos preferirão o primeiro plano, pessoas com propensão maior a problemas digestivos estarão mais inclinadas pelo segundo. O ponto principal deste parágrafo é que uma diferenciação horizontal muito pronunciada limita ainda mais o valor da experiência de terceiros para efeito de informar as decisões do usuário.

6 Ver na página da ANS, o passo a passo para realizar a portabilidade de carências. http://www.ans.gov.br/index.php/planos-de-saude-e-operadoras/contratacao-e-troca-de-plano/trocar-de-plano-de-saude-sem-cumprir-carencia. O assunto está normatizado na Resolução Normativa RN 186, de 14 de janeiro de 2009, modificada pela RN 252, de 29 de abril de 2011.

7 Ver http://www.ans.gov.br/index.php/planos-de-saude-e-operadoras/contratacao-e-troca-de-plano/dicas-para-escolher-um-plano-de-saude/468-saiba-antes-de-contratar-um-plano

8 Na teoria econômica há uma diferença entre a observabilidade e a verificabilidade de uma variável no contrato pelo usuário. A observabilidade se refere à capacidade literal de o usuário “observar” a variável (seja preço, qualidade ou outra), a qual não seria, portanto, informação privada da outra parte (no caso da operadora). A verificabilidade se refere à capacidade de o usuário provar a um juiz ou a uma agência reguladora o valor daquela variável. Usualmente a capacidade de o usuário verificar uma variável é mais difícil do que observar. A ajuda do regulador pode ser justamente em apoiar o usuários tanto em observar como em verificar variáveis de preço e qualidade.

9 A não ser que se considere que o Estado sabe melhor o que é bom para o indivíduo que ele próprio, mesmo que este não tenha qualquer problema de incompletude de informação.  Esta não é a premissa deste artigo.

10 Um interessante site comparador de planos de saúde, o “cataplanos” (www.cataplanos.com.br) revela claramente esta tendência de supervalorização do preço em relação às variáveis de qualidade, até mesmo pelas limitações de espaço. O site oferece vários planos nos quais a variável de maior destaque é o preço. Quando se solicita para “Detalhar o plano”, nenhum “detalhe” sobre variáveis qualitativas contratuais, além do cumprimento da legislação, são disponibilizadas.

11 A análise do fator “qualidade” da telefonia móvel aqui se restringe ao serviço de voz, não se estendendo à internet, cuja lógica é totalmente diferenciada.

12 A Anatel possui uma cartilha explicando a portabilidade numérica em seu sítio na internet. Entra-se no lado esquerdo do site em “Direitos e Garantias”, “Cartilhas” e “Portabilidade Numérica”. A regulamentação encontra-se no Regulamento Geral de Portabilidade (RGP), anexo à Resolução nº 460, de 19 de março de 2007.

13 Churn é um termo utilizado para designar a perda de clientes de uma operadora, usualmente calculado como o número de cancelamentos em determinado período em relação ao número de assinantes.

14 Teleco: www.teleco.com.br

15 Estes valores nos parecem baixos à primeira vista, o que sugere caber mais ações de marketing da Anatel para divulgar o direito da portabilidade.

16 Oi, Tim, Vivo, Claro. A Nextel oferece o serviço de Serviço Móvel Especializado, cada vez menos distinguível das outras.

17 Curiosamente, a maior dificuldade dos usuários de telefonia celular é a comparação da tarifação dos variados planos de cada operadora e não a qualidade do serviço.

18 Entrar em www.ans.gov.br, clicar no ícone “Desempenho das Operadoras” no meio da página, “Índice de Reclamações” e “Baixe planilha com lista completa de operadoras e índices”.

19 Reclamações julgadas improcedentes são excluídas do índice, o que elimina o problema de falsas notificações para prejudicar a concorrência.

20 Entrar em www.ans.gov.br, clicar no ícone “Desempenho das Operadoras” no meio da página e “Programa de Qualificação de Operadoras”.  Há um conjunto de cinco intervalos do IDSS (0 a 0,19; 0,20 a 0,39; 0,4 a 0,6; 0,6 a 0,8; 0,8 a 1), sendo que quanto maior, melhor a qualidade. Basta clicar em cada intervalo para saber quais operadoras estão dentro daquele intervalo de IDSS (ou de qualidade). Mais abaixo, em “Saiba Mais”, pode-se clicar em “Listagem de Operadoras por Faixa de IDSS” e se conseguem três planilhas consolidadas para as operadoras de porte grande, médio e pequeno.

21 Entrar em www.anatel.gov.br, clicar o ícone “Anatel Dados” em cima no lado direito, clicar “Qualidade” do lado esquerdo, clicar “Indicadores de Atendimento”, clicar “Índice de Desempenho do Atendimento (IDA)”, selecionar a opção para “telefonia móvel” no mês desejado. Em novembro de 2012, o último dado encontrado se referia a julho de 2012.

22 Na página do IDA, clicar em “Quantidade de Reclamações por Motivo ofensor”.

23 Algo que consideramos difícil de o regulador auferir. Há o risco de o regulador ter uma propensão a sempre subestimar o grau de informação e a capacidade de decisão do consumidor médio. Em particular, pode insistir em uma qualidade superior àquela que o usuário estaria disposto a pagar, detendo informação completa.

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Por que o modelo de concessões de rodovias federais no Brasil não está apresentando bons resultados? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=927&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-o-modelo-de-concessoes-de-rodovias-federais-no-brasil-nao-esta-apresentando-bons-resultados https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=927#comments Wed, 07 Dec 2011 11:52:18 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=927 Em reportagem de 16 de novembro de 2011, a Revista “ Veja” aponta um padrão comum de problemas nas sete rodovias federais com operação concedida à iniciativa privada em 2007: em todas elas as obras de melhorias e manutenção acordadas nos contratos de concessão estão longe de serem cumpridas pelos concessionários. No caso da Rodovia do Aço a paralisia de obras teria levado inclusive a um aumento significativo do número de acidentes.

