Mauro Salvo – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Tue, 22 Dec 2020 16:09:09 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Legalização de jogos de azar no Brasil e sua vulnerabilidade à lavagem de dinheiro: liberalização, regulamentação ou proibição https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3381&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=legalizacao-de-jogos-de-azar-no-brasil-e-sua-vulnerabilidade-a-lavagem-de-dinheiro-liberalizacao-regulamentacao-ou-proibicao https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3381#comments Tue, 22 Dec 2020 16:08:11 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3381 Por Mauro Salvo

 

1 – Introdução

O artigo propõe analisar as possíveis vulnerabilidades que a liberalização e regulamentação dos jogos de azar traria à economia brasileira, incluindo o risco de contágio a outros setores no que diz respeito à lavagem de dinheiro. O problema está na atividade econômica de exploração das casas de apostas e seu modus operandi, que traz riscos para a sociedade e para o sistema econômico que as hospeda. A decisão sobre permitir ou proibir as apostas carece de uma análise de seus custos e benefícios em administrar os riscos inerentes ao seu funcionamento. O principal argumento contrário à legalização dos jogos de azar é a sua frequente utilização por organizações criminosas como meio para lavagem de dinheiro. Uma casa de jogos pode facilmente ser utilizada com a finalidade de dar aparência de legitimidade para recursos de origem criminosa.

Em outras palavras, quanto mais canais disponíveis para a lavagem de dinheiro, maior será o incentivo para o crime, já que é por meio dela que os criminosos viabilizam o usufruto destes recursos e reduzem a probabilidade de serem descobertos e punidos pelos seus atos. O texto explora os argumentos dos defensores da legalização (lobistas), considerados simplistas pelos críticos, pois não levam em conta a vasta gama de custos e externalidades negativas. Baseado no exposto, a abordagem julgada mais adequada é a de seleção .

A legalização dos jogos de azar é reconhecida como causadora de alguns danos à sociedade, todavia a atividade apresentou uma forte onda de legalização nos últimos 25 anos, principalmente em países em desenvolvimento, decorrente da alta demanda pelo serviço e pela renda gerada para o governo através da tributação. Outros motivos são a atração de investimentos estrangeiros e o incremento do turismo e atividades correlatas. Portanto, a legalização é facilmente defendida por ter seus benefícios facilmente quantificáveis, enquanto os contra-argumentos são dificilmente mensuráveis e têm seus custos difusos na sociedade, dado seu caráter subterrâneo (FATF Report[1], março, 2009)

Levando-se em conta as características econômicas, geográficas e culturais do Brasil seria recomendável especial atenção na regulamentação da atividade. A experiência brasileira em passado recente, e muitos casos ao redor do mundo, demonstram que a preocupação com a lavagem de dinheiro nesse setor de atividade não é mero preconceito ou apenas uma possibilidade teórica. Mesmo sendo regulamentado, manter a sua operação constitui um risco elevado. Assim, fica claro que o motivo para defender a não legalização dos jogos de azar é a sua facilitação ao crime, direta ou indiretamente.

 

2 – Base teórica

As pessoas respondem por incentivos, ou seja, tomam decisões comparando custos e benefícios, assim seu comportamento pode mudar quando esta relação se altera. Este pensamento pode ser utilizado para qualquer ação humana, inclusive para ações criminosas, visto tratar-se de atividades humanas. Gary Becker (1968), com o artigo seminal “Crime and punishment: an economic approach”, impôs um marco à abordagem sobre os determinantes da criminalidade ao desenvolver um modelo formal em que o ato criminoso decorreria de uma avaliação racional em torno dos benefícios e custos esperados nele envolvidos, comparados aos resultados da alocação do seu tempo no mercado de trabalho legal. Basicamente, a decisão de cometer ou não o crime resultaria de um processo de maximização de utilidade esperada, em que o indivíduo confrontaria, de um lado, os potenciais ganhos resultantes da ação criminosa, o valor da punição e as probabilidades de detenção e aprisionamento associadas e, de outro, o custo de oportunidade de cometer crimes, traduzido pelo salário alternativo no mercado de trabalho.

Na perspectiva da teoria econômica do crime, em sua esmagadora maioria, o criminoso é uma pessoa normal que pondera e decide dentro de uma determinada estrutura de incentivos ou condicionantes. Portanto, o evento “crime” é visto como uma decisão onde são ponderados os benefícios e os custos, e, também, como uma troca intertemporal, entre o benefício imediato e um custo provável no futuro (punição). Os benefícios consistem nos ganhos monetários e psicológicos proporcionados pelo crime. Por sua vez, os custos englobam a probabilidade de o indivíduo que comete o crime ser preso, as perdas de renda futura decorrentes do tempo em que estiver detido, os custos diretos do ato criminoso (tempo de planejamento, instrumentos etc.) e os custos associados à reprovação moral do grupo e da comunidade em que vive. Uma notação possível desta equação seria: Crime = b – p * c, onde b é o benefício do crime, p é a probabilidade de prisão e c os custos medidos pela perda de renda durante o tempo de prisão mais os custos diretos e morais.

 

3 – Lavagem de dinheiro através dos jogos de azar

Agentes que tenham obtido recursos de forma ilícita têm a necessidade de que, pelo menos, parte destes recursos seja incorporado ao mercado formal de modo a dificultar o rastreamento de sua origem criminosa e assim possa ser utilizado livremente por seus detentores. A este procedimento dá-se o nome de “lavagem de dinheiro”.

A lavagem de dinheiro pode ocorrer em qualquer setor de atividade. Todavia, há aqueles mais vulneráveis. Para que o lavador de dinheiro tenha êxito ele costuma buscar setores com características que facilitem alcançar seu objetivo. Em termos genéricos, os lavadores de dinheiro procuram setores com falhas no trinômio regulação-monitoramento/fiscalização-punição. Mais especificamente, os setores que oferecem as melhores condições para que criminosos reciclem os ativos obtidos ilegalmente apresentarão algumas (ou todas) características como: a) algum grau de informalidade; b) os preços apresentam forte oscilação (como característica inerente ao setor); c) regulamentação inexistente ou frágil; d) fiscalização inexistente ou frágil; e) difícil avaliação quanto ao preço e qualidade dos bens negociados (parâmetros subjetivos); f) difícil rastreamento; g) raras punições.

