Eiiti Sato – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Tue, 01 Feb 2022 09:51:56 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 O Novo Multilateralismo em uma Ordem Internacional em Transformação https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3573&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-novo-multilateralismo-em-uma-ordem-internacional-em-transformacao Tue, 01 Feb 2022 09:13:42 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3573 O Novo Multilateralismo em uma Ordem Internacional em Transformação[1]

 

Por Eiiti Sato[2]

 

Multilateralismo e regimes internacionais

O multilateralismo passou a ser uma componente importante na política internacional apenas no século XX, com o estabelecimento da Liga das Nações em 1919. A partir de então, a prática do multilateralismo ganhou crescente importância em especial depois da Segunda Guerra Mundial. A criação Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945 serviu, em larga medida, de padrão e de referência para levar o multilateralismo para esferas regionais e também para áreas específicas das relações internacionais como a economia, a saúde, o trabalho e mais tarde para as questões ambientais e para os temas sociais. Algumas organizações formadas no período eram derivadas de iniciativas anteriores, como foi o caso da União Panamericana, criada na esteira das Conferências Pan Americanas iniciadas 1889. Em 1948 a União Panamericana foi substituída pela Organização dos Estados Americanos (OEA). A Organização Internacional do Trabalho nascera juntamente com a Liga das Nações, na esteira do Tratado de Versailles (1919) e, na esfera econômica, as principais instituições foram criadas em 1944, em Bretton Woods (FMI e Banco Mundial). O General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), por sua vez, só foi criado em 1947. Observa-se que, apesar das datas e das peculiaridades individuais, é possível afirmar que a criação dessas instituições ocorreu dentro do mesmo espírito que havia levado à criação da Liga das Nações (1919) e da ONU (1945) e também no entendimento de que uma parte considerável das relações internacionais passava a ser organizada e conduzida de forma regular por meio de práticas e de padrões regulares que, mais tarde, os estudiosos de relações internacionais passariam a chamar de regimes internacionais[3]. Dessa forma, após a Segunda Guerra Mundial, sob a inspiração dessas iniciativas e da ideia de que em muitos aspectos a integração regional e global poderia facilitar o entendimento e a prosperidade econômica, o multilateralismo tornou-se uma prática regular nas relações internacionais.

Com efeito, foi a partir de 1945 que houve a disseminação mais ampla do entendimento de que as relações internacionais apresentavam uma crescente regularidade, e que as relações econômicas e sociais tornavam-se cada vez mais integradas, demandando arranjos multilaterais mais organizados e mais permanentes. Na realidade, na criação desses arranjos, as experiências vividas no entreguerras foram marcantes e reveladoras do fato de que no mundo já havia se formado um verdadeiro “sistema internacional”, isto é, a Grande Depressão da década de 1930 havia mostrado que alguns fenômenos como a inflação, o crescimento e a recessão podiam se propagar como ondas, de país para país. De fato, a grande crise havia mostrado que, até mesmo uma economia tão grande e tão generosamente dotada de recursos naturais, como a dos EUA, não estava isenta de sofrer as consequências da crise que se desencadeara em 1929 e que se estendera por toda a década de 1930. Mesmo no plano das teorias, já emergiam abordagens como a dos ciclos econômicos que argumentava que a evolução das economias ocorria alternando períodos de crescimento e de estagnação e, por vezes, de recessão. A hipótese dos ciclos econômicos foi primeiramente associada à própria natureza do capitalismo sendo, depois, associada a mudanças tecnológicas[4].

Após a dolorosa experiência da Segunda Guerra Mundial, as iniciativas de criação de organizações internacionais foram também fortemente impulsionadas pelo desejo de paz. Nesse entendimento, a criação de organizações internacionais de todos os tipos era uma forma de traduzir em iniciativas esse desejo de paz e de cooperação internacional. Esse ambiente largamente favorável ao multilateralismo começou a ser questionado com a crise do petróleo desencadeada em 1973. Em termos de tendência, a crise no mercado de petróleo foi um evento revelador de que a ordem econômica e política, que por três décadas havia orientado as ações dos atores no cenário internacional, chegava aos níveis de seu esgotamento. A dependência do petróleo havia se estendido tanto para as economias avançadas quanto para as economias em desenvolvimento e os padrões de exploração dessa commodity, dramaticamente, mostravam seus limites. Além disso, por sua complicada vinculação com o mundo da política e da segurança internacionais o petróleo possuía um cunho estratégico sem paralelo com outras commodities.

Conceitos e terminologia

Para a compreensão adequada da questão do multilateralismo parece oportuno recuperar e dar maior precisão no entendimento de alguns termos. Começando pelo próprio termo multilateralismo, é preciso lembrar que não são apenas as organizações mais amplas e gerais como ONU e OMS que podem ser caracterizadas como “multilaterais”. Organizações regionais como União Europeia e Banco Interamericano do Desenvolvimento também são instituições multilaterais, muito embora não sejam globais, isto é, não estejam abertas à participação de todas as nações organizadas. Assim, o multilateralismo é uma prática diplomática que pode envolver a participação de toda a comunidade internacional de nações como a ONU ou pode envolver apenas um particular grupo de nações reunidas geograficamente – como a União Europeia – ou em torno de algum objetivo compartilhado – como é o caso da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica).

Embora a difusão do multilateralismo tenha ocorrido associada a iniciativas de paz e de cooperação internacional, é apenas uma modalidade ou recurso utilizado pela diplomacia. Instâncias multilaterais podem ser procuradas ou podem ser vistas com desconfiança tanto por grandes potências quanto por nações mais frágeis. Para as grandes potências, instâncias multilaterais podem ser necessárias para a organização de regimes internacionais de seu interesse, mas podem ser problemáticas quando seus interesses não coincidem com boa parte da comunidade internacional. Por outro lado, para as nações menos poderosas, inclusive para as chamadas potências médias, as instâncias multilaterais podem ser úteis para construir alianças em torno de questões que não sensibilizam as grandes potências, mas, ao mesmo tempo podem ser problemáticas para os casos em que seus interesses específicos estejam em jogo. Ou seja, a diplomacia multilateral não é um recurso aplicável a todas as questões e circunstâncias e, além disso, o multilateralismo para ser eficaz precisa levar em conta outras variáveis inerentes à política internacional, em especial o poder.

Problemas desse tipo foram notavelmente visíveis no estabelecimento da ONU. Com efeito, nas negociações para a criação da instituição quando a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim, as grandes potências não se sentiam à vontade com a perspectiva de que as questões internacionais pudessem ser decididas a partir do princípio “one country, one vote”, especialmente a URSS que, à época, claramente, tinha muito menos países membros que a apoiavam, mas as demais grandes potências também tinham divergências que as dividiam, como era o caso dos EUA e da Grã-Bretanha, que divergiam quanto ao destino do sistema colonial britânico que ainda se mantinha vivo sob muitos aspectos[5]. O fato é que a introdução do direito de veto foi importante na solução dos impasses no processo de criação da ONU. O entendimento foi o de que uma ONU sem qualquer uma das grandes potências seria uma instituição sem a eficácia, tal como havia ocorrido com a Liga das Nações, que excluíra a Alemanha e da qual os EUA se abstivera de participar, muito embora o presidente Woodrow Wilson tenha sido o proponente de sua criação na Conferência de Versailles.

Mais recentemente, pode-se apontar o caso da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), que foi criada em 1964 para tratar dos problemas de comércio e desenvolvimento. Diferentemente do GATT, em que as questões de comércio eram tratadas de forma negociada em bases praticamente bilaterais ou pelo consenso, na UNCTAD as questões de comércio internacional seriam tratadas politicamente sob o princípio do “one country, one vote”. O fato é que a UNCTAD viveu seu apogeu na segunda metade da década de 1970, quando as nações exportadoras de petróleo (OPEP) desfrutaram, por um breve momento, de um papel bastante decisivo no comércio internacional. Naquele breve momento, a maioria dos países identificados como “Terceiro Mundo” passou a atuar ativamente na UNCTAD, enquanto potências como a Grã-Bretanha e os EUA mantinham-se à margem uma vez que, de qualquer modo, como órgão da ONU, qualquer resolução proposta no âmbito da UNCTAD só teria eficácia se aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU, onde as cinco grandes potências tinham o direito de veto.

Outro entendimento importante a respeito de conceitos, é que na política internacional o oposto de cooperação não é conflito, mas sim o unilateralismo. Ou seja, cooperação internacional não significa, necessariamente, ações coletivas consensuadas em todos os casos e circunstâncias. Na política internacional, cooperação significa que as potências – grandes ou pequenas – que participam de um arranjo internacional seguirão as regras do regime vigente e não deixarão os arranjos de que fazem parte, ainda que não concordem com o curso dos acontecimentos e das eventuais decisões. O unilateralismo se configura quando um país passa a tomar decisões e a agir em matéria de política internacional sem consultar outros países e sem levar em conta princípios e normas vigentes nos regimes internacionais. O mundo da política não é feito de verdades indiscutíveis de validade universal. Alianças, prioridades, escolhas e políticas de ação não têm o mesmo significado para todos os países, e os fatos e interesses correntes na política internacional afetam cada país de modo diferente tanto em termos de implicações quanto em termos de intensidade dessas implicações. O consenso é sempre desejável, mas na maioria das questões raramente se revela possível e, assim, o que cabe à diplomacia evitar é a configuração de situações agressivamente inaceitáveis para as potências – grandes ou pequenas.

Organizações internacionais são entidades vivas e se transformam acompanhando a ordem internacional

As organizações internacionais que formam o ambiente por excelência dentro do qual a prática do multilateralismo se desenvolve são entidades vivas, isto é, são criadas dentro de circunstâncias econômicas e políticas definidas e, ao longo do tempo, passam por transformações acompanhando as mudanças na ordem internacional. Tomando como exemplo as organizações na área da economia, esse fato é visível inclusive em cifras. O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial foram criadas em Bretton Woods, em 1944, como iniciativas para orientar a reconstrução da economia internacional quando a Segunda Guerra Mundial chegasse ao fim. Cabe lembrar que, na altura em que a Conferência de Bretton Woods se realizava (julho/1944), a guerra atingia seu auge em termos de ações militares. O desembarque da Normandia havia ocorrido no início de junho, mas o avanço das tropas aliadas na Europa se fazia por meio de combates difíceis que implicavam pesadas perdas de ambas as partes. Apenas do lado americano, à época da Conferência de Bretton Woods, havia mais de 6 milhões de tropas combatentes, a maior parte nos teatros de operações militares na Europa e no Pacífico. O International Bank for Reconstruction and Development (Banco Mundial) foi estabelecido em 1944 com o objetivo de financiar a reconstrução econômica, sobretudo da Europa, onde a destruição por meio de combates e bombardeios em cidades importantes ainda era crescente em meados de 1944. A guerra chegou ao fim em 1945 e a reconstrução na Europa avançara rapidamente não com recursos do Banco Mundial, mas do Plano Marshall[6]. Em 1958, no âmbito do Banco Mundial, foi criada a Corporação Financeira Internacional (IFC, sigla em inglês) com o objetivo de canalizar investimentos internacionais privados para os mercados de capitais que retomavam seu vigor. Após a reconstrução do pós-guerra, o tema do desenvolvimento foi estendido para as nações pobres, sendo criada em 1960 a Associação Internacional para o Desenvolvimento (IDA, sigla em inglês) para avaliar e autorizar a concessão de créditos para propostas de projetos de desenvolvimento de governos de países pobres. Em 1966, pela Convenção para a Resolução de Controvérsias sobre Investimentos entre Países e entre Residentes em Países Estrangeiros foi estabelecido o Centro para Resolução de Controvérsias sobre Investimentos com o objetivo de proporcionar segurança jurídica e estimular os fluxos de investimentos internacionais. Em 1988, ainda no âmbito do Banco Mundial, foi criada a Agência Multilateral de Garantia de Investimentos (MIGA, na sigla em inglês) com o objetivo de prover seguro e garantias financeiras contra riscos decorrentes de turbulências no ambiente político em países em desenvolvimento.

Essas cinco instituições passaram a formar o que hoje é chamado de Grupo Banco Mundial e a criação progressiva de cada uma dessas instâncias refletiu as mudanças vividas pela ordem econômica internacional desde 1944. Nessa evolução do Banco Mundial é possível observar também a substancial mudança de sua “carteira de projetos”. Nos primeiros anos da sua criação, a motivação mais imediata do Banco Mundial era a reconstrução econômica do pós-guerra, em seguida, quando a reconstrução se completava, surgiu a preocupação em orientar o fluxo internacional de capitais públicos e privados para a promoção do desenvolvimento das nações pobres. Nesse processo, as rivalidades da guerra fria desempenharam papel importante nas decisões estratégicas do governo americano. Mais tarde, no período geralmente referido como era da “globalização”, os projetos financiados pelo Banco Mundial passaram a se concentrar em temas como boa governança, inclusão social e igualdade de gêneros, inclusive porque os fundos disponíveis tornaram-se incompatíveis com os volumes que seriam necessários para continuar financiando investimentos em grandes projetos de desenvolvimento de infraestrutura econômica pelo mundo. Na realidade, um traço marcante da “globalização” foi a perda de relevância dos recursos públicos diante da enorme expansão da poupança privada[7].

Quanto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), também criado em 1944 como um fundo de estabilização e baseado na hipótese básica de que o dólar americano seria capaz de servir como “âncora” para o sistema monetário internacional, também sofreu profundas modificações à medida que a economia mundial se recuperava dos impactos e das restrições impostas pela Segunda Guerra Mundial. A retomada do dinamismo e do crescimento ocorreu com muito mais vigor do que até mesmo os estrategistas mais otimistas podiam prever. Além do dólar como a única moeda conversível ao ouro, o FMI fora criado tendo como principais mecanismos para administrar a liquidez de moeda internacional o compromisso das nações de observar a regra geral de utilizar as taxas cambiais como recurso de ajuste do balanço de pagamentos somente diante de desequilíbrios considerados “estruturais” (variações cambiais bem acima de 1%) e com a anuência dos governadores do FMI. Outro instrumento de ação do FMI, que definia o próprio nome da instituição, era seu papel como fundo de estabilização, isto é, os recursos financeiros do FMI deveriam ser suficientes para prover empréstimo para países em dificuldade de balanço de pagamentos.

A história da instituição é conhecida. Com o passar do tempo, essas características do FMI foram sendo abandonadas. A conversibilidade em ouro do dólar americano foi abandonada em 1971, mas tratava-se de um processo inevitável que, na realidade, refletia o sucesso das políticas de recuperação e desenvolvimento lideradas pelos EUA. Com efeito, ao longo da década de 1950, as reservas em ouro da economia americana já eram declinantes e, ao final dessa década, ultrapassou a marca simbólica de 50% das reservas mundiais de ouro. No início da década de 1960 o economista Robert Triffin identificou o que ficou conhecido como o “Dilema de Triffin” que consistia no fato de que a economia americana, em virtude de seu papel de provedor de recursos para os programas de desenvolvimento da economia mundial, inevitavelmente incorria em déficits continuados no balanço de pagamentos, o que significava perder reservas de ouro e, assim, a interrupção desse processo significaria reduzir a disponibilidade de dólares para os programas de desenvolvimento[8]. O fato é que, em agosto de 1971, o governo americano oficialmente suspendeu a conversibilidade do dólar em ouro, diante da clara incapacidade de a economia americana acompanhar a expansão da liquidez internacional que, na essência, significava que a expansão da economia mundial ocorria a taxas maiores do que as taxas de crescimento da economia americana, o que, aliás, era um pressuposto das políticas de desenvolvimento.

No que se refere à disposição de o FMI funcionar como fundo de estabilização para as economias com problemas no balanço de pagamentos, também ocorreu o processo de crescente incapacidade de o FMI desempenhar esse papel. Já na década de 1960 os déficits, sobretudo das economias em desenvolvimento, eram crescentes e o FMI havia passado a publicar periodicamente um boletim intitulado World Debt Tables, que trazia a evolução do endividamento internacional que se acumulava, ultrapassando de muito a capacidade financeira do FMI de prover recursos para todas essas nações endividadas. Com o desencadeamento da crise do petróleo em fins de 1973, houve uma verdadeira explosão de liquidez e do endividamento internacional. O resultado foi que as nações endividadas ao invés de procurar o FMI – como era previsto nos acordos de Bretton Woods – passaram a procurar os mercados privados de crédito que, de fato, possuíam recursos financeiros em proporção muito maior do que os disponíveis no FMI[9].

O resultado, obviamente, foi o abandono pelo FMI de seu papel de provedor de recursos financeiros para economias endividadas como estabeleciam os acordos de Bretton Woods, que definia o FMI como um fundo de estabilização. Nesse processo, o FMI passou a ser demandado como avalista de empréstimos nos mercados privados feitos por governos endividados. Ao assumir essa condição de avalista, o FMI passou a atuar como instância de monitoramento do endividamento internacional e também como uma espécie de “corregedor” das políticas de ajustamento praticadas pelos governos endividados. Em outras palavras, nos fins da década de 1970, o perfil de atuação do Fundo Monetário Internacional havia mudado de forma bastante substancial em relação aos acordos originais de 1944.

Outras organizações internacionais, notadamente a ONU, também sofreram mudanças substanciais ao longo do tempo. Quando foi criada em 1945, a ONU contava com apenas 51 países-membros, hoje os países-membros da ONU somam um total de 193. Apenas essas cifras já indicam que a entidade passou por grandes mudanças, mas há muitas outras mudanças importantes. Instâncias da ONU como a CEPAL, a UNCTAD e a UNIDO, viveram momentos de grande relevância na política internacional, mas enquanto o interesse por essas instâncias declinava, outras instâncias associadas a novos temas como aquelas voltadas para temas como o meio ambiente, o clima e a saúde pública ganharam relevância. Na trajetória da ONU, vale observar que há pouco mais de 10 anos houve uma tentativa fracassada para alterar a constituição do Conselho de Segurança. Houve debates e muita movimentação diplomática, mas, ao final, embora tenham sido organizados debates e estratégias que envolviam campanhas estruturadas, inclusive de grandes potências, na demanda por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, a proposta de alteração da composição e das funções do Conselho de Segurança não prosperou, sendo abandonada. A respeito dessa tentativa frustrada e das dificuldades de se mudar a composição política de uma organização internacional, parece instrutivo o fato de que, ao final da Segunda Guerra Mundial, ao invés de retomar a Liga das Nações, que já estava formalmente estruturada, decidiu-se criar a Organização das Nações Unidas cujos objetivos eram praticamente os mesmos da Liga das Nações. Percebeu-se que retomar o funcionamento da Liga das Nações significaria, entre outras coisas, introduzir mudanças significativas na composição do Conselho da Liga, o que inevitavelmente resultaria em retomar as intermináveis controvérsias e disputas políticas como aquelas ocorridas em 1926, quando a Liga das Nações decidiu incorporar a Alemanha, inclusive como membro permanente do Conselho da Liga – uma posição que a diplomacia brasileira falhara em conseguir, e que custou a retirada do Brasil como país-membro da Liga das Nações[10].

Outro desenvolvimento importante nas práticas do multilateralismo, especialmente após a década de 1970, foi a crescente relevância das organizações regionais, em especial da Comunidade Econômica Europeia, que no início da década de 1990 foi transformada em União Europeia, com várias instâncias decisórias supranacionais e até mesmo com uma moeda comum que passou a ser adotada pela grande maioria dos países-membros. Fora da Europa, várias iniciativas de integração regional também foram postas em prática tais como o NAFTA, o MERCOSUL, o Pacto Andino e até mesmo esse estranho arranjo que é o BRICS.

Outro desenvolvimento importante no período foi a emergência de arranjos informais (G-7, G-20, Fórum Econômico Mundial de Davos etc.) como instâncias para informar, debater e, eventualmente, ajudar na construção de consensos internacionais. Em outras palavras, o multilateralismo assumiu uma feição completamente diferente da tradicional concepção de organizações formalmente estruturadas. Na realidade, a esse respeito, vale lembrar a experiência do GATT, que apareceu como solução para orientar o regime de comércio internacional diante das dificuldades de se estabelecer uma Organização Internacional para o Comércio com estatutos, instâncias e normas bem definidas como uma organização internacional em sua plenitude jurídica. O GATT acabou permanecendo por décadas (1947-1994) como uma “proto-organização internacional” baseada em um acordo executivo e não em um tratado internacional. Isto é, enquanto uma organização internacional exige como base um estatuto na forma de um tratado internacional que demanda as formalidades de ratificação, o acordo executivo exige apenas a assinatura dos governantes, pois, em princípio, não significa assumir formalmente direitos e obrigações de Estado dos países participantes. Nesse quadro, é possível compreender o modus operandi do GATT baseado nas rodadas de negociação comercial, e não a tomada de medidas e providências comerciais de acordo com regras e condições estabelecidas em estatuto (Carta da ONU, Carta da Liga das Nações etc.) De certo modo, é o que vem sendo praticado pelas conferências sobre o clima, nas quais são debatidas propostas sobre possíveis medidas e objetivos que se transformam em compromissos de governos e não em obrigações de Estado.

O multilateralismo em um mundo mais integrado

Ao se observar a cena internacional chama a atenção o crescente nível de integração política, econômica e social em escala mundial. Salvo algumas exceções como Coreia do Norte e Cuba, que, por razões muito particulares, ainda mantêm políticas de isolamento em suas práticas e instituições. Hoje é impossível pensar em nações isoladas. O mundo se transformou em uma verdadeira coletividade que, embora não seja uma coletividade homogênea, não há qualquer dúvida de que existe um verdadeiro sistema internacional. O avanço das tecnologias, notadamente nas comunicações e nos transportes, tornou as relações políticas, econômicas e sociais profundamente integradas. Por exemplo, os dados mostram que o movimento de turistas no mundo em pouco tempo evoluiu de forma exponencial no século XXI. Em 2005 foram registrados 809 milhões de turistas internacionais e, em 2018, esse número havia se elevado para 1.407 milhões de turistas que viajaram através de fronteiras. Embora a metade desses turistas tenha tido por destino a Europa, a grande maioria dos países passou a receber anualmente milhares de turistas oriundos de todo o mundo. Quando se olha a evolução das transações comerciais e qualquer outra atividade nos negócios, na ciência e na cultura, as cifras revelam a mesma crescente integração internacional. Ou seja, a integração internacional ultrapassa de muito, e é muito mais dinâmica do que a integração por meio de organizações internacionais formalmente estabelecidas.

Usava-se a expressão “integração regional” para designar a formação de sistemas regionais como a Comunidade Econômica Europeia ou o MERCOSUL, por meio dos quais se estabeleciam facilidades comerciais e políticas entre os países que integravam esses arranjos. Surgiram até mesmo “teorias da integração” para explicar a existência e as vantagens decorrentes da formação de sistemas regionais de integração[11]. No entanto, de forma crescente, a integração formal, isto é, a criação de organizações internacionais de integração juridicamente estruturadas foi dando lugar ao entendimento de que há hoje um avanço de uma integração real, cada vez menos dependente de tratados internacionais em seu sentido pleno. Vale observar que esse desenvolvimento ocorreu, em larga medida, em decorrência das possibilidades que foram abertas por essas organizações formais tanto regionais quanto globais. Isto é, nações como o Brasil e a Argentina são hoje muito mais integradas do que o eram há três ou quatro décadas, independentemente de mudanças que possam ser introduzidas no MERCOSUL, ou até mesmo, eventualmente, de sua extinção. Outro exemplo é o caso do Reino Unido que, apesar de ter deixado de integrar a União Europeia, não significa que, sob muitos aspectos, deixará de continuar sendo uma economia, uma cultura e um país, profundamente integrado à Europa. Algumas facilidades sobretudo comerciais, obviamente, deixarão de existir mas, em aspectos essenciais da cultura, dos padrões sociais, e até mesmo das práticas econômicas, o Reino Unido continuará tendo os países da Europa como seus principais parceiros. Na realidade, nas questões mais importantes, desde a Idade Média o Reino Unido sempre fez parte do mundo político, econômico e social europeu.

Esses casos retratam mudanças importantes nas relações internacionais, inclusive na prática diplomática. Nesse sentido, parece oportuno lembrar o processo de abertura do comércio do Japão no século XIX. Ao longo do período de cerca de 250 anos, iniciado com a instauração do xogunato de Ieyasu Tokugawa, no início do século XVII, o Japão permaneceu fechado às relações políticas e comerciais com o mundo. Foi somente a partir do Tratado Kanagawa assinado em 31 de março de 1854 entre o Comodoro Mathew G. Perry e os representantes do Shogun que as relações entre o Japão e os EUA puderam ter início. Em 1858 foi assinado um Tratado de Amizade e Comércio entre o Japão e os EUA, ao qual se seguiu a assinatura de tratados semelhantes com outras potências do Ocidente. Foi somente depois dessas ações diplomáticas que o comércio e a cooperação em outros domínios entre o Japão e as potências ocidentais puderam florescer garantidas pelo estabelecimento de escritórios e de representações comerciais permanentes nesses países sob a garantia de acordos e de mecanismos de proteção mútua de direitos a estrangeiros residentes.

Esse caso serve para ilustrar a mudança bastante radical ocorrida na prática diplomática e no seu papel nas relações entre nações desde o século XIX. Com efeito, mesmo sem a dramaticidade do caso das relações políticas e comerciais entre os EUA e o Japão, até as primeiras décadas do pós-Segunda Guerra Mundial a assinatura de acordos diplomáticos eram essenciais para dar início à cooperação comercial e política entre as nações. Ou seja, antes da globalização, em larga medida, as relações comerciais somente se estabeleciam depois de um processo diplomático formal, frequentemente difícil e complicado. Na realidade, no caso relatado da abertura comercial do Japão, houve até mesmo a ameaça do uso do poder de fogo da frota comandada pelo Comodoro Perry. Nos dias de hoje, por diversos meios, iniciativas no comércio e em ações cooperativas internacionais frequentemente são tomadas pelos próprios atores, isto é, por empresas e mesmo por organizações civis porque, de algum modo, os acordos necessários simplesmente já existem na forma de algum arranjo multilateral que contempla essa possibilidade, ou porque nenhum governo irá contestar ou criar dificuldade a qualquer iniciativa que pode beneficiar seus nacionais. Uma clara manifestação dessa nova realidade tem sido o crescente ativismo do que tem sido chamado de “paradiplomacia”, na qual instâncias subnacionais tomam iniciativas de fazer avançar os interesses internacionais de municípios ou de outras categorias que hoje compõem as estruturas políticas das nações. Em outras palavras, se em meados do século XIX as relações comerciais entre os EUA e o Japão só poderiam se iniciar após uma ação diplomática do governo americano apoiado até pela Marinha de guerra, hoje, em um mundo já bastante integrado, a diplomacia pode ser acionada para regularizar ou aprimorar alguma iniciativa em curso, mas raramente será chamada para iniciar um processo de aproximação internacional, excetuando casos excepcionais como os da Coreia do Norte ou de Cuba.

É nessa perspectiva que eventuais movimentos diplomáticos na esfera multilateral devem ser vistas. Na realidade, o novo multilateralismo valoriza cada vez mais arranjos informais como o G-8 e o G-20, ou ainda os pactos firmados em conferências internacionais como têm sido o caso das conferências sobre o clima. Enquanto, por outro lado, instâncias como a Organização Mundial do Comércio (OMC) atuam em áreas já estabelecidas e organizadas nas quais o trabalho diplomático pode ser requerido apenas para resolver questões pontuais que, eventualmente, podem incluir o acionamento do mecanismo de solução de controvérsias. Além disso, questões envolvendo petróleo ou produtos industriais são tratadas por regimes próprios.

Em relação às organizações internacionais formais, vale refletir também sobre sua eficácia, que continua dependendo muito mais das condições e dos recursos do próprio país participante do que de ativismo diplomático de qualquer tipo. Na realidade, organizações como a OCDE, por exemplo, funcionam principalmente como instâncias que oferecem formas de reconhecimento ou certificação internacional de “qualidade” tais como o cumprimento em bases regulares de cláusulas ambientais, o respeito aos direitos humanos e à liberdade de imprensa e, na economia, depende do sistema fiscal e dos indicadores de segurança jurídica, que devem ser compatíveis com os indicadores dos demais países integrantes do bloco. Ou seja, em termos práticos, o país ao tornar-se membro da OCDE pode ser incluído nos estudos e nos relatórios produzidos pela instituição e para quaisquer iniciativas na esfera internacional, inclusive para receber investimentos de outros países, a posição que o país ocupa nesses estudos e relatórios serve como uma espécie de “certificação de qualidade”. De forma mais específica, pode-se mencionar a importância dos efeitos sobre as agências internacionais de classificação de risco financeiro que, na realidade, são organizações privadas, mas cujas avaliações refletem o conjunto da imagem que as nações e as grandes companhias desfrutam na esfera pública. Nesse caso, relatórios e estudos oficiais produzidos por organizações como a OCDE desempenham importante papel na construção dos conceitos de confiabilidade e segurança atribuídos a empresas e à economia das nações.

Considerações finais: o Brasil e o multilateralismo

Finalmente, cabe uma breve consideração sobre a participação de governos em instâncias multilaterais. É possível classificar como participação bastante ativa quando governos propõem a criação de uma nova organização internacional ou toma medidas efetivas para o estabelecimento e para o funcionamento regular de uma organização internacional. A motivação para esse tipo de atitude deve ser o interesse desse governo no sentido de criar um novo regime internacional ou modificar de alguma forma um regime vigente no sentido de melhor atender seus interesses e suas visões sobre princípios entendidos como adequados para orientar o comportamento dos atores na cena regional ou global. Essa forma de atuar em relação a instâncias multilaterais é característica de grandes potências cujos interesses tendem a ser amplos e se estendem para muitas esferas que podem ser influenciados por políticas praticadas por outras nações. Entre os casos mais notáveis dessa forma de participação em instâncias multilaterais, sem dúvida, destaca-se o dos Estados Unidos na criação e na administração das organizações internacionais criadas na esteira da Segunda Guerra Mundial, notadamente a ONU e as organizações que formaram os regimes internacionais na esfera econômica (FMI, Banco Mundial e GATT). Nesses casos o governo dos EUA exerceu não apenas uma liderança política decisiva na criação dessas organizações, mas foi a principal fonte de recursos para operacionalizar seu funcionamento. Entre as muitas evidências dessa liderança bastante ativa está o fato de que quase todas essas instituições estão sediadas nos EUA que, até hoje, contribui com parcela significativa dos recursos necessários ao seu funcionamento regular.

Uma segunda categoria de atitude de governos em relação a instâncias multilaterais seria a dos governos que atuam com regularidade dentro dos regimes internacionais, dos quais essas organizações constituem parte importante. Pode-se considerar que essa modalidade de participação em instâncias multilaterais caracteriza-se por: 1) levar as questões de interesse nacional para serem consideradas nessas instâncias, aceitando e cumprindo suas decisões e recomendações; 2) participando, sempre que solicitado, de comissões, de grupos de trabalho e de iniciativas de ação das organizações internacionais; 3) pagando com regularidade as taxas e contribuições financeiras previstas nos estatutos dessas organizações. Esse padrão, na realidade, reflete o comportamento da grande maioria das nações, para quem os regimes internacionais constituem apenas uma realidade com a qual se deve conviver e, objetivamente, tendo por entendimento o fato de que a maior parte das oportunidades e de problemas deverá emergir dentro desses regimes.