À época, o resultado do procedimento licitatório que indicou as empresas OHL para cinco rodovias e BRVia e Acciona para as outras duas foi tido como um retumbante sucesso pelo governo, especialmente em função dos deságios dos lances para os preços dos pedágios considerados elevados, como no caso de trecho da Fernão Dias que atingiu 65,4%.

Este resultado frequentemente se contrapunha ao que seriam os elevados pedágios cobrados nas concessões realizadas pelo governo paulista.

A principal razão da diferença de desempenho entre os dois modelos residiria no próprio formato do leilão. O governo federal optou por um procedimento no qual o critério de definição do vencedor seria dado pelo menor valor do serviço, no caso do pedágio. Já no caso do governo paulista, a escolha foi por um critério do maior valor pago pela concessão, deixando a regra do pedágio integralmente para a regulação. O governo federal defendia que o seu modelo seria naturalmente mais pró-consumidor ao induzir os participantes do certame a reduzir ao máximo os preços do pedágio já no próprio leilão. Nos leilões paulistas, ao contrário, o modelo teria privilegiado o aporte de recursos ao Estado em detrimento do consumidor.

A despeito de a intuição deste raciocínio parecer muito cristalina, ela desconsidera os incentivos que permeiam o comportamento dos participantes do certame em cada um desses modelos (menor pedágio ou maior preço da concessão).

Na verdade, esta não é uma discussão nova na teoria econômica da regulação. Demsetz (1968)[1] propôs que concessões de serviços regulados fossem realizadas por um leilão de menor preço do serviço. Isto resolveria um dos problemas fundamentais dos reguladores, em um contexto de assimetria de informações sobre custos das firmas reguladas: definir qual seria o preço ótimo do serviço. Assumindo um leilão suficientemente competitivo, os participantes estariam dispostos a fazer lances, oferecendo preços dos serviços menores até atingir os seus respectivos custos médios. No critério de menor preço do serviço, o vencedor seria aquele com menor custo médio, pois este estaria disposto a fazer lances em valores entre o seu próprio custo médio e o do segundo mais eficiente, que todos os outros participantes não estariam dispostos a fazer, dado que, se o fizessem, incorreriam em prejuízo[2]. Assim, além do certame baseado no menor preço do serviço se constituir em um mecanismo de revelação da informação sobre o preço ótimo do serviço regulado para o regulador (uma preciosidade em um contexto de assimetria crônica de informação do regulador), também viabiliza que o escolhido seja aquele participante com maior eficiência. Dois coelhos com um só tiro!

O problema deste mecanismo foi apontado por Williansom (1976)[3]. No caso do leilão baseado nos preços dos serviços haveria uma tendência sistemática dos participantes do certame a realizarem lances com valores abaixo daqueles minimamente consistentes com a sua função custo. Isso ocorreria na medida em que tais participantes acreditassem ser capazes ex-post de convencer o regulador a permitir o incremento dos preços dos serviços acima daquilo que foi resultado do lance no leilão. O ponto principal para Williansom é que faltaria capacidade ex-ante ao regulador de se comprometer (commitment) a não ceder às demandas ex-post de reajuste das tarifas acima do combinado. Ou seja, o regulador não é capaz de se comprometer a não renegociar o valor fundamental que ensejou o resultado do leilão, ou seja, o preço do serviço. Isso decorre especialmente das dificuldades do poder público para trocar o fornecedor do serviço ex-post rapidamente e com baixo custo.

Um dos maiores geradores de custos de troca ex-post são os elevados sunk costs (custos afundados) que permitem comportamentos oportunistas tanto do concessionário como do próprio Estado[4][5].

Se o governo demandar ex-post uma troca de contratante por descobrir que a proposta feita pelo atual concessionário, à época do leilão, era irrealista, deverá ser efetuada a compensação dos sunk costs já incorridos pela empresa. De fato, provavelmente, haverá substancial custo judicial para determinar os valores da compensação e ainda o provável questionamento do concessionário na Justiça sobre as razões da opção do governo pela troca. Aduzam-se ainda os custos e a demora para organizar e realizar uma nova licitação. O tempo perdido deve afetar negativamente a probabilidade de reeleição do governante, em função do custo político no atraso da entrega da obra à população. Como os serviços concedidos como rodovias são usualmente utilizados por elevada parcela da população, este custo político da maior demora na entrega da obra em função da troca do concessionário por outro mais “apropriado” tende a ser grande. É justamente este custo político que deteriora a capacidade do governo em se comprometer ex-ante a não renegociar ex-post.

Se os participantes do certame racionalmente esperam ex-ante que realmente faltará commitment ao regulador ex-post se pressionado a renegociar, o valor do preço do serviço que eles devem propor em seus lances passa a ser desvinculado dos seus reais fundamentos de demanda e custo. Pior, é razoável postular que o valor do preço do serviço definido no lance de cada participante reflita não a sua eficiência própria, como custos menores, mas sim a capacidade percebida de cada um  em realizar um lobby bem sucedido no regulador quando o contrato estiver em operação. Ou seja, vencerá quem tiver melhores conexões políticas ou quem for mais otimista em relação às dificuldades do regulador em evitar uma renegociação ou mesmo minimizar o incremento de preços demandado pelo concessionário ex-post.

Nesse contexto, um dos principais objetivos do mecanismo de leilão, que é o de garantir a escolha do participante mais eficiente, é comprometido. Outro objetivo do mecanismo que seria o de “revelar” para o regulador qual o “preço certo” do serviço também não é alcançado e a assimetria de informação regulador-regulado persevera.

No caso da concessão das rodovias federais foi justamente o que aconteceu. Os concessionários em curto espaço de tempo já solicitaram aumentos dos valores do pedágio e o governo federal já os concedeu.

Além da hipótese do lobby bem sucedido, o governo federal tem outra boa razão para ceder: se o pedágio é muito baixo, os serviços de obras e manutenção da rodovia definidos no edital e/ou contrato de concessão se tornam naturalmente mais lentos, prejudicando a meta de melhorar a qualidade das rodovias do país.

