Maílson da Nóbrega – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 31 May 2021 15:10:46 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Uma boa reforma tributária ficou mais distante https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3452&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=uma-boa-reforma-tributaria-ficou-mais-distante https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3452#comments Mon, 31 May 2021 15:07:41 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3452 Uma boa reforma tributária ficou mais distante

 

Presidente da Câmara atuou como o juiz que apita o fim do jogo no meio da partida…

 

Por Maílson da Nóbrega*

O término da Comissão Especial da PEC 45 na Câmara dos Deputados, decidida por seu presidente, Arthur Lira, foi um duro golpe nas esperanças de dotar o País de um moderno sistema de tributação do consumo. Havia fundadas expectativas de aprovação daquela proposta de emenda à Constituição, que previa a criação de um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), nos moldes do que há de melhor entre os mais de 180 países que adotam o método.

A PEC 45, baseada em estudos do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), poderia superar as dificuldades enfrentadas por iniciativas semelhantes nos últimos 20 anos. De um lado, estribava-se no melhor dos projetos, cujo texto se beneficiou da experiência acadêmica, internacional e de governo de seus autores. De outro, obteve adesão unânime dos Estados, que antes se opunham a ideias de reforma da tributação do consumo para não perderem o comando do ICMS, usado para atrair investimentos via incentivos fiscais.

Houve amplo apoio de formadores de opinião e da imprensa à PEC 45. Ela sofreu, é certo, críticas de tributaristas apegados excessivamente a aspectos formais e à equivocada ideia de prejuízo à autonomia de estados e municípios. Ao mesmo tempo, estudos indicaram que a reforma contribuiria para elevar em 20% a taxa de crescimento do produto interno bruto (PIB). Estimular-se-ia o abandono da guerra fiscal e a adoção de novas formas de atrair investimentos, na linha de práticas bem-sucedidas em outros países.

O presidente da Câmara preferiu aliar-se à estratégia do Ministério da Economia, que nunca demonstrou simpatia pela PEC 45. Inventou-se a ideia de reforma “fatiada”, que supostamente facilitaria a aprovação. O sistema tributário reclama mudanças nas suas demais partes: no Imposto de Renda, para restaurar a progressividade; no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), para modernizá-lo (seu conceito nasceu há 60 anos); na tributação de heranças e doações, para torná-la progressiva. Pode-se falar em etapas, e não em “fatiamento”.

O caótico sistema tributário é hoje a principal fonte de ineficiências da economia. Inibe ganhos de produtividade. Freia a expansão do PIB e a geração de emprego e renda. A essência do desastre é a tributação do consumo e suas cinco confusas incidências: IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS. A mais irracional de todas é o ICMS, impregnado de incontáveis regimes e inúmeras alíquotas.

Esperava-se que o governo federal se envolvesse na tramitação da PEC 45, que criava o Imposto sobre Bens e Serviços e substituía as cinco incidências, incluído o ICMS. A liderança da União e sua capacidade de coordenação podiam melhorar seu conteúdo, fortalecendo as condições para sua aprovação. Optou-se, todavia, por uma solução tímida e insuficiente – a fusão do PIS e da Cofins – que pode duplicar a tributação das telecomunicações e enfrentar a oposição das áreas de serviços e de venda de livros. Parte dessa resistência também existe na PEC 45, mas, já que haveria consumo de capital político, o razoável seria apoiar a PEC 45, e não buscar solução pouco ambiciosa.

Para piorar, o Ministério da Economia cogita de recriar a CPMF com outro nome, associada à elevação do emprego. A ideia incorre em dois erros. Primeiro, reintroduz incidência tributária em cascata, de efeitos negativos na intermediação financeira e na produtividade. Em segundo lugar, a literatura indica que medidas como essa aumentam a renda para os trabalhadores, e não postos de trabalho. Adicionalmente, a nossa experiência prova que tributos fáceis de arrecadar, como a CPMF, terminam sendo a válvula para momentos de dificuldades fiscais. A correspondente elevação da alíquota tende a ser frequente, elevando os danos à economia e à sociedade.

O presidente da Câmara atuou como o juiz de futebol que apita o fim do jogo no meio da partida e pede a bola para se juntar a outro time, de qualidade inferior. Com a opção pelo adversário, dificilmente ganhará o campeonato. Pior, a decisão ocorreu quando o relatório era lido pelo deputado Aguinaldo Ribeiro, relator da PEC 45. Ele havia sido instado a tanto pelo próprio Arthur Lira. Inacreditável. O deputado, que se dedicara por quase dois anos à missão, produziu um bom documento.