Essa classificação – obviamente bastante simplificada – foi extraída da teoria dos regimes internacionais, que discute a formação, o declínio da eficácia e as mudanças dos regimes internacionais[12]. Como já foi apontado, uma forma de manifestação do multilateralismo são os arranjos regionais e também os arranjos voltados para objetivos específicos (temas como meio ambiente, proteção de direitos humanos, promoção de formas de desenvolvimento social, desenvolvimento científico, segurança etc.) e, nesse quadro de possibilidades, os governos podem ser muito pouco atuantes em alguns arranjos ou regimes de que participam e, ao mesmo tempo, podem ser muito ativos em um ou outro regime específico do qual participam e que podem ser mais relevantes para seus interesses.

Nesse quadro, pode-se constatar que, para um país como o Brasil, na condição de potência média, a participação em instâncias multilaterais dificilmente poderia ir além de um participante regular dos regimes internacionais e das instituições e práticas que compõem esses regimes. Isto, no entanto, não impediria que o governo brasileiro em certas circunstâncias e em certas instâncias tivesse uma postura mais afirmativa como ocorreu, por exemplo, na Segunda Conferência de Paz da Haia. Na realidade, em 1907 o multilateralismo era ainda uma experiência muito nova nas relações internacionais e também não havia assumido as características atuais. À época, as visões predominantes eram ainda fortemente centradas em princípios jurídicos e na noção de que a soberania das nações era um valor quase absoluto, como era típico da visão de mundo dos homens de Estado da era vitoriana. Esse fato explica a agenda de debates da Conferência que foi centrada em temas como os recursos jurídicos para a solução pacífica de conflitos armados, a imposição de limites ao emprego de certos armamentos nas guerras, os direitos e as prerrogativas da neutralidade numa guerra, ou ainda os direitos relativos a presos de guerra. Nesse quadro, a cultura e o saber jurídico eram essenciais para a diplomacia, fato que ajuda a compreender o destaque recebido por Rui Barbosa na defesa do princípio da igualdade entre as nações, contestando o entendimento de que a força poderia originar direitos. Nesse sentido, suas intervenções foram de notável importância para a criação e para a conformação do que viria a ser a Corte Permanente de Arbitragem e a Corte Internacional de Justiça que haviam sido temas de debate desde a Primeira Conferência de Paz da Haia (1899).

O período de pouco mais de uma década que separa a Segunda Conferência da Haia (1907) e o fim da Primeira Guerra Mundial (1919) trouxe para as relações internacionais e para a prática diplomática mudanças notáveis. As concepções da era vitoriana baseadas no valor do Direito e na centralidade do conceito de soberania foram ultrapassadas por uma realidade muito mais complexa onde os interesses nacionais passaram a não ser coincidentes com as fronteiras, extrapolando e interagindo com a política e com a economia de outros países. A Liga das Nações emergiu nesse quadro e constituiu a primeira experiência real desse novo multilateralismo, assentado muito mais na política internacional do que no Direito Internacional. A decisão de criar uma nova organização internacional (ONU) ao invés de reativar a Liga das Nações, em larga medida, retrata o fato de que a experiência da Liga das Nações não fora capaz de realizar com sucesso essa transição.

Dentro desse novo multilateralismo, o peso e as características da nação como ator no quadro das relações internacionais tornou-se parte integrante da prática diplomática. O Direito Internacional, embora tenha continuado a ser uma base importante para as ações e para as decisões das instâncias multilaterais, passou a conviver com outros elementos que emergiram como fatores decisivos. No novo multilateralismo, as dimensões econômicas e políticas ganharam espaço como condicionantes que não podem ser deixadas de lado. Além disso, como já foi destacado, o mundo tornou-se muito mais integrado inclusive em termos de interesses que, na maioria das vezes, transcendem as fronteiras formalmente demarcadas. Com efeito, na esfera do Direito discute-se e decide-se de acordo com normas, tratados e princípios legais reconhecidos. Na política internacional a prática diplomática tradicional baseada no Direito Internacional incorporou o conceito de “negociação”, que é sempre política e que deve tentar conciliar interesses legítimos, mas frequentemente contraditórios.

Esse é o lado do multilateralismo que torna fundamentais elementos como a liderança, o poder e, principalmente, a disponibilidade de recursos. É o que explica a construção da ordem internacional depois da Segunda Guerra Mundial cujos regimes, em sua maioria, foram construídos sob a liderança dos EUA que era a única nação capaz de prover recursos em larga escala. No sentido oposto, também ajuda a explicar porque arranjos como o MERCOSUL e a OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica) jamais desempenharam papel de destaque como instrumentos de construção da ordem na região e jamais tiveram qualquer chance de ganhar relevância internacional, uma vez que o país líder desses arranjos – o Brasil – jamais demonstrou disposição suficiente para liderar iniciativas e fornecer os recursos necessários para esses arranjos[13]. Na realidade, desde a redemocratização as relações exteriores como um todo jamais foram reconhecidas como prioridade dos governos brasileiros. A tradição de uma nação voltada para si mesma foi mantida pelos sucessivos governos, independentemente do partido político ao qual se filiasse o governante. Com a globalização, diferentemente do que ocorreu com as principais economias do mundo, no Brasil a ideia de um mundo cada vez mais integrado continuou sendo apenas uma figura de retórica política. Para o resto do mundo, os interesses nacionais tornaram-se fortemente integradas com os interesses de outras nações. Com efeito, no Brasil, em matéria de relações exteriores os sucessivos governos preferiram manter o velho padrão de mercado e de produto definidos nacionalmente. Assim, em instâncias multilaterais, jamais a diplomacia foi além da retórica política.

Uma das razões que podem ajudar a explicar esse padrão de desinteresse pela prática de uma diplomacia ativa pode ser vista no fato de que, ao longo dos anos que se seguiram ao fim dos governos militares, os recursos orçamentários foram sendo, gradativamente, orientados em sua quase totalidade ao pagamento dos gastos com despesas de autoridades e de uma burocracia pública cada vez mais pesada e menos eficiente, produzindo uma versão original e modernizada do velho patrimonialismo de outros tempos[14]. Esse conceito interpreta a condição de um Estado em que os limites entre os recursos públicos e privados são indistintos, ou seja, os recursos do Estado se confundem com o patrimônio dos ocupantes dos cargos de poder. Nos últimos anos, cerca de 95% de toda a arrecadação pública tem sido gasta com as folhas de pagamento do funcionalismo público, com o pagamento de inativos, pensionistas e aposentados e até mesmo para custear partidos políticos e suas campanhas eleitorais. Com os 5% restantes, os governos precisam custear as despesas com água e energia elétrica, com a limpeza, a manutenção e a segurança dos edifícios e das instalações públicas. O resultado dessa realidade contábil é que, para produzir e executar políticas públicas (inclusive relações exteriores) os recursos só podem vir da capacidade de endividamento dos governos de plantão.

Em suma, a viabilidade de organizações como o MERCOSUL e a OTCA dependiam – por razões econômicas, demográficas e políticas – diretamente da liderança e, consequentemente, dos recursos que os governos brasileiros poderiam aportar a esses arranjos. Uma possibilidade que jamais teve qualquer chance efetiva em um ambiente político de um Estado francamente dominado pelo corporativismo. Na realidade, não se afigura exagero o entendimento de que, por natureza, o Estado patrimonialista é refratário a qualquer “política de Estado”, pois toda política de Estado tem a incômoda característica de buscar beneficiar tão somente o “bem comum” e, além disso, geralmente o horizonte de tempo é o longo prazo e não as próximas eleições. A política externa, por sua vez é, por natureza, um domínio da política de Estado, não sendo um simples acaso ou escolha que, nos Estados Unidos, desde sua formação como nação independente, o responsável pelas relações exteriores é chamado de “Secretário de Estado”.

 

[1] Ensaio escrito como texto de suporte para o minicurso sobre “O Retorno do Multilateralismo” no VI Encontro de Pesquisa em Relações Internacionais, organizado pelo PET-RI da UNESP-FFC (21/Jan/2022).

[2] Professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

[3] O conceito de regimes internacionais ganhou forma definida no início da década de 1980, sendo entendida como um conjunto de princípios, normas, regras e processos decisórios vigentes e aplicados de forma cooperativa pelos Estados Nacionais dentro de um campo específico das relações internacionais (S. D. KRASNER, International Regimes, Cornell University Press, 1982).

[4] A teoria dos ciclos de Nicolai Kondratiev (1926) baseou-se em estudos estatísticos das economias americana, britânica e francesa que contrariavam a interpretação oficial da URSS do colapso inevitável do capitalismo. Mais tarde, Schumpeter recuperou a obra de Kondratiev e acrescentou os argumentos do papel do empreendedor e da tecnologia.

[5] O destino da Segunda Guerra Mundial foi selado com a realização dos encontros do Big Three (EUA, URSS e Grã-Bretanha) em Teerã (dezembro/1943), Yalta (fevereiro/1945) e em Potsdam (julho/agosto/1945). Roosevelt entendia que a paz deveria ser construída a partir dos “Quatro Gendarmes” (EUA, URSS, Grã-Bretanha e China). Cada “gendarme” seria responsável por sua área de influência geopolítica. Em 1945, o sistema colonial britânico ainda incluía países como a Índia.

[6] Estimulado pela guerra fria, o Plano Marshall foi lançado em 1947 e, em cinco anos, apenas em recursos públicos, forneceu à Europa mais de US$ 25 bilhões.

[7] Um dos maiores fundos de investimento privado é o grupo Blackrock Inc. Fundado em 2008, os clientes são governos, empresas, fundações, universidades e também indivíduos que poupam para a aposentadoria futura e para educação dos filhos no futuro. Apenas a PNC Financial Services, que tem 23,6 % da Blackrock, administra cerca de US$ 7,4 trilhões em ativos financeiros.

[8] TRIFFIN, R. The Evolution of the International Monetary System: Historical Reappraisal and Future Perspectives. Essays in International Finance n.12, 1964. Princeton University Press, 1964.

[9] Vale lembrar que os recursos do FMI eram provenientes das cotas a serem pagas pelos países-membros, isto é, justamente pelos países endividados, que necessitavam de recursos.

[10] Esse episódio é bem retratado no livro O Brasil e a Liga das Nações. 1919-1926, de autoria de EUGÊNIO VARGAS GARCIA (Imprenta/UFRGS/FUNAG, 2000).

[11] BELA BALASSA (1928-91), nascido na Hungria, notabilizou-se como professor da Johns Hopkins University e seu livro The Theory of Economic Integration (Routledge, 1962) foi uma obra bastante influente em seu tempo.

[12] Muitos estudiosos das relações internacionais ofereceram reflexões sobre a dinâmica dos regimes internacionais. Na obra seminal sobre regimes internacionais, organizada por S. D. KRASNER International Regimes (Cornell University Press, 1983), ver especialmente os capítulos escritos por ORAN YOUNG, ARTHUR STEIN e ROBERT KEOHANE.

[13] O contraste é enorme entre as dimensões do Brasil em relação aos demais países-membros do MERCOSUL. Em termos de população e do PIB, a disparidade também é muito grande. Em relação à OTCA, também o Brasil representa bem mais do que 50% da região e, além disso, também bem mais da metade da área contemplada pelo Tratado encontra-se em território brasileiro.

[14] O conceito foi difundido por Max Weber e vários estudiosos desenvolveram interpretações do Estado patrimonialista no Brasil (Raymundo Faoro, Victor Nunes Leal, Ricardo Vélez Rodrigues, entre outros).

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Democracia, bem comum e prosperidade no Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3553&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=democracia-bem-comum-e-prosperidade-no-brasil Wed, 05 Jan 2022 14:33:22 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3553 Democracia, bem comum e prosperidade no Brasil

 

O que há de errado com a economia brasileira?

 

Por Eiiti Sato*

 

Democracia e prosperidade

Desde o fim dos governos militares, diante de qualquer problema, os sucessivos governos no Brasil têm insistido na sua preocupação com a “defesa da democracia”, como se fora uma explicação e até uma justificativa para qualquer dificuldade ou para qualquer desenvolvimento em curso. A democracia, no entanto, é um conceito que, no mundo real, só existe no plural, isto é, trata-se de um conceito que, quando levado à prática, transforma-se em “democracia americana”, “democracia francesa”, “democracia britânica” etc., que são substancialmente diferentes entre si, tanto em suas trajetórias históricas quanto na organização e no funcionamento de suas instituições políticas. Além disso, entre as democracias, há também diferenças quanto ao desempenho econômico, que é uma dimensão essencial para qualquer nação tanto na esfera doméstica quanto nas relações com outras nações.

Uma confusão muito frequente nas análises correntes entre regimes e formas de governo é imaginar que cada forma de governo, inevitavelmente, se associa a um determinado padrão de desempenho no funcionamento do Estado e da economia quando, na realidade, monarquias ou repúblicas podem ser mais autoritárias ou mais democráticas, e podem também ser bem administradas ou podem ser mal governadas. Em termos de padrão, ou de prática democrática, uma monarquia pode ser muito mais parecida com uma república do que dois países que adotam formalmente regimes semelhantes com eleições periódicas de seus governantes e de seus deputados. Durante os muitos séculos em que as monarquias governavam a Europa, havia monarquias tirânicas e havia também monarquias governadas por príncipes sensatos, prudentes e sábios. Ou seja, havia diferenças marcantes nos regimes monárquicos que governaram por séculos a Europa. Em geral, regimes tirânicos tinham mais dificuldades para promover a prosperidade por muitas razões, entre as quais estava o fato de que regimes autoritários tendiam a se fechar em si mesmos e, em virtude da desconfiança em relação às mentes independentes, geralmente os tiranos tendiam a desprezar o trabalho e a criatividade de mentes engenhosas e capazes. Na história do Brasil, embora o movimento pela República justificasse suas demandas sobre “vícios da monarquia”, as crônicas relatam que Rojas Paul – presidente da Venezuela – ao tomar conhecimento da Proclamação da República no Brasil em 1889, teria lamentado “Este é o fim da única república que jamais existiu na América”.[1]

Em Siena, há um famoso conjunto de afrescos de meados do século XIV pintados por Ambrogio Lorenzetti para decorar o Salão da Paz no Palácio Público de Siena, que ilustra essa dicotomia entre reinos governados por regentes sensatos e benéficos ao povo e reinos governados por tiranos.[2] Esses afrescos retratam bastante o entendimento da época e identificam o Bom Governo com monarcas portadores de virtudes como o senso de justiça, a honestidade, a temperança e a preocupação com a busca do bem comum, e o resultado desse bom governo seria um ambiente de ordem e prosperidade que beneficiava todo o povo, inclusive o próprio governante, que se tornava respeitado e próspero como seu povo. Por outro lado, no afresco pintado na parede em frente, Lorenzetti retratou o que seria um Mau Governo, que seria caracteristicamente comandado por um rei tirano, sem qualquer preocupação com o bem comum, e marcado por vícios como o egoísmo, a inveja e a crueldade, espalhando a desconfiança e o divisionismo entre seus governados. O produto desse governo tirânico, dominado por vícios, seria um reino assolado pela pobreza, e por um ambiente de desconfiança, e pela infelicidade. Esse ambiente, dominado pelo egoísmo a pela falta de confiança, afasta qualquer possibilidade de ações coletivas tais como investir em negócios e apostar no futuro.

Assim, há muito tempo que a percepção comum em toda parte é a de que a prosperidade é um produto que não depende tanto de formas de governo, mas muito mais das virtudes de seus governantes e da preocupação genuína com a promoção do bem comum. Em outras palavras, mais importante do que formas de governo é a maneira como os governantes encaram suas responsabilidades e como as instituições do Estado são manejadas por aqueles que ocupam cargos de liderança e de responsabilidade pública em seus países. Em suma, o regime considerado democrático não constitui garantia de um Estado operante e de governos capazes de promover o progresso e a prosperidade da nação. No caso do Brasil, há vários fatos que, claramente, indicam que, muito embora o regime possa ser caracterizado como “democrático”, o Estado claramente está doente, isto é, suas instituições públicas e seus governantes não cumprem, ou cumprem apenas precariamente o papel que deveriam cumprir.

Um Estado doente

De acordo com dados do Banco Mundial, entre 2010 e 2020 a economia brasileira teve um desempenho muito ruim – na realidade, uma recessão de mais de 30% em dez anos – e, pior, os dados mais recentes indicam que esse baixo desempenho não tem perspectivas de melhorar nos próximos anos. A economia brasileira, que vinha se mantendo como a 9ª economia do mundo, vai saindo da pandemia como a 13ª economia mais rica do mundo em termos nominais. O que parece claro é que esse desempenho ruim não pode ser atribuído à pandemia e a fatores externos, uma vez que o Brasil ficou bem abaixo da média mundial e abaixo até mesmo da média dos países da região. Considerando as dimensões e o peso da economia brasileira na região, as cifras sugerem que o Brasil foi o principal responsável por “puxar” para baixo a média ruim da América Latina e Caribe.

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Taxa de Crescimento no período 2010-2020 (%)

 

Mundo:                                    27,8

Brasil:                                      (-34,5)

Argentina:                                  (-9,5)

Chile:                                           15,8

Peru:                                            36,9

Uruguai:                                      33,0

México:                                       1,7

Am. Latina & Caribe         (-12,3)

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Fonte: Banco Mundial

O Brasil parece ser hoje uma nova versão da expressão “the sick man of Europe” usada pelo czar Nicolau II para designar o Império Otomano que, nos fins do século XIX, vivia o final de um período de continuada decadência, marcado por tensões políticas internas, pela desindustrialização e pelo crescente empobrecimento. No Brasil, embora não haja grandes tensões internas, a desindustrialização é bastante visível e a desconexão com a economia mundial é crescente, em um ambiente em que até mesmo economias comandadas por um Partido Comunista, como a China e o Vietnã, aumentam seus níveis de integração com a economia mundial.

Além do sentimento de satisfação ou de preocupação, o desempenho econômico pode ser visto também como sintoma de um ambiente político e institucional que favorece ou que dificulta a geração de atividade econômica que resulta em riqueza ou empobrecimento. É certo que o desempenho econômico de um país depende de muitos fatores, mas isto não quer dizer que não seja possível apontar um ou mais fatores que, aparentemente, desempenham papel de relevo no bom ou no mau desempenho de uma economia. Ao se observar o caso brasileiro, a primeira conclusão inevitável, como mostram os dados acima, é que as possíveis razões ou fatores que podem explicar o desempenho negativo da economia, devem ser procurados na esfera doméstica. Além disso, considerando o fato de que o desempenho ruim é um fenômeno consistente, que se estende por sucessivos governos de diferentes orientações políticas, também não se pode culpar eventuais equívocos ou falhas na formulação de políticas econômicas. Assim, só resta entender que os possíveis fatores ou causas do baixo desempenho econômico devem estar situados no ambiente institucional, que orienta a vida econômica e política da nação. Em outras palavras, a única conclusão possível parece ser o entendimento de que Estado está doente – the sick man of Latin America – e a principal enfermidade é a deterioração da ordem, que gera incertezas e afasta os investimentos, sejam de origem doméstica ou internacional. A deterioração da ordem não aparece (por enquanto) na forma de inquietação social, mas na forma de incapacidade de as instituições transmitirem confiança e segurança para a nação e de uma agenda de preocupações da classe governante desacoplada das expectativas das populações. São muitos os sintomas bastante visíveis da deterioração da ordem que, de muitas formas, comprometem o crescimento econômico e complicam até mesmo o dia-a-dia dos cidadãos.

A política e o significado da deterioração da ordem

De forma resumida, a deterioração da ordem pode ser definida como a incapacidade de o Estado fazer cumprir as leis vigentes, isto é, de exercer com eficácia sua soberania. Desde Jean Bodin, nos primórdios do Estado moderno, os teóricos definem soberania como sendo um fenômeno com duas faces. Uma face externa pela qual o Estado soberano revela ser capaz de agir com independência diante de outros Estados e, de outro lado, uma face interna pela qual as instituições do Estado soberano revelam ser capazes de produzir leis e de exercer o poder para fazer com que essas leis sejam cumpridas com respeito e com eficácia no âmbito de seu próprio território. No mundo atual essas duas faces da soberania – externa e interna – tornaram-se mais integradas e, pode-se dizer, que se tornaram até mesmo complementares.[3] Com efeito, na política internacional desde os fins do século XX, as fronteiras perderam muito de sua importância tradicional como peça essencial de demarcação física do espaço de soberania e de independência em relação a outras nações. Excetuando casos absolutamente excepcionais como o da Coreia do Norte que, por razões ideológicas, continua mantendo pesada vigilância militar sobre suas fronteiras, no mundo em geral, as fronteiras são vigiadas e observadas apenas em relação ao fluxo de mercadorias e de migrantes, ou ainda na movimentação de recursos financeiros, para os quais as fronteiras físicas não passam de referenciais contábeis. Ou seja, de muitas formas, as faces externa e interna da soberania hoje se integram e são, na verdade, muito mais complementares do que elementos de separação como o foram em tempos passados. A existência de uma União Europeia é um exemplo visível dessa complementaridade entre os elementos da independência externa e o bom funcionamento das instituições domésticas. Os países que formam a União Europeia jamais deixaram de valorizar a sua independência e a sua individualidade, mas não viram grandes problemas, na verdade viram muitas vantagens em se integrarem em um arranjo regional. Outro exemplo interessante é o caso das fronteiras dos EUA com o Canadá e com o México. Com o Canadá raramente se tem notícia de problemas de fronteira, uma vez que muitos padrões econômicos e sociais internos dos dois países guardam muitas semelhanças entre si enquanto, por outro lado, na fronteira com o México, as notícias na imprensa sobre problemas e preocupações são frequentes, inclusive porque o México tem sido destino de muitas correntes migratórias que tentam ingressar nos EUA em vista das dificuldades vividas por muitas populações em seus países de origem.

O Brasil, que costumava apresentar com orgulho sua história de grande país receptor de migrantes do mundo todo, nos últimos anos, para tristeza da nação, tem sido crescente o número de brasileiros presos tentando entrar ilegalmente nos EUA pelas fronteiras do México. Assim, no caso do Brasil de hoje, a face doméstica do exercício da soberania é que tem sido desafiada de forma bastante generalizada comprometendo a ordem e o funcionamento regular das atividades civis, trazendo como efeito o comprometimento da sua posição da esfera internacional de muitas maneiras.

Do ponto de vista da construção da ordem, o cumprimento e o respeito às leis domésticas são essenciais, uma vez que constituem os sinais mais visíveis daquilo que é valorizado e daquilo que é rejeitado pela nação. Com efeito, a aplicação das leis e o funcionamento da ordem doméstica têm sido continuamente desafiadas no Brasil por variadas forças ou grupos de indivíduos, por vezes estruturados em organizações, tais como traficantes que passam a dominar bairros e regiões inteiras de grandes cidades, grupos marginalizados que formam guetos e que simplesmente se recusam a cumprir as leis vigentes. Há também os interesses corporativos geralmente organizados em sindicatos, muitos deles entranhados no próprio Estado, que são capazes de manter a paralisação de serviços públicos essenciais para a população por semanas e até por meses seguidos. A ordem é desafiada até mesmo por grupos difusamente definidos que alegam direitos de etnias sobre áreas urbanas ou rurais, que fazem prevalecer suas vontades mesmo que precariamente sustentados por documentos ou por meio de outros comprovantes previstos em lei. Uma breve observação de alguns fatos e cifras pode ser bastante ilustrativa e esclarecedora do fenômeno.

Indicadores da deterioração da ordem interna

Um primeiro indicador ou componente institucional dessa deterioração da ordem pode ser observado nos índices de criminalidade de todos os tipos no Brasil que são substancialmente mais elevados do que o da esmagadora maioria dos países. No Brasil, os homicídios são contados anualmente aos milhares. Se forem incluídas as mortes no trânsito, as cifras de mortes violentas praticamente dobram, contrastando fortemente com os padrões internacionais. Enquanto em outros países o número de assassinatos varia em torno de um ou dois assassinatos por ano para cada grupo de 100 mil habitantes, no Brasil esse índice tem permanecido acima de 20 assassinatos a cada ano por grupo de 100 mil habitantes. Nas grandes cidades brasileiras há bairros ou setores urbanos em que as forças policiais são virtualmente impedidas de exercer seu trabalho de contenção do tráfico de entorpecentes e de outros ilícitos tais como construções irregulares de moradias e comercialização de produtos contrabandeados e de sinais de TV a cabo por grupos criminosos que se apropriam criminosamente dos sinais e dos programas de empresas legalmente organizadas. Os casos mais notáveis são as favelas do Rio de Janeiro e a “cracolândia” e a “zona do Glicério” em São Paulo, mas em toda grande cidade brasileira há bairros inteiros nos quais comerciantes e cidadãos ficam à margem da autoridade e da proteção do Estado, vivendo à mercê de grupos de foras-da-lei de todos os tipos. Fenômenos geralmente tratados de forma distinta como a violência contra a mulher e contra crianças fazem parte desse quadro mais geral do fracasso do Estado em proteger e dar segurança ao indivíduo contra o crime e a violência em todas as suas formas. Além dos efeitos imediatos em termos de sofrimento e de frustração, a criminalidade elevada compromete de muitas formas o crescimento econômico, começando pelo estímulo a atividades ilegais, que apenas consomem recursos públicos sem proporcionar retribuição na forma de impostos. Atividades econômicas que não conseguem se desenvolver em um ambiente de insegurança como a indústria do turismo (eventos, hotelaria, bares e restaurantes etc.) são também formas pelas quais a criminalidade prejudica o aparecimento e o desenvolvimento de atividades econômicas. Além disso, de forma generalizada, o comércio e a indústria se ressentem diretamente dos elevados custos para compensar a falta de segurança que deveria ser proporcionado pelo Estado, como ocorre em outros países. Vale lembrar também que roubo de cargas e comercialização em grande escala de mercadorias roubadas é uma forma significativa pela qual a criminalidade dificulta o desenvolvimento regular das atividades econômicas.

Outro sintoma da deterioração da ordem no Brasil, e que o Estado tem responsabilidade direta, são as diversas formas de tolerância a transgressões. Uma prática que se tornou corrente na administração pública brasileira é a adoção do perdão fiscal como procedimento regular. Em geral, sob a justificativa de recuperar receitas e de incentivar e de trazer de volta os inadimplentes, isto é, as pessoas e as empresas que se encontram à margem da ordem legal, as autoridades federais, estaduais e municipais transformaram um recurso de política fiscal, que deveria ser ocasional, aplicada apenas em circunstâncias excepcionais, em prática corrente regular que, ao final, o resultado mais relevante é o incentivo à inadimplência e à desmoralização do sistema fiscal. Diante do fato de que, periodicamente, o poder público promove um “perdão fiscal”, o pagamento de impostos de forma correta e dentro dos prazos estabelecidos por lei passa a ser um “mau negócio”, ou seja, enquanto o mau pagador ganha descontos e vantagens, o bom pagador – grande ou pequeno – sente que, ao pagar corretamente seus impostos, perdeu uma oportunidade de ganhar com a inadimplência e que, afinal, fez papel de tolo aos olhos da sociedade. Em outras palavras, a prática regular do recurso do “perdão fiscal”, faz com que, mais do que as perdas de arrecadação, os prejuízos morais sejam mais relevantes. Embora não seja possível precisar em cifras, é muito provável que a maioria das empresas brasileiras hoje tenham um serviço jurídico e uma área financeira organizados com o propósito específico de avaliar as perspectivas de ganhos com a administração do não pagamento dos impostos no tempo devido. No longo prazo, não apenas o regime fiscal torna-se vicioso, mas a própria atividade empresarial desenvolve distorções incompatíveis com a competição justa, especialmente na esfera internacional.

Outro exemplo notável de sintoma da deterioração da ordem no Brasil pode ser observado no processo de desenvolvimento do Distrito Federal e que, até por ser a capital da nação, o fenômeno pode ser entendido como sendo comum ao país como um todo. Brasília geralmente é apresentada como cidade planejada e notável por sua arquitetura. Apesar de tudo, há muito tempo que os fatos deixaram de respaldar essa visão de Brasília e do Distrito Federal. Com efeito, passados os primeiros anos, os conceitos e os ensinamentos da boa arquitetura foram completamente esquecidos à medida que Brasília se expandia transformando completamente seus padrões de convivência urbana. Seus governantes e representantes – presumidamente eleitos de forma democrática – deixaram completamente de lado os benefícios e as vantagens de uma cidade planejada e construída com elevados padrões arquitetônicos. Um após outro, os governos que se sucederam no comando do Distrito Federal desprezaram a rara oportunidade de uma cidade planejada desde sua fundação, que dispunha inclusive de um plano diretor para orientar legalmente seu desenvolvimento futuro. Com efeito, em pouco mais de duas décadas, Brasília e o Distrito Federal foram diluídos em um aglomerado urbano disforme, sob o comando de predadores e de oportunistas de todos os matizes, que contaram com o beneplácito, e até mesmo com a cumplicidade, de seus governantes que, sistematicamente, vêm mudando ou simplesmente abolindo leis e normas de urbanização em atenção aos interesses e às ações de grileiros e de falsários que passaram a se apropriar de terras públicas e a vender ilegalmente essas terras. Após o loteamento e a ocupação ilegal dessas terras, os governos passaram a promover a “regularização” dos loteamentos sob o argumento do “fato consumado” e de haver um “déficit de moradias” no Distrito Federal.

Hoje a população do Distrito Federal já ultrapassou os 3 milhões de habitantes, dos quais apenas o equivalente a cerca de um quinto dessa população reside em moradias que guardam alguma característica ou padrão urbanístico da cidade originalmente planejada. A construção de espaços urbanos para acomodar a adição dos quase 2,5 milhões de habitantes foi feita abandonando completamente o plano original da cidade e desprezando totalmente as noções e os conceitos da boa arquitetura. Não há qualquer exagero em dizer que toda a expansão urbana de Brasília e do Distrito Federal nas últimas três décadas foi feita substituindo-se o termo planejamento urbano pela expressão regularização, que é exatamente o oposto da boa arquitetura e da organização dos espaços urbanos de acordo com os conhecimentos da arte e da ciência do urbanismo.

Em outras palavras, o planejamento urbano pressupõe a existência de uma autoridade legal e institucional que estabelece os propósitos, os padrões e as características dos espaços urbanos a serem construídos seguindo-se as normas técnicas que devem levar em conta as características geológicas e topográficas da região sobre as quais são traçadas as vias, os logradouros e as construções para atender os requisitos da boa convivência urbana e social em todos os sentidos. A regularização, por sua vez, é o oposto dessa prática, isto é, todo o plano da cidade ou do bairro é feito pelo grileiro, que ocupa ilegalmente uma área de terra que não lhe pertence, e faz o traçado dos lotes e das vias públicas levando em conta apenas as vantagens a serem extraídas do traçado urbano. As autoridades aparecem apenas para “regularizar” as construções feitas ou ainda em curso sob a justificativa de “razões sociais”, mas que, na verdade, são razões apenas políticas pois têm em vista somente o processo eleitoral que se aproxima. Não se afigura necessário comentar as perdas e prejuízos, além dos custos em termos de recursos públicos decorrentes de áreas urbanas mal construídas. O fato é que até mesmo o núcleo original da cidade, que a duras penas, de algum modo, tem sido preservado, passa a sofrer os efeitos deletérios da expansão urbana desordenada do Distrito Federal na forma de inundações, de precariedade dos sistemas de transporte público e da proliferação das variadas formas de ilegalidade e até de ações criminais abertas.