Os métodos de reciclagem de ativos e suas tipologias, em qualquer local, são fortemente influenciados pela economia, pelos mercados financeiros, e pelas políticas adotadas para combatê-los. Consequentemente, os métodos variam de lugar para lugar e ao longo do tempo.

Em relatório sobre a efetividade dos programas de PLD/CFT (Prevenção à Lavagem de Dinheiro e Combate ao Financimento do Terrorismo) o FMI apresenta as três chaves para a avaliação de risco – ameaça, vulnerabilidade e conseqüências – e suas aplicações à Lavagem de Dinheiro (LD) e Financimento do Terrorismo (. As normas internacionais de gestão de risco definem o risco como uma função da probabilidade de ocorrência e a conseqüência de eventos de risco, sendo a primeira uma função da coexistência de ameaça e vulnerabilidade. Em outras palavras, os eventos de risco ocorrem quando uma ameaça explora a vulnerabilidade. Formalmente, R, um nível de risco de LD de uma jurisdição, pode ser representado como: R = f [( T ), ( V )] x C, em que T representa “ameaça”, V representa “vulnerabilidade”, e C representa “consequência”. Assim, o nível de risco pode ser atenuado através da redução do tamanho das ameaças, vulnerabilidades, ou suas conseqüências. (FMI, 2011 pg. 64)

Quando se trata de LD, uma “ameaça” é em grande parte relacionada com a natureza e a escala da demanda potencial por LD, ou seja, o conjunto de ativos ilegalmente adquiridos que precisam ser lavados. Assim, a avaliação de risco de LD implica compreensão e geração de indicadores para os produtos do crime (POC) que são gerados ou trazidos para a jurisdição. (FMI, 2011 pg. 65)

A “Vulnerabilidade” na avaliação de risco LD ou FT engloba os produtos, serviços, canais de distribuição, bases de clientes, instituições, sistemas, estruturas e jurisdições (incluindo deficiências nos sistemas, controles ou medidas) que permitem LD ou abuso FT. Os indicadores de vulnerabilidade são numerosos, mas eles podem ser agrupados em categorias, tais como localização geográfica, serviços e produtos financeiros, os níveis de informalidade em vários setores, deficiências nos sistemas de PLD/CFT e da adequação dos controles de PLD/CFT existentes, os níveis gerais de corrupção, a eficácia das agências de aplicação da lei e do sistema de justiça criminal, e outras características da jurisdição que poderia facilitar sucesso da LD ou do FT. (FMI 2011 pg. 65-6)

As “Consequências” relacionam os resultados com a ocorrência dos eventos de risco. As consequências podem se relacionar com o custo, dano causado, ou com a significância dos resultados. De um ponto de vista, os processos de LD e FT geram dois tipos de consequências: em primeiro lugar, aqueles associados com a lavagem em si, e, em segundo lugar, os associados com o uso dos ativos, depois de terem sido lavadas com sucesso. (FMI, 2011 pg. 66)

De acordo com o Relatório do GAFI (Grupo de Ação Financeira, 2009), há uma ampla gama de fatores a incluir numa avaliação de risco para o setor de cassinos e dos jogos de azar: ambiente jurídico e regulamentar; as características da economia, bem como do próprio setor; estrutura de propriedade, integridade dos controles internos e governança corporativa das instituições de cassino/jogos, de intermediários e de negócios associados (promotores de junke, agentes, equipamentos de jogos, provedores de serviços financeiros); estrutura de propriedade ; tipos de produtos e serviços oferecidos e clientes atendidos; atividades criminosas e produtos do crime gerados domesticamente, bem como gerados no exterior, mas lavados a nível nacional.; serviços financeiros oferecidos pelas instituições de cassino/jogos e por seus intermediários. (Relatório do GAFI, 2009, p. 22)

Antes de permitir o seu funcionamento, a avaliação objetiva compreender:

– O escopo do setor de cassino: número, tipo, localização, propriedade, perfil de risco etc.

– Como os casinos são usados como intermediários financeiros.

– Casos de aplicação da lei/inteligência de como os casinos são usados para lavagem de dinheiro ou estão associados com delitos subjacentes (fraude, agiotagem etc).

– Tendências criminais ligadas aos cassinos. (Relatório do GAFI, 2009, página 23)

Os cassinos são, por definição, instituições não financeiras. Como parte de sua operação, os casinos oferecem apostas para entretenimento, mas também podem realizar várias atividades financeiras que são semelhantes às instituições financeiras, o que os coloca vulneráveis ao risco de lavagem de dinheiro. A maioria, se não todos, os cassinos realizam atividades financeiras semelhantes às instituições financeiras, incluindo: aceitar depósitos em conta; realizar troca de dinheiro; realizar transferências de dinheiro; realizar câmbio de moeda estrangeira; serviços de depósito de valores (ativos físicos); saques de cartões de débito, resgate de cheques; cofres; etc. Em muitos casos, estes serviços financeiros estão disponíveis 24 horas por dia. (Relatório do GAFI, 2009, p.25 e p. 36)

A função essencial de todos os reguladores de cassino é assegurar que o jogo seja conduzido honestamente ao aprovar as regras dos jogos e exigir dos operadores que forneçam um alto padrão de sistemas de vigilância e segurança. Isso garante a confiança do público no produto do jogo, minimiza as oportunidades de atividade criminosa e fornece certeza de fluxos de receita ao governo. A exploração de cassinos por criminosos ou via sua influência parece ser motivada tanto para lavagem de dinheiro, quanto para a recreação e em alguns casos para complementar seus empreendimentos criminosos fora do cassino. (Relatório do GAFI, 2009, p.26-7)

Todos os tipos de consequências têm direta ou indiretamente impactos financeiros, micro ou macroeconômicos, tanto no setor público quanto no privado. Portanto, é dever de todos colaborarem para a prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, visto que seus efeitos causam danos por toda a sociedade. Cabe salientar que as políticas de prevenção à lavagem de dinheiro existem não como um fim em si mesmo, mas como auxílio no combate à criminalidade. Tornar a equação do crime desfavorável aos criminosos, aumentando seus custos e a probabilidade de pegá-los, é a melhor maneira de combatê-los.

 

4 – O caso brasileiro: liberalização, regulamentação ou proibição?

De acordo com matéria publicada no sítio da ABRABINCS (http://www.abrabincs.com/#!blank/izdul) o tema há muito é controverso e mostra que os sucessivos governos demonstravam insegurança, mesmo quando favoráveis à legalização. A proibição de jogos de azar foi instituída no Governo de Eurico Gaspar Dutra através de Decreto-Lei n°. 9.215/46 que, em seu art. 1º, determinava a restauração, em todo o território nacional, da vigência do art. 50 e seus parágrafos da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei n°. 3.688/41 do Governo de Getúlio Vargas).

