Luiz Alberto Machado – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Tue, 19 Apr 2022 05:25:06 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Inflação e corrupção https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3602&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=inflacao-e-corrupcao Tue, 19 Apr 2022 05:25:06 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3602 Inflação e corrupção

Por Luiz Alberto Machado*

 “Não há meio mais seguro e mais sutil de subverter a base da sociedade do que  corromper sua moeda – processo que empenha todas as forças ocultas da economia na sua destruição, de modo tal que só uma pessoa em cada milhão consegue diagnosticar.”

John Maynard Keynes

Alinho-me àqueles que consideram o Plano Real o grande divisor de águas da economia brasileira. A conquista da estabilidade monetária pôs fim a um perverso ciclo de planos de estabilização fracassados que foram responsáveis pela nossa permanência em prolongado atoleiro. Adotados com o objetivo de acabar com a inflação crônica e elevada vigente na década de 1980 e início da de 1990, tais planos agravaram as tradicionais consequências negativas da inflação – corrosão do valor da moeda, elevação dos preços, perda aquisitiva dos salários – adicionando a elas a instabilidade jurídica decorrente da ruptura de contratos juridicamente perfeitos, a instabilidade financeira decorrente da troca frequente da moeda e das ilusões de rentabilidade, e a ampliação do campo para a corrupção generalizada graças, entre outras coisas, à manipulação dos orçamentos públicos transformados em peças de ficção contábil.

Num artigo de 1992 do Prof. Eduardo Giannetti da Fonseca, há um parágrafo que retrata bem o que era viver num país com taxas de inflação como essas: “A convivência com a inflação é uma escola de oportunismo, imediatismo e corrupção. A ausência de moeda estável encurta os horizontes do processo decisório, torna os ganhos e perdas aleatórios, acirra os conflitos pseudodistributivos, premia o aproveitador, desestimula a atividade produtiva, promove o individualismo selvagem, inviabiliza o cálculo econômico racional e torna os orçamentos do setor público peças de ficção contábil”. 

É evidente que há uma diferença acentuada entre os níveis da inflação daquela época e o da atual, que chegou a 10,06% em 2021, conforme divulgação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nos últimos dez anos, apenas em dois deles, 2015 e 2021, a inflação anual foi superior a 10%, como se observa no gráfico 1.

Gráfico 1 – A inflação nos últimos 10 anos: IPCA 2011-2021

Para enfatizar bem a diferença entre os dois contextos, vale lembrar, tanto para os que viveram nos primeiros anos da década de 1990 e, especialmente, para os que não viveram nessa época, a que patamar havia chegado a inflação no Brasil e como estávamos defasados em relação a nossos vizinhos latino-americanos que, àquela altura, já tinham obtido sucesso no esforço de debelar a inflação. Quase todos esses países, a exemplo do Brasil na década de 1980, conviveram com a combinação de estagnação prolongada, inflação crônica e endividamento elevado, no que se convencionou chamar de década perdida.

Como se vê no gráfico 2, a inflação anual do Brasil em 1992 foi de 1.178%, contrastando enormemente com a inflação dos outros países da região.

Gráfico 2 – A inflação na América Latina em 1992[1]

Em 1993, o ano que antecede a adoção do Plano Real, a situação foi ainda pior, com a inflação atingindo 2.567%, enquanto a média dos países da América Latina foi de 22% (gráfico 3). 

Gráfico 3  – A inflação na América Latina em 1993

Diz o ditado que “uma imagem vale mais que mil palavras”. As imagens desses três gráficos constituem, a meu juízo, razões mais do que suficientes para perceber que a inflação atual, mesmo estando bem acima da meta estabelecida pelo Banco Central, está num patamar completamente diferente daquele verificado antes da estabilidade propiciada pelo Plano Real.

Porém, considerando que: (i) não conseguimos eliminar por completo alguns resquícios de cultura inflacionária; (II) já nos deparamos aqui e acolá com notícias dando conta de reivindicações de aumentos de salários e/ou de preços em setores isolados; (iii) tudo indica que continuaremos em 2022 com uma inflação anual superior à meta fixada pelo Banco Central; (iv) estamos em ano eleitoral, nos quais interesses eleitoreiros costumam levar a gastos públicos superiores aos recomendáveis; e (v) assistimos a um crescente desmanche de avanços recentes das instituições anticorrupção,  achei por bem lembrar a perigosa relação entre inflação e corrupção a fim de conscientizar a todos sobre a necessidade de cortarmos o mal pela raiz, fazendo todos os esforços para que a inflação não se alastre e suba de patamar, ameaçando as conquistas decorrentes da estabilização monetária que nos colocaram, depois de muitos anos de inflação crônica e elevada, num novo padrão de convivência civilizada, sem os riscos que a falta de um padrão monetário estável significam para a corrosão do acordo moral de que dependem tanto a manutenção da ordem democrática como o funcionamento do mercado.

Recorro novamente a um alerta de Eduardo Giannetti da Fonseca: “A inflação destrói a transparência da gestão de verbas públicas, mina a confiança da sociedade no Estado, provoca a deterioração da moralidade fiscal e deturpa irremediavelmente as relações de mercado”.