O texto contém saídas para contemplar distintas demandas, incluídas as do setor de serviços. Cria um oportuno imposto seletivo para lidar com externalidades como as decorrentes da poluição e do consumo de fumo e de bebidas alcoólicas. O próprio governo ganharia tempo para discutir a constituição do Fundo de Desenvolvimento Regional, demandado pelos Estados para manter a capacidade de atrair investimentos, sem os defeitos da guerra fiscal.

A extinta comissão, não prevista em regimento, pretende continuar seu trabalho, acolher emendas ao relatório e apresentar a versão final em breve. O exame da matéria pode continuar no Senado, mas com menos força. Além disso, o timing da reforma foi perdido. Agora é torcer para que a PEC 45 renasça no próximo governo. O custo do adiamento será enorme. 

 

*Maílson da Nóbrega é sócio da Tendências Consultoria, foi ministro da Fazenda  e é membro do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial

Artigo publicado em O Estado de S. Paulo dia 30 de maio de 2021.

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As quatro reformas tributárias https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3290&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=as-quatro-reformas-tributarias Mon, 03 Aug 2020 18:00:54 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3290 Se aprovada a PEC 45, haverá crescimento da produtividade e do potencial da economia

*Texto originalmente publicado em O Estado de S. Paulo e aqui reproduzido com autorização do autor.

Sob o nome genérico “reforma tributária”, discutem-se atualmente quatro distintas propostas para reformar o caótico, regressivo e injusto sistema tributário brasileiro. São elas:

1) A reforma da tributação do consumo configurada nas Propostas de Emenda Constitucional (PECs) 45 (Câmara dos Deputados) e 110 (Senado), que criam um imposto sobre o valor agregado (IVA), denominado Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). O método é adotado por mais de 160 países. 2) A criação de um IVA federal mediante a fusão e simplificação do PIS e da Cofins. 3) A proposta do Ministério da Economia para recriar um tributo nos moldes da CPMF, associado à desoneração das contribuições sobre a folha de salários e ao aumento do emprego. 4) E a proposta do Ministério da Economia para melhorar a equidade do sistema tributário, reduzindo privilégios e aumentando a progressividade do Imposto de Renda.

 

A mais relevante de todas é a primeira, por atacar a principal fonte de ineficiências da economia. Prevê a unificação de cinco tributos, três federais (IPI, PIS e Cofins), um estadual (ICMS) e um municipal (ISS). Entre as suas principais características estão a alíquota única, a proibição de seu uso como incentivo fiscal (eliminando a guerra fiscal), a completa desoneração nas exportações e a devolução, em espécie, do IBS incidente no consumo dos segmentos menos favorecidos. A PEC 45, a melhor, baseia-se em projeto preparado pelo Centro de Cidadania Fiscal, sob liderança do economista Bernard Appy.

 

A PEC 45 conta com o apoio inédito e unânime dos secretários de Fazenda estaduais, convencidos das disfunções do ICMS. A questão federativa em tentativas de reforma anteriores constituía ponto de veto. Assim, a proposta tem viabilidade de aprovação, mesmo diante dos desafios políticos.

A PEC 45 e a fusão do PIS e da Cofins, têm forte oposição da área de serviços, hoje subtributados pelo ISS, pois aumentarão a carga tributária em segmentos como os de educação, saúde, lazer e turismo, consumidos pelas classes de maior renda. Os pobres não costumam ter acesso a tais serviços, o que agrava a regressividade da tributação do consumo no Brasil. A coalização contrária à reforma é politicamente poderosa e tem contado com a simpatia da imprensa. Isso poderá levar à solução de compromisso de admitir duas alíquotas, uma para bens e outra, menor, para serviços. Há precedentes mundiais de mais de uma alíquota em IVAs.

 

A segunda reforma é modesta em seus efeitos, mas tem vantagens, principalmente a de engajar o governo federal no processo. O IVA dual (governo central e governos subnacionais) existe em outros países, mas a PEC 45 é melhor por ser mais ampla e completa. É provável que a proposta seja incorporada nessa PEC.

 

A terceira reforma tem conhecidos defeitos, a saber: 1) trata-se de tributo disfuncional, em cascata, o que provoca ineficiências e reduz a competitividade dos produtos exportáveis. 2) Torná-la permanente é muito perigoso. Tributos de fácil arrecadação costumam ter sua alíquota elevada durante crises fiscais. 3) Pior do que a CPMF, a nova contribuição incidiria no comércio eletrônico, penalizando transações mais eficientes do que as do comércio físico. 4) Dificilmente haverá aumento de emprego. Como se sabe, na prática o ônus das contribuições previdenciárias recai sobre o trabalhador. Assim, nos casos em que a medida foi adotada, o efeito foi elevar a renda dos empregados, não criar postos de trabalho. 5) A contribuição previdenciária do trabalhador é a base para o cálculo das aposentadorias. Se a proposta incluir sua eliminação, caberia às empresas informar os salários pagos. O potencial de fraudes poderia elevar os gastos previdenciários.