Em 1993 a Lei n° 8.672 com a finalidade de angariar recursos para serem utilizados no fomento da atividade desportiva, permitiu a exploração de sorteios da modalidade denominada “Bingo”. Nova redação foi dada pela Lei n° 9.615/98, revogando o instrumento anterior. Todavia, apesar da modernização das leis, os problemas continuaram.

Na própria exposição de motivos da Medida Provisória 168/2004 que proibia todas as modalidades de bingo e jogos “caça-níqueis” no Brasil – jogos também considerados de “azar” – constava como argumento para a proibição que “em torno desses estabelecimentos formou-se um círculo de sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e corrupção, a ponto de ameaçar a estabilidade institucional e gerando até mesmo reflexos nos investimentos econômicos”.

No Congresso, desde que o bingo foi proibido, deputados discutem propostas sobre o assunto. De 2004 até hoje, mais de dez projetos de lei foram criados em volta do tema, alguns a favor e outros contra a regulamentação dos jogos. Em 2011, todos eles foram unificados no PL 2.944/04, de autoria do deputado federal Valdemar Costa Neto (PR-SP), que determina a regulamentação dos jogos de bingo e das máquinas caça-níqueis no país. (BOECHAT, B. 2014)

Toda atividade econômica passa pelo “filtro” da liberalização, regulamentação ou proibição. O “filtro” que determinará se a atividade será totalmente livre, ou seja, se as relações entre ofertantes e demandantes não sofrerão qualquer intervenção estatal. Se não for o caso de liberalização total a atividade pode ser autorizada desde que respeite determinadas condições, isto é, regras para seu funcionamento que estabelecerá certos limites. No outro extremo à liberdade total está a sua proibição. O que determinará o destino da atividade econômica é o seu potencial de causar danos às partes envolvidas ou a terceiros. Como destacam Ragazzo e Ribeiro (2012):

 

Atividades que acreditamos gerar impactos negativos, que superem os possíveis benefícios (se houver), tendem a ser desestimuladas por meio de proibição. Isso se aplica a qualquer atividade que gere risco. Isso abre espaço para a implementação de uma cultura regulatória que leve a sério uma devida e criteriosa análise dos potenciais custos e benefícios associados a cada possível linha regulatória, para avaliar cada alternativa antes de se chegar a uma conclusão. (RAGAZZO e RIBEIRO, 2012, p. 629-630)

Em 2014 começou a tramitar no Senado Projeto de Lei n° 186 sobre o tema. De acordo com o projeto a justificativa para a legalização dos jogos pode ser sumarizada da seguinte forma.

 

“Em termos econômicos, além da geração (manutenção) de empregos e da maior circulação (formal) de riquezas, destacamos que a descriminalização dos jogos de azar terá como consequência o aumento das receitas públicas devido à tributação incidente sobre a atividade. Ademais, a proposição prevê a instituição, por lei complementar, de contribuição social que incidirá especificamente sobre os jogos de azar. Trata-se de criar nova fonte de custeio destinado a manter e expandir a seguridade social por meio da chamada competência residual tributária da União. Desse modo, a saúde, a previdência e a assistência social poderão contar com mais recursos, oriundos da nova atividade agora legalizada. Isso significa que, além de todos os tributos que já incidirão normalmente sobre os jogos de azar, haverá uma nova contribuição sobre a atividade, específica e exclusiva, e cuja arrecadação beneficiará um grande número de cidadãos brasileiros, em todo o País.” (PLS 186)

 

Arrecadação a qualquer custo? Melhor não.

O principal argumento para a legalização é o potencial de arrecadação de tributos, todavia existem muitas outras atividades que podem ser fomentadas com vistas ao aumento de arrecadação. É muito importante destacar que para fins de lavagem de dinheiro os criminosos estarão mais propensos a pagar tributos, pois a prioridade é reduzir a probabilidade de que as autoridades descubram a origem ilícita dos recursos. Os lavadores de dinheiro sabem que pagar impostos tende a acalmar os órgãos fiscalizadores e entendem que os tributos fazem parte inerente ao processo de reciclagem de ativos.

Os valores propagandeados na mídia como estimativas dos ganhos em termos de investimentos, arrecadação e geração de empregos aparentemente estão superestimados. Na realidade, há indícios de que se trata apenas de meros “chutes”. Em suas manifestações são citadas estimativas que variam entre R$ 20 bilhões e R$ 200 bilhões. Os defensores da legalização, quando indagados, esquivam-se e não apresentam estudos ou estimativas com o mínimo de metodologia. Oportunidades e tempo não faltaram, tendo em vista vários projetos de lei protocolados nas últimas décadas. Cabe também ponderar que juntamente com novas receitas virão novas despesas, que incluiriam, por exemplo, segurança, fiscalização e saúde pública, dentre outras, dependendo de quais modalidades de jogos serão regularizadas e como isso será feito. Não é perfeitamente claro se o impacto final no orçamento público vai ser positivo. (RAGAZZO e RIBEIRO, 2012, p. 628).

 

Não aposte na religião

O argumento de que os opositores à legalização dos casinos e jogos de azar no Brasil assim se posicionam por motivos religiosos não procede. Este argumento vem sendo repetido por décadas e todas as menções referem-se apenas a uma narrativa fantasiosa ou baseadas em boato datado da década de 1940. Porém o que temos de fato é que após seu banimento em 1946, nos curtos lapsos de tempo em que foi permitido algum tipo de jogo de azar, como por exemplo os bingos, sua relação com atividades criminosas foi instantânea. Isso levou a nova proibição muitas décadas após a não comprovada tese do tal “motivo religioso”. Ademais, se a religiosidade dos brasileiros fosse o motivo para a restrição dos jogos no Brasil, as loterias estatais não teriam tantos apostadores (que inclusive pedem aos deuses para serem agraciados com o prêmio). Aliás, o brasileiro não aposta, faz uma “fezinha”.

Quando se diz que o Brasil é o único país não muçulmano a proibir jogos de azar comete-se um grande equívoco. O relatório do GAFI, já citado, aponta numa lista não exaustiva de mais de 20 países onde os jogos não são permitidos, dentre eles, há vários não muçulmanos distribuídos pelos 5 continentes.