Porém, para confirmar a hipótese de que ainda não estamos vivendo num clima de descontrole generalizado como costuma ocorrer quando todos os agentes econômicos – empresários, trabalhadores, donas de casa etc. – alteram seu comportamento normal, atirando-se num clima alucinado de jogatina, encerro reproduzindo um trecho bastante ilustrativo de Lionel Robbins, que, a exemplo de John Maynard Keynes, foi um dos maiores economistas do século XX: “A honestidade pública e privada tendem a se deteriorar na atmosfera de cassino engendrada pela inflação alta. A inflação, tal qual nós a conhecemos, através da história, corrompe e distorce toda a base da sociedade. Eu não afirmo que o mundo chegará ao seu fim se nós degenerarmos até a posição da América Latina. Mas o que digo é que uma inflação da ordem de grandeza que estamos presenciando (15% ao ano) gradualmente acarreta uma mudança radical de atitude – uma mudança geral e deplorável de atitude em toda a sociedade”.

 

Referências

FONSECA, Eduardo Giannetti da. Ética e inflação. Em O Estado de S. Paulo, 14 de julho de 1992, p. 2.

_______________ As consequências morais da inflação. Em As partes & o todo. São Paulo: Siciliano, 1995, pp. 185-190.

KEYNES, John M. As consequências econômicas da paz. Prefácio de Marcelo de Paiva Abreu; tradução de Sérgio Bath. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. (Clássicos IPRI; v. 3).

ROBBINS, Lionel. Against inflation (1979). Em FONSECA, Eduardo Giannetti da. Ética e inflação. Braudel Papers, n° 1. São Paulo: Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, 1993, p. 6.

 

 * Luiz Alberto Machado é economista pela Universidade Mackenzie (1977), mestre em Criatividade e Inovação pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal, 2012), assessor da Fundação Espaço Democrático e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Baseado no artigo publicado no blog de Fausto Macedo do jornal O Estado de S. Paulo, em 15 de abril de 2022.

[1] A fonte dos gráficos 2 e 3 é a FGV.

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“Eu sou você amanhã”. De novo? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3526&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=eu-sou-voce-amanha-de-novo Thu, 04 Nov 2021 14:04:34 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3526 Brasil e Argentina: “Eu sou você amanhã”. De novo?

 

Por Luiz Alberto Machado*

 

“Enquanto o Brasil sonha com um futuro que não chega, a Argentina sonha com um passado que não volta”.

Roberto Macedo

 

Houve um período relativamente longo, na década de 1980, em que as economias do Brasil e da Argentina se alternavam em situações críticas, ora com uma em situação mais difícil, ora com outra nessa indesejável posição. Numa analogia com um memorável comercial de uma marca de vodca, costumava-se utilizar a expressão “eu sou você amanhã”, para se referir a essa triste alternância.

Nesse período, as equipes econômicas, tanto no Brasil como na Argentina, fizeram diversas tentativas, lançando mão de planos para conter a inflação que assolava os dois países.

Na Argentina, o Plano Austral, de junho de 1985, optou pelo congelamento de preços, tarifas e salários. O congelamento acabou por distorcer os preços relativos da economia e afetar o abastecimento de produtos básicos, entre os quais a carne, produto essencial na dieta dos argentinos. Alguns ajustes ao plano foram feitos em fevereiro de 1986, mas já em agosto do mesmo ano estava claro que o congelamento de preços não funcionara. Em 1987, houve o agravamento da crise econômica, com a inflação se acelerando rapidamente, o que levou o governo argentino  a enfrentar grandes dificuldades fiscais. Em agosto de 1988, foi lançado o Plano Primavera, última tentativa do governo de Raúl Alfonsín de controlar a inflação, mas também sem sucesso.

Quase ao mesmo tempo, o Brasil seguia uma trajetória muito parecida com a dos hermanos. No final de fevereiro de 1986, foi anunciado o Plano Cruzado, que também congelava preços e salários. Assim como na Argentina, a desordem provocada nos preços relativos gerou graves distorções e desabastecimento. Ajustes ao Plano Cruzado foram feitos em novembro de 1986 (Plano Cruzado 2) e, depois da troca da equipe econômica, um novo plano foi adotado em junho de 1987 (Plano Bresser), repetindo a estratégia do controle de preços, igualmente sem resultado. A crise econômica se agravou em 1987 e o governo brasileiro, com dificuldades para pagar a dívida externa, recorreu a uma moratória. Depois de nova troca da equipe econômica, em janeiro de 1989, foi anunciado o Plano Verão, última tentativa do governo de José Sarney para controlar a inflação pela via do controle de preços, novamente sem sucesso[1].

Como o Brasil demorou mais do que outros países sul-americanos para conseguir reduzir a inflação[2], os planos heterodoxos adentraram a década de 1990 com o Plano Brasil Novo (mais conhecido como Plano Collor), anunciado logo a posse do presidente Fernando Collor em março de 1990, e o Plano Collor 2, de janeiro de 1991.