A constituição federal e a deterioração da ordem

Na lista de sintomas da deterioração da ordem no Brasil muitos outros casos poderiam ser incluídos, mas seria um exercício entediante. Apesar de tudo, parece útil comentar mais um fator, que poderíamos chamar de estrutural, que tem contribuído significativamente para a deterioração da ordem no Brasil: a constituição brasileira vigente. Parece paradoxal que o documento básico na construção da ordem, que é a constituição, possa ser visto como fator de deterioração da ordem, mas vale refletir sobre a percepção dessa possibilidade presente na constituição. Com efeito, a constituição, ao definir a estrutura e o funcionamento das instituições centrais do Estado, é a peça central da ordem política e econômica dos países e, no caso do Brasil, muito embora a constituição vigente esteja centrada na orientação democrática, apresenta cláusulas potencialmente problemáticas para o funcionamento regular das instituições do Estado e também para a ordem econômica e social da nação de uma forma geral. Nesta análise parece importante destacar duas dessas dificuldades, particularmente problemáticas para o bom funcionamento da ordem econômica e social da nação.

A primeira dessas dificuldades trazidas pela constituição de 1988 – e a mais evidente – é o fato de que, ao procurar enunciar explicitamente cada possível direito do cidadão em todas as esferas, a constituição traz como consequência imediata o fato de que qualquer pendência envolvendo direitos na esfera civil, penal ou social torna-se uma pendência constitucional. Isto é, passível de ser levada à justiça federal até à mais alta corte da Justiça – ao Supremo Tribunal Federal (STF).

De fato, no momento em que a constituição declara formalmente que “garante o direito de propriedade” e, além disso, que “a propriedade atenderá sua função social”, qualquer disputa envolvendo o direito de propriedade como, por exemplo, a ocupação de terras por invasores ou ainda uma iniciativa de desapropriação ou de venda de terras públicas, a questão se torna constitucional. Em termos processuais, significa que os litigantes poderão levar suas demandas até o STF. Assim sendo, objetivamente, a questão nem deveria ser julgada em instâncias inferiores, uma vez que as cortes inferiores, ao julgar uma demanda sobre propriedade, estarão apenas procrastinando um processo judicial, pois a parte perdedora sempre poderá interpor recurso até que, finalmente – anos mais tarde – vir a ser julgado pelo STF, além do mais porque a constituição estabelece que o resultado de um julgamento se torna passível de aplicação somente após o “trânsito em julgado” (outra cláusula constitucional). O mesmo pode ser dito sobre “a defesa do consumidor”, “a prática do racismo”, a concessão ou não de “habeas corpus” ou de “habeas data”, ou ainda sobre os direitos “à educação”, “à saúde”, “à alimentação”, “ao trabalho”, “à moradia”, “ao transporte”, “à segurança”, “ao lazer”, “à previdência social”, “à proteção da infância e da maternidade”, e “à assistência aos desamparados”, que são mencionados de forma específica no texto da constituição brasileira vigente.[4]

A menção explícita e detalhada desses direitos na constituição deveu-se, basicamente, ao ambiente político de 1988, que ainda vivia a euforia do fim do regime de exceção dos governos militares, que havia se estendido por duas décadas. Nesse ambiente, enunciar e detalhar explicitamente esses direitos na constituição parecia um gesto de cidadania e de apreço pela democracia. O problema é que, do ponto de vista processual, a menção de forma específica e detalhada desses direitos na constituição traz consequências inevitáveis, entre elas a perda praticamente completa da importância e do papel das instâncias jurídicas inferiores e o acúmulo de processos no STF e, ao final, o substancial aumento no tempo de tramitação dos processos.[5] O fato é que para o cidadão individualmente, ou para as organizações empresariais, a demora na tramitação de processos judiciais significa essencialmente a sensação incômoda de que as instituições jurídicas apenas favorecem o malfeitor. Além disso, mesmo que o julgamento final seja favorável à parte prejudicada, na maioria esmagadora das vezes a demora favorece o mau pagador de impostos, o estelionatário, o agente corrupto, o falsário e a todos aqueles que agem de forma ilegal em prejuízo de outros cidadãos ou em detrimento do próprio Estado. Em outras palavras, a demora na tramitação dos processos acarreta prejuízos apenas para aqueles que buscam a Justiça na defesa de seus direitos. “A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta” é uma das frases mais frequentemente lembradas de Rui Barbosa, mas incapaz de sensibilizar governantes e legisladores.[6]

De um ponto de vista da ordem econômica, a demora exagerada significa incerteza jurídica, afastando investidores potenciais, nacionais ou estrangeiros. Ninguém irá investir na criação ou na expansão de qualquer atividade econômica sabendo que seu capital investido e possíveis ganhos podem estar sujeitos a perdas pela ação de predadores (estelionatários, fraudadores, autoridades corruptas etc.) que têm a seu favor o labirinto de uma justiça lenta, complicada e dispendiosa. Não se trata de argumentar em favor de uma “justiça sumária”, mas apenas de uma justiça capaz de acompanhar os padrões internacionais das sociedades organizadas em termos de tempo de tramitação que, conforme estudos realizados por pesquisadores e por entidades como o Conselho Nacional de Justiça é, ao menos, duas vezes maior do que em outros países.

Uma outra cláusula presente na constituição que revela mais uma face bastante problemática da administração do Estado no Brasil refere-se à prática de inserir “emendas ao orçamento” por parlamentares. De uma forma geral, tal como ocorre em outros países democráticos, o orçamento previsto para os gastos públicos deve ser submetido à aprovação pelo Poder Legislativo, que discute e aprova o orçamento introduzindo emendas a respeito de como o Poder Executivo deve gastar o que foi arrecadado da atividade econômica da população, em geral por meio de impostos, de taxas, e das variadas formas de arrecadação de recursos pelo Estado. No entanto, no caso do Brasil, a interpretação dessa prerrogativa dada pelo Legislativo é que difere dos padrões internacionais criando vícios e distorções no emprego do dinheiro público. O termo emendas ao orçamento no caso brasileiro significa basicamente o direito que deputados e senadores têm de se apropriar de parte da arrecadação do Estado e gastar essa parcela sem qualquer consideração a respeito do bem comum e da necessidade de aprovação por qualquer instância. Deputados e senadores agem como se fossem verdadeiros lords de “feudos” obtidos ao conquistarem seus mandatos parlamentares. O Artigo 166, § 9º. da constituição diz que: “As emendas individuais (de deputados e senadores) ao projeto de lei orçamentária serão aprovadas no limite de 1,2% (um inteiro e dois décimos por cento) da receita corrente líquida prevista no projeto encaminhado pelo Poder Executivo, sendo que a metade deste percentual será destinada a ações e serviços públicos de saúde.” O entendimento praticado dessa cláusula é que 1,2% de toda a arrecadação pública deve ser distribuída entre deputados e senadores, que podem gastar esses recursos de forma completamente discricionária, isto é, sem qualquer consideração a outras instâncias normativas ou de controle pelo Estado. Trata-se de um privilégio que distorce substancialmente as funções legislativas uma vez que, por definição, executar o orçamento é prerrogativa exclusiva do Poder Executivo. Uma vez que o país é uma federação, essa mesma interpretação é estendida também ao Poder Legislativo dos Estados.

No conjunto, o fato de que o Poder Executivo no Brasil dispõe de um total aproximado de apenas 5% da arrecadação para ser gasto discricionariamente em políticas governamentais dá uma ideia das dimensões dessa distorção.[7] Em termos de valores, em 2020 significaram cerca de R$ 17 bilhões a serem gastos com emendas parlamentares uma vez que a arrecadação do ano foi de R$ 1,479 trilhão.[8] Para se ter uma ideia do que essas emendas  representam no orçamento público brasileiro, vale lembrar que o total de recursos previstos para investimentos no ano de 2021 foi de R$ 7,5 bilhões para o Ministério da Economia, R$ 1,18 bilhão para o Ministério da Infraestrutura, R$ 1,65 bilhão para o Ministério da Defesa, R$ 235 milhões para o Ministério da Saúde e de apenas R$ 7 milhões para o Ministério da Ciência e Tecnologia. Assim, verifica-se o fato de que o valor previsto como “emenda parlamentar” para apenas um deputado ou para um senador ultrapassa várias vezes o total previsto para investimento pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. A diferença é que até mesmo os ridículos R$ 7 milhões previstos para o Ministério da Ciência e Tecnologia foram um valor examinado e discutido quanto à pertinência e quanto a seus benefícios em termos de “bem comum”, enquanto os R$ 17 bilhões, foram distribuídos aos parlamentares sem discussão de propósitos e na simples presunção de que apenas o fato de que serão gastos por parlamentares é razão suficiente para considerar que serão bem gastos em um país notavelmente carente de recursos financeiros para investimentos sociais e para investimentos capazes de estimular a geração de riquezas.

Obviamente que não é apenas por conta dos montantes de recursos envolvidos em si que o peculiar entendimento do conceito de “emenda parlamentar” produz reflexos no comportamento e no desempenho econômico da nação. Na realidade, muito mais importante do que os montantes financeiros distribuídos entre deputados e senadores, o sentido moral envolvido nas negociações desses valores é que produz os efeitos mais deletérios para a ordem política. A discussão despudorada sobre a distribuição e o uso político dessa interpretação dada ao termo “emenda parlamentar” tem sido elemento de corrosão da confiança na relação entre governantes e governados, uma vez que a confiança constitui um valor essencial para se manter a coesão numa sociedade política organizada sobre valores democráticos.

A construção da ordem na reflexão teórica

Mancur Olson, em seu livro publicado post morten intitulado “Poder e Prosperidade”, discute a velha questão: por que alguns países são ricos e prósperos, enquanto outros vivem às voltas com a pobreza e o atraso? Olson argumenta que tudo começa com o fato de que em alguns países as instituições do Estado são mais efetivos em mostrar que, entre os papéis mais importantes a serem desempenhados pelos governos, destaca-se o de deixar claro o que deve ser reconhecido e recompensado distinguindo-o do que deve ser visto com reprovação e até punido pela sociedade que governa.[9] A estruturação do argumento de Olson acerca dessa hipótese explora o conceito de externalidade econômica de forma ampla. Conceitualmente, as externalidades econômicas podem ser positivas ou negativas. Um exemplo de externalidade positiva seria a construção de uma rodovia, cuja existência passa a estimular e, por vezes, até a viabilizar certas atividades econômicas ao facilitar o transporte de pessoas e de mercadorias naquela região. Por outro lado, exemplos correntes de externalidades negativas são os elementos geralmente referidos de forma conjunta como “custo Brasil” nas análises da imprensa especializada e nas discussões sobre economia brasileira. Burocracia dispendiosa e demorada, infraestrutura precária de comunicações e de transportes e elevados custos de produção de energia são frequentemente lembrados como componentes que tornam muitos produtos brasileiros comparativamente mais caros do que similares produzidos por outros países onde essas externalidades negativas não existem ou existem em escala muito menor do que no Brasil.

Numa sociedade democrática, uma autoridade pública que não coloca o bem comum acima de seus interesses pessoais é um notável elemento de externalidade negativa. Aos olhos do povo, a autoridade torna-se um hipócrita, um falsário, uma vez que foi eleito prometendo colocar sempre o bem comum acima de seus interesses pessoais. Uma economia comandada autoritariamente não depende tanto dessa imagem. Geralmente os governos assumem o poder pela aplicação de regras e do apoio direto de forças políticas e, assim, as autoridades estabelecem taxas e impostos ou realizam gastos públicos sem a necessidade de convencer as populações da real necessidade dessas medidas. Para um governo autoritário vale a máxima com que Maquiavel chocou os pensadores de seu tempo: “o governante precisa ser temido”. Na realidade, nas sociedades democráticas a força das autoridades, em todos os níveis e em todos os ramos do Estado, reside na credibilidade e na confiança que seus governados depositam nas palavras e, principalmente, nas intenções manifestas de seus governantes. Ou seja, credibilidade e confiança são essenciais para que impostos sejam pagos com naturalidade e para que leis e medidas sejam respeitadas, muito embora limitem as ações de indivíduos e de empresas, havendo credibilidade na justificativa de que tais leis e medidas realmente comprometem bens públicos, como o meio ambiente, ou que simplesmente prejudicam outras pessoas e outras organizações que formam a tessitura social e econômica da cidade e da nação.

Além disso, Olson acrescenta outro argumento crucial para o bom funcionamento das sociedades democráticas: o de que os interesses organizados em corporações constituem verdadeiros obstáculos ou empecilhos à promoção do bem comum. Enquanto os bens públicos, como qualidade do meio ambiente ou benefícios advindos da preservação de valores sociais e culturais são generalizados, difusos e de longo prazo (educação de qualidade, segurança pública, saneamento, qualidade ambiental etc.), os interesses corporativos tendem a ser específicos e organizados em associações sindicais, por vezes entranhados no próprio Estado. Nesses casos, o Estado se torna uma espécie de butim a ser disputado e dividido entre interesses corporativos, deixando de ser uma fonte de geração e de proteção de bens públicos necessários à existência de um ambiente de estímulo à inovação e à competição sadia na produção de bens e de serviços pelos indivíduos e pelas organizações empresariais.[10] A defesa despudorada de recursos públicos destinados a “emendas parlamentares” e com gastos eleitorais não ajuda a transmitir o sentimento de que deputados, senadores e outras autoridades eleitas estejam, de fato, interessados em defender e promover bens públicos, além de seus próprios interesses pessoais.

Outro pensador que desenvolveu argumento na mesma direção foi Alain Peyrefitte, para quem a confiança é tida como um valor fundamental para que as instituições de uma sociedade democrática funcionem de modo efetivo. Em sua obra A Sociedade da Confiança, Alain Peyrefitte discute o papel central da confiança como fator fundamental no desenvolvimento ou no atraso econômico dos países.[11] Em uma incursão pela antropologia política, Peyrefitte identifica dois tipos de sociedade na história: as sociedades da confiança e as sociedades da desconfiança. As sociedades do primeiro tipo tendem a desenvolver relações harmônicas e construtivas, enquanto as sociedades do segundo tipo são definidas pelo conflito e pela disputa constante e, portanto, por um clima de insegurança permanente na qual a ordem só pode ser conseguida por meio do emprego da força pela autoridade. No caso do Brasil, com grandes carências sociais bastante evidentes, gastos públicos voltados claramente para beneficiar ganhos e interesses da própria classe política corroem o respeito e a credibilidade de seus governantes. A falta de credibilidade da classe política compromete o uso da força necessária à manutenção da ordem. Além disso, no Brasil, o uso da força pelas autoridades para a manutenção da ordem é significativamente limitada por disposições legais que, na constituição vigente, aceita a existência de poderes concorrentes com a autoridade do Estado como a dos interesses corporativos organizados em sindicatos e em outras organizações genericamente referidas como “sociedade civil organizada”.

Sob um ponto de vista ainda mais geral, isto é, da filosofia política, vale lembrar a obra de Thomas Hobbes. Para muitos historiadores a figura de Hobbes ficou associada ao absolutismo, no entanto, um olhar mais atento revela que a preocupação de Hobbes não era justificar o emprego da força pelos príncipes, mas sim o fato de que sem “ordem”, não apenas o progresso se torna difícil, mas a própria liberdade política e civil torna-se impossível. Sem essa forma de ver a questão da ordem e do exercício da autoridade pelo Estado, a obra de Hobbes não poderia ser apreciada com respeito e até com admiração pelos pensadores da tradição liberal, que sempre rejeitaram a tirania e a intervenção do Estado. Com efeito, particularmente no século XVII, a ordem só poderia ser produto da ação de príncipes bem instruídos – alegoricamente ilustrada nos afrescos de Ambrogio Lorenzetti.

A famosa frase atribuída a Louis XIV “l’État c’est moi” pode ser vista como uma afirmação de sua autoridade diante de seus ministros e de seus súditos mas, muito provavelmente, seria mais apropriado entender essa afirmação como uma simples constatação de um fato corrente, uma vez que, à época, as instituições do Estado moderno e democrático ainda não existiam. Com efeito, até o século XVII eram os reis que se sucediam de forma hereditária, ouviam seus súditos e distribuíam diretamente a justiça, além de decidir sobre a guerra e a paz. Os reis podiam manter um pequeno círculo de conselheiros e até convocar estados gerais, mas era apenas para serem consultados. Tais instâncias colegiadas até podiam ter algum poder, mas esse poder era sempre exercido através do soberano. No século XVI, juristas como Francisco de Vitória não tinham qualquer dúvida quando perguntados sobre “a quem cabia declarar a guerra”, a resposta era simples e imediata: cabia ao soberano.[12] É o que explica os afrescos alegóricos de Ambrogio Lorenzetti sobre “O Bom Governo” e “O Mau Governo”, e explica também a preocupação dos iluministas do século XVIII sobre a necessidade de príncipes e de reis serem bem instruídos e educados para produzir governos prudentes e sábios. Em suma, foi somente a partir do século XVIII que os Estados passaram a estabelecer instituições políticas e jurídicas que hoje chamamos de democráticas para construir e manter a ordem em substituição a “déspotas esclarecidos”.

A ordem nos Estados modernos

Na realidade, uma das facetas mais admiráveis do movimento liberal que se disseminou a partir do século XVIII foi a capacidade de conceber, de construir e de garantir a ordem social e política por meio de instituições e não mais por meio de governantes hereditários, que usassem seu poder e sua autoridade com sensatez, prudência e sabedoria em benefício da nação. A criação de instituições substituía com vantagens os déspotas esclarecidos, uma vez que, por mais sábios e mais benevolentes, os déspotas esclarecidos seriam um dia substituídos por outros governantes sobre os quais não havia qualquer garantia de que usariam seu poder com justiça, moderação e sabedoria. Louis XIV foi um governante que levou a França a viver uma era de realizações e de notável esplendor a ponto de Voltaire comparar os tempos de Louis XIV com a era de ouro da Grécia de Péricles e com a Itália renascentista.[13] Após duas gerações, no entanto, Louis XVI herdou a mesma França, o mesmo Estado, com as mesmas instituições e com as mesmas crenças, que haviam servido tão bem a Louis XIV, mas viu o colapso da ordem política e social até viver sua própria desgraça pessoal na guilhotina. Os historiadores dizem que Louis XVI era um bom homem, mas sem qualquer interesse pela política e desprovido da personalidade e da capacidade de liderança de Louis XIV. Ou seja, o Estado não poderia depender tanto de seu governante que, por melhor que fosse, um dia morreria e seria substituído.

Assim, sem sombra de dúvida, foi uma aposta de enorme ousadia e de notável visão política dos liberais dos séculos XVIII e XIX investir no desenvolvimento de instituições políticas de grande complexidade que substituíssem a formação e a educação de príncipes que, na imagem alegórica de Ambrogio Lorenzetti, fossem capazes de produzir bons governos. Isto é, para dar certo, as instituições políticas do Estado moderno deveriam ser capazes de produzir a ordem social e política por meio de um delicado equilíbrio entre governantes capazes de gozar da confiança da sociedade e que passavam a aceitar limites ao seu poder enquanto, de outro lado, o povo, isto é, os governados, por sua vez, precisariam ser capazes de aceitar o fato de que seus interesses particulares deveriam ser sempre avaliados à luz do bem comum.

No mundo atual, pode-se dizer que a China é um caso notável de sociedade organizada por meio de um partido político único, que não constrói a ordem a partir de instituições liberais que manejam e que exercem o poder por meio desse delicado equilíbrio entre diferentes ramos do poder do Estado e por meio da substituição de governantes com eleições periódicas das quais participa toda a população adulta. De certo modo, a ordem na sociedade chinesa é assegurada por uma grande e complexa burocracia estruturada não mais em torno de uma ideologia comunista – apesar de a denominação do partido permanecer a mesma – mas em larga medida a ordem é estruturada a partir dos ensinamentos recuperados da sabedoria milenar do confucionismo.[14] A eficácia dessa solução para a construção da ordem é visível na transformação da China – de nação pobre e inexpressiva em um país capaz de exercer papel de liderança econômica e tecnológica no mundo. Com efeito, quando as nações do Ocidente liberal, a partir dos fins da década de 1970, lideradas pelos Estados Unidos, passaram a investir na China, uma crença bastante central dos formuladores dessa estratégia era a de que um eventual sucesso econômico da China levaria à democratização daquela sociedade comandada pelo Partido Comunista. Ou seja, acreditava-se que, à medida que a nação prosperasse e que bolsões de eficiência econômica e de mercados dinâmicos se formassem, haveria também uma crescente formação de focos de pressão sobre as instituições políticas restritivas do Estado, que seriam vistas cada vez mais como burocracias resistentes a mudanças e, principalmente, refratárias à adoção de políticas de integração aos grandes mercados internacionais. Após mais de três décadas de sucesso econômico persistente e consistente da China, os teóricos do Ocidente, que viam o sucesso econômico como um fenômeno associado aos Estados organizados por meio de instituições políticas liberais, passaram a rever seu entendimento sobre essa relação entre sucesso econômico e ordem política liberal. Além do mais, os casos de sucesso econômico nas últimas décadas não se restringem ao caso da China, que continua comandada pelo Partido Comunista, mas também tem ocorrido em várias outras nações da Ásia, que vêm obtendo notável sucesso econômico, embora continuem comandadas por instituições governamentais com forte viés intervencionista na ordem econômica.

Considerações finais

 Em linhas gerais, pode-se dizer que a adoção da democracia – ou, mais especificamente, da democracia liberal – como forma de governo, não significa, por si só, que a nação será, ou que esteja sendo bem governada. Na realidade, no caso do Brasil, as cifras mostram que os sucessivos governos têm fracassado em promover a ordem e em produzir um nível de desempenho econômico capaz de reduzir a pobreza e, assim, proporcionar mais e melhores oportunidades de trabalho a seus cidadãos. Em termos objetivos, esse mau desempenho não se reflete e não é visível apenas na estagnação ou na redução do PIB, mas se reflete também em outros indicadores que derivam diretamente desse mal desempenho. Por exemplo, no comércio exterior, apesar dos superávits comerciais, as exportações passaram a se concentrar, cada vez mais, em commodities e em bens de baixo valor agregado. A produção de commodities, apesar de ser um desenvolvimento desejável, proporcionalmente, gera muito menos oportunidades de trabalho do que a indústria e a produção de serviços. Assim, não basta “apostar” na produção agrícola e na produção de outras commodities. No comércio mundial, na década de 1950 os bens agrícolas eram ainda responsáveis pela metade das exportações mundiais, enquanto, neste início do século XXI, os bens agrícolas respondem por menos de 10% das exportações mundiais. Ou seja, os dados revelam que a evolução da economia brasileira nas últimas décadas não tem acompanhado tendências mundiais importantes. Assim, o pouco dinamismo da economia brasileira também é visível na evolução da pauta de exportações, cada vez menos diversificada em razão da pouca integração à economia mundial. O resultado é que, em termos dos benefícios que uma nação pode auferir do comércio internacional, observa-se que, enquanto outras nações em desenvolvimento têm expandido significativamente sua participação nos fluxos de comércio mundial por meio da diversificação, há décadas a participação brasileira no comércio mundial tem permanecido em torno de 1%.[15] Em larga medida, essa diferença entre o desempenho do setor agrícola e de produção de commodities em relação aos setores da indústria e de serviços pode ser explicada pelo fato de que as principais motivações na produção de commodities estão nos mercados internacionais onde há ordem e consistência, enquanto a produção industrial e de serviços dependem basicamente dos mercados domésticos nos quais a ordem tem sido precária.

Um Estado democrático precisa ouvir a sociedade, principalmente as demandas não expressas – as demandas mais íntimas, mais caras e mais difíceis de serem expressas em manifestações ruidosas. Mas ouvir não basta, é preciso discernimento, integridade e coragem para transformar as demandas da sociedade em providências e em medidas sempre à luz do bem comum. O termo bem comum pode parecer algo difuso, mas não o é para o Estado. Para o Estado, bem comum deve ser o objetivo primário a ser promovido e a ser buscado por governantes e por todos aqueles que ocupam cargos públicos. Aumentos salariais, subsídios a certas atividades econômicas, perdão fiscal, e até mesmo ajudas emergenciais são medidas que a sociedade pode demandar a qualquer tempo e a qualquer hora, mas cabe às autoridades públicas examinar essas demandas à luz do bem comum, que é um termo que o economista pode utilizar como sinônimo de externalidade econômica positiva. A economia, como qualquer atividade humana, depende da dedicação e dos talentos individuais, no entanto a produção econômica é também uma atividade social, e sua vitalidade e seu bom desempenho dependem do comportamento e dos níveis de organização social das nações. Nesse quadro, a ordem social é a condição necessária – embora não suficiente – para o sucesso de qualquer economia. A ordem social é a externalidade econômica cuja deterioração compromete não apenas o bom funcionamento dos mercados, mas o próprio futuro econômico e político da nação.

Do ponto de vista social, o mau desempenho da economia se reflete claramente nos movimentos migratórios. As nações bem governadas e cujas economias crescem e oferecem estabilidade e boas oportunidades profissionais tendem a atrair fluxos de migrantes enquanto, por outro lado, as sociedades que não prosperam e nas quais as oportunidades de bons empregos e de boas oportunidades profissionais se tornam mais escassos “exportam” migrantes. Em um extremo está um país como os EUA que constroem barreiras normativas e até físicas para conter os fluxos de migrantes que querem ingressar no país em busca de oportunidades de trabalho. No outro extremo, estão as nações muito pobres ou vítimas de crises sociais e políticas persistentes que, sistematicamente, “expulsam” suas populações. O Brasil é um caso de nação que não chega a viver crises sociais e políticas graves e generalizadas, mas tem sido um país em que o mau funcionamento da economia vem produzindo continuados déficits no balanço entre estrangeiros que procuram se estabelecer no país e o fluxo de brasileiros que vão para outros países em busca de oportunidades. Apesar de continuar fazendo parte do entendimento popular corrente de que o Brasil é um país que recebe imigrantes, esse entendimento não é mais confirmado pelos fatos. Além de os balanços nos fluxos migratórios serem negativos, significando que o número de estrangeiros que ingressam no país tem sido menor do que o de brasileiros que deixam o país, recentemente, dados divulgados pelo Itamaraty e pelo Ministério da Justiça mostram que no ano de 2020 havia cerca de 3 milhões de brasileiros residindo em outros países (destaque para Portugal, Estados Unidos e Japão), enquanto havia o registro de apenas 750 mil estrangeiros residindo no Brasil, um número significativamente menor do que em países vizinhos como Argentina, Uruguai e Paraguai. Tais dados revelam uma faceta preocupante desse processo. Na essência, revela que o Brasil está “exportando” profissionais qualificados, isto é, pessoas de talento e nas quais a sociedade brasileira investiu por anos a fio, para serem aproveitados por outras sociedades. Assim, ao observar fatos como esses, é inevitável a tentação de – tal como ocorreu com o sociólogo Robert Merton – refletir com humildade e com espírito construtivo sobre a sabedoria dos Evangelhos: àquele que tem, mais lhes será dado, e terá em abundância; mas ao que não tem, até aquilo que tem ser-lhe-á tirado (Mateus 25, 14-30).[16]

 

 

[1] Ernest Hambloch, Sua Majestade o Presidente do Brasil. Senado Federal, Brasília, 2000 (p. 34)

[2] Randolph Starn. Ambrogio Lorenzetti. The Palazzo Pubblico, Siena. George Braziller, N.York, 1994.

[3] Há uma extensa literatura que, sob o tema “globalização”, discute essas mudanças no conceito de soberania e de seu exercício diante de um mundo cada vez mais integrado social e economicamente.

[4] O Artigo 5º. enuncia 78 direitos individuais e coletivos, bem como mecanismos de proteção desses direitos. O Artigo 6º. afirma que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. O Artigo 7º. lista 34 direitos sociais e as circunstâncias e condições em que o Estado deve proteger esses direitos. O Artigo 8º. trata com detalhes o direito de associação de trabalhadores em sindicatos, enquanto o Artigo 9º. trata especificamente do direito de greve.

[5] Enquanto a Suprema Corte dos EUA julga anualmente algumas poucas dezenas de processos, segundo dados do CNJ, o STF no Brasil proferiu 17.400 julgamentos no ano de 2020, ou seja, o STF julgou uma média de 66,9 processos por dia útil. Por quanto tempo esses processos tramitaram na Justiça? Será que é possível julgar uma tal quantidade de processos com o devido rigor e cuidado?

[6] Extraída da “Oração aos Moços” dirigida aos formandos da Faculdade de Direito de São Paulo (1921).

[7] Nada menos do que 95% da arrecadação do Estado por meio de impostos, taxas e outras receitas são usados para pagar despesas sobre as quais o Poder Executivo não tem poder discricionário tais como folha de pagamento do serviço público, despesas com previdência oficial, pensões estabelecidas por lei, transferências para estados e municípios etc.

[8] O que representa cerca de R$ 30 milhões para cada senador e para cada deputado.

[9] Mancur Olson, Power and Prosperity. Outgrowing Communist and Capitalist Dictatorships. Basic Books, 2000.

[10] Na realidade esse argumento foi que deu grande notoriedade a Mancur Olson, quando publicou seu livro intitulado The Logic of Collective Action em 1971.

[11] Alain Peyrefitte, A Sociedade da Confiança. Topbooks, 1999.

[12] Não apenas Francisco de Vitória, mas os juristas em geral nos séculos XVI e XVII ao discutirem o conceito de “guerra justa”, em suas obras afirmaram essa prerrogativa exclusiva dos soberanos. Algo bem diferente, por exemplo, do que ocorreu com Roosevelt que, em 1941, após o ataque de Pearl Harbor, concentrou sua preocupação em levar uma mensagem ao Congresso oferecendo razões para sustentar os congressistas a declararem a guerra ao Império Japonês.

[13] Voltaire, Le Siècle de Louis XIV, 1751.

[14] Embora a intervenção do Estado continue muito forte, propriedade privada e mercados dinâmicos, inclusive de ativos financeiros, hoje fazem parte da ordem social e econômica da China.

[15] No início da década de 1980 a China tinha uma participação no comércio mundial menor do que a brasileira; atualmente, responde por 14,5%. Outro caso notável de evolução da participação no comércio mundial é o da Coreia do Sul, que hoje responde por cerca de 3% do comércio mundial, isto é, praticamente três vezes maior do que a brasileira.

[16] O sociólogo Robert Merton, refletindo sobre a lógica dos avanços no pensamento científico, que tende a premiar mais facilmente aqueles que já ganharam notoriedade na atividade de pesquisa científica, encontrou nesse Evangelho uma maneira de explicar essa estranha e incômoda lógica presente nas coisas humanas (R. K. Merton, The Matthew Effect in Science. Science, 159(3810) 56-63, January, 1968).