 

Cassinos lavam dinheiro pelo mundo afora

Mesmo dentre os países nos quais é permitido jogos de azar há que se diferenciar alguns aspectos, tais como:

  1. Permitido sem ser regulamentado
  2. Permitido com regulamentação, porém não menciona políticas de PLD-CFT
  3. Permitido com regulamentação que inclui políticas PLD-CFT
  4. Proibido

Outro aspecto importante é que há casos de lavagem de dinheiro através de casinos em muitos países (talvez todos) onde o jogo é permitido e regulamentado. Vejamos alguns casos.

Recentemente uma empresa alemã (Wirecard) lavou dinheiro para a máfia italiana num cassino em Malta, conforme matéria publicada no Financial Times[3].

Matéria publicada pela Bloomberg aborda caso de lavagem de dinheiro em Cingapura por meio de uma grande rede internacional de Cassinos, Las Vegas Sands Corp. O artigo também relata tratar-se de um contumaz reincidente[4].

O maior operador de cassinos na Austrália, The Crown, foi relacionado ao crime organizado, lavagem de dinheiro e concessão de vistos para grandes apostadores, fato que demonstrou falhas na supervisão e regulação daquele país, conforme notícias veiculadas[5].

Na França, o governo também esteve reticente em autorizar novos cassinos em Paris após a multiplicação de casos ligados a criminalidade, de acordo com o Le Parisien[6].

No Canadá uma série de reportagens investigativas da CBC News vem denunciando há mais de uma década suspeitas de lavagem de dinheiro nos cassinos[7].

Mesmo na China, onde os jogos de azar são proibidos (não consta que a China seja islâmica) pode-se encontrar fraudes para direcionar recursos para cassinos situados em outros países para fins de lavagem de dinheiro[8].

No Reino Unido reguladores dos jogos de azar estão aumentando as multas dos operadores que falham nas políticas de prevenção à lavagem dinheiro, incluindo grandes bookmakers como a Ladbrokes Coral, por exemplo. O dinheiro das multas está sendo direcionados para amenizar os danos causados pelos jogos[9]

Na Itália não há operação ou investigação contra as máfias que não contém pelo menos um capítulo dedicado à interferência criminosa na indústria de jogos e apostas. O jornal italiano Corriere dela Sera citou algumas das operações nas quais jogos de azar e máfia estavam envolvidas: Rischiatutto, Black Monkey, Clean Game, Criminal Games, Elite 12 Argo, Last Bet, Game Over.

Os EUA também não poderiam ficar de fora dos países aqui mencionados, tendo em vista que sempre são lembrados como exemplo de país onde o jogo é liberado e regulamentado. Por isso, é importante mostrar algum contraponto. Matéria publicada no Review Journal mostra caso no qual o FBI – Federal Bureau of Investigation indiciou 21 pessoas por lavagem de dinheiro num esquema que tinha como epicentro cassinos de Las Vegas[10].

A indústria de jogos dos EUA é um dos setores de negócios mais fortemente regulamentados e controlados em todo o mundo. Além das regulamentações estaduais de jogos abrangentes e rigorosas, a maioria das operações de jogos dos EUA também está sujeita aos requisitos federais de prevenção à lavagem de dinheiro (PLD). Desde 1985, os cassinos comerciais norteamericanos foram definidos como “instituições financeiras” pela Lei do Segredo Bancário (BSA – Bank Secret Act). De forma mais ampla, a BSA também exige que os cassinos formulem e implementem programas de prevenção à lavagem de dinheiro baseados em risco. (AGA-AML Best Practices Compliance 2019-2020, pp. 1-2)

Também corroboram com os argumentos pró-restrição, seja proibição ou liberalização regulamentada, da atividade de casinos no Brasil as estatísticas das unidades de inteligência financeira – UIF de vários países. Estes números mostram quantidade elevada e crescente de operações suspeitas reportadas na atividade de jogos de azar. No quadro abaixo foram selecionados 3 países de economias avançadas nos quais o jogo é permitido e regulamentado e o setor de jogos é obrigado a comunicar operações suspeitas à sua unidade de inteligência financeira para fins de combate à lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. Até mesmo nestes países o número de operações consideradas suspeitas e foram comunicadas pelos agentes do mercado à Unidade de Inteligência Financeira de cada país tem sido crescentes ano após ano.

Quantidade de Comunicações de operações suspeitas nos países selecionados

 

Turismo pode ser fomentado sem cassinos

Outro argumento em defesa da legalização é o fomento ao turismo com a possibilidade de atração de investimentos estrangeiros e consequente geração de empregos. Embora tenha fundamento deve-se considerar que o setor de turismo pode ser estimulado por muitas outras medidas, por exemplo, investimentos em infraestrutura que possuem efeito multiplicador muito maior, maior capacidade de atrair investimentos e de estímulo a outros setores da economia, maiores benefícios a toda a sociedade e geração de mais postos de trabalho. Como já mencionado na introdução deste trabalho, muitas atividades que movimentam grandes somas não são legalizadas por serem consideradas nocivas, mesmo que resultassem em elevação expressiva da arrecadação e geração de empregos. Ademais, a atividade econômica “jogos de azar” não é essencial e, portanto, a ausência de sua oferta no território nacional nada afeta o bem-estar social dos brasileiros.

 

Livre iniciativa sim, criminalidade não

O argumento de que o Brasil estaria impedindo a livre iniciativa cai por terra quando comparamos com Israel onde os jogos de azar também são proibidos. O Brasil ocupa a 144ª posição (entre 180 países) no índice de liberdade econômica (https://www.heritage.org/index/ranking) de 2020, situando-se no grupo de países majoritariamente não-livres, enquanto Israel ocupa a 26ª posição no grupo de países majoritariamente livres. Ou seja, mesmo num país com muita liberdade econômica a exploração de jogos de azar é vista como atividade cujo custo-benefício é negativo, ou no mínimo duvidoso, dados seus riscos inerentes. Com este exemplo também evapora o argumento de que somente países muçulmanos proíbem jogos de azar.

 

Já temos jogos, para que mais?

O argumento de que já existem outras loterias também deve ser relativizado, visto que são estatais. Outrossim, pode-se contra argumentar dizendo que por já existir jogos legalizados não seriam necessários outros tipos para atender à demanda. Vale ressaltar que novas loterias têm sido criadas e nem por isso a atividade ilegal foi reduzida, isso leva a crer que não há garantia de que a legalização atraísse todos para a economia formal. O fato de as loterias estarem sob controle estatal no Brasil, no que tange à lavagem de dinheiro, acrescenta uma barreira a mais visto que seria necessário haver a participação de servidores públicos em conluio com os criminosos. Ou seja, aumentaria os custos, mais um crime e o risco de ser pego. Não impede, mas dificulta.