A sequência de insucessos compartilhados pelos dois países ficou conhecido como efeito Orloff: “Eu sou você amanhã”.  Ou seja, para saber o que iria acontecer no Brasil, bastava ver o que tinha acontecido na Argentina ou vice-versa. Em realidade, no comercial o alerta “eu sou você amanhã” vinha seguido da recomendação “pense em você amanhã, exija Orloff hoje”. A mensagem da propaganda de vodca vinculada na década de 1980 era evitar a ressaca do dia seguinte.

A partir do êxito obtido com o Plano Real, que, ao contrário dos planos heterodoxos anteriormente tentados, conseguiu estabilizar consistentemente a nossa moeda, a diferença com a situação econômica da Argentina foi se tornando cada vez mais nítida. Embora o Brasil também tenha testemunhado oscilações em sua economia nas duas últimas décadas e o crescimento médio esteja muito abaixo do observado entre 1870 e 1986[3], a inflação foi mantida sob controle em níveis considerados baixos para nossos padrões. Enquanto isso, a economia argentina passou a maior parte desse tempo envolvida em grave crise, com a perversa combinação de baixo crescimento, elevada inflação, alto desemprego e forte endividamento, tanto interno quanto externo, fazendo com que o país fosse obrigado a recorrer mais de uma vez ao Fundo Monetário Internacional.

Para favorecer uma comparação mais ampla entre o Brasil e a Argentina, vou me estender no exame da longa deterioração do país vizinho.

Nasci em 1955 e, graças ao basquete, a partir dos 13 anos de idade tive oportunidade de realizar uma série de viagens ao exterior, numa época em que tal prática não era tão comum como é nos dias de hoje. Mesmo tendo conhecido diversos outros países antes de conhecer a Argentina, o que aconteceu apenas em 1977, ouvi diversas referências ao elevado nível de desenvolvimento do país que, em meados do século passado, ostentava indicadores socioeconômicos superiores inclusive aos de diversos países da Europa.

Quando estive na Argentina pela primeira vez, o quadro já não era o mesmo e o processo de deterioração já se encontrava em curso. De lá para cá, tive a chance de retornar ao país mais de uma dezena de vezes e, a cada nova visita, constatava o agravamento da situação.

Embora, a exemplo do que ocorreu também no Brasil, tenham se observado algumas oscilações, a tendência declinante foi uma característica marcante da economia argentina nos últimos 60 anos. Marcos Aguinis, brilhante sociólogo argentino, descreve de forma contundente essa trajetória declinante num livro intitulado ¡Pobre patria mía!:

Fomos ricos, cultos, educados e decentes. Em poucas décadas nos convertemos em pobres, mal educados e corruptos. Geniais! A indignação me tritura o cérebro, a ansiedade me arde nas entranhas e enrijece todo o sistema nervoso. Adoto hoje [neste livro] o subgênero do panfleto – elétrico, insolente, visceral – para dizer o que sinto sem ter que por notas de rodapé ou assinalar as citações. O que quero transmitir é tão forte e claro que devo esculpir. Ao leitor que já me conhece só peço, como sucedia com os panfletos do século XIX, que considere minha voz como a voz dos que não têm voz. Ou que, se a tem, não sabem como nem onde transmiti-la. Não se trata de arrogância, mas sim de pedir permissão.[4]

Mais adiante, numa clara manifestação de inconformismo pela pouca importância que a comunidade internacional atribui atualmente a um país que já foi considerado o mais desenvolvido da América do Sul, Aguinis assinala:

Cada vez que regresso de uma viagem ao estrangeiro, alguém me pergunta: “Que opinam a nosso respeito?” Existe ansiedade por obter a aprovação alheia, como se fôssemos conscientes da culpa que carregamos por haver corrompido o presente argentino. Minha resposta, por muitos anos, tratava de refletir os conceitos que haviam chegado a meus ouvidos. Agora já não preciso me esforçar. Respondo sem anestesia: “Crês que opinam mal? Não te iludas! Nem sequer mal: já não falam de nós”.

O casal Kirchner ocupa posição de destaque no rol dos responsáveis pela situação ter chegado até o ponto em que se encontra. O trecho que se segue, extraído já da parte final do livro deixa isso claro:

Nunca o casal K entendeu que o mundo é uma imensa oportunidade, onde nossos produtos seriam avidamente devorados. Que teríamos tudo para abastecer o mercado. Nunca entendeu que se devem respeitar os direitos da propriedade privada porque, ao contrário do que supunha o desinformado Proudhon, constituem a raiz da riqueza e um estímulo ao respeito pelo outro e por si mesmo. Aristóteles demonstrou que “o que é de todos, não é de ninguém”. A carência de hierarquia da propriedade privada permite o avanço da depredação. O famoso “modelo K”, apesar de obscuro, pelo menos deixa entrever que ama a depredação.

A conclusão de Aguinis não deixa margem a qualquer dúvida. É dentro, e não fora do país, que se encontram as razões dessa prolongada decadência.

A firme defesa dos princípios defendidos pelo socialismo bolivariano e o fortalecimento das relações com a Venezuela, a Bolívia e o Equador que se verificaram nos últimos anos serviram apenas para agravar uma situação que já era difícil.