E se o governo tentar fazer valer o que está no edital/contrato, ao preço do serviço definido no leilão, o concessionário provavelmente alegará o desequilíbrio econômico-financeiro da concessão. E a alegação é, ainda por cima, verdadeira. Só não é uma novidade: desde o leilão o concessionário já sabia que havia um desequilíbrio, mas estava certo que conseguiria renegociar, um típico comportamento oportunista.

Dada a assimetria de informação existente entre regulador e regulado, é difícil muitas vezes saber, no momento do leilão, se o lance vencedor embute um valor irrealista, fruto de comportamento oportunista. No caso em tela, entretanto, o conhecimento sobre o desequilíbrio ex-ante não parece ter ficado restrito ao concessionário. Na abertura dos envelopes com os lances do leilão, todos os outros participantes ficaram muito surpresos com a “agressividade” dos lances das vencedoras e estas, por sua vez, afirmavam que a “surpresa” não passava do “choro dos derrotados”. O governo federal parece ter concordado com esta avaliação até para não estragar a “festa” do elevado deságio verificado.

Sendo assim, o ponto principal aqui levantado não é que o governo federal esteja sendo excessivamente generoso ao permitir ex-post o incremento dos preços dos serviços. Se este não for permitido, a meta de incremento da qualidade das rodovias simplesmente não se realiza. O problema é que o desenho do leilão, baseado em preços do serviço, é que definiu os incentivos para lances irrealistas e, por conseguinte, a inviabilidade dos investimentos requeridos. E caso o governo busque punir, agora, o comportamento oportunista pela troca do concessionário, também incorrerá em elevados custos políticos.

Note-se que o problema indicado não se limita aos leilões de concessão baseados na variável “preço de serviço”. Qualquer critério de seleção de concessionário que se basear em variáveis que vão se realizar ex-post, também padecem do mesmo problema se não forem dados incentivos apropriados ex-post para o cumprimento da obrigação ofertada no lance. Um exemplo é o leilão de áreas de exploração de petróleo pela Agência Nacional do Petróleo (ANP) que inclui no critério do procedimento licitatório o Programa de Exploração Mínima (PEM) – conjunto de estudos que o concessionário se comprometeria a fazer como condição para exploração de determinada área.

É possível, inclusive que, para variáveis como preço, o problema seja menor já que a permissão posterior para reajustar acima do valor do lance tende a ser politicamente mais custosa. A reação negativa dos eleitores a incrementos da tarifa pode ser até maior que a reação à qualidade da rodovia. Já variáveis nas quais a atenção do eleitorado é naturalmente reduzida, como no caso do PEM, o custo incorrido pelo governo por ceder e negociar é relativamente menor.

De outro lado, a mesma reportagem de “Veja” destaca que as rodovias paulistas, concedidas pelo critério de maior preço pago pela concessão, apesar de contarem com pedágios mais altos, tiveram as obras contratadas entregues antes mesmo do prazo. O regulador paulista simplesmente não contou com o leilão para “revelar” a informação de qual o “melhor preço” do serviço, mas tão somente para conhecer quem será o candidato a concessionário mais eficiente a ser escolhido. Isso porque, em geral, os participantes que fazem lances maiores pela concessão são os com melhores prognósticos de lucros, os quais por sua vez estão associados a menores custos e/ou maior demanda em função de um serviço de mais qualidade. Em síntese, à maior eficiência. Os valores a serem pagos pela concessão ocorrem imediatamente ou em prestações. A capacidade do concessionário pressionar para renegociar tais valores e do regulador para aceitar tal pressão é praticamente inexistente, pois se tal ocorrer o risco de um processo judicial por malversação de recursos públicos é alto. Isso eleva a capacidade de o regulador se comprometer em relação ao pleno cumprimento da obrigação relativa ao lance de preço do leilão. Aqui, a principal fonte de commitment é o Tribunal de Contas da União (TCU) ou do Estado, conforme o caso. Em síntese, há naturalmente um commitment muito maior no critério do preço da concessão do que no preço do serviço.

Dado o que se verificou na prática, é muito razoável postular que os incentivos abordados foram chave na explicação de porque as rodovias paulistas estão melhores que as sete rodovias concedidas pelo governo federal em 2007.

Cabe uma palavra sobre benefícios e custos de uma eventual renegociação dos termos dos contratos de concessão. A despeito de adotarmos como premissa que renegociações são ruins, este nem sempre é o caso. Há contingências não previstas que derivam do fato de o contrato de concessão de rodovias, como todos contratos deste tipo, ser incompleto. A correção ex-post dos problemas derivados dessas contingências é desejável.  Há também contingências previsíveis ex-ante cuja solução deveria ser tratada no próprio edital e/ou contrato de concessão, sendo, portanto, consideradas por todos os participantes do certame. Nos dois casos (contingências imprevisíveis e/ou previsíveis e incluídas no contrato), a renegociação não gera distorções no processo de escolha do vencedor e nem de oportunismo. A renegociação traz mais benefícios do que custos, seja no curto (ex-post), seja no longo prazo (ex-ante e ex-post).

O problema aqui analisado, no entanto, diz respeito a uma contingência previsível e até provável, ou seja, o preço do pedágio não ser suficiente para financiar os custos das obras, em um típico comportamento oportunista do concessionário. Apesar de a renegociação ser ótima no curto prazo (por gerar preços baixos),  ex-post, ela se revela desvantajosa.

Guasch (2004)[6] sumaria este ponto de quando a renegociação é ou não desejável:  “se os licitantes acreditam que é possível e provável  renegociar, seus incentivos e lances serão afetados, e o leilão irá selecionar não o provedor mais eficiente, mas sim aquele mais apto em renegociações. A renegociação deve ocorrer apenas quando justificada por contingências previstas no contrato ou por eventos de grande impacto não previstos” (tradução livre) [7].