 

Lucros privados, danos socializados

Outros dois argumentos é de que na maioria dos países os jogos são legalizados e que em outras atividades legalizadas há sonegação e lavagem de dinheiro. Nestes dois pontos convergimos para a questão chave do artigo, qual seja, o custo-benefício. Talvez as externalidades negativas sejam toleradas devido ao elevado benefício gerado para aquela economia em comparação aos custos. É uma hipótese. Outras hipóteses são o interesse de governos nas atividades criminosas, o grande poder de grupos de interesses, pode também não ter sido feita uma análise criteriosa dos possíveis danos à sociedade, entre outras. Se nem estimativas minimamente confiáveis dos ganhos seus defensores conseguiram apresentar em décadas, o que dizer de estimativas dos custos?

Por fim, o argumento de que produtos como fumo e bebidas alcoólicas são legalizados e arrecadam um enorme volume de recursos introduzem no debate um tema de extrema importância quanto ao impacto regulatório que é o dano causado e quem é a vítima. Nos casos de fumo e bebidas alcoólicas a regulamentação evoluiu no sentido de limitar o dano ao próprio agente – fumante ou bebedor. Além disso, nos casos em que o agente causar danos a terceiros, a vítima é facilmente identificada e pode ser indenizada. Quando se trata da lavagem de dinheiro através dos jogos de azar a vítima não é identificada, pois é a sociedade como um todo. Em situações como essa o recomendado é que o ônus da prevenção recaia sobre o fornecedor do produto ou serviço que está sendo utilizado para tal finalidade. RAGAZZO e RIBEIRO (2012, p. 631-3) categorizam os custos associados aos jogos em quatro grupos: crimes, doenças, falência pessoal e aspectos produtivos.

 

Seleção Adversa e regulamentação excludente

Um possível problema quando a regulamentação aumenta excessivamente os custos de sua observância é inibir o ingresso no setor de agentes honestos, promovendo uma seleção adversa. Ou seja, só são atraídos para o setor os agentes que desejam utilizar a atividade para encobertar ganhos ilícitos. Sempre que observamos a substituição dos agentes ou produtos ótimos pelos de menor qualidade em razão de uma falha de mercado (é o que ocorre com a lavagem de dinheiro) estamos diante da seleção adversa, usualmente causada pela assimetria de informação (AKERLOF, 1970).

Caso o Congresso Brasileiro opte por legalizar os jogos de azar novamente, o passo seguinte seria definir o grau de regulamentação que será aplicada ao setor. Seria importante a regulamentação considerar as características de cada jogo, tendo em mente seus eventuais problemas particulares e suas intensidades para elaborar um conjunto de normas específicas e eficazes na mitigação de possíveis danos, seja para os apostadores, seja para o funcionamento da economia, seja quanto os impactos criminais etc. A regulação é necessária para se corrigir os efeitos negativos decorrentes de falhas de mercado, como no caso de assimetria de informação entre o ofertante do jogo e o jogador.

 

Legalização como “Cavalo de Tróia”

A ideia de ver a legalização dos jogos de azar como “cavalo de Troia” remete à possibilidade de posteriormente à aprovação da liberalização abrirem-se brechas para a permissão de procedimentos mais arriscados, assim como incrementar o risco de contágio. O contágio ocorreria quando as casas de jogos fossem utilizadas para reciclar recursos de origem criminosa, causando um choque nos setores da cadeia produtiva.

A partir do momento em que se permite a inserção e manutenção de um fluxo de recursos originários do crime em setores produtivos legítimos torna-se mais difícil combater o crime antecedente. Além disso, o possível choque positivo inicial sobre emprego e renda causado pelo investimento em busca da ocultação de sua origem torna medidas de combate ao crime impopulares, visto que podem gerar desemprego e redução da atividade nos setores envolvidos quando repreendidos. Um dos setores mais preocupantes é o setor financeiro devido ao seu papel como alocador de recursos e inerente ramificação por toda a economia.

 

5- Considerações Finais

No artigo defendeu-se uma regulamentação bastante pormenorizada e específica para o setor, a fim de minimizar os riscos e reduzir sua vulnerabilidade. Todavia, não se pode negligenciar que uma regulamentação extremamente rígida normalmente eleva os custos de sua observância tanto para os agentes privados que operarão o negócio, quanto para os agentes públicos que fiscalizarão e punirão os desvios de conduta, quando houver. Há a possibilidade de que os custos da adoção de medidas de aderência inviabilizem alguns investimentos privados ou que os custos para o Erário anulem os benefícios do incremento da atividade econômica.

É importante esclarecer que caso o Brasil opte por permitir os jogos de azar novamente em seu território, especial atenção deve ser dada às vulnerabilidades do setor de ser utilizado por organizações criminosas para fins de lavagem de dinheiro e suas consequências socioeconômicas.

 

Referências

AKERLOF, George A. The Market for “Lemons”: Quality Uncertainty and the Market Mechanism. The Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, 1970.

BECKER, G. Crime and punishment: an economic approach. Journal of Political Economy. Vol. 76, 1968, pp. 175-209.

FATF/GAFI. Vulnerabilities of Casinos and Gaming Sector (March 2009). Available at http://www.fatf-gafi.org/media/fatf/documents/reports/Vulnerabilities%20of%20Casinos%20and%20Gaming%20Sector.pdf access in May 2016

IMF. Anti-Money Laundering and Combating the Financing of Terrorism (PLD/CFT) – Report on the review of the effectiveness of the program. Work Paper. May 2011.

RAGAZZO, C. E. J. e RIBEIRO, G. S. S. de A. O Dobro ou Nada: a regulação de jogos de azar. Revista Direito GV, São Paulo, B(2) p. 625-650, jul-dez 2012.

[1] Recomendo a leitura do relatório do FATF (Financial Action Task Force) sobre a vulnerabilidades do setor de jogos de azar no qual são expostos com detalhes diversos casos, tipologias e estruturas normativas em diferentes países.

[2] Junket é um grupo de jogadores que viajam para locais onde há cassinos, em outras palavras, excursão com a finalidade de apostas em casas de jogos.