 

*Eiiti Sato é professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

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O Papel das Organizações Internacionais na Integração da América Latina https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3510&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-papel-das-organizacoes-internacionais-na-integracao-da-america-latina Tue, 19 Oct 2021 05:06:12 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3510 O Papel das Organizações Internacionais na Integração da América Latina[1]

 Por Eiiti Sato*

Para se compreender adequadamente o papel das organizações internacionais no processo de integração da América Latina é importante retomar alguns conceitos centrais, uma vez que são frequentes os vícios no entendimento do próprio conceito de organização internacional, de seus propósitos e, principalmente, de suas limitações. Por exemplo, é muito comum entender-se que a ONU é uma instância fracassada já que, desde a sua criação, ocorreram muitos conflitos armados. Trata-se, obviamente, de um entendimento equivocado do que, de fato, seria a instituição. Com efeito, a ONU não foi criada para funcionar como um substitutivo para a guerra. Na realidade, a ONU foi criada com um propósito bem menos presunçoso e mais humano, que é o de promover a paz, isto é, foi criada para estender pontes de entendimento e oferecer mais uma instância de negociação aos canais diplomáticos tradicionais e, dessa forma, aumentar as chances de prevenir conflitos.

O fato é que, embora seja possível enumerar os conflitos armados que ocorreram desde a criação da ONU, em 1945, não é possível enumerar os conflitos que foram evitados pela interveniência da ONU que, geralmente, de modo discreto, por meio dos debates na Assembleia Geral e dos órgãos que compõem o Sistema ONU, promove reuniões diplomáticas, mantém canais permanentemente abertos para consultas e, em muitos casos, realiza ações diplomáticas e humanitárias que, com pouco ruído, ajuda a reduzir tensões e abre caminho para o entendimento.

De forma genérica, as organizações internacionais podem ser definidas como entidades formadas por Estados Nacionais que, por meio de seus governos, se associam formalmente com o propósito de manejar de forma cooperativa e articulada as questões que afetam esses Estados. A partir da Segunda Guerra Mundial as organizações internacionais tornaram-se mecanismos diplomáticos que ajudam na coordenação de esforços em torno de questões econômicas, sociais e políticas que caracterizam o modo de vida nas sociedades modernas. A história recente mostra que a expansão das organizações internacionais a partir da segunda metade do século XX foi um processo sistêmico, isto é, ao mesmo tempo que ajudou para que a dimensão internacional se tornasse parte do dia-a-dia de governos, empresas e instituições, o processo também ajudou para que se estabelecesse um crescente número de redes internacionais na economia, nas ciências e na vida cultural e social das nações.

Esse processo, no entanto, não foi homogêneo. Há áreas da atividade humana em que a integração internacional avançou mais, enquanto é possível observar que em outras atividades a integração internacional não avançou tanto. Do mesmo modo, é possível observar que em algumas partes do mundo a integração regional e internacional avançou com mais vigor do que em outras regiões. No caso da América Latina, objeto desta análise, verifica-se que a região não está entre aquelas nas quais os processos de integração mais avançaram. As razões são várias, mas é possível compreender essas razões agrupando-as em dois conjuntos: as razões que derivam dos desenvolvimentos estruturais na esfera internacional, e as razões que derivam do dinamismo dos países que compõem a região. Nesta análise, o foco ficará concentrado no dinamismo dos países, uma vez que esse fator depende diretamente das políticas e das iniciativas praticadas pelos governos.

Um referencial teórico para a integração internacional

Uma obra importante sobre o tema da integração internacional, hoje pouco lembrada, é a obra Swords Into Plowshares: The Problems and Progress of International Organization de autoria de Inis Claude.[2] A obra se concentra na formação da Organização das Nações Unidas – ONU e de seu papel nas relações internacionais, no entanto, vale considerar que, do ponto de vista da lógica de funcionamento, organizações como a ONU não diferem de organizações regionais. Na realidade as reflexões anteriores como a de Abbé de Saint-Pierre e de Simon Bolívar eram voltadas para a integração regional.[3] No capítulo inicial Inis Claude formula as condições para a existência de uma organização internacional: 1) a existência de Estados estáveis; 2) contato relativamente intenso e sistemático entre as sociedades que compõem esses Estados; 3) a existência de percepção de que há uma realidade distinta que surge a partir da coexistência entre os Estados; e 4) o reconhecimento de que muitos problemas só podem ser adequadamente abordados por meio de arranjos e mecanismos internacionais.

A primeira das condições se refere basicamente ao período em que o sistema de Estados Nacionais ainda estava em formação. Foi um longo período que se estendeu do século XVII até os fins do século XIX. Com efeito, os tratados internacionais que geram instituições visam à continuidade e à permanência das relações entre povos e, assim, não faz sentido pensar em tratados entre Estados signatários que, a qualquer momento, simplesmente podem deixar de existir, sendo incorporados a outros Estados, ou que podem ser fragmentados formando novos Estados. Vale lembrar que as fronteiras da Europa foram modificadas profundamente na esteira da Primeira Guerra Mundial e que, na primeira metade do século XX, houve uma segunda onda de descolonização fragmentando impérios e formando dezenas de novos países. Esses fatos explicam porque as iniciativas de formação de arranjos internacionais na Europa, como a de Abbé de Saint-Pierre, e nas Américas como a de Bolívar e da União Pan-Americana de James Blaine não prosperaram.

A segunda condição apontada por Inis Claude, refere-se ao fato de que a primeira motivação para que se constitua uma organização internacional, inclusive as organizações regionais, é a existência de uma forte interação entre as nações. Essa interação pode ir além dos interesses econômicos, muito embora na maioria das vezes as trocas comerciais e os fluxos financeiros estejam entre as principais formas de interação. Na história da Europa, por exemplo, por séculos, a religião foi um fator de notável importância, especialmente na conformação dos códigos de convivência social e das instituições políticas. Além disso, também por séculos, casamentos entre casas reais podiam levar a uniões políticas, assim como a guerras e conflitos em torno de disputas dinásticas. A Guerra dos Cem Anos (1337-1453) teve como início a reivindicação do trono da França pelo Rei Eduardo III da Inglaterra, que era neto de Felipe o Belo, um dos reis mais notáveis da história da França. Durante a guerra houve intenso intercâmbio de pessoas, casamentos entre nobres franceses e ingleses, além de intercâmbio cultural sob as mais variadas formas. Por outro lado, o nível e a intensidade da interação explicam em grande parte a formação de arranjos regionais, uma vez que, naturalmente, os países situados numa mesma região geográfica tendem a apresentar mais oportunidades de interação política, econômica, social e cultural.

A terceira e a quarta condições apontadas por Inis Claude, são os elementos que ajudam a explicar mais diretamente o surgimento de propostas de formação das modernas organizações internacionais. A interação sistemática efetivamente cria uma realidade distinta da ação externa de cada unidade. Ainda no século XIX, foram surgindo as organizações técnicas de pouco conteúdo político. Com efeito, o interesse em disseminar o emprego de unidades de medida comuns e de padrões técnicos que facilitassem o comércio e a fabricação de produtos fez emergir sem grandes dificuldades várias organizações voltadas para o estabelecimento de normas técnicas internacionais, de proteção de direitos de patentes e de esforço no sentido de organizar as comunicações internacionais (correios, telégrafos e viagens). Essas organizações, por seu baixo conteúdo político, não atraíam os intermináveis debates envolvendo arranjos internacionais. Na esteira das duas conferências de paz da Haia (1899 e 1907) foram propostas a formação de uma Corte Permanente de Arbitragem e de uma Corte Internacional de Justiça, que se consolidaram institucionalmente com a criação da Liga das Nações em 1919.

Assim, a existência de organizações internacionais como as conhecemos atualmente, tem pouco mais de um século de existência. O período em que realmente as organizações internacionais passaram a fazer parte da prática diplomática em termos regulares começa com a crise da década de 1930, que deixara claro que havia uma verdadeira “ordem econômica internacional”. As tentativas dos EUA de resolver unilateralmente os problemas da Grande Depressão fracassaram, revelando que, mesmo sendo a mais rica e poderosa entre as nações, sua economia fazia parte de um sistema econômico internacional e que, portanto, qualquer solução precisava incluir a cooperação internacional por meio de tratados, acordos e até mesmo de instituições permanentes. Na esfera política, um dos efeitos mais notáveis extraídos a experiência trágica da Segunda Guerra Mundial foi a percepção de que a política internacional, mesmo em ambiente de tensão, passava a demandar a formação de instituições de cooperação internacional em bases regulares. É nesse quadro que vão se consolidar a ONU, as instituições de Bretton Woods, o Gatt e o movimento pela integração europeia. Também foi na esteira da Segunda Guerra Mundial, o Movimento por uma Europa Unida assumiu dimensão formal resultando na formação da Europa das Comunidades: a Comunidade do Carvão e do Aço, a Comunidade Europeia de Energia Atômica, a Comunidade Econômica Europeia (CEE) e a Associação Europeia de Livre Comércio (AELC).

A integração regional e suas dificuldades

Como já mencionado, nas Américas do século XIX, ocorreram as primeiras iniciativas de integração. O movimento panamericanista iniciado por Bolívar com a realização do Congresso do Panamá, em 1826, serviu para chamar a atenção para o fato de que havia um Novo Mundo distinto da Europa, e que poderia desenvolver novos padrões para a convivência política regional e internacional. No final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX o movimento pelo Panamericanismo ganhou um novo colorido mais pragmático e mais orientado para a integração econômica sob a liderança dos Estados Unidos. No entanto, as grandes crises do século XX – as duas guerras mundiais e a depressão econômica da década de 1930 – mostraram de forma dramática que as Américas não poderiam seguir seu curso à margem da política e da economia que se tornaram efetivamente mundiais. Dessa forma, depois da Segunda Guerra Mundial, qualquer movimento no sentido da integração no Continente Latino- Americano teria que levar em conta o cenário internacional mais amplo, inclusive porque os EUA – a grande potência regional – haviam passado a se constituir também na potência central da ordem econômica e política mundial.

Nesse novo quadro, qualquer iniciativa regional no Continente Americano precisaria levar em conta as condições político-estratégicas mundiais que emergiram da Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, refletindo esse quadro, foram criadas instituições para dar sustentação aos regimes internacionais tanto na esfera política quanto econômica para os quais os Estados Unidos seriam o grande avalista. Assim, na esfera política, a Organização das Nações Unidas passava a ser o núcleo de um regime político em torno do qual as iniciativas regionais deveriam acomodar as instituições existentes ou que eventualmente viessem a ser criadas. A transformação da União Panamericana em Organização dos Estados Americanos em 1948 foi, tipicamente, um produto dessa acomodação. Na esfera da economia, a criação das instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial) e, mais tarde, a criação do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), que era uma das cinco comissões regionais do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas (Ecosoc). Esse conjunto de instituições refletiam a formação de regimes internacionais que deveriam servir de referenciais para quaisquer iniciativas econômicas regionais.[4]

Em virtude da notável supremacia americana, em que todas as nações da região tinham nos EUA o parceiro econômico mais relevante, os anos do pós-guerra foram marcados pela disseminação do interesse pela realização de negociações com os EUA com vistas à promoção da industrialização e do progresso econômico. O Brasil, por exemplo, já vinha ampliando suas relações com os Estados Unidos, seja para consolidar sua produção siderúrgica e modernizar sua agricultura, seja para abrir novas frentes por meio de cooperação com o governo e as instituições dos EUA. Por meio de um desses acordos foi possível instalar em São José dos Campos (SP) o Centro Tecnológico da Aeronáutica, que incluiu a criação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (1950). Os produtos desses acordos foram essenciais para que, no futuro, o Brasil viesse a desenvolver sua própria indústria de aviões. Outra iniciativa de cooperação com os EUA foi a instalação em 1951 da Comissão Mista Brasil-EUA para o Desenvolvimento Econômico no âmbito do Ministério da Fazenda. A iniciativa era resultante de negociações iniciadas em 1950 como parte do Programa Ponto IV anunciado pelo Presidente Truman tendo por base o entendimento de que os EUA poderiam – e deveriam – ajudar as nações em desenvolvimento da América Latina por meio da assistência técnica. Do ponto de vista do Brasil, como também das demais nações, havia a expectativa de que, de algum modo, essa cooperação com os EUA poderia repetir, ao menos em parte, o sucesso obtido pelo Plano Marshall na reconstrução europeia. Dessa forma, em grande medida, a diplomacia das nações latino-americanas se movia de modo semelhante à brasileira, procurando abrir canais de cooperação com os EUA, a grande potência regional e mundial.

No plano do comércio, o estabelecimento do GATT indicava que um regime internacional para o comércio seria estabelecido em torno de um acordo geral e não a partir de uma organização internacional. Esse acordo geral não criava deveres e obrigações comerciais específicas para as nações, estabelecia apenas normas gerais que deveriam orientar as trocas comerciais entre as nações. A maioria dos países, sobretudo a partir dos anos da grande crise da década de 1930, tinha assinado acordos comerciais com os EUA, ou participavam de arranjos sobre commodities que começaram a se formar depois da Primeira Guerra Mundial, e que se aceleraram a partir da crise da década de 1930. As principais motivações para esses acordos comerciais eram o interesse generalizado pela redução da volatilidade dos mercados de commodities e também a preocupação com a preservação dos mercados domésticos de trabalho.[5]

Pela cláusula XXIV, o Gatt abria a possibilidade de que arranjos regionais pudessem ser estruturados sem ferir o princípio geral da nação mais favorecida que as partes contratantes do Gatt deveriam respeitar. Ou seja, qualquer arranjo regional é motivado pelo entendimento de que seus integrantes podem oferecer mutuamente vantagens que não têm condições de oferecer às economias não integrantes do arranjo regional. Dessa forma, o artigo XXIV abria a possibilidade de que arranjos regionais se formassem sem caracterizar desrespeito ao princípio da nação mais favorecida. Todos os governos integrantes do GATT entendiam que o objetivo maior do GATT era o de promover a expansão do comércio, principalmente por meio da redução ou da eliminação de tarifas e de outras barreiras comerciais e que, um tal objetivo, na maioria das vezes, não poderia ser atingido de forma homogênea e simultaneamente, por todas as economias, integrantes ou não do GATT.

Na realidade, após o final da Segunda Guerra Mundial, o ambiente político na Europa era francamente marcado pela ideia de uma Europa unida. À época havia um atuante comitê de coordenação internacional dos movimentos para a unificação da Europa. Esse comitê organizou em Maio de 1948, um grande Congresso Europeu, que foi presidido por Winston Churchill, cuja liderança na luta contra o nazismo havia se destacado de forma notável. O congresso  contou com a participação de cerca de 800 delegados, que incluíam as mais notáveis lideranças europeias dos países vencedores e vencidos da Segunda Guerra Mundial. A partir de então a integração europeia efetivamente começara a ganhar forma institucional que resultaria em três organizações que serviriam da base para o que, mais tarde, viria a ser a União Europeia: a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1951), a Comunidade Europeia de Energia Atômica (1957), e a Comunidade Econômica Europeia (1957).

A “triangularidade” ma integração Latino Americana

Em virtude da centralidade da Europa no sistema internacional, esse movimento pela integração europeia revigorou o interesse pela integração regional, reforçando o entendimento de que a integração comercial constituía uma iniciativa necessária, inclusive para sustentar uma integração política. Assim, sob esse renovado interesse pela integração que se espalhou pelo mundo, na América Latina, em 18 de Fevereiro de 1960, foi assinado o Tratado de Montevideo que instituiu a Associação Latino-Americana de Livre-Comércio – Alalc – com o objetivo de promover a integração econômica na região. Foram signatários desse tratado Argentina, Brasil, Chile, México, Paraguai, Peru e Uruguai, aos quais se juntaram mais tarde Colômbia (1961), Equador (1962), Venezuela (1966}  e  Bolívia (1967). Em 1980, foi assinado um novo Tratado de Montevideo transformando a Alalc em Aladi (Associação Latino-Americana de em Integração). Essa transformação incorporava a experiência europeia que evidenciara o fato de que a integração regional era um processo que deveria evoluir gradativamente. Uma forma de dar curso a esse processo seria por meio da criação de arranjos sub-regionais na América Latina, permitindo assim maior flexibilidade aos movimentos de integração regional no Continente. Na realidade, essa transformação institucional atendia melhor a grande diversidade do Continente que, já em 1960, vira nascer o Mercado Comum Centro Americano e, em 1969, o Pacto Andino, como arranjos sub-regionais.

O fato é que a expansão da rede de organizações internacionais depois da Segunda Guerra Mundial, em princípio, podia ajudar o processo de integração regional no Continente ao facilitar a adoção de padrões universais que facilitavam a integração econômica, social e política. No entanto, ao mesmo tempo, essa expansão de organizações internacionais servia também para chamar a atenção de governantes sobre o fato de que havia sempre um mundo para além dos blocos regionais na América Latina que merecia alguma atenção. Em um sentido mais geral, a integração internacional em escala mundial foi um processo que avançou de forma substancial depois de 1945, em especial a partir da década de 1980 quando esse processo de integração internacional passou a ser chamado de “globalização”.

Em termos teóricos vale chamar a atenção para uma formulação de Rubens Ricupero que, ao analisar a política externa brasileira entre 1930 e 1990, argumentava que, tal como ocorria com outras nações latino-americanas, qualquer relação bilateral do Brasil na realidade precisava ser vista como uma “relação triangular”, na qual os EUA sempre ocupavam um dos vértices.[6] E esse fato ocorria não porque os EUA praticassem uma política intervencionista ou controladora dos destinos de seus vizinhos, mas simplesmente pela sua condição de grande potência e de maior economia do mundo. Essa condição significava que, para a maioria das nações da região, os EUA eram o mercado mais importante para suas exportações e também a principal fonte de oportunidades e de recursos financeiros.

Quando consideramos o que vem ocorrendo em relação à China nos últimos anos, essa hipótese se afigura bastante plausível, já que nos anos recentes, apesar da distância, a China tornou-se o maior mercado para as exportações brasileiras e vem crescendo de importância para muitas outras nações Latino-americanas. Conforme dados recentes, apenas 6,5% das importações brasileiras em 2020 vieram dos países do Mercosul enquanto, do lado das exportações, somente 6% dos produtos exportados pelo Brasil tiveram por destino os países do Mercosul. Por outro lado, esses dados se tornam ainda mais dramáticos se forem comparados com o comércio com a China que, em 2020, recebeu nada menos do que 32,4% do total exportado pelo Brasil enquanto, por outro lado, a China foi responsável por 21,7 % das importações brasileiras. Os dados mostram que outros países da região também seguem curso semelhante ao do Brasil. Por exemplo, em abril deste ano, a Argentina exportou US$ 509 milhões para a China enquanto para o mercado brasileiro, as exportações argentinas somaram apenas US$ 387 milhões. Ou seja, há muitas razões para entender que o “padrão triangular” continua vigente, mesmo com a mudança dos atores, isto é, o fenômeno do “padrão triangular” apontada por Ricupero tem mais a ver com a condição de grande potência do que com as políticas praticadas de forma deliberada para influenciar as economias da região.

A integração Latino Americana é, sem qualquer dúvida, um processo complexo, cujo sucesso ou fracasso depende de vários fatores. Entre os possíveis fatores, talvez o mais geral e mais decisivo seja o fato de que não tenha emergido na região uma ou mais potências em condições de exercer uma liderança efetiva no processo de integração. Neste caso, o termo liderança não se refere à disposição de governantes da região colocarem em prática políticas que considerem o exercício da liderança regional um objetivo supostamente desejável ou necessário para si e para a região. Refere-se, essencialmente, à existência de capacidade em termos de condições econômicas e políticas para exercer de forma natural o papel de liderança na região. Ou seja, refere-se ao tipo de liderança que não é conquistada pela retórica, ou pelo simples desejo de exercê-la por meio de uma diplomacia regional, mas sim pela posse da capacidade real em termos de recursos de poder, sobretudo econômicos, que permitam ao país representar oportunidades e meios para o progresso das nações vizinhas. Uma possibilidade mais atraente seria a ocorrência de mais de uma potência capaz de exercer essa liderança na região, como ocorreu na Europa depois da Segunda Guerra Mundial quando, além da liderança exercida ao menos por três potências (Grã-Bretanha, Alemanha e França), por diversas razões derivadas das circunstâncias, a integração europeia no pós-guerra contou também com a liderança exercida pelos EUA, que via na recuperação e desenvolvimento da Europa um elemento central para seu próprio progresso econômico e sua segurança estratégica.

Infelizmente, no caso da integração latino-americana não houve qualquer caso de liderança regional expressiva que pudesse desempenhar esse tipo de liderança. Tendo em vista o peso relativo da Argentina e do Brasil no Continente Sul-Americano, uma associação dessas duas nações, por exemplo, poderia formar efetivamente um eixo capaz de influenciar de maneira decisiva e muito positiva um processo de integração na região. No entanto, na ordem internacional do pós-guerra o quadro político e econômico nessas duas nações jamais se apresentou propício a um desenvolvimento nessa direção. Um raro e breve momento em que essa possibilidade se afigurou favorável resultou na formação do Mercosul que, ao longo dos anos 1990, parecia ter energia para impulsionar a integração regional.

Essa possibilidade, no entanto, revelou-se incapaz de sobreviver diante da evolução tanto do quadro econômico e político doméstico quanto da ordem internacional. Na ordem interna, tanto no Brasil quanto na Argentina, desde os fins da década de 1990, os vícios da velha política trouxeram de volta os baixos investimentos e as descontinuidades nas políticas de Estado. Por outro lado, no plano internacional, na esteira de uma nova onda de avanços tecnológicos, a globalização avançou alterando de forma bastante radical os padrões de investimento e de comércio em escala global. O baixo dinamismo das instituições econômicas e políticas tanto da Argentina quanto do Brasil, virtualmente, tornava inviável qualquer possibilidade desses países absorverem e participarem ativamente nas transformações mundiais em curso. A consequência óbvia é que os avanços na indústria e no comércio passaram a se concentrar nos polos mais dinâmicos da economia mundial, ou seja, nos EUA, na Europa e na Ásia. O fato é que a condição periférica da América Latina em termos econômicos e políticos tornou-se não apenas mais acentuada, mas também mais estruturalmente definida. Alguns dados referentes ao Brasil são ilustrativos desse fato.

Em termos gerais, a economia brasileira nos últimos anos tem crescido a taxas mais baixas do que a média mundial. De acordo com dados do Banco Mundial, entre 2005 e 2019, a taxa média de crescimento da economia mundial foi de 2,81% ao ano, enquanto a economia brasileira no período cresceu a uma taxa média de apenas 2,18% ao ano. Na realidade, foi uma taxa de crescimento mais baixo inclusive do que a da América Latina & Caribe que foi de 2,35% ao ano. Ou seja, um desempenho econômico bem pouco invejável e totalmente incapaz de motivar e de inspirar qualquer nação da região. Nesse sentido, a crescente influência da China na região, em grande parte pode ser explicada pelo seu desempenho econômico que, entre 2005 e 2019, cresceu a uma taxa de 8,94% ao ano, significando que a economia chinesa reunia com sobras as condições para se tornar uma alternativa atraente por oferecer crescentes oportunidades de investimentos e de modernização tecnológica.

Em termos econômicos, as taxas de crescimento dependem bastante das taxas de investimento total das nações e, nesse quesito, as perspectivas brasileiras não têm sido nada animadoras. Com efeito, as taxas de investimento total das nações são definidas como proporção do PIB e incluem tanto os investimentos públicos quanto os privados.[7] Um país como a China cujas taxas de crescimento têm ficado em torno de 9% ao ano, em 2018 seu investimento total foi de 44,27% do PIB, enquanto a média mundial oscilou entre 21% e 23% nos últimos anos. O Brasil, por sua vez, infelizmente tem mantido as menores taxas de investimento total entre as grandes economias. Há mais de duas décadas, os investimentos totais no Brasil tem permanecido próximo dos 6% abaixo da média mundial. Nos anos de 2016, 2017 e 2018 os investimentos totais da economia brasileira somaram apenas 14,97%, 15,01% 15,40% do PIB, respectivamente.[8] Essas cifras servem como boa parte da explicação para os baixos índices de crescimento da economia brasileira, especialmente quando se considera o fato de que os investimentos (ou a falta deles) são cumulativos. Em outras palavras, o baixo desempenho da economia brasileira não favorece a movimentação das forças econômicas voltadas para o regionalismo mas, ao contrário, a própria economia brasileira tem hoje como seus mercados principais a China, a União Europeia e os EUA. Os níveis notavelmente baixos dos investimentos ajudam a explicar também a crescente concentração na exportação de produtos de baixo valor agregado.[9] Apenas por um breve momento, no final da década de 1990, o Mercosul chegou a absorver quase 15% das exportações brasileiras e, mais recentemente, o mercado chinês também superou o mercado brasileiro para as exportações argentinas. Além disso, a própria teoria tradicional da integração já argumentava nas décadas de 1960 e 1970 que a concentração das exportações em bens de baixo valor agregado (bens primários) não ajudava o avanço da integração, uma vez que esses bens geralmente não abrem espaço para a complementaridade entre as economias da região.[10]

Enfim, o que se pode deduzir é que, apesar das transformações na economia mundial e na própria região, é preciso reconhecer a força e a persistência do argumento teórico da “triangularidade” que tem atuado contra as forças de integração, uma vez que em nenhum momento houve alguma potência na região que reunisse as condições para exercer efetivamente liderança econômica e política na região. Em suma, mesmo que se admita a existência de outros fatores, o pouco avanço das iniciativas de integração no Continente Latino-Americano, em larga medida, se deveu basicamente ao desempenho medíocre das grandes economias da região como a brasileira e a argentina na América do Sul e a mexicana na América Central e no Caribe.

Considerações finais

A título de reflexão final sobre o tema, parece oportuno comparar alguns aspectos da experiência de regionalismo na América Latina e Caribe com o processo de integração na Europa. De início, cabe apontar que a integração europeia tem por base uma longa história de integração. Na realidade, desde a Idade Média, a integração europeia sempre foi parte da vida econômica, política e social da Europa. Não apenas iniciativas como a Liga Hanseática caracterizaram essa integração histórica, mas os casamentos entre famílias reais, as instituições e práticas das corporações de ofício, a religião, a língua e até mesmo os muitos conflitos ao longo da turbulenta história europeia não deixavam de se constituir em facetas da intensa convivência entre as nações do continente. Do ponto de vista econômico, muito antes do estabelecimento da CEE o comércio intrarregional já era relevante para todas as nações europeias. Foi apenas a partir da era dos descobrimentos (século XVI) que a vida econômica europeia começou a se expandir para regiões e nações não europeias. Mesmo com o avanço da globalização nos fins do século XX, o comércio intrarregional para a maioria dos países que haviam passado a integrar a União Europeia sempre se manteve em níveis acima de 50%. No caso de outros arranjos regionais, como o Mercosul, por exemplo, o comércio intrabloco nunca teve uma importância comparável à dos países europeus. Dessa forma, não se pode argumentar que iniciativas de integração como as da América Latina devam ser consideradas fracassadas, mas apenas questionar se não poderiam ter ido um pouco mais além.

 Evolução das exportações brasileiras segundo o destino (%): 1990-2004.
Destino                                               1990                      1994                      1998                      2002                      2004
Países do Mercosul                      4,20                       13,59                     17,37                     5,48                       9,24
Outros membros ALADI               3,15                       4,70                       3,96                       6,30                       6,73
União Europeia                                32,36                     28,01                     28,84                     25,01                     24,25
Estados Unidos                                24,17                     20,24                     19,06                     25,44                     20,77
Outros Países                                     36,12                     33,45                     30,78                     37,77                     39,01
Fonte: CEPAL (2005)
Nota: Depois de 2008, o Mercosul tem oscilado em torno de 6,5% como destino das exportações brasileiras.
Evolução das exportações argentinas segundo o destino (%): 1990-2004.
Destino                                               1990                      1994                      1998                      2002                      2004
Países do Mercosul                      14,84                     30,33                     35,64                     22,31                     19,59
Outros membros ALADI               6,34                       8,03                       8,01                       14,14                     14,10
União Européia                                30,85                     24,82                     17,50                     19,94                     17,17
Estados Unidos                                13,48                     10,88                     8,29                       11,27                     10,80
Outros Países                                     34,49                     25,94                     30,55                     32,33                     38,32
Fonte: CEPAL (2005)

Como reflexão adicional, que pode ilustrar o baixo interesse no regionalismo no Brasil, vale mencionar o caso da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica), que resultou de uma iniciativa nascida na própria região e, mais especificamente, de uma iniciativa da diplomacia brasileira. Com efeito, a OTCA é uma organização intergovernamental, formalmente constituída por 8 Países Membros: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. Surgiu em decorrência do Tratado de Cooperação Amazônica, que foi assinado em 3 de julho de 1978, tendo como objetivos básicos a preservação do meio ambiente e o uso racional dos recursos naturais da Amazônia. Em dezembro de 1995, o tratado foi transformado em organização internacional e, em 2003, foi estabelecida a Secretaria Permanente da OTCA com sede em Brasília. É desnecessário insistir na atualidade, nos benefícios e no papel de destaque que a cooperação regional poderia desempenhar para o Brasil e para toda a região, caso uma organização como a OTCA de fato ganhasse corpo e relevância. Desde que a OTCA foi concebida, as questões referentes ao desenvolvimento da região amazônica, infelizmente só tem ganhado destaque no que genericamente poderia ser chamado de “agenda internacional negativa” quando, na realidade, o potencial de possibilidades positivas sempre foi reconhecido por governos e analistas sob os mais variados ângulos. Trata-se de um caso absolutamente inequívoco de que cabia ao Brasil liderar essa iniciativa, a começar pelo fato simples e objetivo de que a maior parte da Amazônia se situa em território brasileiro. Apesar de tudo, os sucessivos governos brasileiros, ao longo do tempo, preferiram deixar a OTCA à míngua, preferindo ocupar-se com o recebimento de doações de fundações ambientalistas estrangeiras enquanto destinavam praticamente a totalidade dos recursos fiscais nacionais disponíveis a outros propósitos. O fato é que não é possível por em prática qualquer política externa de relevância sem o emprego de recursos e, no caso de organizações internacionais como instrumento da diplomacia dos países, os recursos necessários para seu funcionamento só podem advir de seus países associados, que destinam valores a essas organizações proporcionalmente ao nível de seus interesses e de seu comprometimento moral e político.

Nesse aspecto, verifica-se que no quadro orçamentário brasileiro jamais projetos e iniciativas como as que poderiam derivar de uma entidade como a OTCA teve qualquer relevância. Nos últimos anos, nada menos do que 94% de toda a arrecadação fiscal (Federal, Estadual e Municipal) foram gastos com o pagamento de salários e de uma ampla gama de benefícios para servidores públicos ativos ou aposentados e pensionistas dos três poderes, ou ainda na manutenção de direitos e de privilégios de corporações, adquiridos por meio de decisões legislativas ou de instâncias judiciárias. Nesse quadro, apenas 6% da arrecadação fiscal total são destinados para o custeio de atividades fins de todos os ministérios e agências oficiais no nível federal, estadual e municipal. A título de comparação, no caso do Governo Americano a parte discricionária do orçamento público corresponde a mais de 30% da arrecadação pública e, para ilustrar outra diferença na destinação de recursos públicos no Brasil em relação a outras nações, vale notar, por exemplo, que o orçamento do Poder Legislativo brasileiro (Câmara dos Deputados e Senado Federal) custa três vezes o Legislativo do Japão e duas vezes o Legislativo da Alemanha.