Os incentivos envolvidos no leilão por menor preço do serviço levam, inclusive, a um incremento da probabilidade de renegociação. Guasch (2004), a partir de dados de contratos de concessão em toda a América Latina e Caribe, achou um resultado no qual o índice de renegociação dos contratos de concessão foi de 60% quando o critério do leilão foi o de menor preço do serviço contra 11% quando o critério foi o de maior valor pago pela concessão[8].

Enfim, o problema aqui tratado é típico da chamada nova economia institucional na linha de Douglas North (1990)[9]. O modelo de leilão baseado no menor preço do serviço exige capacidade institucional significativamente maior do governo no sentido de se comprometer a não renegociar os termos do contrato de concessão quando a demanda se derivar de um comportamento oportunista do operador.

Outro ponto relevante é que há um dilema  entre preços dos serviços mais baixos e qualidade/velocidade das obras de manutenção/melhoria das rodovias. Dada a assimetria de informação do regulador em relação à função custo do regulado, uma obsessão muito grande por modelos de concessão que gerem preços menores naturalmente compromete as obras de manutenção/melhoria das rodovias. A aceitação de preços maiores incrementa o potencial de obras mais bem feitas e rápidas.

Enfim, reconhecer que a capacidade institucional do Estado brasileiro ainda é insuficiente e até que a obsessão por preços do serviço muito baixos pode ser muito custosa para assegurar o investimento em infraestrutura seria uma “humildade saudável” do governo.  Ou são aperfeiçoados os mecanismos de “amarrar as mãos do regulador” (ou de commitment) ou são alterados os critérios do leilão. Acreditamos que, no caso da concessão de rodovias, o segundo caminho seja o mais indicado.

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[1] Demsetz, Harold: “Why Regulate Utilities?”. Journal of Law and
Economics, Vol. 11, No. 1, (Apr., 1968).

[2] Assumindo as premissas do teorema da equivalência de receitas esperadas nos leilões, este resultado seria verdadeiro tanto para um leilão aberto descendente quanto com um leilão de um só lance em envelopes fechados. Ver Klemperer, Paul: “Auctions: Theory and Practice”. Princeton University Press, 2004.

[3] Williamson, Oliver E. (1976), “Franchise Bidding for Natural Monopolies-in General and with Respect to CATV”, The Bell Journal of Economics, Vol. 7, No. 1 (Spring).

[4] Sunk costs ou custos afundados são aqueles que não podem ser recuperados. Por exemplo, uma máquina que vale R$ 100 e que pode ser vendida no mercado de segunda mão por R$ 50, o sunk cost (não incorporando a taxa de desconto) seria R$ 50. No caso de rodovias, os investimentos em manutenção/recuperação/ampliação em uma rodovia X não podem ser removidos do local e utilizados em outra rodovia Y, tornando os sunk costs 100% dos valores investidos. Estes são custos literalmente afundados. Este, no entanto, é um problema mais genérico dos setores de infraestrutura.

[5] Note-se que há várias situações em que o oportunista é o Estado e não o concessionário: após a realização dos custos afundados pelo último, o Estado (especialmente governos recém-eleitos descomprometidos com a estabilidade das regras do procedimento licitatório) é que tenta forçar as tarifas para níveis inferiores ao estabelecido. Este problema aconteceu tanto no Paraná como no Rio Grande do Sul nesse mesmo setor de concessão de rodovias. Analisar a possibilidade de oportunismo do Estado, apesar de frequente, não é o objetivo desta nota.

[6] Guasch, J.Luis: “Granting and Renegotiating Infrastructure Concessions Doing it Right”. The World Bank Institute, 2004.

[7] if bidders believe that renegotiation is feasible and likely, however, their incentives and bidding will be effected, and the auction will likely select, not the most efficient provider, but the one most skilled at renegotiations. Renegotiation should occur only when justified by the initial contract´s built-in contingencies or by major unexpected events”.

[8] O autor analisa vários outros itens do contrato de concessão que condicionam a renegociação.

[9] North, Douglas.: Institutions, Institutional Change and Economic Performance”. Cambridge University Press, 1990.

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Quem ganha com a meia-entrada? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=811&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quem-ganha-com-a-meia-entrada https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=811#comments Mon, 24 Oct 2011 18:26:01 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=811 I) A legislação da meia-entrada e equidade

Uma das regras mais conhecidas dos brasileiros é a meia-entrada em cinemas, shows, peças de teatro e outros eventos para estudantes[1] e, mais recentemente, idosos[2].

No segundo semestre de 2011, no entanto, a racionalidade da regra da meia-entrada tem sido debatida em função do questionamento da FIFA à sua aplicação nos jogos da copa do mundo, por comprometer suas receitas, e do estatuto da juventude[3] que garantiu o “direito” à meia-entrada a todo o jovem estudante com idade inferior a 30 anos.

Sempre houve dúvida se fazia sentido prover um desconto de 50% na entrada para estudantes e idosos, que se justificaria por uma alegada situação de “fragilidade” gerada pela “pouca” ou “muita” idade do indivíduo.

No caso de idosos, há uma desconfiança mais significativa sobre a “justiça” embutida na regra, dado que há uma relação positiva entre renda e idade como mostrado por Giambiagi e Castelar (2006)[4]. Se o Estado está privilegiando um segmento com renda média maior que a da população, o mecanismo implica uma piora na distribuição de renda da sociedade, o oposto do que teoricamente se busca com a medida.

No caso de estudantes, são conhecidas as variadas formas de se conseguir uma “carteirinha” por qualquer curso que se faça ou mesmo por simples fraude. Ademais, é sabido que grupos de maior renda ficam mais tempo na escola e universidade. Assim, é pouco claro em que medida a regra de meia-entrada para “estudantes” apresente a alegada direção de política social que lhe é atribuída.

De qualquer forma, as imagens de estudantes no início da vida e, portanto, com baixa ou nenhuma renda própria e de idosos com rarefeitas oportunidades de diversão tendem a ser fortes o suficiente para fazerem com que haja  aceitação da sociedade em relação ao tratamento diferenciado da meia-entrada.