 

A quarta reforma, fundada basicamente na equidade tributária, buscaria eliminar privilégios que reduzem a progressividade do Imposto de Renda, o qual, historicamente, desde que o mundo o conheceu, no início do século 20, incorporou objetivos sociais. Seu propósito sempre foi o de tributar proporcionalmente mais os segmentos mais ricos, promovendo redistribuição da renda.

 

No Brasil, conforme demonstraram os economistas Marcos Mendes, Marcos Lisboa e coautores, há incentivo à prestação de serviços mediante a constituição de pessoas jurídicas em substituição ao regime regular de pessoas físicas, a chamada “pejotização”. Com isso se transforma rendimento do trabalho em rendimento do capital. Contribuintes de maior renda gozam do privilégio de abater, na sua declaração anual de rendimentos, as despesas com saúde e educação, o que reduz a progressividade. Os lucros são tributados na pessoa jurídica, o que impede a progressividade na distribuição de dividendos a pessoas físicas. O Ministério da Economia estaria cogitando de rever todas essas distorções.

 

Caso seja aprovada a proposta mais relevante, a da PEC 45, haverá elevação da produtividade e do potencial de crescimento da economia brasileira. Cálculos recentes indicam que, em 15 anos, ela aumentaria o produto interno bruto (PIB) potencial em 20%. Não é pouco.

 

Maílson da Nóbrega é Sócio da Tendências Consultoria, foi ministro da Fazenda e é membro do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial.

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A tolerância hibernou https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3267&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-tolerancia-hibernou Mon, 08 Jun 2020 16:39:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3267 Além de preferir o confronto e governar de forma, no mínimo, caótica, sem entender como funcionam as instituições, o presidente Jair Bolsonaro tem demonstrado um alto grau de intolerância. Costuma tratar agressivamente quem não comunga com suas visões de mundo e comumente se refere a líderes de esquerda, governadores e jornalistas como inimigos. Para piorar, sob seu comando funciona um gabinete do ódio, estrutura especialista em disseminar fake news contra supostos opositores em redes sociais.

É um terreno perigoso. A intolerância motivou a fatwa do aiatolá Khomeini, recomendando matar Salmon Rushdie por seu livro Versos Satânicos. Também suscitou os ataques terroristas contra escritores e jornalistas na Dinamarca e, na França, determinou o brutal assassínio de cartunistas e funcionários do jornal satírico Charlie Hebdo.

Essas são ações antagônicas ao que acontece consistentemente nos últimos quatro séculos, quando a tolerância cresceu em todo o mundo. Ficaram para trás posições religiosas intransigentes, que originaram perseguições e guerras sangrentas na Europa. No massacre da Noite de São Bartolomeu (1572), por exemplo, cerca de 30 000 protestantes foram mortos sob a repressão comandada por reis católicos franceses. Até mesmo numa época mais longínqua, da Grécia antiga à República de Veneza, há registros de tolerância.

Segundo o cientista político francês Denis Lacorne, tolerar significava, então, condicionar diferentes religiões a se “aturarem” em favor da paz. Em sentido moderno, assinala ele, “tolerância é entendida como a aceitação de crenças e pontos de vista, permitindo que distintos grupos respeitem uns aos outros e ajam coletivamente em prol do bem comum”. Sua origem está nos séculos XVII e XVIII com o Iluminismo, associada a valores como liberdade de expressão e de religião, separação Igreja-­Estado e igualdade perante a lei.

No livro The Limits of Tolerance (2019), Lacorne mostrou a evolução rumo a essa atitude, inicialmente sob a penetrante influência de filósofos iluministas como John Locke e Voltaire, e depois por ativistas políticos americanos como Thomas Paine e Thomas Jefferson. No século XX, a tolerância abrigou grupos antes marginalizados em razão de raça, etnia, identidade cultural e gênero. Em seguida, a mudança envolveu também o casamento homoafetivo.

Para Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, na obra Como as Democracias Morrem, a tolerância é uma das regras informais da política americana. A mútua tolerância — que se consolidou após a Guerra Civil (1861-1865) — incorpora a ideia de que, “se nossos rivais agem de acordo com as regras constitucionais, aceitamos que tenham direitos iguais de existir, competir pelo poder e governar”. Nessa concepção, os opositores são definidos como adversários, não como inimigos. Como bem resume o escritor inglês Sir Arthur Helps (1813-1875), “a tolerância é o único teste real da civilização”.

Se adotassem essa simples visão, Bolsonaro e seus fanáticos seguidores contribuiriam para a convivência civilizada. Crises políticas não ocorreriam com tanta frequência e se poderia reverter a hibernação da tolerância.

Publicado em VEJA de 3 de junho de 2020, edição nº 2689 e aqui reproduzido com anuência do autor.

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