Outro retrato da baixa capacidade da nação brasileira de exercer algum papel de liderança na ordem internacional é refletido nos movimentos migratórios internacionais. Poucas decisões são tão cruciais na vida de uma pessoa, ou de uma família, quanto a decisão de emigrar. Decide-se deixar o país em virtude de conflitos, de colapso da ordem política e da falta de perspectivas enquanto, por outro lado, escolhe-se um país de destino na tentativa de aí encontrar novas esperanças e novas oportunidades. Nesse quesito, há cerca de duas décadas, o Brasil tem sido um país cujo saldo tem sido negativo entre os que deixam o país e os que, vindos de outros países, buscam encontrar oportunidades no Brasil.[11] Para os emigrantes das nações vizinhas, inclusive da depauperada Venezuela, o Brasil tem sido uma opção cada vez menos atraente, apesar da relativa facilidade para ingressar e para regularizar sua condição no país.

Em resumo, há muitos fatos que mostram que as maiores dificuldades para o avanço da integração nos países latino-americanos têm sua origem no fracasso das nações da região em encontrar o caminho para o progresso. Com efeito, verifica-se na história recente que, na ordem internacional, expressa nos regimes políticos e econômicos construídos após a Segunda Guerra Mundial, a estagnação da América Latina contrastou bastante com o que ocorreu em outras regiões do mundo. Foi sob os regimes do pós-guerra que se verificou a reconstrução da Europa e do Japão. Foi também sob esses regimes internacionais que emergiram os “Tigres Asiáticos” e, mais tarde, o mundo testemunhou a impressionante ascensão da China que, apesar de comandada pelo Partido Comunista, beneficiou-se dos fluxos de capitais e do comércio com o Ocidente capitalista e, em três décadas, saiu da obscuridade para ocupar a posição que ocupa atualmente na ordem internacional.

Em resumo, ao invés de procurar na ordem internacional explicações para as dificuldades de promover o progresso nacional e fazer avançar a integração econômica e política da região, parece mais razoável concluir que as forças que poderiam efetivamente impulsionar a integração na região ainda permanecem dormentes nos países da América Latina sob o peso de debates sobre questões abstratas e, na maior parte do tempo, desconectadas tanto das oportunidades de modernização e de crescimento quanto dos verdadeiros dilemas da ordem internacional.

Um reflexo dessa desconexão pode ser observado nos debates sobre o que ficou conhecido como Consenso de Washington e que ocupou boa parte da intelectualidade da América Latina desde os anos 1990. Objetivamente, o Consenso de Washington foi, em larga medida, inspirado pelos desenvolvimentos em curso nos países da Ásia (Tigres Asiáticos) que obtinham grande sucesso em suas estratégias de modernização e desenvolvimento. O documento não foi além de uma mera recomendação informal e não foi oficializado por qualquer instituição nacional ou internacional, tendo sido apenas a conclusão de observadores e analistas que atuavam em instituições como o Banco Mundial e o FMI, cujas sedes estão situadas na capital dos EUA e que, por dever de ofício, deveriam observar e analisar continuamente o desempenho da economia mundial. Para os analistas brasileiros e latino-americanos, que gastaram boa parte de seus esforços em criticar esse “consenso”, talvez a questão que mais deveria incomodá-los deveria ser o fato de que desde a década de 1980, o desempenho da economia brasileira e latino americana tem permanecido consistentemente abaixo da média de crescimento da economia mundial. Os regimes de comércio, das transações financeiras e do sistema monetário que serviam à Coreia do Sul, à Singapura, à China e a vários outros países asiáticos que virtualmente “decolaram” a partir da década de 1980, eram os mesmos que serviam ao Brasil e aos demais países latino-americanos. Por que não emergiu na região um grupo de “tigres latino-americanos”?

 

 

[1] O presente ensaio é produto de trabalho de reflexão proporcionado por debate realizado no dia 24/Setembro/2021 no âmbito das atividades do Grupo de Estudos e Pesquisa em Organizações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (GEO-UNESP).

[2] Inis L. Claude, Jr. Swords into Plowshares: The Problems and Progress of International Organization. (Random House, 1956).  A edição mais amplamente conhecida dessa obra é a de 1964.

[3] Abbé de Sait-Pierre foi Ministro de Louis XIV e elaborou uma “Proposta de Paz Perpétua para a Europa”, que foi publicada em 1713. Por iniciativa de Bolivar em 1826 foi realizado o Congresso do Panamá, com o propósito de se promover uma união política das nações americanas. Em 1890 foi realizada em Washington, D.C. a Primeira Conferência Panamericana conduzida por James Blaine, que pretendia promover a integração econômica das nações americanas.

[4] O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial foram criados na Conferência de Bretton Woods, em 1944. A CEPAL foi criada em 1948, estabelecendo Santiago (Chile) como sede. O GATT foi criado na Rodada de Negociações Comerciais de Genebra, em 1947, e tornada uma instituição permanente na Rodada Torquay (U.K.) em 1951.

[5] O ensaio escrito por John Ruggie intitulado  International Regimes, Transactions, and Change: Embedded Liberalism in the Postwar Economic Order (in S. D. Krasner, International Regimes, Cornell University Press, 1982) interpreta com muita propriedade o regime de “alma liberal”, mas cheio de ambiguidades que caracterizou o regime de comércio do pós-guerra.

[6] R. Ricúpero, O Brasil, a América Latina e os EUA desde 1930: 60 Anos de uma Relação Triangular. In J. A. G. Albuquerque (org.), 60 Anos de Política Externa Brasileira. Vol. 1 pp. 37-60. NUPRI-USP.  1996.

[7] Os investimentos públicos incluem, entre outros itens, a construção e manutenção de estradas, de pontes, de usinas de geração de energia, de escolas e hospitais públicos, etc. Os investimentos privados referem-se, obviamente, à construção e manutenção de fábricas e de outras instalações produtivas, incluindo-se a reposição de máquinas e equipamentos. Vale notar que nas economias mais avançadas 2/3 dos investimentos em ciência e tecnologia são realizados com recursos privados.

[8] Dados sobre investimentos disponibilizados pelo Banco Mundial.

[9] Dados do Ministério da Fazenda mostram que em 2020, entre os 10 produtos mais exportados pelo Brasil, apenas a celulose pode ser considerada um produto industrializado. O restante são bens exportados “in natura” ou apenas beneficiados.

[10] O mais notável teórico da integração foi o estudioso húngaro Bela Balassa (1927-1991).

[11] Dados divulgados pelo Ministério das Relações Exteriores, pelo Ministério da Justiça e por outras agências oficiais, revelam que em 2020 havia mais e 4 milhões de brasileiros vivendo em outros países enquanto no sentido inverso, havia menos de 1 milhão de estrangeiros vivendo no Brasil.

 

* Eiiti Sato é professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

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As Constituições e seu papel nas Relações Internacionais https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3395&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=as-constituicoes-e-seu-papel-nas-relacoes-internacionais Wed, 20 Jan 2021 19:39:45 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3395 Por Eiiti Sato

Neste artigo, procurar-se-á discutir o papel das constituições diante da realidade internacional desde que se tornaram elementos centrais no Direito moderno, uma vez que definem os limites das ações e as características do Estado Nação. Com efeito, no estudo das relações internacionais as constituições tornaram-se a peça que define não apenas os padrões da convivência política doméstica, mas também os princípios que devem orientar as ações e o caráter de um Estado nas relações com outros Estados. Para esse propósito parece útil, e até mesmo necessário, iniciar com algumas considerações de base histórica para, em seguida, discutir o papel desempenhado por esse tipo de documento nas relações internacionais contemporâneas.

A trajetória percorrida pelas sociedades desde a formação do Estado moderno marcado pelo “contrato social” em substituição ao Estado patrimonialista baseado em costumes ancestrais e em leis não escritas, foi uma trajetória tão complexa e variada como o da própria convivência humana. Assim, este texto está longe de presumir que, em poucas páginas, seria capaz de resumir toda essa longa e rica trajetória e procura apenas apontar para algumas questões que, no entendimento do autor, refletem um mundo que, em poucos séculos, passou por transformações na esfera social e política, muito mais amplas e profundas do que nos muitos milênios que antecederam a era que chamamos genericamente de “modernidade”. Além disso, a centralidade da experiência europeia se explica pelo fato de que muito embora o Estado em seu sentido genérico tenha sido uma instituição presente em toda a humanidade, o Estado Nacional que conceitualmente organiza a relações entre povos em nossos dias deriva da experiência europeia.

A constituição escrita como contrato social

Na Antiguidade foram relativamente poucas as leis escritas e registradas como o Código de Hamurabi ou as leis de Moisés. Da Grécia Antiga, chegaram até nossos dias alguns documentos como as leis que formaram o que chamamos de democracia ateniense. Na Idade Média, as sociedades europeias ainda se organizavam muito mais em torno de costumes, de normas e de instituições sociais não escritas. A Magna Carta assinada por João Sem Terra e seus barões (1215, d.C.) foi um dos poucos acordos de alcance mais amplo registrados na forma de documento escrito. De qualquer forma, no mundo ocidental, a prática de produzir compromissos sustentados em documentos organizados e escritos na forma de códigos estruturados começou a se disseminar ainda na Baixa Idade Média.

Na realidade, quando a Idade Média chegava ao fim, as sociedades na Europa tornavam-se mais populosas e complexas demandando tratados e acordos definindo formalmente direitos sobre propriedades, sobre territórios bem como sobre questões como direitos hereditários e práticas religiosas. Esses documentos podiam ter por base costumes e direitos ancestrais mas, de forma crescente, precisavam ser também expressos e registrados em documentos escritos, coerentes com a força da razão e do direito praticado de forma consolidada por gerações. Uma característica marcante dessa época aparece como fato histórico fundante da história da nação brasileira. Aprende-se nas escolas a importância da Bula Papal Intercœtera (1493) e do Tratado de Tordesilhas (1494) promulgados pelo Papa Alexandre VI. Do ponto de vista do presente ensaio, esses episódios são bastante ilustrativos do caráter universal da autoridade da Igreja Católica que, nesses documentos, revelava possuir a notável prerrogativa de arbitrar e até de dividir o mundo que se estendia para além do Mediterrâneo e do Mar do Norte, entre os reinos de Portugal e de Espanha.[1]

A partir do século XVI, com a progressiva substituição das instituições feudais pelo Estado Nacional moderno, caracterizado pela racionalidade, pela laicidade e pela impessoalidade, a organização e o funcionamento do Estado na Europa passaram a ser expressos e registrados em documentos escritos. A emergência do contrato social como elemento definidor de um Estado Nação, figurativamente representado por Hobbes em seu Leviathan (1651), foi marcada por esse declínio do ancien régime que identificava as unidades políticas com as posses de nobres senhores, que podiam ser reis, duques, condes, ou portadores de outros títulos que correspondiam a seus feudos. O Estado Nacional moderno, por sua vez, marcado pela territorialidade estável, pela impessoalidade e por direitos e obrigações racionalmente concebidos e estruturados, passou a depender também de documentos escritos que refletissem os compromissos assumidos por governantes e governados em torno de princípios e de motivos pelos quais esses compromissos eram formalmente assumidos. A expressão latina verba volant, scripta manent tornava-se cada vez mais essencial para registrar e assegurar direitos e compromissos entre famílias que se ampliavam, entre povos que se misturavam e entre gerações que se sucediam.[2]

Alguns escritos deixados por pensadores da época refletem essa passagem da ordem feudal católica para a modernidade onde, de forma crescente, no ambiente político e cultural europeu, as populações passavam a se misturar e a conviver com outras religiões e com outras culturas e etnias. Um jurista e teólogo como Francisco de Vitória, situado nesse ponto de inflexão da história europeia, apesar de formado na educação escolástica católica medieval, passou a divergir e a questionar o entendimento corrente de que os europeus tinham o direito de fazer a guerra contra os nativos das Américas apenas porque seus reis não eram cristãos.[3] A esse respeito, uma das obras mais notáveis e abrangentes dessa época em que se redefinia a ordem social e política foi deixada por Jean Bodin. Seu “Six livres de la République” (1576) foi escrito na forma de um compêndio sobre o entendimento do Estado e a forma de governá-lo. Nesse esforço de definição do Estado, seu ponto de partida foi enunciar a compreensão da soberania, um atributo que existia desde tempos imemoriais associado às prerrogativas dos governantes mas que, no Estado moderno emergente, ganhava um sentido diferente, tornando-se um atributo primordial do próprio Estado e não mais de seu governante que, na ordem antiga, era confundido com o sentido de “proprietário”. Assim, nesse esforço para definir e compreender o Estado e suas instituições, Bodin precisava, antes de tudo, começar por explicar onde começava e onde terminava a autoridade desse Estado.[4]

Com efeito, no direito medieval não havia o conceito de país e nem de cidadão, mas apenas de senhores, de vassalos, de reinos e de feudos distribuídos de forma pouco distinta pela cristandade. Ademais, nesse processo de surgimento do Estado moderno, foi preciso também que o conceito de cidadão substituísse o de vassalo na ordem social, juntamente com o de país como unidade central da ordem política. O conceito de cidadão é importante porque, em essência, somente um cidadão poderia “subscrever” um “contrato social”. Como argumentava Hobbes, os cidadãos é que integram a sociedade civil e, mesmo que não fossem portadores de títulos e de virtudes morais desejáveis, o fato de desfrutarem uma condição de igualdade natural entre si tornava importante sua adesão ao contrato social. Para Hobbes, objetivamente, os homens não seriam iguais por uma abstrata dignidade inerente a todos os seres humanos, mas eram iguais pelo mal ou pelo bem que potencialmente podiam trazer à convivência humana. Hobbes, uma mente arguta e sempre atenta aos acontecimentos e à História, observava as turbulências políticas de seu tempo. Na sua Inglaterra, o rei Charles I era abertamente confrontado em sua fé e em sua autoridade por barões e também pelo povo até ser decapitado (1649), além disso, em 1610, ainda jovem, Hobbes certamente havia observado o homem mais poderoso da França – Henrique IV, denominado “O Grande” – ser assassinado por um simples mestre-escola.[5] Em outras palavras, embora um rei pudesse ser rico, poderoso e alvo de muitas honrarias, e até mesmo dispor de uma guarda pessoal, a igualdade natural continuava a existir, uma vez que ainda podia assassinar ou ser assassinado por um homem comum.

Na concepção de Hobbes, o meio internacional seria formado por vários Leviatãs, cada qual resultante de cidadãos que, hipoteticamente, se reuniam em torno de um “contrato social” para definir sua organização política e defender suas crenças, seus interesses e, de uma forma geral, suas principais motivações de vida. Na literatura corrente sobre relações internacionais, reconhece-se o fato de que o termo “internacional” foi utilizado pela primeira vez apenas no século XVIII, por Jeremy Bentham na sua obra An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, publicada em 1789. Antes de Bentham os termos utilizados para Direito Internacional eram Direito das Nações ou Direito das Gentes.[6] Também foi apenas nos fins do século XVIII que, formalmente, aparece o primeiro “contrato social” – a primeira constituição – estabelecendo um Estado Nacional na acepção moderna: os Estados Unidos da América.

A constituição define o país

Como já mencionado, a constituição é o “contrato social” que define os limites e as características essenciais da organização social e política do Estado Nação, que passou a receber a denominação genérica de país. Como já mencionado, na filosofia política a constituição seria a expressão prática e escrita do contrato social preconizado por Thomas Hobbes na figura de seu Leviathan.[7] Na realidade, conceitualmente, a expressão contrato social é mais genérica uma vez que, filosoficamente, o termo designa o momento em que o ser humano deixa de viver no estado de natureza e passa a viver como um ser que, exatamente, se destaca da natureza estabelecendo leis morais, sociais e políticas para organizar a convivência em sociedade. Nesse sentido, não se pode dizer que no mundo feudal europeu os povos não viviam segundo um contrato social, no entanto, tratava-se de um contrato social baseado essencialmente em costumes e direitos ancestrais e na fé cristã. Da leitura das obras de contratualistas como Locke, Rousseau e do próprio Hobbes, pode-se deduzir que o sentido contido no termo passava a ter um conteúdo essencialmente racional no sentido moderno do termo, associado à noção de que, ao invés de vassalo, o indivíduo tornava-se cidadão, capaz de pensar e de julgar por si próprio seus interesses e seu lugar na sociedade.

Objetivamente, a reinterpretação da expressão contrato social era um reflexo bastante visível de um mundo em que as populações se expandiam e se integravam por meio de relações cada vez mais complexas. Ao mesmo tempo em que algumas relações tornavam-se cada vez mais estáveis e até permanentes, outras podiam ter duração mais curta, como no comércio, mas que, apesar disso, demandavam garantias impessoais e atemporais. De qualquer modo, valorizava-se cada vez mais a razão e o entendimento de que cada povo podia ter seus próprios costumes ancestrais e suas próprias tradições religiosas sem que, no entanto, fossem razões para torná-los inimigos uns dos outros, os quais deveriam ser combatidos, convertidos, ou mesmo eliminados. Com os reformadores dos séculos XVI e XVII, a religião passava a ser vista cada vez mais como algo a ser vivido essencialmente na consciência do indivíduo misturando-se, cada vez menos, com as normas e padrões de convivência na ordem política e social.[8] Dessa forma, a disseminação do conceito de Estado Nação a partir do século XVII foi, em grande parte, um desdobramento desse processo, primeiramente como forma de acomodar diferenças dentro do próprio cristianismo e, depois, como forma de estender esse entendimento a outras culturas e a outras tradições religiosas e étnicas.

Nesse quadro, é possível entender que, na modernidade, a produção de uma constituição passou a ter o papel simbólico de definidora de um Estado Nação em um sentido bastante semelhante ao da coroação nos tempos das monarquias feudais. Com efeito, pode-se lembrar como exemplo a figura de Joana D’Arc que, no início do século XV, emergiu em meio a um tempo sombrio quando a existência do reino de França, na forma como havia sido herdado dos tempos de Carlos Magno, estava ameaçada.[9] Após 100 anos de guerra em que membros da casa real da Inglaterra reivindicavam a coroa da França, Joana D’Arc, apesar de ser apenas uma jovem camponesa iletrada, por intuição ou por revelação divina, se apresenta diante dos franceses anunciando que sua divina missão era derrotar os exércitos ingleses e fazer coroar o Delfin Carlos, ungindo-o com os óleos sagrados em Reims, tornando-o assim Carlos VII da França.[10] Em outras palavras, coroar o rei na forma estabelecida pelos costumes, era fundamental porque, ao fazê-lo, tornava inequívoca a existência de um reino no qual os barões, que comandavam feudos como Champagne, Normandie, Anjou, Poitiers, Acquitaine ou Toulouse, reconheciam o direito de Carlos VII de exercer os direitos de suserania sobre esses feudos com seus barões, suas autoridades locais e suas populações, com todos os seus bens e propriedades. Ou seja, na ordem medieval, pela força dos costumes ancestrais, ao definir a relação de vassalagem das populações e de seus barões, a coroação definia também os limites da jurisdição do reino.

Com as constituições acontece algo semelhante no sentido de que elas definem o alcance da jurisdição sobre a qual uma certa autoridade é exercida por direito a partir de instituições formalmente estabelecidas. Do mesmo modo que nas monarquias, os reis emitiam ordenações e as tornavam públicas significando que seus súditos e vassalos deveriam obedecer e se comportar de acordo com essas ordenações, nas democracias modernas, os cidadãos, por meio de seus representantes, estabelecem suas constituições e se comprometem a se submeterem a leis e a normas que são produzidas por um Congresso ou Parlamento, constituído de forma permanente, e sancionadas e tornadas públicas pelos governantes constitucionalmente estabelecidos.

O fato é que na história do mundo, a produção de constituições nacionais escritas é uma prática relativamente recente datando apenas dos fins do século XVIII, quando avança o processo de separação entre Estado, direitos de família e religião, e que os costumes, embora importantes, já não se revelavam mais suficientes para orientar com clareza os direitos e o comportamento de governantes e das pessoas e dos grupos organizados. Os historiadores costumam chamar de era da razão. É nesse ambiente que a convivência social e política passou a demandar uma revisão do contrato social sob novos princípios e sob nova forma de expressão, o que ajuda a entender porque o grupo de colônias americanas, após sua separação da Grã-Bretanha, se viu diante da necessidade de elaborar uma constituição.

Com efeito, comprovando o argumento de que a constituição define o contrato social que está por trás do Estado Nação, o processo de aprovação pelas 13 ex-colônias foi longo e difícil, mas percebido como essencial para o estabelecimento dos Estados Unidos da América como Estado Nação. A revolta contra a Coroa inglesa iniciada em princípios da década de 1770 com eventos como o Boston Tea Party e que ganhou forma definida de uma revolução com a Declaração da Independência de 1776, não formava ainda um Estado Nação, mas um movimento político de colônias britânicas na América que haviam se rebelado contra a Metrópole e que, a partir do Congresso Continental (1774-1775), estavam organizadas na forma de um acordo comum com o objetivo de arregimentar um exército entre os habitantes das 13 colônias para enfrentar as forças do exército britânico. Cada colônia tinha seus próprios líderes, suas próprias autoridades e até mesmo suas próprias leis locais. A guerra contra as forças inglesas havia demonstrado o valor e a importância da união, mas restava saber se as 13 ex-colônias estavam dispostas a se unir em tempos de paz, formando uma unidade política estável a que hoje chamamos de país. Assim, a produção de uma constituição tornou-se um passo fundamental para o estabelecimento dos Estados Unidos da América, como nova unidade política independente e permanente, com o mesmo status da própria Inglaterra, de quem as 13 colônias haviam se separado formalmente em conjunto pelo Tratado de Paris de 1783.

Os fatos mostram que a ideia de formação de um Estado Nação a partir da união das 13 ex-colônias estava longe de ser uma ideia clara, e muito menos facilmente aceita pelas lideranças políticas e pela própria população das 13 ex-colônias. Apenas alguns líderes como George Washington e Alexander Hamilton viam com clareza a necessidade de reunir as 13 colônias em uma união mais completa e permanente. O Congresso convocado para Filadélfia em 1786 teve por finalidade inicial a revisão dos Artigos da Confederação, que assegurara a união das colônias para lutarem juntas contra a Inglaterra, mas tal como a própria denominação dizia, formavam apenas uma confederação, isto é, uma reunião de unidades políticas independentes. O fato é que, após o término do Congresso da Filadélfia, houve um intenso debate até que as ex-colônias ratificassem o texto de uma Constituição formando, um novo Estado Nação – um novo país – resultante da união das 13 ex-colônias. O longo debate para saber se as 13 ex-colônias deveriam formar um agregado de unidades políticas ou se passariam a ser uma união, uma só nação, se estendeu por mais de um ano e os principais argumentos em favor da formação de uma união permanente estão registrados na coleção de textos que ficou conhecida como The Federalist Papers.[11]

Em alguma medida, a experiência vivida pelos EUA nos fins do século XVIII, isto é, a definição de um Estado Nação distinto por meio de uma Constituição, foi vivida por todas as nações modernas. Com efeito, as experiências individuais das nações variaram bastante. Em alguns casos como o de Portugal, cuja existência a história registra como tendo sido definida desde o ano de 1130, a primeira constituição definindo Portugal como um Estado moderno surgiu apenas em 1822, como um pacto da sociedade que se movia do antigo regime para uma monarquia constitucional. Também é notável o caso da Inglaterra, que se considera como tendo sido estabelecida no ano de 927, quando o rei Æthelstan, com a conquista de York, deixou de ser Rei dos Anglo-Saxões para tornar-se Rei da Inglaterra e, a partir de então, acordos, tratados e leis – como a Magna Carta de 1215 ou como o Bill of Rights de 1689 – foram sendo assinados e, juntamente com costumes ancestrais não escritos, passaram a compor o que tem sido chamado de uma “constituição não escrita”. O fato desse conjunto de normas e de leis não ter sido jamais reunido e sistematizado em uma carta constitucional orgânica, não quer dizer que não exista uma ordem constitucional que estabelece os limites do Estado britânico e que orienta o comportamento e as ações de governantes, de representantes de condados e da própria população britânica nos planos doméstico e internacional.[12]

As constituições e a ordem internacional na atualidade

A ONU registra hoje a existência de 193 países membros, cada qual com sua respectiva carta constitucional definindo os limites de suas jurisdições e demarcando padrões e princípios em torno dos quais, povo e governo organizam sua convivência doméstica e também as relações com outros países. Como já mencionado, a experiência constitucional dessas quase duas centenas de países foi muito variada e, em sua grande maioria, datam do século XX, um século no qual a adoção do conceito de Estado Nacional, territorial e soberano, tornou-se efetivamente global. Com efeito, foi no século XX que o conceito de Estado Nacional praticamente completou a substituição de outras formas tradicionais de organização política. Em alguns lugares tribos e clãs reuniram-se formando Estados e, na velha Europa, eliminou-se os sistemas coloniais que resultavam da incorporação de povos e de territórios por meio da superioridade tecnológica, econômica e militar. Foi também no século XX que os sistemas imperiais na Europa sofreram grandes abalos, ou finalmente se fragmentaram como ocorreu com o Império Habsburg na esteira da Primeira Guerra Mundial.

Sob uma ótica institucional de longo prazo, é possível dizer que as duas grandes guerras, que marcaram a primeira metade do século XX, refletiram o ocaso desses sistemas de organização política que, na essência, se tornaram incompatíveis com a evolução dos padrões de convivência política internacional. O Estado Nação revelou-se um modelo de organização institucional que melhor se adequava à realidade internacional marcada pela variedade étnica e cultural e também pelas muitas tradições e valores dos povos no que se refere ao ordenamento social e político. Na realidade, mais da metade dos países membros da ONU foram formados ou tornaram-se independentes depois da Segunda Guerra Mundial, refletindo o avanço do processo de consolidação de um sistema internacional verdadeiramente global.

Ainda no século XIX algumas organizações internacionais foram formadas como a União Telegráfica Internacional (1865), a União Postal Universal (1874) e a Convenção da União de Paris para a Propriedade Industrial (1883). Eram organizações de natureza eminentemente técnica que revelavam dois aspectos presentes na natureza da crescente integração internacional. De um lado, a base tecnológica do processo, que proporcionava os meios materiais para uma aproximação sem precedentes entre os povos e, de outro, a crescente centralidade da vida civil em torno de Estados Nacionais constitucionalmente estabelecidos, conformando uma ordem social e política distinta no plano doméstico, mas cada vez mais coerentes entre si na esfera internacional.

Com efeito, a partir dos fins do século XIX, além do comércio e das comunicações sistemáticas por meio postal e por meio da expansão da rede telegráfica, as viagens internacionais de civis começavam a contar com linhas marítimas intercontinentais regulares, além das atividades comerciais e industriais que passavam a ter na esfera internacional uma importante dimensão. Assim, já havia uma percepção crescente acerca das vantagens e até mesmo da necessidade de se estabelecer padrões comerciais e industriais comuns às nações. A intensificação do comércio e dos investimentos internacionais tornava a padronização técnica um desdobramento inevitável. Com efeito, em 1914, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, os investimentos internacionais já somavam quase US$ 20 bilhões e um país como a Inglaterra exportava quase 70% de sua produção industrial e importava mais de 80% dos bens primários de que necessitava.[13] Nesse quadro, embora menos visível, padrões industriais comuns passavam a ser adotados pelas indústrias das principais economias.

O fato é que, apesar de alguns conflitos até mesmo de grandes proporções, desde meados do século XIX as atividades e os interesses da vida civil, ganharam espaço de forma contínua e crescente na ordem social, política e, principalmente, na esfera econômica. Na realidade, não seria exagero entender o surgimento dessas organizações internacionais, embora voltados para assuntos técnicos, como verdadeiros precursores do multilateralismo que iria marcar as relações internacionais da segunda metade do século XX. Muito embora a Liga das Nações tenha sido criada em 1919, foi apenas na esteira da Segunda Guerra Mundial que, realmente, os conceitos de segurança coletiva e de multilateralismo tornaram-se elementos marcantes do sistema internacional. Na economia foram criadas as instituições como as de Bretton Woods (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional), o GATT, além de muitas organizações regionais na Europa e em outros continentes, voltadas para o comércio e o desenvolvimento. Na política, além do sistema ONU, também foram criadas várias organizações regionais com propósitos semelhantes, isto é, como foros de debate e de promoção da cooperação internacional em matéria de segurança e de relações políticas.

A ideologia nas constituições e seus efeitos na esfera internacional

Ao longo da história, o fator ideológico sempre foi um elemento de notável relevância nas relações entre povos e até mesmo nas relações entre segmentos de um mesmo grupo social ou nação. Um fato notável envolvendo ideologias é que não precisam estar presentes em constituições ou em outros documentos oficiais. Os recentes acontecimentos associados às eleições nos EUA, uma das grandes democracias do mundo, revelam o caráter conflituoso que as ideologias podem assumir mesmo em uma sociedade formada em torno de valores e de ideologias de tolerância às diferenças religiosas e a outras formas de diferenças que marcam a humanidade. A própria formação do Estado Nacional ocorreu em um ambiente de confrontação ideológica de base religiosa.

No século XVI todas as nações europeias eram cristãs. As diferenças entre católicos e reformistas, portanto, não diziam respeito à substância já que eram todos cristãos, mas baseavam-se em diferenças na prática religiosa e em sua projeção nas instâncias do poder temporal. Em outras palavras, aqueles que não praticavam a religião da maneira que consideravam como sendo “a forma correta” eram considerados hereges e podiam ser discriminados e até condenados ao suplício. Algo semelhante pode ser dito a respeito da milenar diferença e oposição entre as correntes do islamismo que, até hoje, servem de base para sustentar radicalismos e hostilidades mútuas.