Já em relação a todo o universo de adultos, estudantes ou não, até os 30 anos, mesmo com a maior das boas vontades, ficou patente que a medida protetiva foi longe demais.

II) Meia-entrada voluntária e discriminação de Preços

Mesmo que o governo não imponha a regra de meia-entrada, é plausível que os próprios ofertantes do serviço desejem utilizar alguma regra de discriminação de preços[5] que se baseie em proxies da disposição a pagar dos indivíduos. Quanto mais a variável observada identificar maior disposição a pagar, maiores os preços cobrados. Quanto melhor a calibragem desta discriminação, mais o empresário consegue lucrar sobre a mesma base de clientes.

Há três dificuldades básicas, entretanto, para que o empresário seja capaz de implementar esta discriminação. Primeiro, ele tem que ter algum poder de mercado ou se coordenar com outros empresários para implementar a mesma regra de discriminação. Isso porque se um empresário cobrar mais de um determinado grupo e outro não, naturalmente o segundo atrairá clientela do primeiro e frustrará a tentativa de discriminar preços.

Segundo, ele tem que ser capaz de evitar arbitragem, ou seja, um consumidor com preço mais baixo não pode adquirir o ingresso e repassar para um consumidor que teria que pagar um preço mais alto. Isso é usualmente conseguido estabelecendo (custosos) controles na entrada do espetáculo, requerendo a carteirinha com foto ou alguma prova de que aquele é realmente o consumidor que faz jus a um preço mais baixo.

Terceiro, o empresário deve ter algum mecanismo de identificação das características do indivíduo que indiquem o quanto ele está disposto a pagar. Menores de idade, por exemplo, tendem realmente a estar menos dispostos a pagar simplesmente por não terem renda e/ou depender dos adultos. O controle do empresário que deseja extrair o máximo de seus clientes pode ser eventualmente refinado cobrando menos só dos menores estudantes de escolas públicas, considerando que, para os menores estudantes de escola privada, os pais adultos tendem a ser mais generosos em prover a diversão de seus filhos, incrementando a disposição a pagar.

De qualquer forma, a capacidade de observar características que estejam associadas à disposição a pagar dos indivíduos tende a ser limitada, diminuindo o espaço para uma estratégia de discriminação de preços na entrada de espetáculos bem sucedida.

A ideia desta nota é realizar alguns exercícios de bem-estar da regra de meia-entrada com base em possíveis configurações das variáveis de disposição a pagar de grupos, A e B, e do número  de pessoas existentes em cada grupo.

III) Consequências econômicas da meia-entrada: análise de quatro casos

Há várias formas possíveis de simular o comportamento dos agentes. Uma das possibilidades mais rigorosas formalmente seria assumir grupos com preferências distintas entre si, gerando curvas de demanda também específicas para cada grupo. Dai se derivaria o processo de maximização de lucros do monopolista discriminador.

Uma forma de tornar tal exercício muito mais simples e intuitivo é assumir que cada indivíduo adquire apenas uma unidade e que todo o indivíduo de um de dois grupos possíveis possui tão somente um único “valor de reserva”  (em cada grupo). O “valor de reserva” é o preço máximo que cada grupo se dispõe a pagar[6]. Ademais, repetindo o exercício para algumas poucas configurações diferentes, já conseguimos identificar os principais resultados e variáveis envolvidas no que seria o caso mais geral.

Assim, suponha que A e B sejam dois grupos. O governo definirá uma regra de meia-entrada em favor do grupo B. O empresário observa precisamente quem pertence a A e quem pertence a B. Também tem informação completa sobre a máxima disposição a pagar e o número de pessoas em cada grupo, não enfrenta concorrência e é capaz de evitar arbitragem entre os grupos. Em síntese, assumimos que as dificuldades de implementação da discriminação apontadas na seção anterior não se verificam. Os custos da discriminação de preços são zero.

Vejamos o primeiro caso em que haja uma divisão populacional de 50%/50% entre os dois grupos em uma população hipotética de 100 indivíduos. Sejam os seguintes dados:

Caso 1 – Grupos Balanceados e Máximas Disposições a Pagar Não Muito Diferentes

Grupos Máxima disposição a pagar Número de pessoas no Grupo
A 10 50
B 7 50

Primeiro, cabe avaliar qual a melhor estratégia do empresário sem regulação. Ele simplesmente fixaria os preços conforme a máxima disposição a pagar de cada grupo, ou seja o preço para os de A pa =10 e o preço pb=7 para os de B. Sua receita (e, portanto, lucro, tendo em vista a hipótese de não haver custos) será

Receita sem regulação caso 1 = 10*50 + 7*50= 500 + 350 = 850

Agora suponha que o Estado imponha a regra de meia-entrada, ou seja, a entrada de um grupo (B) deve ser a metade da entrada do outro (A). Não há regulação absoluta de preço, apenas da relação entre eles (um deve ser a metade do outro). O empresário irá comparar duas estratégias de mercado, tendo como dada a restrição da meia-entrada. A primeira incorporando todos os consumidores A e B e a segunda excluindo ou os consumidores A ou os consumidores B.

Para não excluir os consumidores A no caso 1, o empresário fará pa= 10. Dada a regra de meia-entrada, pb=5 e, portanto, quando decide não excluir A, ele também não exclui B que, com disposição a pagar $ 7, aceitará pagar $ 5. A receita será, portanto:

Receita com regulação de meia-entrada sem exclusão de A caso 1 = 10*50 + 5*50 = 500 + 250 = 750

Se adotada a estratégia de não exclusão de qualquer grupo no caso 1, a regra de meia-entrada transfere ($ 850 – $ 750 = $ 100) de renda dos exibidores de espetáculos para o grupo B, que é aparentemente o que se pretende com a política.

Agora suponha que o empresário exclui A de forma a conseguir extrair o máximo possível de B. Assim, o preço da meia será pb= 7 e, por conseguinte, a da inteira se torna pa=14. Nesse caso, o preço de A ($14) excede o máximo que os consumidores A estão dispostos a pagar ($7) e, portanto, não há receitas de A. Em compensação aumentam as receitas de B.