[3] https://www.ft.com/content/b3eb9a37-ed8a-4218-9064-685b181740f0

[4] https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-06-04/adelson-s-singapore-casino-probed-over-money-laundering-controls

[5] https://theconversation.com/the-crown-allegations-show-the-repeated-failures-of-our-gambling-regulators-121173

[6] https://www.leparisien.fr/faits-divers/paris-renoue-avec-les-jeux-d-argent-25-04-2018-7683810.php

[7] https://www.cbc.ca/news/canada/british-columbia/organized-crime-money-laundering-vancouver-casinos-1.4158902

[8] https://www.scmp.com/abacus/culture/article/3100107/e-commerce-schemes-involving-empty-boxes-qr-codes-and-fake-tracking

[9] . https://www.caseware.com/alessa/blog/uk-gambling-watchdog-casino-fines/

[10] https://www.reviewjournal.com/crime/courts/21-charged-in-casino-based-money-laundering-scheme/ acesso em 12 de outubro de 2020.

 

 

Mauro Salvo é doutor em Economia e analista do Banco Central do Brasil

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O combate à lavagem de dinheiro no Brasil: muito já foi feito, muito ainda por fazer https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3317&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-combate-a-lavagem-de-dinheiro-no-brasil-muito-ja-foi-feito-muito-ainda-por-fazer Mon, 31 Aug 2020 17:34:51 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3317 O que é lavagem de dinheiro

 

A lavagem de dinheiro, como é popularmente conhecida a reciclagem de ativos, existe como forma de tentar distanciar o dinheiro obtido de maneira criminosa e assim garantir que o delinquente o utilize com risco reduzido de ser descoberto e punido. Para distanciar o dinheiro de sua origem ilícita, o lavador de dinheiro tentará dissimular a origem desses recursos e ocultar o seu real beneficiário. Faz isso realizando transações comerciais e/ou financeiras que altera a forma e as características do valor original. Quanto maior o número de transações que fizer com esta finalidade mais distante estará da origem, dificultando o trabalho de rastreamento por parte das autoridades de fiscalização e investigação, o chamado “follow the money/siga o caminho do dinheiro”.

 

A Lei que trata do tema é a nº 9.613/98 com algumas alterações desde então. Esta Lei define “lavagem de dinheiro” como o ato de ocultar ou dissimular, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores proveniente, direta ou indiretamente, de infração penal. Tendo em vista tal definição, considero mais apropriado a utilização do termo “reciclagem de ativos” em vez de “lavagem de dinheiro”. Prefiro a palavra reciclagem em vez de lavagem porque remete a um processo que muda as características do objeto, porém a origem continua a mesma. O objeto não é lavado, mas sim reciclado. Adicionalmente, prefiro a palavra ativo em vez de dinheiro porque refere-se a qualquer ativo e não apenas ao dinheiro efetivo (cash). Durante a reciclagem o ativo pode assumir a forma de dinheiro vivo, imóvel, aplicação financeira, obra de arte, serviços, bens de luxo, jóias etc.

 

Vale destacar que o lavador de dinheiro pode ser o próprio delinquente que cometeu o crime gerador dos recursos ilícitos, por exemplo, um traficante de drogas, mas também pode ser alguém especializado em realizar operações de reciclagem dos ativos, como por exemplo uma instituição financeira que orienta e facilita as transações de distanciamento do dinheiro oriundo do tráfico de drogas.

 

A lógica do sistema de prevenção e combate

 

Embora a reciclagem de ativos possa ser feita em qualquer setor econômico, há alguns que são mais visados por serem vistos como mais adequados para atingir os fins propostos pelos criminosos. Por isso, a Lei estabelece setores e profissionais obrigados às exigências da referida Lei. Resumidamente, estas obrigações seriam adotar políticas de detectar transações atípicas que pudessem servir para ocultar ou dissimular recursos obtidos por atividade criminosa e, em consequência desta avaliação de atipicidade, efetuar a comunicação do fato à Unidade de Inteligência Financeira, no caso do Brasil é o COAF – Conselho de Controle da Atividade Financeira.

 

Embora qualquer setor de atividade possa ser utilizado para ocultação e dissimulação de recursos de origem criminosa, os lavadores de dinheiro preferem aqueles com falhas na tríade regulação, monitoramento/vigilância e punição, como:

a) algum grau de informalidade;

b) preços que podem flutuar significativamente;

c) regulamentos inexistentes ou fracos;

d) vigilância inexistente ou fraca;

e) dificuldade p/ avaliar preço e/ou qualidade dos bens comercializados;

f) punições raras

g) dificuldade de rastreamento

 

De posse de centenas de milhares de comunicações de transações atípicas o COAF irá agrupá-las, analisá-las e quando for o caso elaborar um RIF – Relatório de Inteligência Financeira. Este relatório será destinado a órgãos competentes destinados à investigação criminal, por exemplo, Ministério Público e Departamento de Polícia Federal, entre outros. Após investigação poderá haver pedido de indiciamento à Justiça ou não.

 

A evolução das políticas de prevenção

 

O combate à lavagem de dinheiro de maneira mais organizada iniciou-se em 1989 com a criação do Grupo de Ação Financeira (GAFI, ou FATF, sigla em inglês para Financial Action Task Force). A iniciativa partiu do G-7, grupo dos 7 países mais ricos do mundo, tendo em vista a percepção de que somente seria possível enfrentar este tipo de crime se houvesse um esforço global coordenado. O GAFI é um organismo internacional que conta com a colaboração de diversos países-membros e tem como função estudar o problema da lavagem de dinheiro e do financiamento do terrorismo no mundo para assim definir recomendações do que se entende como as melhores práticas para o combate.

 

Atualmente são 40 recomendações as quais os países signatários se comprometem a implementar em suas respectivas jurisdições. Os países ao assumirem tal compromisso ficam sujeitos à avaliação periódica por parte de equipe de técnicos do GAFI que atribuirão o nível de aderência da jurisdição às suas recomendações. A cada recomendação é atribuída um conceito que pode ser totalmente aderente, muito aderente, parcialmente aderente e não aderente. Caso a jurisdição avaliada obtenha muitos conceitos insatisfatórios poderá passar a compor uma lista de países com graves deficiências em suas políticas de prevenção à lavagem de dinheiro e ao combate do financiamento do terrorismo. Ser incluído nesta lista pode ser muito prejudicial para o país, porque acarretará dificuldades para realizar negócios com o resto do mundo e isso provavelmente trará impactos para a economia local.