No século XX, a existência da URSS por sete décadas representou um caso particular de ideologia, refletida no quadro constitucional da nação e que, na ordem internacional, desempenhou papel de grande relevância. A constituição promulgada em 1918 estabelecia a República Socialista Federativa Soviética Russa anunciando que rompia radicalmente com as tradições da ordem social e política das potências tradicionais, criando uma sociedade comunista, com base nas formulações de Karl Marx e de Friedrich Engels.[14] Em seu Artigo 3º. essa constituição estabelecia o caráter e os princípios da ordem social e política de uma república cuja base ideológica socialista contrastava notavelmente com a ideologia que moldava a ordem social e política de outras potências no cenário internacional. Vale reproduzir parte desse artigo que ajuda a compreender essas peculiaridades do ordenamento social e político e suas implicações para as relações internacionais:

Artigo 3º. “… sendo sua tarefa fundamental (do Estado) a abolição de toda a exploração do homem pelo homem, a completa eliminação da divisão da sociedade em classes, a impiedosa repressão da resistência dos exploradores, o estabelecimento de uma organização socialista e o atingimento da vitória do socialismo em todos os países, o III Congresso de Deputados Trabalhadores, Soldados e Camponeses de Toda a Rússia resolve:

a) Visando à concretização da socialização da terra, fica abolida a propriedade privada da terra. Todos os imóveis agrícolas são declarados propriedade de todo o povo trabalhador e entregues, sem qualquer indenização, aos trabalhadores, com base no princípio da utilização igualitária da terra.

b) Todas as florestas, todos os recursos naturais e todas as águas de significado estatal-geral, assim como todos os bens vivos ou mortos, fazendas de espécies e empresas agrícolas são declarados propriedade nacional.

c) Como primeiro passo para a completa passagem das fábricas, empresas, minas, estradas de ferro e demais meios de produção e de transporte à propriedade da República dos Conselhos (Sovietes) dos Trabalhadores e Camponeses, ratificam-se as Leis Soviéticas sobre o Controle Operário e o Conselho Supremo da Economia, visando a assegurar o poder dos trabalhadores sobre os exploradores. Como um primeiro golpe a ser desferido contra o sistema bancário internacional, o capital financeiro, o III Congresso dos Conselhos (Sovietes) está deliberando uma Lei sobre a Anulação (Aniquilação) dos Empréstimos, contraídos pelo Governo Czarista, pelos Proprietários Fundiários e pela Burguesia, ao mesmo tempo em que expressa a sua confiança em que o Poder dos Conselhos (Sovietes) prosseguirá, com firmeza, nessa direção, até à mais plena vitória da insurreição internacional dos trabalhadores contra o jugo do capitalismo.”

Em 1936 foi promulgada uma nova constituição – a Constituição Stalinista – introduzindo cláusulas de liberdade religiosa e de direitos políticos e sociais. Apesar de tudo, a rejeição à URSS por parte das principais potências não se reduziu, tanto pelo fato de que na nova constituição as características básicas de uma sociedade comunista, descritas em sua primeira constituição, foram mantidas, quanto em virtude de a URSS continuar sendo uma sociedade fechada da qual notícias eram “vazadas” para o meio internacional relatando a realização de julgamentos sumários de vozes discordantes do regime, que significavam perseguições, prisões nos temíveis campos gelados da Sibéria, e até mesmo execuções de pessoas consideradas inimigas do regime.[15] Com efeito, os princípios de organização social e política enunciados na constituição, como o confisco e o não reconhecimento da propriedade privada, contrastavam radicalmente com as tradições sociais, políticas e até culturais das potências tradicionais mas, provavelmente mais crítico e mais problemático de imediato, era o fato de que a família do czar e muitas outras famílias importantes da velha Rússia faziam parte de famílias tradicionais da Europa e, tal como o próprio Czar, haviam sido perseguidos, assassinados e seus bens confiscados na forma descrita pelo Artigo 3º. acima transcrito.

Após sete décadas de tensão, o colapso da URSS em 1991 provocou não apenas a redução das tensões com as potências ocidentais tradicionais, mas provocou também um movimento nas relações internacionais no sentido de motivar a produção de novas constituições nos países do Leste Europeu que, desde o final da Segunda Guerra Mundial, haviam vivido sob a esfera de influência direta da URSS. Essas nações, rapidamente, produziram novas constituições procurando reorientar suas instituições políticas, sociais e econômicas de acordo com os padrões do Ocidente liberal-capitalista. Além disso, um dos casos mais notáveis decorrente desse processo foi a absorção, pela República Federal da Alemanha (RFA) do território que havia sido a Alemanha Oriental, que passara a existir desde 1949, quando fora promulgada a constituição da República Democrática Alemã (RDA). Ao voltar a ser unificada, a Alemanha dava também um novo perfil à distribuição internacional de poder, especialmente no âmbito europeu, ao incorporar uma população de 16 milhões de pessoas, unificar a cidade de Berlin, que voltou a ser capital da nação, e incorporar centros urbano-industriais importantes da RDA e aumentar em quase 1/3 o território da República Federal da Alemanha.

Do ponto de vista das consequências internacionais do colapso da URSS vale destacar também a verdadeira corrida das nações que deixavam a esfera de poder soviética no sentido de agregar-se o mais rapidamente possível à União Europeia. Na realidade, a União Europeia, apesar de, formalmente, ter nascido de um arranjo internacional voltado para a integração econômica, sua natureza política baseada nas tradições do pensamento liberal sempre esteve presente. Além disso, a trajetória de sucesso da integração europeia servia de inspiração não apenas para as nações europeias, mas para todo o mundo, mesmo para as nações de tradições políticas e culturais que antecediam a própria Europa. O fato é que, rapidamente, mais de uma dezena de nações que viviam sob o regime soviético passaram a integrar a União Europeia e todas elas, ao mesmo tempo em que se associavam ao sistema europeu, recuperavam sua identidade histórica e cultural ancestral. Até mesmo a ex-URSS (a Federação Russa) que, apesar de não ter se integrado à União Europeia, foi em busca de seus símbolos ancestrais, além de produzir uma nova constituição alinhada aos padrões do Ocidente. Na bandeira a Federação Russa abandonou a foice e o martelo e recuperou as cores branca, azul e vermelha com toda a sua simbologia da velha ordem. Na antiga Rússia a cor vermelha simbolizava a coragem; o azul, a lealdade e a pureza moral; e a cor branca, a magnanimidade. A bandeira tricolor (branca, azul e ver­melha) teria sido usada pela primeira vez nos barcos de guerra da Marinha Russa que, sob o comando do czar Pedro, o Grande, nos fins do século XVII, tomaram a Fortaleza de Azov dos turcos. Além disso, igualmente notável, ocorreu com o brasão da Federação Russa, que recuperou a águia de duas cabeças coroadas e a figura de São Jorge cujas origens remontam ao império bizantino.

Na Ásia, a reconstrução do Japão após a Segunda Guerra Mundial deu-se dentro do espírito de harmonização com a ordem internacional sob o comando do Ocidente. Apesar de manter a família imperial e suas antigas tradições, a constituição japonesa foi elaborada sob as forças de ocupação americana e todo o processo de reconstrução, modernização e desenvolvimento da economia japonesa baseou-se essencialmente na cooperação e na integração às instituições e à vida econômica internacional. Historicamente, as diferenças religiosas e culturais foram problemáticas, mas nunca se constituíram em grandes obstáculos na mesma medida em que haviam se manifestado em outras regiões. O isolamento de dois séculos e meio desde a implantação do xogunato de Tokugawa (início do século XVII) se deveu essencialmente a razões políticas. Dessa forma, apesar das diferenças étnicas e culturais, ao longo da guerra fria o Japão não se constituiu em obstáculo à construção da ordem internacional. Na realidade, além de não alimentar nem mesmo quaisquer ressentimentos decorrentes da Segunda Guerra Mundial, o Japão atuou como importante aliado na construção da ordem internacional do pós-guerra.

Por outro lado, em alguns países como a China, a Coreia e o Vietnã, formaram-se governos e movimentos de oposição ao Ocidente liberal-capitalista e, em alguns casos, constituíram-se em focos de conflitos armados ou geradores de tensões internacionais contínuas ao longo da guerra fria. A Guerra da Coreia (1950-1953) foi um caso bastante ilustrativo da dramaticidade dessas tensões. Com efeito, o conflito foi, em larga medida, um reflexo da guerra fria, que ganhava momentum nos fins da década de 1940, e que terminou com a divisão da nação. Uma divisão que permanece até hoje mesmo tendo já passado duas décadas desde o fim da guerra fria. Também no caso do Vietnã as tensões seriam marcantes e somente deixariam de existir após um conflito armado que se estendeu por duas décadas e que terminou com a derrota do Vietnã do Sul, apoiada pelos EUA. Embora a denominação oficial da nação seja República Socialista do Vietnã, no que tange às relações com a comunidade internacional, sua trajetória em muitos aspectos se assemelha ao da China, no sentido de progressiva integração à economia globalizada.

A China, por suas dimensões, é um caso que demanda uma reflexão adicional. A política na China está assentada sobre antigas tradições e experiências históricas na política substantivamente diferentes daquelas vividas pelo Ocidente. Ao longo do século que antecedeu a ascensão de Mao Tsé-Tung (1949) a experiência política vivida pela China foi a de uma sucessão de governos notavelmente fracos em todos os sentidos. Desde o século XIX não apenas as potências coloniais mantinham formas variadas de dominação sobre a sociedade chinesa. Mesmo no plano doméstico, sob a dinastia Qing, a China enfrentava sérios problemas de governabilidade. A revolta dos Boxers (1899-1901) foi uma típica manifestação desses intermináveis problemas de governabilidade. John Delury, estudioso da cultura e da política da China, usa de uma metáfora para fazer um relato dramático da situação da China que antecedeu à tomada de poder por Mao Tsé-Tung e pelo Partido Comunista em 1949: “Nos fins do século XIX a Dinastia Qing era como um touro feroz na arena que sangrava por todos os membros por ter sido lancetado, perfurado e cortado desde os anos 1830 – quando os problemas realmente se tornaram óbvios – e, no início do século XX, estava apenas à espera de que o matador desferisse o golpe de misericórdia”. Nesse sentido, a maioria dos historiadores entende que o principal legado político do período da China revolucionária de Mao Tsé-Tung foi um Estado renovado, fortalecido e bem disciplinado, em condições de manter unidas as províncias e as lideranças locais. Sob o comando absolutista de Mao Tsé-Tung e do Partido Comunista as instituições do Estado e seus governantes recobraram a autoridade e o controle, ou seja, reconstruíram a ordem sem a qual é impossível prosperar, seja qual for a forma de organização da sociedade. Mesmo nos países ocidentais, em termos de prosperidade, um diferencial importante entre as várias sociedades qualificadas como democráticas é o nível de ordem vigente. Países onde indicadores como elevados índices de criminalidade, práticas generalizadas de ilícitos e transgressões, baixa eficiência dos serviços públicos ou corrupção generalizada, que indicam baixos teores de ordem social e política – isto é, de governabilidade – são os países que apresentam problemas crônicos de estagnação econômica.

O fato é que a ascensão da China trouxe ao mundo não mais uma ameaça baseada em ideologias hostis, mas uma ameaça à liderança das potências tradicionais. O fator ideológico tornou-se um elemento secundário e, na realidade, o que é notável no caso chinês é que, de um lado, a organização e a liderança da sociedade exercida pelo Partido Comunista Chinês não constituiu problema para que a ascensão da China ocorresse por meio de uma política de longo prazo de cooperação com as potências econômicas do Ocidente. De outro lado, há o fato de que, apesar de o Partido Comunista Chinês continuar controlando com mão forte o poder, na prática, esse poder e esse controle da economia e da sociedade não têm sido exercidos por meio de instituições e práticas de inspiração marxista, como era o caso da URSS. Regimes duros e autoritários nunca foram privilégios exclusivos de governos de inspiração marxista. Entre as notáveis diferenças entre o regime da China e o que seria um regime tipicamente marxista pode ser apontada a existência de propriedade privada e de mercados livres e dinâmicos, inclusive para ativos financeiros. Outra diferença notável é que, na educação, nas escolas controladas pelo Estado, valoriza-se a prática de tradições e até mesmo de ritos e celebrações tradicionais e o respeito a valores como a senioridade, os ritos sociais e outros costumes antigos.[16] Práticas essas condenadas pela doutrina marxista.

Com efeito, mesmo na primeira constituição produzida sob o comando do Partido Comunista da China (1954) a propriedade privada não fora abolida, sendo admitida até mesmo a existência de “capitalistas”. No Artigo 5º, a constituição declara: “Na República Popular da China existem atualmente as seguintes formas fundamentais de propriedade dos meios de produção: a propriedade do Estado — isto é: a propriedade de todo o povo —; a propriedade cooperativa — isto é: a propriedade coletiva dos trabalhadores —; a propriedade dos trabalhadores individuais; e a propriedade dos capitalistas.” Vale reproduzir também trechos do Artigo 10º. da constituição chinesa onde se explica como a constituição entende a propriedade do capital e seu uso: “… Mediante a direção exercida pelos órgãos administrativos do Estado, a direção exercida pelo setor estatal e o controle por parte das massas trabalhadoras, o Estado aproveita o papel positivo da indústria e do comércio capitalistas, que é útil ao bem-estar nacional e à prosperidade do povo; limita seu papel negativo, que prejudica o bem-estar nacional e a prosperidade do povo; estimula e orienta sua transformação em setor do capitalismo de Estado, sob diferentes formas, e substitui gradualmente a propriedade dos capitalistas pela propriedade de todo o povo”.

Observa-se que, diferentemente da URSS, mesmo a constituição produzida por Mao Tsé-Tung, nos primeiros anos da revolução comunista, a propriedade privada não deixava de existir significando, assim, que mesmo sem as reformas introduzidas por Deng Xiaoping (1978-1992) a ordem constitucional não proibia nem o lucro e nem a existência de propriedade privada. Em larga medida, as reformas introduzidas por Deng Xiaoping relacionavam-se muito mais com a forma de entender e de exercer o poder especialmente nas relações com o meio internacional, em particular no que tange ao trato com o capital estrangeiro. Popularizou-se a frase atribuída a Deng Xiaoping “não importa se o gato é preto ou branco, desde que cace os ratos”, que reflete o fato de que as mudanças institucionais não foram, nem de longe, tão importantes quanto as mudanças na atitude e na forma de conduzir o Estado Chinês, em especial nas relações com outros países. Na realidade, a história tem mostrado que as atitudes dos governantes e as políticas praticadas geralmente são bem mais importantes na formação de focos de tensão do que ideologias expressas em documentos oficiais. Com efeito, durante a maior parte da Idade Média, os reinos europeus eram todos católicos, mas esse fato não impedia que governos e governantes variassem em um amplo espectro de possibilidades: governantes podiam ser sensatos, benevolentes e sábios ou podiam ser tiranos e ambiciosos, ou ainda podiam ser egoístas e presunçosos, mas também inseguros em suas decisões. Ou seja, reinos e baronatos guerreavam entre si por direitos de sucessão, por ofensas e injúrias, por ambição de governantes ou por quaisquer outras motivações que movem povos e governantes até os dias de hoje. Pode-se dizer que o autoritarismo do regime na China hoje apresenta muito mais semelhanças com o absolutismo dos regimes praticados na Europa nos séculos XVII e XVIII do que com aquele praticado pelo próprio Mao Tsé-Tung da revolução comunista. Em outras palavras, mesmo dentro de uma mesma ideologia laica ou religiosa, Estados e nações podem ter desempenhos muito diferentes, dependendo de muitos fatores, em especial do conjunto de virtudes, qualidades e percepções de seus governantes. A política da détente foi praticada tanto pelas nações líderes do Ocidente quanto pela URSS e pela China nas décadas de 1970 e 1980. Nesse quadro apenas a URSS mudou seu regime, uma mudança motivada muito mais pela evolução do quadro político e econômico da própria URSS do que em eventuais transformações ocorridas nas visões ideológicas de seus governantes. Os principais intérpretes da mudança de regime na URSS concordam que a perda da força da ideologia comunista acompanhou a deterioração das condições econômicas do país.

Nesse quadro pode-se extrair duas observações ou hipóteses a respeito da experiência vivida pela China nos últimos 40 anos. A primeira é que, internamente, as mudanças introduzidas na constituição nas últimas décadas refletiram uma verdadeira redescoberta das tradições ancestrais da China. A famosa frase de Deng Xiaoping sobre a cor dos gatos bem poderia ser adicionada aos Analectos legados por Confúcio.[17] A segunda é que, durante o período de Mao Tsé-Tung, os excessos da Revolução Cultural foram objeto de preocupação, sobretudo moral, das grandes potências, mas a ascensão da China à condição de potência mundial de primeira grandeza transforma substancialmente a forma de ver e as preocupações da comunidade internacional em relação à China. Claramente o que se destaca é a disputa por liderança internacional e não uma suposta guerra ideológica. Objetivamente, para as nações mais pobres e com recursos de poder mais limitados, a China torna-se uma alternativa entre as opções disponíveis no mundo, enquanto para as grandes potências a China torna-se um rival formidável nas suas equações e hipóteses sobre o futuro das relações internacionais, independente de sua ordem política e jurídica doméstica.

A grande preocupação da comunidade internacional com o fator ideológico não mais reside no que pode estar presente na constituição, mas com as práticas ideológicas que não estão definidas nas constituição, como é o caso do terrorismo islâmico, que é negado por todos os Estados organizados constitucionalmente sob a orientação da fé islâmica. Em termos substantivos, o caso dos países islâmicos são os mais notáveis da presença da religião na constituição como elemento de orientação ideológica para as nações em nossos dias. Em alguma medida, a trajetória constitucional dos países árabes se desenvolveu entre a experiência do Irã, onde a religião e as tradições dominam completamente a estrutura do comando político, e o caso do Egito, onde embora o islamismo seja oficialmente a religião do Estado e da nação, é bastante relevante a influência do pensamento ocidental na ordem econômica e política. Entre as lideranças do Ocidente não há grande preocupação com os termos em que as constituições desses países estão expressas. O mais importante é que o fato desses países declararem seguir a fé islâmica nenhum deles declara adotar o terrorismo como forma de ação. Na realidade, o terrorismo islâmico que, em nosso tempo, tem estado na base de tensões internacionais importantes, tem sido conduzido essencialmente por organizações clandestinas isto é, sem qualquer suporte formal até mesmo a respeito de suas existências. De fato, muito embora os serviços de inteligência das potências do Ocidente busquem com insistência indícios de apoio de governos de países islâmicos a essas organizações, essa ligação jamais foi cabalmente comprovada.

As constituições e as relações internacionais de seu tempo

Pode-se dizer que a constituição dos EUA guarda uma notável peculiaridade em relação às demais constituições. Ao longo de mais de duzentos anos de existência, a constituição americana apenas adicionou emendas que introduziram cláusulas a respeito de mudanças importantes ocorridas na sociedade e que a constituição não contemplava ou que não deixava explícitas, como foram os casos da abolição da escravidão e da limitação dos mandatos presidenciais. Com efeito, durante os debates ocorridos antes da eclosão da guerra civil em 1861, uma das preocupações centrais de Abraham Lincoln era a de mostrar que a constituição, embora não expressasse explicitamente, a postura anti-escravidão estava de acordo com as crenças e o modo de pensar dos Pais Fundadores que a haviam concebido.[18] Outra emenda notável à Constituição Americana foi a limitação para dois, os mandatos presidenciais após as quatro eleições sucessivas de F. D. Roosevelt.[19] Neste caso, vale lembrar que em seu discurso de despedida da vida pública, George Washington começa por explicar porque não deveria aceitar um terceiro mandato apesar da insistência das principais lideranças e de seus amigos, argumentando que um terceiro mandato não faria bem nem para ele e nem para o país.[20]

Também chama a atenção o fato de a constituição americana ser muito mais concisa do que outras constituições.[21] Em larga medida, pode-se dizer que a experiência constitucional dos EUA foi fortemente influenciada pela tradição jurídica anglo-saxônica, que valoriza costumes e tradições não escritas, ou seja, procura antes expressar princípios e normas de comportamento presentes nos códigos e nas decisões das cortes do que enunciar providências, medidas e recursos específicos. O filósofo poderia argumentar que reflete mais um desses curiosos paradoxos da natureza humana, ou seja, pelo fato de não serem escritos, costumes e tradições tendem a apresentar níveis de resiliência mais elevados do que documentos escritos que, exatamente por serem escritos, podem ser reescritos, dependendo da vontade de governantes e da opinião pública, sempre cambiantes e sujeitas às tentações das circunstâncias e das oportunidades, aparentemente sempre ao alcance das mãos. Apesar de tudo, talvez a explicação mais objetiva para que uma constituição permaneça vigente por longo tempo, inclusive para servir de base para que as sociedades se adaptem às mudanças trazidas pelo tempo, seja oferecida pelo historiador Octaciano Nogueira que, ao analisar a constituição brasileira de 1824, aponta para o Artigo 178 da Carta Imperial:

“Só é constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos; tudo o que não é constitucional pode ser alterado, sem as formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias”.[22]

O fato é que a tentação no sentido de mudar ou de reescrever as constituições é sempre muito forte. Ditadores e usurpadores sempre justificam suas causas a partir do argumento de que uma intervenção é necessária para “salvar a nação” e que, para tanto, é necessário produzir uma nova constituição para que torne o país governável e para que novos princípios sejam introduzidos na ordem política e social e da nação.

O fato é que as constituições da grande maioria dos 193 Estados, hoje Membros das Nações Unidas, como peças jurídicas refletindo sociedades vivas e dinâmicas, não se apresentam mais na forma como foram concebidas originalmente. Na Venezuela a constituição vigente é a 27ª. de uma série que se iniciou em 1811 e tudo indica que o fim do chavismo será marcado pela produção de mais uma nova constituição. Na Argentina, considera-se que a primeira constituição produzida em 1853 foi reformada em 7 ocasiões, sendo a última em 1994, após o fim dos governos militares. Mesmo a França tem em sua história mais de uma dezena de constituições que refletiram primeiro as fases revolucionárias e, depois, a fase napoleônica, a restauração da monarquia Bourbon, seguidas pelas constituições republicanas. A constituição vigente na França corresponde à V República e data de 1958. No Brasil, a constituição vigente é a sexta, não incluindo a reforma de 1967, que muitos constitucionalistas alegam ter introduzido modificações tão profundas que pode ser considerada como uma nova constituição. O fato é que revoluções e mudanças políticas com alguma profundidade resultam em reformas constitucionais amplas ou mesmo em novas constituições. As alegações podem ser variadas, mas a base dos argumentos geralmente se assenta no entendimento de que o governante se vê impossibilitado pelos dispositivos constitucionais vigentes de produzir justiça social e os bens públicos de que a nação precisa para seu bem-estar e progresso.

Em certos casos, alterações constitucionais podem ter origem em desenvolvimentos ocorridos na esfera internacional, como foi o caso dos países do Leste europeu diante do colapso da URSS em Dezembro de 1991. Por outro lado, o caso do avanço da integração europeia é um dos casos mais notáveis de como desenvolvimentos na esfera internacional, mesmo em ambiente ordeiro e pacífico, podem influenciar as constituições nacionais. Nos primeiros anos do processo de integração, o estabelecimento da Comunidade Econômica Europeia (CEE) em termos jurídicos implicava essencialmente negociações com organismos internacionais como o GATT e com outras nações dentro e fora do bloco, uma vez que, nos primeiros anos, a CEE vivia as fases iniciais da integração econômica nas quais o bloco poderia ser classificado como um agregado de soberanias, semelhante ao que tem sido até hoje o Mercosul.

Com o aprofundamento da integração, especialmente a partir do Tratado de Maastricht (1992), surgiu a necessidade de os países integrantes do bloco reverem suas bases constitucionais, em particular no que tange a um dos princípios essenciais de qualquer Estado moderno: o princípio da soberania. Com efeito, após o Tratado de Maastricht (1992) a CEE foi transformada em União Europeia, e os países membros viram-se diante da necessidade de rever suas constituições nacionais, introduzindo o princípio da subsidiaridade. Por esse princípio, os Estados membros da União Europeia reconhecem soberanamente que há questões econômicas, políticas e sociais para as quais os governos nacionais não podem mais decidir sem a aprovação de instâncias decisórias da União Europeia.[23]

A existência de uma moeda comum – o euro – é um dos exemplos mais materialmente visíveis da impossibilidade de manter intocado o princípio da soberania em sua forma original na União Europeia. Antes do euro, as moedas nacionais, quase tanto quanto as bandeiras, desempenhavam um papel simbólico como representativas das nações e, além disso, a própria teoria econômica corrente afirmava que a moeda define um país, em grande parte pelo reconhecimento da importância das políticas cambiais e monetárias para as economias nacionais.[24] Por essa razão Robert Mundell que, no início da década de 1960, já previa o advento de uma moeda europeia, ficou sendo considerado por muito tempo como um visionário até que, afinal, o advento do euro acabou por se tornar um forte argumento para que, em 1999, Mundell fosse agraciado com o Prêmio Nobel de Economia. O fato é que a evolução da economia, especialmente na Europa onde os mercados de bens, serviços e de mão de obra já haviam se integrado, para a maioria das economias da Europa os custos de transação decorrentes da manutenção de várias moedas sob o argumento da soberania, haviam se tornado um peso adicional que não mais compensava manter.

Outro caso interessante da experiência europeia em relação às pressões sobre o princípio da soberania é o dos Acordos de Schengen, que trata da liberdade da livre movimentação de pessoas através das fronteiras europeias.[25] Os acordos preveem a uniformização das exigências e dos procedimentos no que tange à movimentação de pessoas, isto é, concessão de vistos e de asilo a refugiados e de tratamento de migrantes oriundos de outras regiões, além de ampla cooperação judiciária e policial entre os países europeus. Embora os Acordos de Schengen tenham sido incorporados pela União Europeia, a eclosão de conflitos e guerras civis em regiões próximas do Mediterrâneo têm alimentado discussões sobre as normas e as práticas sob os Acordos Schengen, uma vez que as pressões migratórias geradas por esses conflitos não afetam da mesma forma as nações integrantes da União Europeia. Tanto pela maior proximidade geográfica quanto pelo destino desejado pelos migrantes que passaram a chegar em grande número em alguns pontos da Europa a pressão dos fluxos migratórios se fazem sentir de forma diferente pelas sociedades e pelos governos europeus dificultando a prática de políticas comuns.

O Artigo 23 da Constituição da República Federal da Alemanha trata especificamente do comprometimento do país com a União Europeia e enuncia como o princípio da subsidiaridade será aplicado pelo governo e pelas instituições políticas e jurídicas da nação. Também a constituição Francesa, produzida sob a liderança de Charles De Gaulle em 1958, ao longo do tempo introduziu emendas significativas para se adequar às mudanças em curso na cena internacional, especialmente europeu. Uma delas foi a inclusão da “Carta Ambiental de 2004” na qual declara o profundo comprometimento da nação com as causas ambientais. Por exemplo, no Artigo 2º. e 3º. da Carta estabelece que “Toda pessoa tem o dever de participar da preservação e da melhoria do meio ambiente… (e que) deve, nas condições definidas pela lei, prevenir as ameaças que pode causar ao meio ambiente ou, caso contrário, limitar suas consequências”. Em relação à União Europeia, a Constituição Francesa dedica o Capítulo XV que, embora sem empregar o termo subsidiaridade, tal como o faz a Constituição da Alemanha, estabelece os termos dentro dos quais o Tratado da União Europeia será respeitado e posto em prática naquele país, reconhecendo as muitas situações em que disposições da União Europeia devem prevalecer sobre o que poderia ser a vontade soberana da França.

De forma semelhante, os demais países integrantes da União Europeia incorporaram em suas constituições as instituições e práticas estabelecidas pelo bloco. Na realidade, o próprio processo de ingresso na União Europeia já inclui, além da aceitação dos Tratados da União Europeia e dos princípios contidos nesses tratados, a aceitação e o cumprimento de condições tais como os padrões de desempenho macroeconômico que devem estar em harmonia com o bloco de tal forma que não prejudique a estabilidade econômica e social do bloco. A integração europeia que havia se iniciado com 6 países membros chegou a ter 28 integrantes até a saída do Reino Unido. No caso do Reino Unido, obviamente, a saída da União Europeia, formalmente, implica a denúncia do Tratado da União Europeia enquanto as discussões do Brexit referem-se principalmente à negociação sobre custos e prazos dos compromissos assumidos durante o período em que foi membro pleno da União Europeia. Em um sentido mais geral, a saída formal da União Europeia significa que o Reino Unido deixará de participar dos custos e das facilidades oferecidas pela União Europeia, passando a depender de seu próprio dinamismo a forma pela qual serão definidos os padrões de relacionamento tanto com a Europa quanto com o resto do mundo.

Considerações finais: as constituições e as nações no mundo

Na essência, a história tem mostrado que a posição de uma nação diante de outras nações depende diretamente das práticas, dos valores e dos padrões locais de conduta e de comportamento da população, e também da qualidade dos governantes. A qualidade do governante é essencial muito menos pelos atos de governo em si, mas muito mais pelo que representa para a nação como modelo de conduta, de caráter e de valores que devem ser representativos das expectativas da nação, frequentemente não expressos em documentos e manifestações públicas. Vale notar que a expressão “qualidade do governante” não se restringe apenas ao rei ou ao presidente, mas refere-se a toda classe dirigente da nação, ou seja, parlamentares, magistrados, ministros, e dirigentes de instituições que comandam a ordem social e política da nação. Foi assim que, ao longo da história, povos e culturas se destacaram e algumas nações se tornaram grandes potências enquanto outras permaneceram à sombra dos acontecimentos, ou ainda, em casos muito particulares, deixaram um notável legado de cultura e de civilização.

O fato de que alguns povos prosperaram e se tornaram ricos, poderosos e influentes enquanto outros não se destacaram, sendo até mesmo dominados por povos menos numerosos, continua sendo até nossos dias objeto de curiosidade e de reflexão. Pensadores como Arnold Toynbee, Michael Oakeshott e Johann Herder procuraram oferecer um painel amplo e geral da história de povos e de civilizações que deixaram marcas notáveis como testemunho de terem vivido no passado eras de glória e de realizações políticas e culturais. Em tempos mais recentes alguns fatos como a revolução industrial continuam a intrigar historiadores e pensadores por seu enorme alcance que, como raros eventos na história, efetivamente mudaram de forma bastante radical os padrões de vida de toda a humanidade. Por que um desenvolvimento tão amplo e poderoso teve sua origem e seu desenvolvimento inicial na Inglaterra e não no âmbito de outras nações? Além disso, por que se estendeu para outras sociedades no mundo de modos tão diferentes em intensidade e em características, diferenças essas que se manifestaram até mesmo em partes da Europa? Embora hajam interpretações bastante correntes na economia que destacam o papel do capital no processo de industrialização da Inglaterra, sempre fica a sensação de que não explicam a essência da questão, já que à época havia outras nações bastante ricas. Por exemplo, a França no século XVIII vivia um momento cultural e econômico de grande prestígio, mas houve a coroação de Louis XVI, que estava longe de possuir as qualidades de um bom governante, associada ao fato de que no substrato da sociedade francesa se gestava a revolução que iria lançar a nação num torvelinho de revolta e de paixões que, por décadas, iria consumir os recursos e as energias da nação. Raymond-Leopold Bruckberger, historiador e pensador, integrante da Academia Francesa, argumenta que a revolução industrial foi o modo inglês de realizar as transformações sociais e políticas que a França iria tentar realizar de forma trágica e turbulenta a partir de 1789.[26]

A história mostra que, tal como ocorre com a abundância de recursos naturais e com as condições geográficas, as constituições e a ordem política por elas estabelecida são importantes, mas não impedem a ocorrência de maus governantes e nem são as únicas responsáveis pela produção de bons governos. Com efeito, no ancien régime houve um Louis XIV que, nas palavras de Voltaire, conduziu a França em um momento de grande esplendor nas ciências e na cultura – um verdadeiro século de ouro.[27] No entanto, foi sob o mesmo ancien régime que Louis XVI foi coroado meio século após a morte de Louis XIV e foi sob Louis XVI que a França viu-se vivendo o caos e a revolução de 1789. Por outro lado, na história da república americana, houve um Abraham Lincoln e um Franklin D. Roosevelt, que conduziram a nação com notável denodo e competência em tempos difíceis de grandes incertezas e turbulências. No entanto, sob o mesmo regime e sob a mesma constituição, houve também vários presidentes que se notabilizaram pela pouca competência e por exercerem uma liderança sem brilho e bem pouco benéfica para a nação.[28] Assim, nos tempos modernos, as constituições definem regimes e estabelecem padrões e normas de conduta para os governantes, mas não impedem que as nações convivam com a alternância entre bons e maus governantes.