A diferença é que na hipótese de não exclusão parte-se de pa=10, que é o preço que não alija o grupo A do mercado e chega-se à meia-entrada pb=5, enquanto que na hipótese de exclusão, parte-se do máximo que B está disposto a pagar de meia-entrada Pb=7 e chega-se ao valor da inteira Pa=14, invertendo a lógica de precificação. Visto de outra forma, na primeira hipótese é o preço da inteira que define o preço da meia-entrada (o que é a hipótese implícita na regulação de meia-entrada), enquanto que na segunda hipótese é o preço da meia-entrada que define o preço da inteira.

Teríamos a seguinte receita com regulação de meia-entrada e exclusão de A no caso 1:

Receita com regulação de meia-entrada com exclusão de A caso 1 = 7*50 = $350

Nesse caso 1, a opção do empresário por não excluir A é superior dado que a receita sem exclusão (750) supera a com exclusão (350) de A. O grupo A é um segmento suficientemente valioso para induzir o empresário a não optar por sua exclusão, ainda que pudesse cobrar $2 a mais no ingresso de B.

O governo consegue baratear a entrada para B sem qualquer custo em termos de exclusão do grupo A no caso 1. Note-se, de qualquer forma, que este barateamento não é de $5, a diferença do preço da inteira para a meia, mas de $ 2, a diferença do que os consumidores de B pagariam com discriminação perfeita ($ 7) com a regulação da meia-entrada neste caso ($5). Isso decorre do suposto de que o empresário observa a disposição a pagar de cada grupo e quem está em cada grupo. Assim, ainda que não houvesse regulação de meia-entrada, o empresário discriminaria voluntariamente preços e cobraria $ 3 a menos do grupo B, exatamente na medida de sua disposição a pagar em $ 7[7].

Como o empresário neste caso sempre opta por não excluir qualquer grupo do mercado, o custo da política de meia-entrada incide tão somente sobre os exibidores de espetáculos, transferindo um total de $ 850 – $ 750= $ 100 para o grupo B em função do desconto de $2, que é a diferença entre a situação de livre discriminação de preços ($ 7) e a de regulação de meia-entrada ($ 5).

De qualquer forma, como o que o grupo B ganha é exatamente o que os exibidores perdem ($ 100), não há uma perda líquida gerada pela política de meia-entrada, mas tão somente transferência de renda.

Uma hipótese importante do caso 1 é o número de indivíduos ser igualmente repartido entre os dois grupos, 50% para A e 50% para B. Vejamos o efeito de alterar esta proporção para 15% para A e 85% para B, fazendo crescer o grupo beneficiado pela política. A inclusão dos idosos na regra de meia-entrada pode constituir um exemplo de causa para este movimento ao que chamaremos de caso 2.

Caso 2 – Grupos Não Balanceados e Máximas Disposições a Pagar Não Muito Diferentes

Grupos Máxima disposição a pagar Número de pessoas no Grupo
A 10 15
B 7 85

Mais uma vez, cabe iniciar pelo cálculo da receita que seria obtida se o empresário pudesse discriminar livremente seus preços.

Receita sem regulação caso 2 = 10*15 + 7*85= 150 + 595 = 745

A receita do empresário sem exclusão de qualquer dos grupos agora será dada fazendo o preço da inteira pa=10, de forma a garantir a inclusão de A com o máximo de extração do excedente do consumidor, e, portanto, pb=5:

Receita com regulação de meia-entrada sem exclusão de A caso 2 = 10*15 + 5*85 = $ 150 + $425 = $ 575

Agora vejamos o que acontece se o empresário exclui A, cobrando B pelo máximo que estão dispostos a pagar pb=7 na meia-entrada e pa=14 na inteira:

Receita com regulação de meia-entrada com exclusão de A, caso 2 =  7*85 = $ 595

Ou seja, a receita com exclusão de A ($ 595) é superior à sem exclusão ($ 575), após um incremento suficientemente grande no número relativo de beneficiários da meia-entrada. Esta diferença induzirá o exibidor a precificar de forma a excluir o grupo A, ainda que este seja o grupo com maior disposição a pagar. Isto ocorre porque a perda de receitas pela diferença de $ 2 entre o cenário em que o empresário pode discriminar livremente ($7) e aquele em que ele deve cobrar metade do ingresso do grupo A (em que houve redução no número de pessoas, de 50 para 15), quando este último não é excluído ($5) passa a multiplicar agora um contingente relativamente grande de pessoas (85 em lugar de 50). Este incremento da relevância numérica de B é o que explica a inversão da lógica. Agora, é  o preço da meia-entrada que define o preço da inteira, e não o oposto, como é usualmente esperado pelos formuladores da política.

Nesta nova situação, o custo da política de meia-entrada não incide apenas sobre os exibidores de espetáculos, cuja receita cai de $ 745 para $ 595, em $ 150, mas também sobre o grupo A, cujo preço sobe acima ($ 14) daquilo que eles estão dispostos a pagar ($ 10) e, portanto, ficam, neste novo equilíbrio, excluídos do mercado.

Um ponto importante aqui é que, diferentemente do caso 1, o que o grupo B ganha é inferior ao que os exibidores perdem, tendo em vista a exclusão do grupo A, caracterizando uma perda de eficiência líquida no mercado. Os exibidores perdem $ 745 – $ 595 = $ 150 e o grupo B não ganha nada pela política de meia-entrada já que o preço cobrado de $ 7 é precisamente igual ao máximo que B está disposto a pagar, estando, portanto, calibrado para extrair todo o excedente de B. Ou seja, o preço de B neste novo equilíbrio é o que seria caso houvesse plena liberdade para discriminar.

Os exibidores desejariam ofertar e os consumidores A desejariam demandar a este preço $10, mas o equilíbrio gerado pela regulação de meia-entrada induz os primeiros a desconsiderarem os segundos.