 

Considera-se essencial que haja cooperação internacional para o efetivo combate à lavagem de dinheiro, por isso diversos organismos internacionais incluíram em suas recomendações o alinhamento com as políticas do GAFI. Também é muito importante que todas as jurisdições estejam niveladas do ponto de vista de aderência e efetividade de implementação. E, por fim, mas não menos importante, é que tanto as autoridades nacionais quanto o setor privado de cada jurisdição também estejam empenhados na luta contra o crime. Portanto, cooperação é a palavra-chave em todo esse processo.

 

Nota-se que há uma crescente aproximação textual das normas internacionais no campo repressivo. Além disto, a Lei Anti Lavagem de Dinheiro, no âmbito interno, continua a sua trajetória produtora de reflexos paralelos, que se somam à lenta, silenciosa e abrangente difusão de sua vertente normativa multidisciplinar. Embora o problema da lavagem de dinheiro seja global, não necessariamente haverá transferência de valores interfronteiras, podendo o processo de reciclagem de ativos acontecer sem mesmo extrapolar os limites territoriais do município. 

 

Sobretudo no campo das medidas preventivas, notadamente em áreas vinculadas ao domínio do poder econômico, incorpora-se, a cada ano, um novo conjunto de normas baixadas por meio de portarias, circulares, instruções etc, expedidas por órgãos reguladores incumbidos de fiscalizar a legalidade e o regular funcionamento das operações realizadas pelos entes que compõem os sistemas econômico e financeiro em atividade no País. 

 

Avaliação de uma jurisdição

 

Atualmente o GAFI está realizando a quarta rodada global de avaliações. Vários países já foram avaliados nesta rodada, porém o Brasil somente será avaliado em 2021. A última avaliação a que o Brasil foi submetido foi em 2010. Naquela oportunidade fomos relativamente bem avaliados, embora tivessem havido muitos apontamentos para melhorias em nossas políticas. Desde então, o Brasil implementou várias melhorias com vistas a suprir as falhas apontadas. Por outro lado, em 2012 houve alterações nas 40 recomendações que comporão a avaliação da quarta rodada e teremos que estar em conformidade com as novas proposições. 

 

Esta nova rodada de avaliação das jurisdições entre outras novidades traz o conceito e o método da Abordagem Baseada em Risco (ABR) que envolve uma avaliação nacional de risco elaborada pelas autoridades de cada país e também uma avaliação de risco de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo individual elaborada por cada entidade obrigada pela Lei 9.613/98. Na avaliação nacional de risco serão consideradas, em forma de matriz, o grau de risco multiplicado pelo seu impacto. Ou seja, cada jurisdição e agentes do setor privado obrigados irão avaliar sua exposição aos mais diversos crimes econômicos, estimar suas magnitudes e eventual dano em caso de ocorrência. No caso das pessoas obrigadas, tomemos como exemplo um banco (tendo em mente que as exigências são similares a todos os setores, ponderando seus respectivos volumes e complexidade das operações), esses terão que classificar o risco de cada cliente pessoa física e jurídica, produtos e serviços que operam com o banco, setor de atividade, volume transacionado etc. Além disso, o referido banco terá que avaliar seu risco como um todo, considerando o mercado que está inserido, o perfil geral de seus clientes, volumes transacionados e produtos ofertados. O conjunto da interação entre riscos diversos direcionará o nível de diligência e medidas de mitigação observado através de cada matriz de risco.

 

Avaliando a efetividade das políticas de prevenção

 

No momento, quando fala-se em lavagem de dinheiro, tem-se que levar em conta a efetividade das políticas de prevenção e combate, ou seja, o quanto a aderência às recomendações das melhores práticas realmente resulta em dissuasão, detecção e punição. Isso porque escândalos recentes em jurisdições avaliadas com alto grau de aderência evidenciaram não bastar ter ferramentas sofisticadas, leis, normas e treinamento dos recursos humanos se os controles internos e cooperação não forem capazes de impedir que criminosos consigam fazer uso dos recursos obtidos ilicitamente. 

 

Na próxima avaliação será considerado como o Brasil evoluiu em relação à aderência às recomendações do GAFI. Desde a última avaliação em 2010, na qual já haviam sido apontadas deficiências, houve, em 2012, atualização das recomendações. Isso implica nosso compromisso em atender às falhas apontadas e adicionalmente aplicar a nova versão. A grande novidade desta rodada de avaliações está sendo verificar a efetividade em aderir às políticas de luta contra a lavagem de dinheiro. 

 

Essa nova metodologia tem sido útil para evidenciar que não basta apenas atender ao regulamento. Mostra que a prevenção e o combate à lavagem de dinheiro envolve inteligência na busca da informação negada, processando e cruzando dados para levantar indícios e, através da troca de informações e cooperação, dar robustez às suspeitas até tornarem-se evidências. Em posse de evidências, dar prosseguimento ao devido processo e aplicação de punição dissuasiva.

 

Dificuldades para a prevenção à lavagem de dinheiro no Brasil

 

A lavagem de dinheiro ocorre porque há crimes econômicos e vivemos um momento de aumento deste tipo de crime. Associado a isso, a estrutura institucional brasileira produziu um ambiente favorável ao cometimento de delitos. Institucionalizamos a tolerância ao crime, que resulta em combate fraco, leis com pouca força e punição branda. Em suma, muitas oportunidades para atos delituosos com retorno financeiro satisfatório, probabilidade baixa de que o criminoso seja descoberto e, quando ocorre, a punição é relativamente branda em relação ao dano causado, levando a um ambiente no qual o crime compensa.

 

É frequente a reclamação do setor privado com receio de sofrer punições duras e injustas por parte dos órgãos fiscalizadores. Entretanto, tal receio não encontra lastro na realidade. O que observa-se de fato são poucas e brandas punições. Arrisco-me dizer que se há alguma injustiça esta seria por falta de punição e não o contrário. Em mais de 20 anos de vigor da Lei 9.613/98 não houve registro de sua aplicação inadequada no quadrante do exagero. E, obviamente, não estou incluindo neste cálculo a parcela de dinheiro sujo provavelmente não descoberta, ainda oculta.