Considerando um horizonte temporal mais reduzido, é possível afirmar que a economia argentina encontra-se em recessão desde 2011. Conseguiu, graças a alguns resultados iniciais obtidos pelo governo do presidente Mauricio Macri, levar a situação com altos e baixos por algum tempo. Porém, quando ficou claro que as metas prometidas por Macri não seriam atingidas, a situação se deteriorou, obrigando o país a contrair um empréstimo de US$ 56,3 bilhões junto ao FMI em 2018. A vitória do peronista Alberto Fernandez no primeiro turno das eleições de outubro de 2019 trouxe alguma esperança a uma parcela da população argentina.  A falta de resultados imediatos e a chegada da pandemia, em março do ano passado, tornaram as coisas ainda mais difíceis.

Não é fácil enumerar todos os problemas que afligem a nação vizinha. Alguns deles, porém, chamam a atenção: (i) a economia argentina permanece dependente da exportação de produtos agrícolas, de baixo valor agregado, enquanto seu parque industrial apresenta sinais alarmantes de obsolescência; (ii) a inflação segue num patamar elevado para os padrões internacionais, apesar de sucessivas tentativas de mantê-la controlada por meio de congelamento e/ou tabelamento dos preços de determinados produtos; (iii) continua existindo na Argentina uma perigosa convivência da moeda local com o dólar, com um ativo mercado paralelo que reflete enorme desconfiança na moeda local; (iv) o país apresenta forte vulnerabilidade por não dispor de reservas internacionais suficientes para lhe permitir condições favoráveis no enfrentamento das pressões ou mesmo na negociação com os credores.

Em conversa recente com Norberto Vidal, ex-cônsul da Argentina em São Paulo,  sobre problemas vividos por nossos países, ele revelou que em consequência da derrota nas primárias realizadas em 12 de setembro, o governo argentino passou a adotar ações desesperadas, com farta distribuição de recursos públicos, com o objetivo de tentar evitar uma derrota ainda maior nas eleições legislativas que serão realizadas no próximo dia 14 de novembro.

Considerando a gravidade da situação vivida pela Argentina e esse comportamento descontrolado do governo, imaginei que a diferença com a situação da economia brasileira se ampliaria ainda mais.

Ledo engano. Num prazo muito mais curto do que eu poderia supor, deparei-me com uma série de ações que, também por motivos eleitoreiros, comprometeram rapidamente nossos indicadores econômicos, com elevação da inflação, deterioração do câmbio e violação do teto de gastos. O argumento, falacioso em minha opinião, foi a necessidade de priorizar aspectos sociais, como se houvesse incompatibilidade entre responsabilidade social e responsabilidade fiscal.

As medidas adotadas provocaram, entre outras coisas, a demissão de dois dos mais importantes assessores do ministro Paulo Guedes, num raro exemplo, nos dias de hoje, de obediência aos padrões de decência por parte de integrantes do Executivo[5].

Com isso, além de nos aproximarmos da situação da Argentina, estamos caminhando celeremente para um passado em que, diante do descontrole na área fiscal, toda a responsabilidade pela contenção da inflação fica com a política monetária. Em outras palavras, com o Banco Central e sucessivas elevações da taxa de juros.

Como bem observa Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central:

Quando um governo irresponsável eleva os gastos sem ter os recursos, impõe ao Banco Central uma dura escolha. Ou este exerce sua independência, elevando a taxa de juros o que for necessário para cumprir seu mandato, ou se submete aos objetivos políticos do governo, tornando-se prisioneiro da dominância fiscal.

Sua conclusão é bem objetiva: “O que resta, diante da irresponsabilidade fiscal do governo e de sua base de apoio no Congresso, é a esperança de que o Banco Central exerça sua independência e cumpra seu mandato”.

 

 

Referências e indicações bibliográficas e webgráficas 

AGUINIS, Marcos. O atroz encanto de ser argentino. São Paulo: Editora Bei, 2002. 

_______________ ¡Pobre patria mía!: Panfleto. 9ª ed. Buenos Aires: Sudameris, 2009.

CHAGUE, Fernando. Eu (não) sou você amanhã. Folha de S. Paulo, 26 de dezembro de 2019. Disponível em https://porque.com.br/eu-nao-sou-voce-amanha. 

DEPOIS das pedaladas, a obscenidade fiscal. O Estado de S. Paulo, 23 de outubro de 2021, p. A3.

FRANCO, Gustavo. O teto e o precipício. O Estado de S. Paulo, 31 de outubro de 2021, p. B6.

GOLFAJN, Ilan. ‘Responsabilidade social não significa irresponsabilidade fiscal’. Entrevista a José Fucs. O Estado de S. Paulo, 31 de outubro de 2021, p. B4.

KUNTZ, Rolf. Bolsonaro e a privatização do Orçamento. O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 2021, p. A8.

MEIRELLES, Henrique. ‘Estou vendo uma volta para trás. Um retrocesso’. Entrevista a Adriana Fernandes. O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 2021, p. B4.

MENDONÇA DE BARROS, José Roberto. Descendo a ladeira. O Estado de S. Paulo, 31 de outubro de 2021, p. B3.

MING, Celso. O Brasil. Mais parecido com a Argentina. O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 2021, p. B3. 

PASTORE, Affonso Celso. Só restou o Banco Central. O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 2021, p. B2. 