Outro caso interessante acontece quando, ainda que as quantidades relativas dos dois grupos sejam balanceadas (50%/50% como no primeiro caso), a distância das disposições a pagar daqueles é suficientemente elevada para que a política de meia-entrada gere uma tendência de excluir o grupo B. Assim, suponha os seguintes dados:

Caso 3 – Grupos Balanceados e Máximas Disposições a Pagar Muito Diferentes

Grupos Máxima disposição a pagar Número de pessoas no Grupo
A 10 50
B 3 50

O resultado da receita com liberdade de precificação será o exibidor precificar com Pa=10 e Pb=3. Ou seja, o exibidor gostaria de ir além da meia-entrada e cobrar um preço ainda menor (Pb=3).

Receita sem regulação, caso 3 = 10*50 + 3*50= 500 + 150 = 650

Se o exibidor não fosse excluir nenhum grupo, ele teria que cobrar a meia-entrada pb=3 de B e, por conseguinte, a inteira pa=6 de A. Sua receita ficaria:

Receita com regulação de meia-entrada sem exclusão de B caso 3 = 6*50 + 3*50 = $ 300 + $150 = $ 450

Se o exibidor cobrar pa=10 de A, ele exclui o grupo B, pois a meia-entrada pb=5 é superior ao máximo que este grupo está disposto a pagar $ 3. Sua receita será:

Receita com regulação de meia-entrada com exclusão de B caso 3 = 10*50 = $ 500

Ou seja, a receita com exclusão de B ($ 500) é superior à sem exclusão ($ 450), sendo, portanto, a preferida do exibidor. A política de meia-entrada, neste caso 3, exclui justamente o grupo alvo B. O preço da inteira é calibrado para atender tão somente o mercado de elite A, deixando de lado o mercado B. A perda do exibidor por ingresso vendido ao grupo A, para viabilizar o atendimento do grupo B, é $ 10 – $ 6 = $ 4. A depender do número de indivíduos no grupo A, a perda total de receita pode ser muito relevante.

Note-se que o exibidor tem uma perda de $ 650 – $ 500 = $ 150 em função da política de meia-entrada, sem haver ganho por parte de qualquer grupo de consumidores, representando, portanto, mais uma vez perda líquida da economia. Para não excluir B, o exibidor perderia ainda mais $ 50 (a diferença entre $ 500 e $ 450), incrementando a ineficiência da economia para $ 200.

Se o desconto da meia-entrada representar um teto de preço e não “o preço” para o grupo B, esta ineficiência pode ser evitada. Isso porque o exibidor pode simplesmente replicar o resultado da receita sem regulação ($ 650), fazendo um valor da inteira igual à máxima disposição a pagar de A, pa=10, mas um valor da “meia” inferior à metade das inteira, pb=3. Resta saber se os consumidores interpretarão isto como uma vantagem a mais para os consumidores meia-entrada B ou, interpretação igualmente válida, uma desvantagem mais que proporcional à regulação usual da meia-entrada por um preço da inteira superior ao dobro da meia-entrada. Se a percepção do exibidor for de que a segunda interpretação menos benigna será aquela mais considerada e se isso se reverter em pressão política para baixar o preço da inteira, então volta-se ao equilíbrio com ineficiência e perda líquida.

Este resultado negativo gerado pela elevada diferença de disposição a gastar dos dois grupos ($ 10 -$ 3=$ 7) também poderia não acontecer se houvesse um número relativamente maior de indivíduos em B comparado a A. Assim, por exemplo, suponha que B represente 85% da população contra 15% de A. Teremos agora o caso 4:

Caso 4 – Grupos Não Balanceados e Máximas Disposições a Pagar Muito Diferentes

Grupos Máxima disposição a pagar Número de pessoas no Grupo
A 10 15
B 3 85

Com livre precificação, a receita do exibidor seria:

Receita sem regulação caso 4 = 10*15 + 3*85= 150 + 255 = 405

Sem exclusão do grupo B, o preço da meia-entrada deveria ser no máximo Pb=3 e, portanto, a inteira alcançaria Pa=6.

Receita com regulação de meia-entrada sem exclusão de B caso 4 = 6*15 + 3*85 = $ 90 + $ 255 = $ 345.

Se o exibidor decidir excluir B, sua receita passará a ser:

Receita com regulação de meia-entrada com exclusão de B caso 4 =10*15 =  $ 150.

A exclusão deixa de ser um bom negócio com as novas proporções pois o exibidor perderia $ 345 – $ 150 = $ 195 se apenas focasse o mercado de elite.

Note-se que, sem a exclusão do grupo B, não há mais ineficiência da economia. O exibidor perde $ 405 – $ 345 = $ 60 e o grupo A ganha a diferença entre o que pagaria com livre discriminação ($10) e com a política de meia-entrada ($ 6), igual a $4, o que multiplicado por 15 indivíduos de A resulta em um ganho total para A também de $ 60. Ou seja, o exibidor perde exatamente o que o grupo A ganha, não havendo perdas líquidas na economia.

O ponto curioso aqui é que quem ganha realmente com a política de meia-entrada não é o grupo alvo (B), mas sim o outro grupo (A) com maior disposição a pagar.

Ou seja, a alegada “fragilidade” do grupo beneficiário B não poderia ser utilizada como justificativa, nesse caso 4, para implementar a política de meia-entrada. O bem-estar do grupo B simplesmente não se altera com a política. Constitui uma transferência dos empresários exibidores para o grupo considerado não frágil (A).

IV) Conclusões

O objetivo deste texto foi demonstrar a possibilidade de alguns resultados não esperados da política de meia-entrada adotada no Brasil.

Tal como identificado na literatura convencional de discriminação de preços, limitações nesta prática, como no caso da política de meia-entrada, podem levar à exclusão seja do grupo pretensamente beneficiário (caso 3), seja do grupo não beneficiário (caso 2) da política. Outra possibilidade que afronta os objetivos precípuos da política é que o resultado final implique uma transferência de renda dos empresários exibidores não para o público alvo da política (B), mas sim para o outro público (A).