 

Uma característica tipicamente brasileira é a defesa incondicional de criminosos em detrimento das perdas das vítimas. É um traço cultural da maioria dos operadores do direito (advogados, juízes e professores das faculdades de direito no país). Não estou defendendo que acusados sejam sumariamente condenados e punidos, longe disso. Porém, não só as leis, mas também todos os trâmites administrativos e legais favorecem o criminoso. A cultura “garantista”, no intuito de resguardar direitos dos acusados, o faz sobre os direitos das vítimas. A confusão é tão grande que muitas vezes o criminoso é tratado como se vítima fosse, reforçando o ambiente confortável aos delinquentes. Esta situação é ainda mais evidente quando refere-se de crime de colarinho branco muito frequente quando tratamos de lavagem de dinheiro. Há uma espécie de “peninha” do criminoso quando sua figura é de alguém “limpinho” e que frequenta os ambientes mais sofisticados da sociedade. Porém, do ponto de vista da teoria econômica do crime, a elegância do crime não o torna menos danoso, em muitos casos deveria até ser um agravante.

 

Outro aspecto a destacar é que muitas autoridades públicas e grande parte do setor privado enxerga a tarefa de prevenção à lavagem de dinheiro desimportante. Este sentimento pode derivar da negação em tratar um problema sem o devido preparo técnico e/ou falta de conhecimento sobre como a lavagem de dinheiro e o crime podem estar mais próximos de suas vidas do que se imagina. Há também a dificuldade de percepção do dano que pode causar, tendo em vista que o dano causado é difuso, ou seja recai sobre a sociedade e não diretamente em uma vítima específica.

 

Diretamente relacionado com o aspecto anterior há a pouca disposição em incorporar novos custos à operação da atividade principal dos negócios. Seus gestores julgam os custos de prevenção desnecessários e uma imposição burocrática. Todavia, os programas de prevenção à lavagem de dinheiro têm a função primordial de dissuadir eventuais criminosos de utilizarem estruturais legais com o intuito de dissimular a origem ilícita de seus recursos.

 

Cooperação e comprometimento de todos com a luta

 

Quando os setores obrigados não estão comprometidos com o melhor funcionamento do próprio mercado em que atuam de forma a evitar ao máximo que delinquentes mesclem suas transações fraudulentas com negócios lícitos, o conjunto da sociedade perde. Não possuir procedimentos e ferramentas adequadas para detecção de transações atípicas, devido à pouca importância que atribui à probabilidade de ver seu negócio envolvido com este tipo de crime, terá como consequência a falta de comunicações ao Conselho de Controle da Atividade Financeira – COAF ou comunicações falhas que pouco ou nada ajudarão a alcançar os agentes criminosos. Destacando que são as comunicações bem feitas que aumentam a probabilidade de que os criminosos sejam descobertos e punidos.

 

O pouco comprometimento com a qualidade das comunicações ao COAF enfraquece a principal arma de detecção do crime de lavagem de dinheiro que é a cooperação, tanto entre as nações como entre os agentes públicos nacionais e setor privado. Sem a cooperação haverá “arbitragem jurisdicional”. Além disso, empresas que não tomam as devidas diligências na mitigação do risco de que criminosos registrem transações com o intuito de ocultar a origem ilícita dos recursos, podem obter vantagens concorrenciais, prejudicando o mercado no qual atua.

 

Reputação e dissuasão

 

Todo o combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo parte do pressuposto que os setores obrigados por Lei a constituírem controles internos e comunicarem transações atípicas à Unidade de Inteligência Financeira atuarão sempre com o intuito de cooperar na mitigação do risco da ocorrência do crime de reciclagem de ativos e, por consequência, na inibição dos crimes que originaram os recursos ilicitamente. Baseado nessa premissa, creem as autoridades que somente poderia ocorrer lavagem de dinheiro se houver falhas na aplicação das recomendações de melhores práticas. Todavia, o que muito frequentemente se observa é que os motivos que levam às falhas nos controles internos não derivam de imprudência, imperícia ou negligência, mas sim de conluio. Este tipo de comportamento ficou conhecido como “cegueira deliberada”, quando o agente, de modo deliberado, se coloca em situação de ignorância, criando obstáculos, de forma consciente e voluntária, para alcançar um maior grau de certeza acerca da potencial ilicitude de sua conduta.

 

A teoria da cegueira deliberada pode explicar muito da falta de efetividade no combate à reciclagem de ativos. Muitas autoridades, acreditando que os setores obrigados seriam cooperantes, atribuem ao risco de reputação um elevado e teórico poder dissuasivo que na prática não se observa. A pergunta que cabe então seria: “quão dissuasivo seria o risco reputacional?”. Quanto vale a reputação de uma empresa obrigada vis-à-vis as potenciais receitas pagas por organizações criminosas para utilizá-la a fim de ocultação e dissimulação? Aparentemente, mesmo que haja alguma perda reputacional, prestar serviços de reciclagem de ativos para criminosos compensa. Os custos operacionais e eventuais multas e demais punições poderiam estar sendo cobertas pelas receitas da atividade delituosa e ainda apresentar retorno líquido positivo. Esta equação é mais facilmente calculada (ou intuída) pelos criminosos e seus comparsas do que pelas autoridades de regulação e fiscalização, dada a assimetria de informação a favor dos delinquentes.

 

O que esperar do futuro

 

Desde a Lei 9.613/98 o combate à reciclagem de ativos passou por algumas fases. A primeira delas foi a fase da sensibilização dos setores e profissionais obrigados quanto à relevância do problema. Na época havia muito mais resistência do que há hoje. A fase seguinte constituiu-se em elaborar controles internos e aderir às exigências legais, que também enfrentou muito resistência. A terceira fase veio com o advento da Operação Lava Jato, que evidenciou os riscos, impulsionou a sensibilização e a necessidade de controles internos. Depois da Lava Jato as menções à lavagem de dinheiro são diárias nas mídias tradicionais e redes sociais. No atual momento passamos pela fase dos controles efetivos e de fazer valer a lei, custe o que custar. Infelizmente ainda nos deparamos com resistências, por isso espero que o relatório final da avaliação do GAFI nos ajude a reduzir a oposição a práticas mais efetivas de combate aos crimes econômicos e às organizações criminosas. Talvez as pressões externas ajudem-nos a implementar políticas que tornem a economia brasileira um ambiente inóspito aos criminosos.

 

 

Mauro Salvo é doutor em Economia, pesquisador na área de economia do crime, lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. Analista do Banco Central do Brasil.

 

 

As contribuições deste artigo expressam tão somente as posições do autor, e não representam posicionamento da instituição onde trabalha ou de seus membros.

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