RICUPERO, Rubens. O Brasil e o dilema da globalização. São Paulo: Editora SENAC. Série Livre Pensar, 2001. 

SCHUETTINGER, Robert Lindsay; BUTLER, Eamonn. Quarenta séculos de controles de preços e salários: o que não se deve fazer no combate à inflação. Tradução de Anna Maria Capovilla. São Paulo: Visão, 1988.

 

 

[1] Lamentavelmente, os responsáveis pela condução da política econômica do Brasil e da Argentina jamais leram o livro Quarenta séculos de controles de preços e salários, que tem o sugestivo subtítulo o que não se deve fazer no combate à inflação.

[2] Em 1992, a inflação anual na Argentina foi de 17%, enquanto no Brasil atingiu 1.178%. Em 1993, ano anterior ao da adoção do Plano Real, a inflação brasileira foi de 2.567%, ao passo que a inflação média no continente foi de 22%.

[3] No consagrado trabalho World Economic Performance Since 1870, Angus Maddison, um dos mais respeitados analistas de ciclos longos de desenvolvimento, identificou o Brasil como o país que apresentou melhor desempenho de 1870 a 1986, numa amostra que reunia os cinco maiores países da OCDE (EUA, Alemanha, Reino Unido, França e Japão) e os cinco maiores de fora da OCDE (Rússia, China, Índia, México e Brasil). Nesse estudo, publicado em 1987 e apontado pelo embaixador Rubens Ricupero (2001, p. 103) como “o mais impressionante de todos, por comparar grandes economias, portanto entidades pertencentes mais ou menos à mesma ordem de grandeza, e por cobrir duração de tempo tão extensa”, Maddison concluiu que “o melhor desempenho tinha sido o brasileiro, com a média anual de 4,4% de crescimento; em termos per capita, o Japão ostentava o resultado mais alto, com 2,7%, mas o Brasil, não obstante a explosão demográfica daquela fase, vinha logo em segundo lugar, com 2,1% de expansão por ano”.

[4] Todas as citações do livro ¡Pobre patria mía! foram traduzidas para o português pelo autor.

[5] Os dois assessores que pediram exoneração de seus cargos no dia 21 de outubro foram Bruno Funchal, secretário especial do Tesouro e Orçamento, e Jeferson Bittencourt, secretário do Tesouro Nacional.

 

* Luiz Alberto Machado é economista pela Universidade Mackenzie (1977), mestre em Criatividade e Inovação pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal, 2012), assessor da Fundação Espaço Democrático e conselheiro do Instituto Fernand Braudel.

 

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A aparente contadição entre desemprego e escassez de mão de obra https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3513&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-aparente-contadicao-entre-desemprego-e-escassez-de-mao-de-obra Thu, 28 Oct 2021 00:16:38 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3513 A aparente contradição entre desemprego

e escassez de mão de obra

Por Luiz Alberto Machado*

 

Muita gente tem ficado confusa ao ler as diferentes seções dos jornais, revistas e sites nas últimas semanas, o que, em minha opinião, é absolutamente compreensível. Afinal, algumas manchetes apresentam, aparentemente, enorme contradição, sobretudo quando se referem ao nível de emprego e ao mercado de trabalho.

Tal contradição resulta não apenas da complexidade da economia, mas também das oscilações que ocorrem na macroeconomia – que focaliza dados agregados – e na microeconomia, com desempenhos diferentes quando se examinam determinados setores ou regiões.

No presente artigo, procuro explicar a aparente contradição que menciona, de um lado, o elevado desemprego e, de outro, a escassez de mão de obra que gera acirrada disputa por profissionais em alguns segmentos do mercado.

Comecemos pelo desemprego, que se elevou a partir do início da pandemia do coronavírus e permanece em patamar elevado, em torno de 14%, mesmo com a reação da economia a partir do terceiro trimestre de 2020, que levou muitos especialistas a se referirem a ela como recuperação em V. Ora, se não apresentou melhora na fase mais favorável da recuperação em V, é natural que não o faça agora, quando os indicadores apontam para uma estagnação, indicada pelo colega Roberto Macedo pelo sinal da raiz quadrada em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo e reproduzido neste Blog.

O elevado desemprego é um dos componentes da chamada tempestade perfeita que se abate atualmente sobre a economia brasileira, resultante da combinação de uma pandemia devastadora, de uma crise hídrica tão ou mais grave do que a de 2001 e de um governo desastroso, que pode ser comparado a uma fábrica de incertezas, e que produziu, na economia, a perversa mistura de crescimento baixo com inflação alta, pondo por terra, mais uma vez, um dos postulados da teoria econômica, a Curva de Philips[1].

Como, então, pode haver escassez de oferta de mão de obra e acirrada disputa por profissionais no mercado num país marcado por elevado nível de desemprego?

Para entender essa aparente contradição, precisamos fazer a ponte entre a macro e a microeconomia. Nem tudo que vale para a macroeconomia, vale para a microeconomia, cuja análise se desloca da seara dos agregados para a dos aspectos pontuais, examinando um segmento da economia, um setor da cadeia produtiva ou uma região particular.