O caso em que a política leva ao resultado esperado (caso 1) é aquele em que as disposições a pagar não são tão distintas entre os grupos e os beneficiários representam um percentual da população próxima a dos não beneficiários. Nesse caso específico, o público alvo não constitui uma exceção, que é usualmente uma premissa implícita deste tipo de política voltada às “minorias”. Na verdade, como todo subsídio, o conjunto de beneficiários tende a crescer e a pretensa “minoria” se torna a própria “maioria”.

No limite deste processo de conversão da minoria em maioria, pode-se chegar ao caso 2 em que o grupo não beneficiário é tão prejudicado, que se torna mesmo excluído do mercado. Nesse mesmo limite, curiosamente, o grupo beneficiário, na realidade, não ganha benefício algum. Como ele é muito grande, o empresário passa a precificar com o objetivo de extrair o máximo de excedente do consumidor deste grupo majoritário. Isso eleva tanto o preço dos beneficiários (a “meia”) que torna a inteira proibitivamente cara.

É possível que os constantes incrementos do número de beneficiários da legislação estejam empurrando a situação do Brasil para o caso 2. A política de meia-entrada deixa de ser uma discriminação positiva em relação aos beneficiários e passa a ser uma discriminação negativa em relação a todo o resto da sociedade, não obrigatoriamente os mais ricos.

Certamente que há uma série de ponderações a este raciocínio. No caso de cinemas, a competição de locadoras de vídeos, a venda de vídeos piratas e não piratas e, mais recentemente, streaming de vídeos na internet limitam naturalmente a capacidade de tais exibidores discriminarem preços. Para outros tipos de espetáculos o grau de diferenciação do produto pode conferir um razoável poder de mercado que se reflete em incremento da capacidade de implementar estratégias de discriminação de preços.

O ponto principal, de qualquer forma, é que o potencial de distorções gerado pela política de meia-entrada indica que sua eliminação pode gerar ganhos de bem estar na sociedade brasileira.


[1] A Medida Provisória 2.208, de 17 de agosto de 2001 é a lei federal que dispõe sobre a meia-entrada para estudantes. Esta regulação, no entanto, não obriga a meia-entrada, mencionando tão somente “eventuais descontos”, o que deixa claro que a definição do percentual é atribuição do empresário. Há, entretanto, leis estaduais que definem o desconto de 50% para estudantes, como a Lei nº 2519, de 17 de janeiro de 1996..

[2] A LEI No 10.741, DE 1º DE OUTUBRO DE 2003, que garante o desconto mínimo de 50% para os idosos. Como veremos abaixo, é possível que o resultado de mercado seja um desconto superior a 50% para algum grupo com menor disposição a pagar. Não obrigatoriamente (ou mesmo provavelmente não) o grupo com menor disposição a pagar e que pode ser identificado é o de idosos.

[3] O Projeto de Lei 4529/2004 (Estatuto da Juventude) em seu art. 25 garante a meia-entrada a jovens estudantes. Comparando-o com a Medida Provisória 2.208/2001 (nota de rodapé 2), a diferença real é que agora (a depender do veto da presidente) há uma lei federal que obriga a meia-entrada para estudantes jovens (até 29 anos). Como visto, no caso específico do Rio de Janeiro, há estados em que já há esta obrigação (eventualmente todos) de meia-entrada para estudantes, mas sem qualquer restrição de idade. Considerando, portanto, as legislações de âmbito federal e estadual, ainda cabe avaliar em que medida houve realmente ampliação do benefício no estatuto da juventude.

[4] Ver Giambiagi, Fabio; Castelar, Armando: “A Nova Reforma Previdenciária”. Pgs 139 a 140 em “Rompendo o Marasmo: A Retomada do Desenvolvimento no Brasil”. Os autores reproduzem dados de Ricardo Paes e Barros mostrando que a renda familiar per capita cresce e o grau de pobreza cai com a idade no Brasil.

[5] No caso, discriminação de preços de terceiro grau, pois a regra de meia-entrada identifica expressamente quais tipos de agentes farão jus a um determinado desconto. O principal artigo teórico sobre discriminação de preços é Varian,H.: “Price Discrimination”. In “The Handbook of Industrial Organization”. Eds. Schmalensee,R. and Willig,R.1989. A análise desta seção se baseia primordialmente nesta referência.

[6] Essa simplificação oferece a intuição básica sobre os principais problemas de regras que constranjam estratégias de discriminação de preços: a potencial exclusão de um ou outro grupo do mercado. E esta potencial exclusão é o que embasa a ideia mais geral da teoria da discriminação de preços que, em geral, constitui conduta que tende a incrementar e não reduzir o bem-estar social. Tal constatação sugere que o Estado, em geral, deve evitar restringir ou limitar práticas de discriminação de preços, sendo a meia-entrada uma das muitas políticas que potencialmente constrangem a conduta. Spulber,D (“Regulation and Markets”. The MIT Press. 1989), por exemplo, critica duramente o Robinson-Patman Act dos EUA que visa a restringir a prática de discriminação de preços na ação da autoridade antitruste americana: “Os efeitos competitivos e de bem-estar (da conduta de discriminação de preços) geralmente não justificam preocupações no antitruste. Restrições da autoridade antitruste na conduta de discriminação de preços são frequentemente uma forma desnecessária de regulação de preços que pode reduzir o bem-estar dos consumidores, excluindo-os do mercado junto a algumas firmas.”

[7] Outro exercício interessante também é contrastar estes resultados com o resultado de preço único. Este pode se derivar de: i) uma regulação proibindo discriminar preços; ii) incapacidade de o empresário discernir quem é quem ou observar os tipos; iii) incapacidade de o empresário evitar operações de arbitragem e estas serem relevantes, ou seja, os consumidores de menor preço sistematicamente adquirirem ingressos e venderem para os de maior preço; iv) o empresário desconhecer que há disposições a pagar distintas.

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