Provavelmente, nesse aspecto, as maiores diferenças entre os tempos do ancien régime e a era das modernas repúblicas é que no ancien régime o sistema era basicamente hereditário, quando o poder não era obtido pela força, enquanto nas repúblicas modernas estabelecem-se mandatos com períodos definidos para os governos eleitos.[29] Com efeito, nas monarquias hereditárias o tempo de duração de um mau governo era limitado apenas pela morte do governante que poderia ocorrer de forma natural, após arrastar o reino por décadas através de um reinado sem brilho e marcado por um ambiente de insatisfação e de desânimo ou, por vezes, um mau governo podia ser encerrado por um fim trágico como foi o caso de Louis XVI, deposto e guilhotinado pelos revolucionários em 1793.  Nas artes, os trágicos dilemas do poder que assolavam os homens antigos foram retratados em tragédias imortalizadas pelo teatro grego ou por dramaturgos como Shakespeare.  Para além da ambição, do ódio e da inveja, entre os dilemas cruciais, um dos aspectos mais angustiantes era o do sentimento moral entre o respeito às leis e às instituições e a consciência de que os destinos da nação estavam inexoravelmente ligados às qualidades, ou à falta delas, que caracterizavam governantes e que afetavam a vida e a prosperidade das nações. Entre os antigos, o lado trágico desse dilema emergia do fato de que só a morte poderia interromper os efeitos nefastos de um mau governo.

Nesse sentido, pode-se dizer que a alternância de poder trazida pelas sociedades abertas, típicas da modernidade, praticamente eliminou o conteúdo trágico dessa relação entre a nação e o destino de seus governantes. Além disso, a modernidade também diluiu os impulsos para a ambição em uma miríade de possibilidades no campo das artes, das ciências, dos negócios e até mesmo da própria política ao limitar, por meio de leis, o poder dos governantes. Na realidade, a história mostra que os maus governantes na ordem antiga, em razão de suas fraquezas diante de ambições desmedidas, geralmente transformavam-se em tiranos, fazendo com que suas ações se tornassem ainda mais odiosas e insuportáveis.

Nos fins do século XVIII houve um intenso debate intelectual sobre as diferenças entre o mundo antigo e o mundo moderno. Benjamin Constant de Rebecque argumentava que uma diferença essencial era o do entendimento da liberdade que, no mundo antigo valorizava as liberdade das nações, mas não havia o governo representativo. Este sistema (representativo) é uma descoberta dos modernos e vós vereis, Senhores, que a condição da espécie humana na antiguidade não permitia que uma instituição desta natureza ali se introduzisse ou se instalasse. Os povos antigos não podiam nem sentir a necessidade nem apreciar as vantagens desse sistema. A organização social desses povos os levava a desejar uma liberdade bem diferente da que este sistema nos assegura, escreve Benjamin Constant.[30]

O grande problema é que a representatividade não é um conceito absoluto e precisa ser transformada em um sistema de escolha de representantes, isto é, em um sistema eleitoral. Dessa forma, como qualquer sistema construído pelo homem para organizar sua convivência, pode ser falho e necessita sempre de melhorias, de aperfeiçoamentos e, principalmente, de adaptações contínuas a uma realidade sempre em transformação. Além disso, como já lembrava Aristóteles em seu tratado sobre a política, os regimes podem ser bons e eficazes, mas podem degenerar-se. Os iluministas no século XVIII, preocupados com as tiranias em que as monarquias se degeneravam com certa frequência, propunham o conhecimento e a educação dos príncipes como forma de recuperar e de fazer valer as virtudes de um bom regime monárquico. De acordo com Aristóteles, a demagogia seria a forma degenerada das democracias, isto é, governos, embora escolhidos e constituídos pelo povo, ao invés de serem benéficos a esse povo, os governantes, valendo-se de argumentos distorcidos, mas aparentemente corretos e convincentes, podem produzir leis e agir em benefício próprio e não em benefício da sociedade e da nação. Isto é, mesmo governos representativos (democraticamente eleitos) ao invés de cuidarem da promoção do bem comum, podem ceder à tentação de usar da autoridade do Estado para seu próprio benefício.

Obviamente, distinguir até onde, ou a partir de quando, um interesse particular se choca com o bem comum não é uma tarefa simples e, provavelmente mais difícil, é transferir essa distinção para um sistema político de forma que seja capaz de produzir bons representantes e bons governantes. Além disso, a deterioração de um sistema político não deixa de ser uma manifestação das leis gerais da entropia a que estão sujeitos todos os sistemas, sejam eles do mundo físico ou da ordem social.[31] O conceito de entropia foi originalmente desenvolvido no âmbito da termodinâmica. Por esse conceito, os sistemas perdem gradativamente suas características originais na medida em que interagem com o ambiente. O exemplo mais simples dessa lei é o do cubo de gelo em um copo de água que, gradativamente, vai perdendo seus contornos e sua consistência à medida que vai derretendo em razão da troca de calor com a água.

O entendimento de que as constituições refletem um sistema político e social sujeito à entropia, ajuda a explicar porque devem mudar ao longo do tempo ou, como no caso da constituição americana ou de vários países na Europa, recebem emendas que incorporam transformações ocorridas tanto na esfera doméstica quanto na cena internacional. A esse respeito, pode-se dizer que algumas constituições como a brasileira apresentam o problema do excessivo detalhamento. Por exemplo, o Título II da Constituição que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais em seu Capítulo I intitulado “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” compreende basicamente o Artigo 5º. onde são enunciados 78 direitos e garantias que devem ser assegurados e providos pelo Estado. Além disso, no Capítulo II (Artigo 6º.) são estabelecidos os “Direitos Sociais” que também devem ser assegurados pelo Estado aos indivíduos organizados ou não em corporações. Nesse artigo, são enunciados mais 34 direitos ou circunstâncias em que direitos podem emergir criando gastos e obrigações a serem cumpridas pelo Estado. O Artigo 9º, por exemplo, trata especificamente do “direito de greve”, algo que praticamente só existe na constituição brasileira. Em suma, de um lado, uma constituição desse tipo está muito mais sujeito às demandas por alterações pelo simples passar do tempo pois, em uma analogia, retomando o exemplo da termodinâmica, seria como um cubo de gelo esculpido artisticamente por um mestre escultor e que, em razão da riqueza e das sutilezas dos detalhes, perde seus contornos e suas formas originais muito mais fácil e mais rapidamente. Por outro lado, o que os artigos 5º.  e 6º. dizem é que praticamente tudo é constitucional. Qualquer assunto relativo à defesa de direitos civis, econômicos e sociais seja em relação a atores públicos ou privados, nacionais ou internacionais, tudo está mencionado nos referidos artigos, ou seja, são questões constitucionais. Em termos práticos, significa que qualquer causa pode, sem dificuldades, ser tratado como questão constitucional e levado até a instância do Supremo Tribunal Federal. É o que explica em grande parte, porque o STF no Brasil tem dezenas de milhares de processos a serem julgados enquanto seu equivalente nos EUA julga apenas poucas dezenas de processos por ano.

Em termos econômicos, esse quadro ajuda a explicar também porque a economia brasileira, ao longo das duas décadas deste milênio, cresceu significativamente menos do que a economia mundial, isto é, a nação ficou mais pobre em relação à média mundial. Em termos da posição internacional do país, o Artigo 4º. que trata especificamente das relações exteriores tem muito pouca importância, ou simplesmente é diluída nas dobras e nas sutilezas jurídicas de uma constituição barroca e marcada por cuidados que, na prática, protege prioritariamente as autoridades constituídas nos três poderes. Um sistema judiciário que leva em média anos para julgar as inevitáveis pendências que emergem da atividade econômica e da convivência social de uma forma geral, torna-se um forte desestímulo à inovação e ao empreendedorismo. Na teoria econômica trabalha-se com o conceito de “custo de transação” para referir-se aos custos tanto em termos financeiros quanto em termos de tempo e de esforço para a realização dos negócios em geral. Ou seja, os custos de transação impostos pela constituição são excessivamente elevados quando comparados com os padrões mundiais.

A constituição brasileira de 1988 pode não ser a causa do declínio da posição brasileira no cenário internacional, mas certamente vem dando uma considerável contribuição a esse processo ao estabelecer normas e cláusulas que transformam o Estado e suas instituições em fatores de verdadeiras externalidades negativas à atividade econômica, isto é, funciona ao contrário das externalidades positivas como aquelas geradas pela construção de uma ponte que, ao ser construída, favorece o desenvolvimento da indústria, do comércio, do turismo, e de outras atividades econômicas na região. Pelo quadro jurídico atual, nada menos do que 94% de toda a arrecadação fiscal prevista no orçamento estão comprometidos com despesas compulsórias (União, Estados e Municípios) tais como o pagamento de salários dos três poderes, aposentadorias, pensões, indenizações, subsídios e benefícios a certas categorias e atividades, etc. Ou seja, são despesas derivadas de leis e de decisões judiciais que os governos eleitos não podem deixar de cumprir. Em países como os EUA a proporção das despesas compulsórias gira em torno de 65% da arrecadação fiscal. Por essa razão, no Brasil, qualquer esforço adicional, ou que não estejam previstos no orçamento anual, é transformado inevitavelmente em déficit público, como está ocorrendo com os gastos inevitáveis com o enfrentamento da crise gerada pela disseminação da Covid-19. Mesmo antes da crise da Covid-19 a previsão de déficit público para 2020 já era de R$ 124 bilhões e calcula-se que em 2020 tenha atingido a casa dos R$ 800 bilhões. Em outros países grande parte dos gastos públicos com a Covid-19 está sendo coberta por meio de transferência de gastos previstos em outras rubricas. No Brasil, cada tostão gasto com o combate à Covid-19 tem sido feito por meio de endividamento. Os efeitos desse quadro parecem óbvios: pressões inflacionárias crescentes, grandes dificuldades na retomada do crescimento econômico, pressão por aumento nos impostos e, de uma forma geral, maior distanciamento dos padrões tecnológicos e econômico mundiais. Em larga medida, esse quadro é uma decorrência das possibilidades abertas e até estimuladas ao longo do tempo pela constituição vigente, que vê com desconfiança a eficiência econômica e a integração à economia mundial.

[1] O Tratado de Tordesilhas alterou de 100 para 370 léguas a oeste de Cabo Verde, o meridiano separando os territórios atribuídos à Espanha e aquelas atribuídas a Portugal. Com o declínio do poder universal da Igreja Católica e com ascensão do Estado Nacional moderno, os tratados patrocinados por Alexandre VI passaram a ser contestados politicamente por outras potências europeias como a Inglaterra, a França e a Holanda que ainda lutava para se separar do reino de Espanha.

[2] A expressão significa literalmente “as palavras voam, os escritos permanecem” foi popularizada ainda na Idade Média.

[3] Francisco de Vitória. Relectiones. Sobre os Índios e o Poder Civil. Editora UnB e Funag, 2016. A primeira edição de Relectiones data de 1532. O direito dos cristãos fazerem a guerra contra os “bárbaros” era enunciado claramente em documentos como a Bula Papal Intercœtera (1493).

[4] O foco de interesse de Bodin era o Estado Francês, que era um dos Estados mais poderosos e organizados da Europa. A soberania é o objeto de seu Livro Primeiro pois, na essência, tudo começava por compreender até onde se estendia a autoridade do governo do reino de França.

[5] Thomas Hobbes em De Cive (1642) explica esse sentido do termo cidadão.

[6] Ver M. W. Janis, Jeremy Bentham and the Fashioning of “International Law”, publicado em The American Journal of International Law. Vol. 78, No. 2 (Apr., 1984), pp. 405-418. O livro de Emer de Vattel, pioneiro na elaboração de um código estruturado de Direito Internacional, foi publicado em 1758 e tinha por título Le Droit des Gens.

[7] A capa da primeira edição de Leviathan (1651) apresenta o gigante bíblico tendo uma espada em sua mão direita e o cetro do poder na mão esquerda e tem seu corpo composto por pessoas. A ilustração foi criada por Abraham Bosse.

[8] A Constituição Brasileira de 1824 é um bom reflexo dessa transformação. O Artigo 5º., ao mesmo tempo que estabelece o cristianismo de Roma como religião oficial do Império, reconhece a liberdade de culto de seus cidadãos. Por outro lado, a noção de que a religião deveria ser vivida na consciência dos indivíduos já era percebida no século XIII, como se pode deduzir da obra de Dante Alighieri (Da Monarquia) e da figura da heráldica da águia das duas cabeças coroadas.

[9] Pelo Tratado de Verdun (843 d.C.) os três filhos de Carlos Magno (Lotário, Luís o Germânico e Carlos o Calvo) dividiram entre si o Império Carolíngio, cabendo a Carlos o Calvo a parte do território aproximadamente correspondente ao que é a França de hoje.

[10] Biógrafos de Joana D’Arc, em alguma medida, tomaram partido na discussão sobre a origem divina de sua sabedoria e de sua determinação, mas não questionaram em nenhum momento a clareza com que Joana D’Arc via a necessidade de coroar o Delfin em Reims. O fato é que será sempre um enigma da história saber como uma pastora iletrada, mal saída da adolescência e, portanto, sem qualquer cultura e experiência política, pudesse ver com tanta clareza que coroar o rei era tão importante quanto vencer o inimigo no campo de batalha (J. Guitton, Problema e Mistério de Joana D’Arc. Dominus Editora, S. Paulo, 1963).

[11] The Federalist Papers é uma coleção composta de 85 artigos ou ensaios escritos por Alexander Hamilton, James Madison, e John Jay sob o pseudônimo “Publius” e publicado em 1787. O objetivo principal desses ensaios era o de convencer líderes e o povo em geral das 13 ex-colônias britânicas acerca da importância e das vantagens da ratificação da Constituição formando uma só nação, os Estados Unidos da América.

[12] Walter Bagehot, em 1867, publicou seu The English Constitution no qual reúne esse conjunto de leis, normas, costumes e as instituições e procedimentos que compõem essa constituição não escrita e define a ordem política da nação. Vale notar que, apesar de não reunida organicamente, a monarquia constitucional inglesa serviu de inspiração para muitas das nações modernas, inclusive o Brasil, que foi uma monarquia constitucional até o advento da república em 1889.

[13] A. G. Kenwood & A. L. Lougheed. The Growth of the International Economy, 1820-1980. Unwin Hyman, London, 1983.

[14] A denominação União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) foi adotada na Constituição de 1924, após o tratado de união, ou incorporação pela Rússia, da Ucrânia, da Bielorrúsia e da República Transcaucasiana, realizada em 1922.

[15] Após a morte de J. Stalin, Nikita Kruschev (Secretário Geral do Partido Comunista da URSS) preparou um relatório dos crimes cometidos pelo regime durante o período em que Stalin esteve à frente do governo da União Soviética (1922-1953)

[16] Vale notar que autores como Norberto Bobbio enfatizaram em seus escritos o fato de que o marxismo jamais produziu uma teoria do estado, até por entender que o Estado constituía uma “superestrutura”, um instrumento de dominação.

[17] Diferentemente da tradição ocidental, o confucionismo não deixou tratados filosóficos, mas deixou os Analectos, que é uma coleção de “sabedorias” sobre o papel dos governantes e sobre a moral e as virtudes necessárias para bem governar um Estado (Confúcio. Os Analectos, Folha de S. Paulo, 2015).

[18] A 13ª. Emenda à Constituição dos EUA foi aprovada pelo Senado em 8 de abril de 1864 e, depois pela Câmara dos Representantes em 31 de janeiro de 1865 e adotada formalmente em 6 de dezembro de 1865.

[19] Roosevelt havia sido eleito sucessivamente em 1932, 1936, 1940 e 1944, falecendo em abril de 1945. A 22ª. Emenda à Constituição dos EUA foi aprovada pelo Congresso em 1947 estabelecendo que os presidentes não poderiam mais eleger-se para além de dois mandatos. Alguns constitucionalistas como Walter Costa Porto costumam dizer que, de fato, o sistema americano estabelece um mandato de 8 anos para o presidente que, no entanto, na metade de seu mandato precisa ser “confirmado” pelo voto popular. É o que explica porque o presidente candidato a re-eleição goza de certos privilégios no processo eleitoral em relação a outros candidatos.

[20] Washington’s Farewell Address, 1796.

[21] A Constituição dos EUA é composta apenas por sete artigos que definem basicamente a composição do governo e a ordem federativa. O longo do tempo foram sendo introduzidas as emendas constitucionais cuja aprovação necessita da aprovação de dois terços do Senado e da Câmara dos Deputados e da ratificação pelos Estados.

[22] O. Nogueira, A Constituição de 1824. Centro de Ensino à Distância, Brasília, 1987 (p. 3). Obviamente essa afirmação não se aplica ao caso brasileiro, uma vez que no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) a constituição inclui praticamente todas as situações em que eventuais direitos de cidadãos e de corporações podem ser objeto de disputa.

[23] O enunciado clássico do princípio da subsidiaridade que aparece nos dicionários, diz que esse princípio está presente quando uma autoridade central deve ter apenas uma função subsidiária, agindo somente em questões que não podem ser decididas em um país individualmente.

[24]R. A. Mundell, em A Theory of Optimum Currency Areas. American Economic Review, Sept. 1961 (pp.657-665) levanta a hipótese da adoção de uma moeda supranacional. Outro trabalho importante de R. Mundell dessa época foi publicado pelo FMI em 1962 intitulado The Appropriate Use of Monetary and Fiscal Policy for Internal and External Stability.

[25] O 1º. Acordo de Schengen foi assinado em 1985 entre Alemanha, Bélgica, França, Luxemburgo e os Países Baixos. Em 1990, esses países assinaram a Convenção de Schengen que introduzia regras, condições e garantias para a livre movimentação de pessoas nesse espaço. Outros países decidiram aderir ao acordo e, em 1997, o Acordo foi incorporado pela União Europeia muito embora sem a obrigação de que todos os países integrantes do bloco participassem do arranjo.

[26] R. L. Bruckberger, La République Américaine. Librairie Gallimard, Paris, 1958.

[27] Voltaire publicou Le Siècle de Louis XIV em 1751 no qual compara a França de Louis XIV à Grécia de Péricles, à Roma dos Césares e à Itália dos Médici e dos Sforza em termos de brilho nas ciências e na cultura.

[28] Nathan Miller, em seu livro Star spangled men. The America’s ten worst presidents, faz um apanhado do desempenho de uma dezena de presidentes que, na sua avaliação, foram governantes fracos e incompetentes (Simon & Schuster Pub. N.Y. 1998).

[29] Em O Príncipe Maquiavel argumenta que “Os principados ou são hereditários … ou são totalmente novos …” por meio de aquisição ou pela força das armas (O Príncipe, Capítulo I).

[30] Discurso pronunciado em 1819 por Benjamin Constant de Rebecque no Athénée Royal de Paris. Tradução de Laura Silveira, edição organizada por Marcel Gauchet, intitulada De la Liberté cliez les Modernes  (Le Livre de Poche, Collection Pluriel. Paris, 1980).

[31] A entropia é entendida como o processo físico que rege a segunda lei da termodinâmica, a qual estabelece que nos sistemas abertos, no limite, a entropia do universo avança pela troca de calor de forma contínua, devendo aumentar até atingir um valor máximo num estado de equilíbrio.

Eiiti Sato

Professor de Relações Internacionais na Universidade de Brasília

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Por Eiiti Sato

Nas relações exteriores, o fim dos governos militares marcou também o fim do projeto “Brasil Potência”. Os equívocos e, por fim, o fracasso na administração da crise do petróleo levaram o país a um pesado endividamento que se revelaria um fardo cujo peso seria decisivo para impedir qualquer possibilidade de dar continuidade a um projeto como o “Brasil Potência”, que demandaria taxas de crescimento econômico consistentes e mais elevadas do que a média mundial, além de investimentos pesados em infraestrutura econômica e estratégica para servir de base para um longo período de crescimento consistente. Em outras palavras, a manutenção de um tal projeto exigiria capacidade para atuar em consonância com as lideranças inovadoras em escala mundial, além de condições econômicas para participar com desenvoltura dos mercados comerciais e financeiros, que se ampliavam e se tornavam cada vez mais competitivos, o que seria impossível com uma economia debilitada como era o caso do Brasil do início da década de 1980.

O fim dos governos militares também coincidiu com mudanças substanciais no cenário internacional, onde a guerra fria perdia seu papel e a crise do petróleo mudava de forma bastante radical as condições econômicas internacionais, inviabilizando a continuidade das políticas que o país vinha praticando inclusive na esfera das relações exteriores. Em consequência, após a década de 1980, os governos não tinham outra opção a não ser buscar novos caminhos para a inserção do Brasil no cenário internacional. O caminho escolhido foi o de passar a olhar mais para a vizinhança e para as economias em desenvolvimento e menos para as grandes potências. Nesse quadro, algumas opções encontradas foram investir na integração regional e no multilateralismo e, de uma forma geral, procurar construir novas alianças, em especial com os países em desenvolvimento. O problema é que nessa busca, os sucessivos governos, preocupados com a retomada da democracia entendida apenas como voto e representação, não conseguiram imprimir o necessário dinamismo e a integração das forças econômicas e políticas da nação. O resultado tem sido o baixo desempenho da economia e a consequente estagnação da posição brasileira no cenário internacional.

Assim, neste breve ensaio, esse processo de mudança será analisado resumidamente para construir algumas especulações sobre as perspectivas do Brasil no futuro próximo, no âmbito das relações internacionais neste primeiro quarto do século XXI já notavelmente marcado por turbulências, transformações e por muitas incertezas.

Uma visão renovada da integração regional

A orientação da política exterior do Brasil no sentido da formação de um sistema regional viveu seu momento de maior interesse na década de 1990. Após a transformação da Alalc em Aladi pelo Tratado de Montevideo em 1980, entre outras disposições, incorporou uma cláusula semelhante à cláusula XXIV do Gatt, permitindo que as diferenças sub-regionais fossem levadas em conta em projetos de integração na América Latina. Tratava-se de uma disposição importante pois, como argumentavam analistas e observadores como Hélio Jaguaribe, uma das grandes dificuldades de um processo de integração na América Latina formando um só bloco, como se pretendia com a Alalc, eram as enormes disparidades econômicas, culturais e sociais, formando um “aglomerado excessivamente heterogêneo e desequilibrado de países”, e fazendo com que uma integração horizontal de toda a região fosse completamente inviável.[2] Nesse sentido, um arranjo sub-regional como o Mercosul, ao reunir apenas quatro países vizinhos no sul do continente apresentava chances bem maiores de constituir um arranjo regional de sucesso.[3] Por meio do Mercosul, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai podiam fazer avançar um sistema regional sem precisar preocupar-se em acomodar problemas e demandas de nações tão distantes e díspares como Guatemala, Equador ou México. Vale notar também que o fim do ciclo dos governos militares na região fazia com que os governos eleitos se aproximassem mais do mercado e de sua mecânica tornando esses governos mais previsíveis, especialmente no que tange a políticas de estabilização econômica.

Uma característica da época era o entendimento de que o mundo vivia a era dos blocos econômicos. O sucesso da Comunidade Econômica Europeia (CEE), que acabava de evoluir para uma união econômica, completando assim, o ciclo da integração econômica previsto na teoria, exercia grande influência sobre o ambiente político e intelectual especialmente na América Latina. Entre outros fenômenos notáveis da época, o fim da guerra fria trouxe como um dos efeitos mais imediatos a corrida frenética dos países que integravam o bloco soviético no sentido de se tornarem membros da União Europeia. Em outras palavras, em muitos sentidos, essa corrida para a União Europeia confirmava com fatos a hipótese extremamente atraente de que a formação de blocos era não apenas um arranjo comercial que podia promover o desenvolvimento econômico, mas também um arranjo político capaz de promover a paz, como haviam argumentado os “pais fundadores” da integração europeia como Maurice Schumann, Konrad Adenauer, Paul-Henri Spaak, Jean Monnet e todos os líderes que, no pós-guerra imediato, faziam parte das várias associações voltadas para a promoção da unidade da Europa em torno de um grande projeto comum. Nesse quadro, a formação de blocos emergia como alternativa para as nações em toda parte e não apenas para o Brasil, que buscava uma alternativa para sua política exterior.

De fato, o interesse pela integração regional motivava até mesmo uma nação poderosa como os EUA – à época considerada a única superpotência após o colapso da União Soviética. Com efeito, o governo dos EUA concebeu a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), que deveria englobar os países das três Américas.[4] Houve muitas resistências, inclusive dentro dos EUA, e a proposta não prosperou. Em seu lugar, sob a liderança dos EUA foi criado em Janeiro de 1994 o Nafta (North American Free Trade Agreement) como bloco sub-regional reunindo EUA, Canadá e México. Foi nesse ambiente que surgiu o Mercosul (Mercado Comum do Sul), estabelecido pelo Tratado de Assunção assinado em Março de 1991, formando uma união aduaneira que, mais tarde, poderia evoluir para formas mais completas de integração econômica.

Na realidade, no Brasil, o interesse pela integração regional assim como as bases para a formação do Mercosul emergiram ainda na década de 1980, em grande medida como resultado de mudanças no ambiente político e econômico ocorridas na região. Com efeito, do ponto de vista econômico, a década de 1980 ficou conhecida como a década perdida para boa parte dos países da América Latina, que saíram da crise do petróleo endividados e impossibilitados de continuar com as estratégias de desenvolvimento que haviam permitido elevadas taxas de crescimento na década de 1960 e início dos anos 1970.[5] Politicamente, as duas nações de maior peso econômico e político na região – Argentina e Brasil – viviam as frustrações e o declínio dos governos militares, que deixavam o poder melancolicamente. Na Argentina a nação ainda cuidava das feridas físicas e morais da derrota dos governos militares na Guerra das Malvinas enquanto, no Brasil, o sonho de um “Brasil Potência” havia se desfeito num pesado endividamento que deixava exposta a incômoda e impopular dependência externa e cujos efeitos para a sociedade se traduziam em aumento da pobreza e da inflação. Em 1982 foi preciso uma grande operação diplomática e financeira para evitar o default, mas cinco anos depois, o governo brasileiro declarou uma moratória unilateral para evitar o esgotamento das reservas internacionais e forçar uma renegociação geral das dívidas com credores externos.[6]

Tanto na Argentina quanto no Brasil, que passavam a ser comandados por governos civis, foram deixados de lado os sonhos de projeção de poder internacional e passou-se a buscar alternativas para suprir as necessidades de suas economias e de suas sociedades. Em 1985 os presidentes Alfonsín e Sarney assinaram a Declaração de Iguaçu com o propósito de aprofundar as relações econômicas e comerciais entre os dois países. Além disso, esses presidentes fizeram avançar as negociações que culminariam com o acordo de cooperação nuclear entre Argentina e Brasil criando, em 1991, a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares. Na realidade, ainda sob os governos militares, em 1979, houve a assinatura do Tratado Tripartite (Argentina, Brasil e Paraguai) sobre o aproveitamento dos recursos energéticos das usinas de Corpus e de Itaipu, dando sinais de que a cooperação regional não era apenas viável e nem uma opção ideológica, mas uma necessidade para a região. Desse modo, a assinatura do Tratado de Assunção que estabelecia em seu Artigo 1 que “Os Estados Partes decidem constituir um Mercado Comum, que deverá estar estabelecido a 31 de dezembro de 1994, e que se denominará “Mercado Comum do Sul (Mercosul)” foi um passo natural no processo de integração real que avançava na região.[7]

Em fins da década de 1990, o Mercosul atingiu seu auge no que tange à sua importância para o comércio exterior de seus integrantes. Apesar de tudo, essa evolução jamais representou sucesso semelhante ao da integração europeia. Enquanto na Europa, o comércio intra bloco sempre fora de grande importância para todos os integrantes do sistema europeu, na América Latina, o comércio dentro da região sempre fora secundário para a maioria dos países. Em 1990, as exportações brasileiras para os países do Mercosul representavam apenas 4,2% do total exportado e em 1998 esse percentual havia evoluído para 17,37%, e o mesmo aconteceu com a Argentina que passou de 14,84% em 1990 para 35,64% em 1998. Também cabe notar que, nessas cifras, inclui-se o fato de que a maior parte dos produtos comercializados era de manufaturados enquanto as exportações tanto do Brasil quanto da Argentina para outros países de fora do bloco eram de produtos primários. Por outro lado, na Europa o comércio intra bloco historicamente tem representado, na média, sempre mais de 50% do comércio exterior de seus integrantes.

Desde os fins da década de 1990 a importância do Mercosul passou a declinar diante da evolução do quadro internacional. No caso do Brasil, o destino das exportações brasileiras para o Mercosul caíra pela metade entre 1998 e 2004, enquanto no caso da Argentina esse percentual se reduzira de 35,64% em 1998 para 18,59% em 2004. Essa tendência, em alguma medida, foi resultado também de mudanças que ocorriam no cenário mais geral do comércio internacional, mas foi também influenciado por mudanças na orientação da política externa tanto brasileira quanto argentina, que passaram a enfatizar o lado mais ideológico das relações externas que resultaria na criação em 2008 da Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e no interesse crescente por novas alternativas que emergiam no cenário internacional como o G-20 e o BRICS. Com efeito, no caso do Brasil, a política exterior do governo Lula passou a concentrar suas atenções no multilateralismo, que era o lado mais pragmático da política exterior, e no globalismo, que consistia exatamente no lado mais ideológico, ao entender que o país deveria participar como ator ativo de um presumido grande jogo de poder no cenário mundial.

O multilateralismo e o globalismo

Multilateralismo é uma expressão que, em sentido genérico, se refere a iniciativas nas quais vários países trabalham de forma cooperativa sobre um ou mais assuntos. Tecnicamente, significa que vários países procuram construir regimes internacionais de forma institucionalmente organizada. Em larga medida, o termo se confunde com organizações internacionais e, por essa razão, quando se fala em multilateralismo é difícil não associar o termo organizações como a OMC, em assuntos de comércio, ou a ONU para as questões de segurança internacional. Assim, embora o multilateralismo na política internacional seja antigo, foi transformado em experiência prática na política entre as nações apenas há cerca de um século com o surgimento da Liga das Nações. Assim, o Brasil tem uma tradição de atuação em instâncias multilaterais desde a primeira hora uma vez que sua participação na Liga das Nações foi bastante expressiva e, assim, trata-se de um fato dizer que desde o surgimento da prática do multilateralismo, a diplomacia brasileira sempre atuou nessas instâncias.[8] Também na criação e consolidação do Sistema Nações Unidas a participação da diplomacia brasileira foi expressiva, inclusive na composição de órgãos e de comissões criadas logo após a criação da ONU.