No presente momento, a coexistência que causa surpresa no mercado de trabalho não se estende a todos os setores da nossa economia, mas sim a um segmento específico.

Enquanto os indicadores macroeconômicos persistem sinalizando para um alto desemprego, os indicadores microeconômicos referentes às atividades ligadas à tecnologia da informação, diretamente associadas à transformação digital em curso, revelam um mercado de trabalho bastante aquecido, em que não é raro observar empresas “roubando” profissionais de suas concorrentes.

Infelizmente, o fenômeno não é generalizado. É localizado e favorece apenas a profissionais qualificados, deixando à margem a esmagadora maioria dos desempregados e desalentados, constituída por trabalhadores de baixa qualificação, vítimas, muitas vezes, das decantadas deficiências do nosso sistema educacional.

Em consequência disso, constatam-se mudanças importantes, com o enfraquecimento de algumas profissões ou ocupações tradicionais e a crescente valorização de “carreiras do futuro”, tendência que tem levado muitas pessoas a se reposicionarem, buscando diferentes formas de aperfeiçoamento em atividades relacionadas à tecnologia.

Naturalmente, as instituições de ensino correm para se adaptar aos novos tempos, alterando a oferta de cursos ou a grade curricular dos já existentes, na tentativa de atender a essa procura crescente por parte de estudantes atraídos por funções que aliam boas oportunidades e bons salários.

E que funções são essas?

Entre elas, podem ser citadas: engenheiro de dados (responsável pelo gerenciamento de captação, armazenamento e distribuição de dados em toda a empresa), arquiteto de soluções (responsável pelo desenvolvimento, adequação e integração de novas soluções personalizadas para as empresas), gestor de mídias sociais (responsável por posicionar a marca da empresa conforme seus objetivos de atrair, reter e engajar o público nesses canais), desenvolvedor full stack (responsável por desenvolver códigos para a execução das funções de uma aplicação na internet), líder de live streaming (responsável por garantir o bom funcionamento das transmissões ao vivo e pela coordenação das equipes que farão as lives), piloto de drone (responsável pelo controle da máquina para a produção de imagens e fotos aéreas para diversos tipos de empresas), especialista em machine learning (responsável pelo desenvolvimento de cálculos, simulação de cenários de decisão e avaliação dos resultados gerados pela simulação), people analytics (responsável pelo processo de coleta, análise e geração de insights baseados em dados para a gestão de pessoas) e pentester (responsável pela execução de testes de segurança em uma infraestrutura para prevenir invasões e exposições de dados).

Com salários médios que variam de R$ 5,5 mil a R$ 13 mil, são algumas das funções que começam a ser mais requisitadas no mercado de trabalho. Elas serão, certamente, acompanhadas por novas designações à medida que a inteligência artificial e a tecnologia de informação evoluem num ritmo cada vez mais acelerado.

 

 

[1] A teoria econômica não admitia a existência desse fenômeno, dado que a crença era no domínio da Curva de Phillips original, que estabelece uma relação inversa entre as taxas de desemprego e de inflação. Se o desemprego fosse alto, a inflação seria baixa, e vice-versa. Supondo a validade dessa relação inversa, recomendava-se que as políticas econômicas adotassem medidas inflacionárias para combater o desemprego e medidas recessivas, causadoras de desemprego, para combater a inflação.

 

* Luiz Alberto Machado é economista pela Universidade Mackenzie (1977), mestre em Criatividade e Inovação pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal, 2012), assessor da Fundação Espaço Democrático e conselheiro do Instituto Fernand Braudel.

 

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Mudam-se os tempos, permanece o patrimonialismo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3507&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=mudam-se-os-tempos-permanece-o-patrimonialismo Thu, 07 Oct 2021 13:44:21 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3507 Mudam-se os tempos, permanece o patrimonialismo

 

Por Luiz Alberto Machado*

 

Tenho absoluta convicção de que uma das razões da dificuldade para a consolidação da cidadania no Brasil reside no caráter patrimonialista que envolve nossa formação política.

A concepção patrimonialista da história político-econômica do Brasil é, de certa forma, uma contraposição à teoria da dependência, que surgiu por volta da década de 1960 e ganhou enorme popularidade nos anos seguintes. Tal teoria, que explicava o atraso relativo dos países latino-americanos a partir de uma relação perversa que os vinculava aos países desenvolvidos na nova divisão internacional do trabalho, ganhou projeção a partir da publicação do livro Dependência e desenvolvimento na América Latina, de autoria de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. Propunha que o subdesenvolvimento dos países latino-americanos era consequência inevitável da exploração a que estavam submetidos por parte dos países desenvolvidos – chamados de centrais –, situação a que estariam condenados a permanecer em razão das relações internacionais vigentes.  Dava, portanto, a certeza de que a responsabilidade pelo nosso subdesenvolvimento era integralmente dos países desenvolvidos, não restando aos países latino-americanos outro destino que não o de desempenhar o papel de vítimas da história.

Esse tipo de ponto de vista, que praticamente nos isentava de qualquer responsabilidade pelo subdesenvolvimento da região, jogando toda a culpa pelo nosso atraso nas costas dos países desenvolvidos, incomodou alguns pensadores que enxergavam nessa postura uma forma confortável de encarar a questão. Assim, agindo a princípio de forma assistemática, já que desenvolviam suas pesquisas e seus trabalhos em instituições e locais diferentes, acabaram dando origem a uma corrente de interpretação que se convencionou chamar de patrimonialista e que tem no deslocamento do foco central de sua análise da realidade latino-americana de fora para dentro dos países da região uma de suas marcas principais.

O Estado brasileiro, em sua conformação histórica, corresponde a um tipo de dominação política que na tipologia de Max Weber se denomina “organização estatal-patrimonial”. Trata-se de categoria que permite abarcar em toda a sua complexidade e profundidade o fenômeno do poder entre nós brasileiros, já que não restrita a variáveis puramente econômicas, como no marxismo, por exemplo. A tentativa de reduzir a formação do Estado à simples expressão de interesses de classe tem-se revelado insuficiente para explicar a história política de nosso país, sobretudo por desconsiderar as variáveis culturais como fatores configuradores da ordem política.

O mando político, no mundo hispânico, foi tradicionalmente entendido como patrimônio pessoal do governante – uma extensão do poder doméstico – e nisso consiste o aspecto nuclear da dominação patrimonial. Despojado de sua dimensão pública, o poder, nos moldes do patrimonialismo, constitui, nas palavras de Max Weber, “um direito próprio (do soberano) apropriado em igual forma que qualquer outro objeto de possessão”.

Diversos autores, com base nessa concepção weberiana, desenvolveram interessante análise da formação político-econômica do Brasil por meio da qual têm procurado identificar a origem de uma série de problemas que, até hoje, assolam o País. Entre esses autores, destacam-se Raymundo Faoro, José Nêumanne Pinto, Antonio Paim, Ricardo Vélez Rodríguez, Simon Schwartzman e José Júlio Senna. Em suas análises, realçam as principais características das relações entre o Estado e a sociedade no contexto do patrimonialismo brasileiro: (i) o centralismo; e (ii) o estatismo e seus subprodutos: autossuficiência do poder; raquitismo da vida civil; insolidarismo; privatização da coisa pública.

Uma das interpretações que mais me agrada entre as dos analistas que enfatizam o caráter patrimonialista da formação do Estado no Brasil é a do jornalista José Nêumanne, apresentada nos capítulos iniciais de seu livro Reféns do passado. Nele, Nêumanne chama a atenção para a enorme influência na época do Brasil-colônia de três instituições trazidas prontas pela coroa portuguesa – o Estado, o exército e a igreja – e de seus respectivos estamentos, o estamento burocrático, os militares e o clero. Direta ou indiretamente a influência desses estamentos esteve presente nos grandes acontecimentos da história política brasileira. Seus membros, sempre que necessário, colocavam os interesses do estamento a que pertenciam acima dos próprios interesses nacionais. A característica comum a essas instituições é o fato de não serem porosas à participação da opinião pública, assumindo, no Brasil e no exterior, vida própria, independente da vontade popular.

Na nossa história recente, temos tido oportunidade de presenciar exemplos claros desse caráter patrimonialista em episódios que redundaram no impeachment dos presidentes Collor e Dilma Rousseff, nos escândalos do mensalão e do petrolão durante os governos do presidente Lula e nas frequentes ações do presidente Bolsonaro em que fica flagrante a influência de seus filhos ou a preocupação de protegê-los diante de qualquer denúncia, como no caso das rachadinhas. São casos evidentes de usar o poder ou a coisa pública em benefício de interesses de grupos particulares. Podem variar em grau de intensidade, mas não deixam de marcar presença.

Em decorrência disso, além dos frequentes casos de corrupção, impunidade, empreguismo e nepotismo, ocorre uma brutal perda de eficiência, que compromete a produtividade, reduz a competitividade da economia nacional e mancha a imagem internacional do Brasil.

 

* Luiz Alberto Machado é economista pela Universidade Mackenzie (1977), mestre em Criatividade e Inovação pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal, 2012), assessor da Fundação Espaço Democrático e conselheiro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no Blog de Fausto Macedo, O Estado de S. Paulo, em 29 de setembro de 2021.

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O crime compensa? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3479&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-crime-compensa Wed, 14 Jul 2021 19:36:21 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3479 O crime compensa?

Por Luiz Alberto Machado*

Chama a atenção o volume de matérias divulgadas na mídia ou nas redes sociais envolvendo temas relacionados ao crime e à corrupção no Brasil.

Mesmo admitindo que há crime e corrupção no mundo todo e que a pandemia  expandiu os estímulos à prática de atos ilícitos em razão da redução do nível de atividade econômica e da menor oferta de empregos formais, a sensação que se tem é que no Brasil o volume supera o normal.

Sensação, aliás, confirmada pela Transparência Internacional, organização não governamental dedicada à produção de um índice comparativo da percepção de corrupção em 180 países. A escala do índice vai de 0 a 100, em que 0 significa que o país é percebido como “altamente corrupto” e 100 é a avaliação de um país percebido como “muito íntegro”. Notas abaixo de 50 indicam níveis graves de corrupção.