Dessa forma, no início do século XXI, parece até natural o reavivamento do interesse da diplomacia brasileira pelo multilateralismo. Nas duas administrações do Governo Lula, esse movimento foi caracterizado pelos historiadores Amado Cervo e Clodoaldo Bueno como multilateralismo de reciprocidade e tinha por pano de fundo a orientação geral do Brasil no sentido de integrar-se a um mundo onde a globalização comercial e financeira se tornara uma realidade após o fim da polarização imposta pela guerra fria que condicionava a ação dos países no cenário internacional.[9] Entre as iniciativas do período estava a expansão da rede de representações diplomáticas especialmente no Caribe e no continente africano. A abertura de representação diplomática em países de pouca expressão internacional era uma forma de obter apoio desses países em foros internacionais, isto é, a pratica do multilateralismo.[10]

Na aposta no multilateralismo durante os dois mandatos do presidente Lula ganhou destaque a demanda por um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Os argumentos eram variados, mas se concentravam em algumas hipóteses ou pressupostos que acabaram por se revelar pouco eficazes em termos de resultados esperados. A primeira era a de que a estrutura do processo decisório da ONU havia sido concebida quando a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim. Meio século mais tarde, o cenário havia mudado substancialmente, dizia o argumento. Entre essas mudanças, a supremacia americana, embora ainda permanecesse, o diferencial de poder em relação a outras grandes potências havia se reduzido de maneira substancial.[11] Além do mais Japão, Alemanha e Itália – a aliança contra a qual EUA, Grã-Bretanha e seus aliados lutaram na Segunda Guerra Mundial – haviam se tornado democracias ativas e aliados importantes dos EUA e da Europa na construção e na manutenção da ordem internacional enquanto, por outro lado, a posição internacional da URSS e da China também havia mudado ao longo da segunda metade do século XX. O desparecimento do bloco socialista e o colapso da URSS trouxeram um novo papel para a Rússia na ordem internacional enquanto a China que agora se fazia representar na ONU, não era mais a China de Chiang Kai-Shek, aliada do Ocidente, mas a República Popular da China, criada pela revolução comunista de Mao Tsé-Tung. Assim, eram muitos os fatos que justificavam o entendimento de que a composição do Conselho de Segurança não mais refletia a ordem vigente no cenário mundial e, em consequência, acreditava-se que uma reforma da ONU seria necessária para torná-la mais representativa da ordem mundial. O fato é que na política internacional a concretização de reformas sempre se revelou um passo muito mais difícil do que a criação de uma nova entidade, como havia ocorrido com a própria ONU que, apesar de ser bastante semelhante à Liga das Nações em termos de objetivos e até de procedimentos, ao final da Segunda Guerra Mundial preferiu-se criar a nova entidade e, em seguida, transferir o patrimônio material e político da Liga das Nações para a ONU.

A segunda ordem de argumentos para a diplomacia brasileira investir na obtenção de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU era o entendimento de que, politicamente, o Brasil era um “candidato natural” dos países em desenvolvimento e, geograficamente, um representante também natural dos países latino-americanos, por suas dimensões e por seu peso político internacional que se refletia, por exemplo, no papel que desempenhara na criação, juntamente com outros países em desenvolvimento, do G-20, que podia servir de contraponto ao grupo dos 8 países mais ricos do mundo (G-7-1).[12]

Um outro argumento da diplomacia brasileira era o de que sua participação no Conselho de Segurança da ONU seria visto pelas potências como um reforço para os objetivos centrais da ONU, que eram o de promover a paz e o entendimento pacífico entre as nações. O argumento considerava que a longa tradição diplomática brasileira seria uma forte credencial para qualificar o país para um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Essa tradição apontava para uma história do país predominantemente pacífica em relação à convivência com seus vizinhos e apontava também para a índole e a competência da diplomacia brasileira, marcada pela preferência permanente pela solução pacífica das controvérsias e pela ênfase e no desenvolvimento da capacidade de negociação. É curioso notar que esses argumentos eram bastante semelhantes aos que haviam sido utilizados na década de 1920, quando a diplomacia brasileira se empenhara em obter um assento permanente do Conselho da Liga das Nações.

É notável que no início do século XXI os governantes e responsáveis pela política exterior não prestassem atenção à experiência vivida oito décadas antes quando, de um lado, as grandes potências se revelaram muito mais preocupadas com seus interesses individuais e com o jogo de poder na política internacional, enquanto de outro lado, as nações periféricas, sobretudo nas vizinhanças do Brasil, observavam a demanda brasileira por um assento permanente no Conselho da Liga das Nações como uma inciativa para reforçar a posição brasileira diante delas e não como uma força emergente para, eventualmente, defendê-las contra políticas de poder das grandes potências.[13] No curto prazo, talvez o efeito mais importante da orientação da política exterior do Brasil no sentido de obter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU tenha sido a de comprometer o Mercosul e o projeto de integração regional. Tal como ocorrera na época da Liga das Nações, os países vizinhos no continente sul-americano jamais viram o Brasil como “representante”, mas sim como rival nessas instâncias multilaterais, especialmente em relação à demanda por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Vale notar que essa demanda tinha pouco respaldo até mesmo junto à população brasileira. Com efeito, um trabalho de pesquisa realizado por Amaury de Souza na época em que a demanda brasileira por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU estava no auge, revelava esse descompasso entre a diplomacia e a opinião pública. Amaury de Souza consultou a opinião de profissionais de várias categorias, entre os quais executivos empresariais, professores, jornalistas e integrantes das áreas técnicas do Legislativo e do Executivo a respeito da política externa do governo Lula e os resultados revelaram que, entre 18 prioridades sugeridas pela pesquisa, a demanda por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU tinha muito pouca aprovação, ficando em 16º. lugar, superando apenas “controlar e reduzir a imigração ilegal para o País” (13%) e “fortalecer a CPLP – Comunidade de Países de Língua Portuguesa” (12%).[14]

Como já mencionado, a vertente “globalista” do pensamento em política exterior considerava que havia um jogo mundial do poder e que o Brasil deveria atuar ativamente nesse jogo. Esse pensamento coincidia com a eleição em outros países da região de governos de esquerda dentro do espectro político, para quem os EUA eram um dos grandes obstáculos a serem contornados. Cabe notar que o termo “globalismo” é bastante vago e controvertido. Na presente análise o termo é entendido como uma alternativa à expressão “globalização”, uma espécie de versão conceitual do que ocorrera em 2001, quando foi criado o Fórum Social Mundial como alternativa ao Fórum Econômico Mundial de Davos. O destino dessa visão do globalismo parece ter sido o mesmo do Fórum Social Mundial, que perdeu completamente o interesse enquanto, por outro lado, o Fórum de Davos continuou muito ativo como uma instância efetiva de debates para autoridades políticas e empresariais das nações mais influentes do mundo, que podiam expor suas preocupações e ouvir propostas em estágio preliminar para as grandes questões da economia mundial.

Política e economia no Brasil depois da redemocratização

A projeção de qualquer país no cenário internacional tanto no âmbito regional quanto no cenário global depende fundamentalmente do desempenho da nação. As dimensões geográfica e demográfica podem ser condições necessárias da posição internacional do país, mas estão longe de ser suficientes. A China, apesar de suas dimensões continentais, só se tornou uma nação realmente relevante na cena internacional após o longo período de crescimento iniciado com Deng Xiaoping na década de 1980. Até então, a China não passava de um uma nação fechada, com todos os indicadores do ‘subdesenvolvimento”, sem qualquer expressão internacional, na realidade, uma verdadeira incógnita para a política internacional. Por outro lado, uma economia como a da Suíça, reconhecidamente estável e confiável de longa data, capaz até mesmo de transpor sem abalos as grandes crises do século XX, jamais teve sua moeda sequer cogitada para desempenhar papel de relevância no sistema monetário internacional em virtude das limitadas dimensões de sua economia. Além desses, existem muitos outros casos que ilustram essa relação entre as dimensões de uma nação, seu desempenho econômico e político e sua relevância no cenário da política e da economia mundial.

Nas últimas décadas, efetivamente o Brasil teve algum papel de relevância no cenário internacional apenas em uns poucos momentos. Em larga medida, na maior parte do tempo seu desempenho econômico e político tem ficado muito aquém de suas dimensões geográficas e demográficas e de seu potencial econômico. Os governos militares ensaiaram um processo de aglutinação dos recursos e das energias sociais e econômicas em torno de um projeto de âmbito nacional nesse sentido, mas o projeto que ficou conhecido como “Brasil Potência” apresentava muitos problemas e foi alvo de muitas críticas que, em geral, principiavam com a crise de um regime autoritário que perdia sustentação política rapidamente reduzindo muito o espaço para enfrentar quaisquer dificuldades que eventualmente emergissem. Nesse quadro, as turbulências e as pressões geradas pela crise do petróleo da década de 1970 foram fatais para a estabilidade do regime político bem como para as estratégias de desenvolvimento. Na realidade, a crise do petróleo era apenas a parte mais visível e ruidosa das grandes mudanças em curso na ordem econômica internacional, entre as quais destacava-se a substancial redução das tradicionais fontes oficiais de financiamento, notadamente governos, Banco Mundial e as várias agências oficiais de fomento ao desenvolvimento internacional.

A substituição do regime autoritário por uma ordem democrática, apesar do grande entusiasmo – ou talvez em razão do grande entusiasmo – foi realizada de forma que alguns problemas de governabilidade e de eficiência iriam emergir na ordem econômica e política nas décadas seguintes. É certo que as virtudes da democracia são indiscutíveis. A história mostra que os regimes democráticos são aqueles que, como nenhum outro, têm garantido valores essenciais como a liberdade e a dignidade do cidadão. Apesar de tudo, “democracia” é apenas um conceito abstrato. No mundo real o termo só existe no plural. No mundo real o que existe é a “democracia inglesa”, a “democracia americana”, a “democracia francesa”, a “democracia holandesa”, entre outras. O que é comum nessas “democracias” é que, além de garantir valores essenciais como a liberdade, essas democracias procuram adaptar-se suas instituições políticas às tradições e às peculiaridades culturais nacionais e, ao mesmo tempo, procura organizar e regular a ordem social e econômica de forma que ajudem a promover o progresso e a prosperidade da nação. O desejo de prosperidade está presente não apenas nas chamadas sociedades ocidentais, mas na grande maioria das sociedades espalhadas pelos cinco continentes. Nesse ambiente marcado pela diversidade, a qualidade do regime pode variar de lugar para lugar e também ao longo do tempo significando que o fato de haver democracia não significa que haverá progresso e prosperidade. Os surveys periodicamente produzidos por organizações internacionais como o Banco Mundial e a Organização para Cooperação Econômica e o Desenvolvimento apontam essas diferenças de desempenho, ou seja, há sociedades democráticas que inovam e prosperam mais do que outras. Esse aspecto revela-se especialmente importante para as economias em desenvolvimento como o Brasil para quem prosperar significa corrigir desigualdades sociais e qualificar-se para levar para considerável parte da população os benefícios das modernas tecnologias.

Com o retorno da democracia, desde 1989 o Brasil tem realizado ininterruptamente eleições livres e o estado de direito passou a regular a vida dos indivíduos e das organizações públicas e privadas. Com efeito, o voto livre – um dos quesitos essenciais dos regimes democráticos – tem sido praticado em todos os rincões deste Brasil de dimensões continentais. Na realidade, a tradição de democracia no Brasil não remonta apenas ao estabelecimento da República há exatamente um século antes da redemocratização. Mesmo nos tempos do Império, a democracia era uma prática vivenciada notavelmente até pelo próprio Imperador Pedro II na forma de uma monarquia constitucional. Apesar de tudo, o estado de direito e o funcionamento livre e regular das instituições democráticas, embora importantes, são apenas parte da história.

Com efeito, de uma forma geral, a história recente mostra que os sucessivos governos brasileiros, embora democraticamente constituídos, têm negligenciado o fato de que o sucesso econômico constitui fator essencial tanto para a melhoria das condições sociais internas quanto para a própria ordem internacional. Uma nação pobre não contribui em nada para a comunidade internacional, na realidade torna-se um peso e uma fonte de problemas para seus vizinhos e para a comunidade internacional como um todo. Uma visão de conjunto da posição brasileira no cenário internacional revela que a incapacidade de buscar o progresso, associada a algumas escolhas equivocadas têm produzido a estagnação dessa posição internacional. Por vezes, ao invés de preocupar-se com posturas e alianças de inspiração mais ideológica e de sonhos de poder, a nação deveria estar mais adequadamente preparada tanto para enfrentar com sucesso os problemas que surgem de tempos em tempos na esfera internacional quanto para captar positivamente as oportunidades que também emergem na política e nas relações econômicas internacionais. Objetivamente, a nação precisa tanto de instituições que proporcionem segurança jurídica e estabilidade política – ou seja, obter a confiança internacional – quanto de uma economia suficientemente robusta e saudável capaz de assegurar que o país fique ao menos razoavelmente alinhado com os padrões mundiais.

As tabelas a seguir mostram que o crescimento da economia brasileira tem ficado bem abaixo da média mundial, ou seja, tem se empobrecido em termos relativos. As tabelas mostram também que há pelo menos duas décadas as taxas de investimento têm ficado substantivamente abaixo das taxas praticadas por outros países. Essas taxas de investimento são importantes porque refletem a parcela do PIB que o país destina não apenas à inovação tecnológica e ao aumento da produtividade e da capacidade de produção de bens e de serviços, mas refletem também os investimentos feitos em educação, nos serviços de assistência médica e em outros serviços sociais, assim como na ampliação e manutenção da infraestrutura de esgotos, saneamento, comunicações e em todos os modais de transporte, ou seja, portos, aeroportos, estradas, ferrovias e transporte urbano. Um país como a China, que vem apresentando taxas elevadas e consistentes de crescimento econômico investe, proporcionalmente, mais do que o dobro do Brasil e até mesmo países “prontos” como a França, que têm toda a infraestrutura social e econômica madura, investe significativamente mais do que o Brasil, como mostra a tabela 2. O fato é que esses investimentos são cumulativos e cada ano com baixos investimentos significa instalações industriais deterioradas ou não construídas, rodovias que deixaram de ajudar a dinamizar a economia, alguns milhares de jovens que não terão boas escolas ou cidades que continuarão com boa parte da população sem acesso aos benefícios da água encanada e dos esgotos tratados, além e muitos outros elementos de infraestrutura econômica e social deteriorados dificultando o bem estar do cidadão em suas rotinas diárias e também fomentando a criminalidade em todas as suas formas. Em valores, de acordo com a tabela 2, significa que o Brasil (setor público + setor privado) deixou de investir algo em torno de US$ 100 bilhões por ano ao longo de duas décadas.[15]

                Tabela 1 – Crescimento econômico, países selecionados

Anos recentes 2007-2018 (%)

País/Região 2007 2010 2013 2014 2015 2016 2018 2013-2018

(média anual)

Brasil 6,07 7,52 3.00 0,50 -3,54 -3,27 1,31 -0,40
Argentina 9,00 10,12 2,40 -2,51 2,73 -2.08 -2,48 -0.38
Chile 4,90 5,84 4,04 1,76 2,30 1,67 4,02 2,75
Colômbia 6,84 4,34 4,56 4,72 2,95 2,08 2,56 3.37
México 2,29 5,11 1,35 2,80 3,28 2,91 2.13 2,49
Peru 8,51 8,33 5,85 2,38 3,25 3,95 3,97 3,88
Am. Lat. e Caribe 5,51 5,84 2,75 1,00 0,08 -0,33 1,57 1,01
China 14,23 10,63 7,76 7,30 6,90 6,73 6,56 7,05
Mundo 4,31 4,29 2,65 2,83 2,85 2,58 3,05 2,79

Fonte: World Bank

            Tabela 2 – Investimento bruto do país como proporção do PIB

Ano Brasil Mundo China França Chile
2000 16,8 24,3 34,4 22,5 22,1
2002 16,4 23,2 37,0 21,3 22,3
2004 16,1 24,5 42,8 21,9 19,8
2006 16,4 25,3 40,9 23,2 20,8
2008 19,1 25,5 43,2 24,1 23,5
2010 19,5 24,2 47,6 21,9 26,8
2012 18,1 24,3 47,2 22,6 23,1
2016 16,4 23,8 44,2 22,7 26,1

Fonte: OCDE. National Accounts Data Files

Em resumo, a trajetória recente da política exterior do Brasil tem apresentado poucos resultados, em grande parte por estar desconectada das bases econômicas, sociais e políticas da nação. O Brasil pode ter um grande potencial de soft power, mas para realizar esse potencial será preciso que a nação inspire confiança na comunidade internacional em todos os sentidos, a começar por uma taxa de crescimento econômico ao menos mais elevada do que a média mundial. Escolher opções como integração econômica regional, até pelas dimensões do país, o que se espera é que o país contribua para que esse arranjo floresça e não seja um verdadeiro “peso morto” nesse empreendimento, isto é, que se torne um fator de estímulo e de canalização positiva das energias para todos os demais parceiros. Na realidade, a condição necessária (embora não suficiente) para que um arranjo como o Mercosul avançasse efetivamente é que o integrante de maior peso (no caso o Brasil) apresentasse esse desempenho positivo, consistente e construtivo.

Brasil um país do futuro, até quando?

Desde que Stefan Zweig publicou em 1941 seu livro “Brasil, um País do Futuro”, cada geração experimentou a sensação de que haveria de ver esse futuro chegar pensando em um Brasil próspero e poderoso no concerto das nações.[16] Na realidade, o sentido que Zweig dava a esse futuro não era esse. Sua experiência de vida era o de sua terra natal, a Áustria, e do continente europeu, que vivenciaram ao longo da primeira metade do século XX o sofrimento e a destruição das duas guerras mundiais e a perseguição implacável aos judeus pelo nazismo – uma perseguição que afinal trouxera Zweig para o Brasil em 1940. Para Stefan Zweig, o futuro promissor que antevia para o Brasil era o de um país pacífico e isento dessas loucuras coletivas que marcaram seu país e a Europa de seu tempo. Na introdução do livro escreve Zweig: “Por isso, é sobre a existência do Brasil, cujo único desejo é a construção pacífica, que repousam nossas maiores esperanças de uma civilização futura e de pacificação do nosso mundo devastado pelo ódio e pela loucura … É por isso que escrevi este livro”.

Apesar de tudo, é parte da natureza humana a permanente busca pelo progresso e pela prosperidade individual e coletiva e, nesse quesito, as esperanças da nação brasileira têm sido sistematicamente frustradas, geração após geração, por muitas razões que, neste ensaio, não cabe discutir.[17] Um ponto que parece oportuno analisar nestas considerações que devem servir de conclusão sobre as perspectivas para a política exterior do país é o fato de que, aparentemente, os sucessivos governantes e as forças políticas no País não têm levado na devida conta o fato de que, na essência, progresso e prosperidade são a base sobre a qual se assentam a posição de uma nação no cenário internacional. Na realidade, a política exterior de qualquer país depende essencialmente de duas ordens de variáveis: de um lado, as variáveis que conformam o meio internacional, sobre as quais até mesmo grandes potências têm pouca influência; de outro lado, as capacidades nacionais em termos de recursos econômicos sobre as quais se assentam tanto o hard power quanto o soft power. Na essência, orquestrar essas capacidades constitui uma das missões essenciais e intransferíveis dos governos.

Nestas reflexões conclusivas, portanto, cabe apontar o fato de que, virtualmente, os sucessivos governos no Brasil têm buscado alternativas de política exterior como integração regional, investimento em instâncias multilaterais, ou em tópicos como alianças com grandes potências ou com nações em desenvolvimento, mas têm descuidado da construção de uma base social e econômica nacional que, efetivamente, são capazes de tornar o país um ator capaz de se beneficiar dos fluxos internacionais de comércio e de capital e também de exercer alguma influência positiva na ordem internacional. Com efeito, o meio internacional continua a ser eminentemente anárquico no sentido de que as nações podem construir, modificar ou mesmo eliminar regimes, mas a história tem mostrado que qualquer dessas possibilidades, ocorrem a posteriori, isto é, os desenvolvimentos ocorrem e, em seguida, procura-se estabelecer algum referencial normativo para esses desenvolvimentos. Mesmo em casos como o da integração europeia as instituições foram criadas para ordenar e dar segurança à integração comercial, social e política que, de muitas maneiras, já existiam há séculos na Europa.

Em termos gerais, o caso do desenvolvimento tecnológico é bastante ilustrativo da dimensão anárquica do meio internacional. De muitas formas a tecnologia desempenha um papel central nas relações interacionais da atualidade uma vez que influencia diretamente os padrões de produtividade e a capacidade das nações transformar seus recursos naturais e humanos em riqueza. Por exemplo, os desenvolvimentos ocorridos no mundo das tecnologias de informação, processamento e transmissão de dados e de imagens, abriram um novo mundo de oportunidades para os negócios em toda parte e não apenas em tradicionais centros dinâmicos da economia mundial. A globalização financeira e comercial só foi possível por meio de tecnologias como essas, que permitiram a integração internacional da produção industrial assim como dos mercados financeiros ajudando, dessa forma, a promover uma verdadeira redistribuição mundial da atividade econômica e da riqueza.[18] No caso recente mais notável, a ascensão da China ao status de segunda maior potência mundial, deu-se por meio do enorme fluxo de capitais e de tecnologia oriundos dos EUA, do Japão e da Europa. Um processo que foi motivado não pela disposição deliberada desses centros de poder e de riqueza mundial no sentido de fortalecer a economia chinesa, mas em decorrência dessa característica intrínseca do meio internacional que os analistas chamam de “condição anárquica”, isto é, sem uma autoridade central e um ordenamento formalmente estabelecido, e onde cabe a cada ator escolher a forma e as estratégias de se relacionar com as forças em ação no meio internacional para obter benefícios ou, por vezes, simplesmente para contornar problemas. Nesse sentido, de uma forma geral, a história recente mostra que os sucessivos governos brasileiros têm negligenciado esses fatos. Objetivamente, pode-se afirmar que uma nação como o Brasil precisa tanto de democracia quanto de instituições robustas que proporcionem segurança jurídica e estabilidade política em condições de contar com a confiança internacional para ser um participante ativo e capaz de, em condições de razoável igualdade, compartilhar da grande aventura da ordem internacional na busca do progresso espiritual e material.

Em resumo, a trajetória recente da política exterior do Brasil tem apresentado poucos resultados, em grande parte por estar desconectada das bases econômicas, sociais e políticas da nação. O Brasil pode ter um grande potencial de soft power, mas para realizar esse potencial será preciso que a nação inspire confiança na comunidade internacional em todos os sentidos, a começar por uma taxa de crescimento econômico mais elevada do que a média mundial para indicar claramente que a nação está efetivamente reduzindo sua pobreza relativa e melhorando consistentemente seus indicadores sociais. Uma análise mais acurada mostraria que, em larga medida, o BRICS só existe em razão da China e do que ela representa, especialmente em termos simbólicos como nação, cuja relevância no mundo em termos econômicos, tornou-se indiscutível e cujo desempenho ao longo de três décadas tornou-se uma verdadeira inspiração para substancial parte das nações do mundo.

Ella Wilcox, escritora e poetisa norte-americana fez sucesso em seu tempo, mas tornou-se conhecida universalmente por uma frase que se transformou em adágio popular em muitos lugares: “Ria e o mundo rirá com você. Chore e você chorará sozinho[19]”. Rubens Ricupero ainda no início da década de 1990, de certa forma, deu a esse fato uma interpretação teórica argumentando que nas relações entre os países da América Latina predominavam as relações triangulares, isto é, não se podia entender as relações entre os países da região a não ser por meio de triângulos onde sempre há um vértice ocupado pelos EUA ou, em tempos mais recentes, por outra potência de sucesso de fora da região[20]. A verdade é que países de sucesso, que inspiram e transmitem confiança, não precisam buscar parceiros – têm o privilégio de escolhê-los. Mesmo na esfera pessoal pode-se dizer que o sucesso atrai enquanto o fracasso afasta ou nos torna indiferentes. Nos últimos anos, as agências de classificação de risco financeiro tornaram-se populares na literatura de relações internacionais. Apesar de tudo, pouca gente tem prestado a devida atenção para o fato de que os grandes fluxos imigratórios de pessoas, mesmo aqueles causados por motivações dramáticas e trágicas, instintivamente, tendem a seguir as mesmas direções recomendadas pela Standard & Poors e por outras agências de classificação de risco financeiro, isto é, a preferência dos migrantes é, notavelmente, pelos países “Triple A”. De fato, nestes tempos, um dos indicadores mais sensíveis e expressivos do desempenho econômico e social de um país é o movimento migratório. Segundo notícias recentes divulgadas pelo Ministério das Relações Exteriores, o número de brasileiros vivendo no exterior é de cerca de 3 milhões de pessoas, enquanto o número de estrangeiros vivendo no Brasil não chega a 750 mil, ou seja, é 4 vezes menor. Vale notar que esse número de estrangeiros vivendo no Brasil é menor do que o de estrangeiros vivendo em países próximos como a Argentina e o Paraguai. Certamente que tal quadro não poderá ser revertido apenas pela política exterior, será preciso que o próprio Estado brasileiro reveja suas prioridades e o funcionamento de suas instituições.

 

 

[1] Este ensaio foi escrito em homenagem ao notável historiador Amado Luiz Cervo, Professor Emérito da Universidade de Brasília que completa 80 anos de uma vida extremamente produtiva. Formou toda uma geração de estudiosos e suas obras tornaram-se referência para todos aqueles que se interessam por relações internacionais e, mais especificamente, pela trajetória do Brasil no cenário internacional.

[2] Hélio. Jaguaribe, Significação de Mercosul. In Mercosul, Sinopse Estatística. Vol. I, IBGE, Rio de Janeiro, 1992 (p. 31)

[3] Mesmo antes da transformação da ALALC em ALADI, já existiam iniciativas de integração sub-regional como o Sistema de Integração Centro-Americana (SICA), de 1951, e o Pacto Andino ou Grupo Andino criado em 1969, reforçando a importância de facilitar a formação de arranjos sub-regionais.

[4] A Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) foi uma iniciativa dos EUA proposta formalmente durante a Cúpula das Américas, realizada em Miami, no dia 9 de dezembro de 1994. Nesse arranjo seriam eliminadas as barreiras alfandegárias entre os 34 países americanos, com exceção de Cuba.

[5] Ver o Relatório Pearson, que proporciona uma visão panorâmica do desempenho econômico da economia mundial na década de 1960 (Pearson Commission on International Development, Partners in Development, The World Bank, Washington, D.C., 1969). No Brasil o período compreendido entre 1967 e 1973 ficou conhecido como os anos do “milagre brasileiro” devido às elevadas taxas de crescimento superiores a 10% ao ano.

[6] P. N. Batista Jr. A Moratória de 1987. Folha de S. Paulo, 20/Fev./1997.

[7] A integração real é feita de formas de interação como o aumento do fluxo internacional de pessoas ou a construção de uma obra como a usina de Itaipu que afeta os interesses de mais de um país normalmente leva a acordos e tratados. Em larga medida, pode-se dizer que a formação da CEE em 1957 foi um arranjo necessário para organizar uma Europa onde a integração real já existia desde a Idade Média.

[8] Há várias obras e artigos que discutem essa participação, entre essas obras o livro O Brasil na Liga das Nações. 1919-1926, de autoria de Eugênio Vargas (Editora Funag/Editora UFRGS, 2000) faz um balanço dessa atuação brasileira.

[9] Ver História da Política Exterior do Brasil de Amado L. Cervo & Clodoaldo Bueno (Editora UnB, 4ª. Edição, 2011, pp.530-544).

[10] Em 2019, o Brasil tinha 223 representações no exterior, entre embaixadas, consulados e missões em organizações internacionais. Destas, 72 (32,3%) foram criadas por Lula e Dilma, incluindo-se um escritório de representação em Ramallah (sede de Autoridade Nacional Palestina) e cinco missões e delegações em organizações internacionais como a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) e a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). (E. Oliveira & A. Duchiade. O Globo, 5/Junho/2019).

[11] Em 1950 o PNB dos EUA era maior do que a soma das demais grandes potências (Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Japão, e URSS). P. Kennedy, The Rise and Fall of the Great Powers (Fontana Press, London, 1988, p. 475)

[12] Neste caso trata-se do G-20 dos países em desenvolvimento criado em Cancún (México) em 2003, na esteira da conferência da OMC e não do G-20, criado em 1999, reunindo as 19 maiores economias do mundo e mais a União Europeia, cujo propósito mais imediato era o de discutir e encaminhar soluções para os problemas financeiros globais.

[13] No capitulo 3 do livro O Brasil na Liga das Nações (op. cit.) Eugênio Vargas discute as várias iniciativas tomadas pelo governo Arthur Bernardes entre 1922 e 1925 no sentido de qualificar a demanda brasileira por um assento permanente no Conselho da Liga. O livro relata também a oposição ou a indiferença dos países vizinhos à demanda brasileira que acabou com a retirada do Brasil como membro da Liga das Nações em 1926.

[14] Amaury de Souza, A Agenda Internacional do Brasil: a Política Externa Brasileira de FHC a Lula. Editora Campus/Elsevier, Rio de Janeiro, 2009.

[15] Em valores de Dezembro/2019.

[16] S. Zweig. Brasil. Um País do Futuro. L&PM Editores, Porto Alegre, 2013. A primeira edição de 1941, foi lançada simultaneamente em alemão, inglês, sueco e francês, além do português.

[17] Sérgio Moura, em seu livro Podemos ser Prósperos. Se os Políticos Deixarem discute essa questão de forma exaustiva e interessante, lembrando bastante Brasil, o País dos Coitadinhos, de Emil Farhat, de grande sucesso na década de 1970. (S. Moura. R. Janeiro, 2017).

[18] Em O Mundo Pós-Americano, Fareed Zakaria faz um balanço de longo prazo da ordem mundial, desde que se tornou visível no século XVI. O autor chama de “movimentos tectônicos” as transformações que levaram ao centro dessa ordem primeiro a Europa, depois os EUA e finalmente o que ele chama de “ascensão do resto” num processo movido muito menos por guerras do que pelo gênio humano e pela criatividade que incrementa a produção e a produtividade. (Zakaria, Fareed. O Mundo Pós-Americano. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[19]  Rejoice, and men will seek you;

Grieve, and they turn and go;

(…)

Be glad, and your friends are many;

Be sad, and you lose them all,

(Ella W. Wilcox (1850-1919) no poema Solitude)

[20] R. Ricúpero, O Brasil, a América Latina e os EUA desde 1930: 60 Anos de uma Relação Triangular. Pub. em J. G. Albuquerque (Org.) 60 Anos de Política Externa Brasileira (1930-1990). NUPRI/USP, 1996. Vol. 2 pps. 37-60.

 

Eiiti Sato é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IREL/UnB). Foi Diretor do IREL/UnB de 2006 a 2014. Foi chefe da Assessoria Internacional da UnB (2014-2016). Foi o primeiro presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais – ABRI (2005-2007). Tem ministrado regularmente cursos sobre Economia Política Internacional e Política Internacional, Teoria e História (irel.sato@gmail.com;  http://lattes.cnpq.br/8614060463115652).

 

Artigo publicado na revista INTELLIGERE, USP, vol. 10, ano 2020.

 

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