Na última edição do IPC (Índice de Percepção da Corrupção), publicada janeiro de 2021, a nota do Brasil (38) ficou abaixo da média da América Latina (41) e mundial (43) e distante da média dos países do G20 (54) e da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) (64).

A combinação de elevado volume de matérias sobre crimes e de alto índice de percepção da corrupção leva à seguinte pergunta: o crime compensa no Brasil?

Uma possível resposta a essa pergunta pode ser buscada na teoria econômica, graças, sobretudo, à contribuição de Gary Becker, ganhador do Nobel de Economia em 1992, “por haver estendido os domínios da análise microeconômica ao vasto campo do comportamento humano e das suas interações, incluindo o comportamento não mercadológico”.

Becker, que se engajara, de 1964 a 1967, numa linha de pesquisa liderada por Jacob Mincer e Theodore Schultz voltada à teoria do capital humano, ampliou consideravelmente a problemática neoclássica (base da teoria do capital humano) ao estender para diversos outros fenômenos da vida social o mesmo argumento utilizado na análise do investimento em capital humano, fundamentada na racionalidade dos indivíduos. Nas mais diferentes situações – para se casar, para se dedicar ao crime, para consumir drogas, para ter filhos, para comprar um eletrodoméstico ou para se divorciar – o indivíduo toma sua decisão comparando racionalmente os custos e os benefícios, tendo em mente a maximização de sua satisfação.

Como observa Shikida[1], “a economia do crime, portanto, é uma das abordagens no campo das ciências sociais aplicadas que procura entender as motivações para o crime a partir da análise econômica. No artigo “Crime and punishment: an economic approach”, publicado em 1968, Becker, utilizando-se de modelagem matemática, ressaltou que uma pessoa propensa ao crime pondera, racionalmente, os custos e benefícios esperados de sua prática ilícita, para, a partir daí, escolher atuar (ou não) no mercado econômico ilegal”.

Detalhando mais o argumento, o indivíduo racional compara os ganhos que pode obter com as atividades ilícitas aos seus custos, considerando as possibilidades de ser capturado e a extensão da pena. Pode parecer simples, mas há uma série de variáveis envolvidas nessa análise. Pelo lado dos benefícios, o indivíduo compara o que será possível ganhar e em quanto tempo de “trabalho”. Leva em conta, alternativamente, quanto ganharia no exercício de uma atividade profissional regular, na qual provavelmente teria que trabalhar em tempo integral. Pelo lado dos custos, ele vai levar em conta as chances de ser flagrado, de ser condenado e de efetivamente ter que cumprir a pena. Se, por exemplo, for um indivíduo de baixa qualificação, sem maiores oportunidades de obter um emprego com remuneração elevada, a perspectiva de correr risco na atividade criminosa torna-se mais atraente. Se ele considerar que a chance de ser flagrado e condenado é remota em razão do número reduzido de policiais, do despreparo dos mesmos ou dos equipamentos limitados de que dispõem, a perspectiva torna-se mais atraente ainda. Se, ainda por cima, ele constatar que a legislação oferece uma série de atenuantes e que por falta de presídios a tendência dos juízes é de aplicar penas suaves, sendo, portanto, muito remota a hipótese de ter que passar um período muito longo de tempo atrás das grades, a chance de optar pelo crime é muito grande. Afinal, com essas variáveis todas, a conclusão a que o indivíduo chega é de que “o crime compensa”.

Evidentemente, se as variáveis fossem outras, como por exemplo: de um lado, o indivíduo possui bom nível de qualificação, a atividade econômica está em fase de expansão, estão surgindo boas oportunidades de emprego e a chance de obter salários elevados é alta; e de outro lado o sistema de segurança é eficiente, recebe polpudos investimentos públicos, resultando num efetivo policial bem preparado e equipado, capaz de exercer com competência o combate ao crime, agindo tanto na prevenção como na repressão, o sistema judicial é ágil, permitindo a tramitação rápida dos processos e as penas são duras, tendo que ser cumpridas à risca, a possibilidade de se sair bem na atividade criminosa se reduz acentuadamente, e o indivíduo irá pensar muito mais antes de se dedicar a ela, já que na sua percepção, “o crime não compensa”.

Diante de tais considerações, a conclusão inevitável é de que no Brasil o crime compensa, pois, além de graves problemas na educação, que geram enorme quantidade de profissionais com baixa qualificação, temos um número muito baixo de crimes esclarecidos ou de atos de corrupção efetivamente punidos. E, quando ocorre a punição, a possibilidade de cumprimento integral da pena também é muito baixa.

Entre outros prejuízos decorrentes dessa situação, está o afugentamento de investimentos estrangeiros diretos, algo fundamental para um país cuja população – ou por não ter condições ou por uma questão cultural – não cultiva o hábito da poupança, pré-requisito indispensável para o investimento. Por isso, a atração de capitais provenientes do exterior é essencial para a preservação da nossa incipiente taxa de investimento.

 

* Luiz Alberto Machado é economista, mestre em Criatividade e Inovação e conselheiro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no Blog de Fausto Macedo em O Estado de S. Paulo em 14 de julho de 2021.

[1] Disponível em http://www.brasil-economia-governo.org.br/2021/06/07/economia-do-crime/.

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